// LIVRO

Entre o Poder e o Pecado.862Z

Entre o Poder e o Pecado

Quando um jovem CEO implacável se vê irremediavelmente atraído pela nova esposa de seu pai — uma mulher elegante e enigmática, perseguida por segredos perigosos — desejo e lealdade entram em rota de colisão. Entre mansões, viagens e escândalos, ambos lutam contra chantagens, rivalidades empresariais e o peso da culpa, enquanto um sentimento proibido cresce até o ponto de não retorno. Entre o desejo e o pecado, eles precisarão escolher: salvar o império ou salvar um ao outro.

Capítulo 1 — O Herdeiro
O vidro da cobertura refletia a cidade como um mar de luzes em constante movimento. De lá, Leonardo Vasconcelos via São Paulo de cima — fria, frenética, submissa a ele. Aos trinta e dois anos, comandava o império Vasconcelos Holdings com a precisão de um cirurgião e o orgulho de quem aprendeu cedo que sentir era um luxo caro demais.
No interior do apartamento, o silêncio era cortado apenas pelo som de cristais sendo preenchidos com uísque. Ele observava o líquido âmbar girar lentamente no copo, como se o tempo dependesse de sua permissão para avançar.
A campainha soou.
Leonardo não se moveu de imediato. Esperou. Gostava de ver quem o procurava ter de esperar também.
— Entre — disse secamente, sem desviar o olhar da janela.
A porta se abriu, e um homem de terno escuro, impecavelmente alinhado, entrou com passos medidos.
— Senhor Vasconcelos, seu pai pediu que eu entregasse isso pessoalmente — anunciou o assessor, estendendo um envelope lacrado com o brasão da família.
Leonardo arqueou uma sobrancelha. — Meu pai agora envia recados por mensageiro? Temo que tenha se esquecido que temos telefone.
— Ele está em viagem, mas… pediu que o senhor lesse com urgência.
Leonardo pegou o envelope, dispensando o homem com um leve aceno. Enquanto abria a carta, seu maxilar se contraiu levemente — um sinal raro de inquietação.
“Meu filho, sei que nossas conversas sempre terminam em discussões, então prefiro anunciar por escrito: vou me casar novamente. A cerimônia será discreta, em duas semanas. Espero que esteja presente. Ela se chama Helena.”
O nome parecia se destacar entre as linhas, como uma mancha de tinta. Leonardo soltou uma risada breve, sem humor.
— Ridículo… — murmurou, jogando a carta sobre o balcão. — Outro casamento… e com quem, dessa vez? Uma socialite entediada? Uma caçadora de fortunas?
Pegou o copo de uísque e bebeu de um só gole. O calor alcoólico não suavizou o incômodo.
Horas depois, ainda de terno e gravata, Leonardo desceu ao hall do prédio. No percurso, respondeu mensagens curtas de diretores e sócios, sem realmente prestar atenção. A notícia do casamento o acompanhava como um zumbido. Seu pai sempre fora um homem de impulsos — um predador que acreditava que dinheiro era desculpa suficiente para tudo.

Dois dias depois, a mansão da família — um palacete cercado por jardins franceses — estava tomada por funcionários preparando o jantar de noivado. Leonardo chegou sem aviso, o que era típico dele. Assim que atravessou o portão, foi recebido pelo mordomo de longa data, Augusto.
— Boa noite, senhor Leonardo. Seu pai o aguarda na sala principal.
Ele entrou e sentiu o ambiente familiar, mas distante. Tudo estava igual e, ao mesmo tempo, diferente. O ar parecia impregnado de uma nova energia — como se a mansão respirasse outro perfume.
— Filho! — A voz poderosa de Antônio Vasconcelos ecoou assim que Leonardo apareceu. O homem, em seus sessenta e poucos anos, ainda exalava autoridade e presença. — Achei que não viria.
Leonardo forçou um sorriso contido. — Perder a notícia do século? Era imperdível.
— Sempre o mesmo sarcasmo — respondeu o pai, rindo. — Quero que conheça Helena.
E então, ela apareceu.
A mulher que entrava no salão parecia pertencer a outra realidade. Usava um vestido preto simples, mas perfeitamente moldado ao corpo, e os cabelos escuros presos em um coque baixo que revelava a linha do pescoço. Seus olhos eram de um tom indefinido entre verde e cinza, e o sorriso sutil era mais cortante que qualquer palavra.
— Leonardo — disse Antônio, com orgulho. — Esta é Helena.
Ela se aproximou com passos firmes, estendendo a mão.
— É um prazer, finalmente, conhecê-lo. Seu pai fala muito de você.
Leonardo manteve o aperto firme e frio. — O prazer é todo meu… ou deveria ser?
Ela o fitou com leve divertimento. — Depende do que o senhor considera prazer, senhor Vasconcelos.
A resposta rápida fez o pai rir alto, sem desconfiar da tensão no ar. Leonardo, no entanto, sentiu algo estranho — uma mistura de irritação e curiosidade. Ninguém geralmente ousava falar com ele daquele modo.
Durante o jantar, observou-a em silêncio. Helena falava pouco, mas quando o fazia, todos pareciam ouvi-la. Tinha a elegância de quem sabe o valor do próprio silêncio. Quando algum convidado mencionou sua idade — vinte e sete — ele percebeu o quanto isso o incomodou. Quase a mesma diferença que havia entre ela e ele.
Em determinado momento, ela notou seu olhar e encarou-o de volta, sem se constranger.
— Está tentando me decifrar, senhor Vasconcelos? — perguntou em tom casual.
Ele ergueu a taça de vinho. — Apenas curioso sobre o que exatamente fez meu pai acreditar no amor pela enésima vez.
Ela sorriu. — Ah, então o ceticismo é hereditário.
Leonardo a observou por alguns segundos, antes de responder:
— Não chamo de ceticismo… chamo de experiência.
Entre eles, o ar parecia vibrar. Cada palavra tinha peso, cada olhar tinha um significado escondido.
Naquela noite, pela primeira vez em muitos anos, Leonardo Vasconcelos sentiu algo que não sabia nomear.
Não era amor.
Ainda não.
Mas era o começo de algo perigoso.

Capítulo 2 — A Nova Senhora Vasconcelos
O casamento aconteceu discreto, como prometido. Discreto para os padrões dos Vasconcelos significava uma cerimônia em um palacete em Lisboa, flores importadas da Toscana e uma lista restrita de duzentos convidados. Nenhum jornalista teve acesso. Nada que saísse do controle de Antônio Vasconcelos — até porque controle era algo que ele venerava, assim como o próprio nome.
Leonardo chegou atrasado, propositalmente. Desembarcou do carro diante da igreja com o terno preto perfeitamente ajustado, o olhar de quem não devia nada ao mundo e um desinteresse estudado.
O casamento do pai o importunava. O que o intrigava, de verdade, era ela.
Helena.
O nome ecoava desde o jantar, como uma nota dissonante.
Durante o voo, ele se perguntou diversas vezes por que ainda pensava nela. A resposta era sempre a mesma: curiosidade. Desejo disfarçado de análise.
E talvez, no fundo, algo que ele não admitiria nem sob tortura — fascínio.
Quando entrou na igreja, o som do órgão soava suave. O véu de Helena caía como uma névoa prateada sobre o vestido branco simples, de corte francês. Ela avançava pelo corredor de mármore como se nascesse para aquele tipo de cenário — suntuoso, mas frio, onde até o amor parecia obedecer a um protocolo de etiqueta.
Leonardo ficou imóvel na penumbra, assistindo, até que os olhos dela o encontraram.
Por um segundo, a cerimônia pareceu parar.
O olhar que ela lançou não era de uma madrasta, nem de uma noiva. Era o de uma mulher que reconhece algo perigoso diante de si e, mesmo assim, não desvia.

Algumas semanas depois, a atmosfera na mansão mudara completamente. As paredes pareciam mais vivas, as janelas abertas deixavam entrar o cheiro de flores, e até Antônio parecia mais leve. Leonardo, por outro lado, vinha cada vez com menos frequência — sempre com a mesma desculpa de negócios urgentes.
Mas naquele domingo, contrariando o próprio instinto, ele apareceu sem avisar.
Helena estava no jardim, pintando. A tela ainda inacabada mostrava traços firmes e tons de cinza e azul. Usava um vestido leve, bege, e o cabelo preso de forma descuidada. Quando o viu, limpou as mãos em um pano e sorriu.
— Não imaginei que o veria por aqui num domingo — disse. — A Bolsa não abre, certo?
Ele a olhou com um meio sorriso. — O mercado nunca dorme. E você também parece ocupada fazendo investimentos… em arte.
Ela deu uma risada breve. — Nem tudo pode ser medido em lucros, senhor Vasconcelos.
— Leonardo — corrigiu automaticamente. — Pode me chamar de Leonardo.
— Certo, Leonardo. — O jeito como ela pronunciou o nome soou íntimo, quase indecente, embora seu tom fosse perfeitamente inocente. — Seu pai está na ala norte com o arquiteto. Quer ver o novo salão de festas pronto antes da temporada de inverno.
— Claro. — Ele olhou ao redor, fingindo desinteresse. — A mansão parece diferente.
— Isso não é bom? — perguntou ela, pousando o pincel.
Ele desviou o olhar. — Mudanças nem sempre são bem-vindas.
Helena sorriu com sutileza. — Talvez porque você não possa controlá-las.
Leonardo a fitou de novo, os olhos fixos, avaliadores.
— Está me analisando, Helena?
— Só observando. Análise é coisa sua — retrucou, limpando um fio de tinta no pulso. — Eu só noto o que as pessoas tentam esconder.
— E o que acha que eu escondo?
— A humanidade — disse, sem hesitar. — Parece ter medo dela.
Por um momento, ele ficou em silêncio.
A leve brisa mexia o tecido do vestido dela e o tempo parecia suspenso. Helena voltou a encarar a tela, como se a conversa tivesse acabado, mas Leonardo deu um passo à frente.
— Meu pai não sabe muito sobre você, sabe?
Ela virou o rosto devagar, os olhos claros fixos nele.
— O suficiente. E isso deveria bastar.
— Ele confia fácil demais. Isso costuma custar caro — avisou, em tom baixo. — E eu costumo prevenir prejuízos.
— Está me avisando… ou me ameaçando?
Leonardo esboçou um sorriso calculado. — Ainda não decidi.
Helena o encarou sem medo. — Então me avise quando decidir, para eu escolher se devo me defender.
O troco o desconcertou. Ele desviou o olhar primeiro — algo que raramente acontecia.
— Diga ao meu pai que eu passei por aqui — disse, por fim. — Tenho um voo para Zurique esta noite.
— Já indo tão cedo? — provocou ela. — Achei que ficaria para o jantar.
— Eu prefiro lugares onde há menos… ambiguidades.
Helena segurou o olhar dele, o sorriso agora quase imperceptível. — Cuidado, Leonardo. Às vezes é nas ambiguidades que a verdade mora.
Ele a observou por mais um instante e se virou para sair. Mas, antes de desaparecer pelo portão, suas palavras ecoaram nas pedras do caminho:
— Verdade é algo que raramente se compra, Helena. Mas sempre se paga caro quando se descobre.
Naquela noite, Helena ficou sozinha na sacada da mansão, olhando a imensidão do jardim.
Ela não percebeu quando seus dedos tocaram o colar que escondia sob o vestido — uma antiga joia de família, herdada da mãe.
Atrás do brilho esmeralda, estavam lembranças que ninguém — nem Antônio, nem Leonardo — jamais souberiam.
Porque o passado de Helena, como seu olhar, era algo que ninguém decifrava sem cair na armadilha.
E, de alguma forma, Leonardo começava a cair.

Capítulo 3 — Orgulho e Intimidação
A chuva caía fina sobre a cidade, transformando o vidro da limusine em um mosaico prateado. Leonardo observava as gotas escorrendo pelo reflexo distorcido de um rosto que raramente mostrava emoção. Voltava de uma reunião com investidores estrangeiros em Zurique, cansado, irritado e, pela primeira vez, distraído o suficiente para não pensar em números nem relatórios.
Pensava nela.
Em Helena.
Na audácia das palavras dela, na serenidade provocante com que o enfrentava.
Nenhuma mulher o incomodara tanto. Nenhuma.
Durante anos, aprendeu a domar sua impulsividade, esconder suas reações, fazer das emoções apenas ferramentas. Mas Helena parecia atravessar sua couraça com uma elegância perigosa.
A limusine parou diante da sede da Vasconcelos Holdings — um prédio de vidro e aço que refletia o horizonte. Leonardo subiu direto à cobertura do edifício, onde ficava seu escritório. O espaço era amplo e minimalista, uma vitrine de poder silencioso. Ali tudo obedecia a ele. Menos seus pensamentos.
No meio da tarde, enquanto revisava um contrato, um toque rápido na porta interrompeu sua concentração.
— Senhor Vasconcelos — anunciou Larissa, sua assistente. — Sua madrasta está aqui.
Ele ergueu os olhos, surpreso com o nome. — O quê?
— Dona Helena. Disse que precisava tratar de um assunto pessoal. Eu… tentei avisar que o senhor estava ocupado, mas ela insistiu.
Leonardo respirou fundo, repousando a caneta sobre o documento.
— Mande entrar.
Helena surgiu no instante seguinte. Nenhum guarda-costas, nenhuma pompa. Usava uma calça de alfaiataria bege e uma camisa branca de seda, o cabelo solto, os olhos firmes. Parecia deslocada naquele ambiente corporativo — e, paradoxalmente, o completava.
Leonardo se recostou na poltrona.
— Que surpresa, Helena. Veio me observar profissionalmente ou pessoalmente desta vez?
— Vim resolver um mal-entendido — respondeu, caminhando com passos seguros até a frente da mesa. — Seu pai acredita que você não aprova nosso casamento. E a tensão entre vocês está… afetando-o.
— Ele te mandou aqui? — Ele sorriu, irônico. — Não imaginava que agora ele terceirizasse reconciliações familiares.
— Ele não mandou. Eu decidi vir — retrucou, cruzando os braços. — Achei que seria melhor olhar nos seus olhos do que lidar com seus recados frios por e-mail.
Leonardo arqueou uma sobrancelha, estudando-a como se ela fosse mais um contrato.
— Olhar nos meus olhos pode ser perigoso, Helena. Costumam enxergar mais do que as pessoas querem mostrar.
— Não tenho nada a esconder.
— Todos têm. Inclusive você.
O ar pareceu ficar mais denso. Helena manteve o olhar, firme, e se aproximou.
— Está tentando me intimidar?
Ele inclinou a cabeça, quase sorrindo. — Você parece acostumada a ter todos sob seu encanto. Mas comigo isso não funciona.
— Não estou tentando encantá-lo.
Leonardo se levantou lentamente da cadeira, a presença dominando o espaço. — Então o que está tentando fazer aqui, exatamente?
Ela respirou fundo. — Tentar a paz. Entre você e o pai que ainda o ama, mesmo que você se recuse a admitir.
— Amor? — Ele deu uma risada breve. — Meu pai ama seus negócios, ama ser temido, ama ter controle. E agora talvez ame você — até o próximo capricho.
— Você fala como se fosse diferente.
Leonardo ficou em silêncio.
Helena se deu conta de que o toque da provocação fora certeiro.
Ela o observou dar a volta na mesa e parar bem diante dela, próximo o suficiente para que o perfume dele a alcançasse — amadeirado, intenso, exato demais.
— Não se engane, Helena — disse ele, em voz baixa. — O problema não é você ter se casado com meu pai. O problema é que ele não percebeu o que você é.
— E o que eu sou, Leonardo? — perguntou ela, quase sussurrando.
Ele a encarou fixamente. — Uma mulher que gosta de poder, mas finge apenas querer estabilidade. E, acima de tudo, alguém perigoso demais para estar debaixo do mesmo teto que eu.
— Ou alguém que te incomoda porque não teme você — rebateu.
Por um instante, a tensão se transformou em algo mais. Não era hostilidade pura — era um campo de energia que vibrava entre os corpos próximos demais. Nenhum dos dois recuou. O silêncio era quase audível.
— Se terminamos a avaliação psicológica — disse ela, quebrando o ar rarefeito —, gostaria apenas de pedir uma coisa: não torne isso mais difícil para o seu pai.
Leonardo manteve o olhar nela por mais alguns segundos e, então, respondeu:
— Tudo é difícil quando alguém tenta fingir que está tudo certo. E eu não sou bom em fingimentos.
Ela pegou a bolsa sobre a cadeira. — Então vai continuar guerreando contra fantasmas, enquanto perde as pessoas reais.
Ele deu um passo à frente, segurando-a pelo pulso antes que saísse.
— Cuidado, Helena. Um dia, você pode ser um desses fantasmas.
Helena fixou os olhos nos dele.
— Talvez já seja.
Leonardo a soltou, lentamente. Ela virou as costas e saiu, sem olhar para trás. A porta se fechou, deixando o silêncio reinar.
Ele permaneceu ali, imóvel, sentindo o eco das próprias palavras. Pela primeira vez em muito tempo, percebia-se vulnerável — e embora não admitisse, sabia que aquele encontro marcava o início de uma guerra que não seria vencida com lógica, mas com desejo.

Capítulo 4 — Primeiras Fissuras
O sol de Florença derramava uma luz dourada sobre os telhados e as pedras antigas das ruas. O ar cheirava a arte, vinho e promessas antigas. Leonardo Vasconcelos estava ali em nome dos negócios — pelo menos, era o que dizia a todos. Um contrato bilionário com investidores europeus o mantinha longe do Brasil há duas semanas. Tempo suficiente para quase esquecer o olhar de Helena.
Quase.
Ele caminhava pelo pátio do Palazzo Ferrare, onde aconteceria uma exposição exclusiva de arte contemporânea. Aquele tipo de evento o entediava, mas era terreno fértil para conhecer homens de poder. Trajava terno escuro, impecável, e o cinismo habitual de quem conhece o valor do próprio nome. Ao seu redor, colecionadores, aristocratas e socialites alvejavam champanhe e segredos com a mesma naturalidade.
Foi quando um murmúrio o fez parar.
— Dizem que a brasileira chegou — dizia uma mulher próxima. — Linda, misteriosa. E com um olhar que faria o próprio pecado se curvar.
Leonardo não soube explicar por que sentiu o corpo reagir antes da mente entender. Ao virar o rosto, sua respiração vacilou discretamente.
Ela estava ali.
Helena.
Vestido verde-escuro, cabelo solto em ondas, um colar de ouro discreto caindo no colo. Parecia parte da arte exposta, intocável, confiante. E tão fora de lugar quanto ele.
Leonardo ficou imóvel por um instante, observando-a conversar com um marchand italiano. O sorriso dela era educado, calculado — e, ainda assim, genuíno o suficiente para desarmar os que se aproximavam.
A raiva o atingiu com força inesperada. Que diabos ela fazia ali?
Ele não planejou o movimento, mas quando se deu conta, já caminhava na direção dela.
— Que coincidência — murmurou ele, parando atrás dela no exato momento em que ela se despedia do marchand. — O mundo é realmente pequeno demais.
Helena se virou devagar, o sorriso mantendo-se no rosto, embora os olhos revelassem um lampejo de surpresa.
— Leonardo. Eu deveria imaginar que o universo corporativo e o artístico acabariam colidindo em algum ponto.
— Ou talvez não seja coincidência — disse ele, mantendo o tom baixo. — Você costuma aparecer onde não deveria.
Ela ergueu as sobrancelhas. — E você costuma julgar antes de entender. É um padrão seu?
Ele riu, um som breve, sem humor. — Eu chamaria de instinto.
— Engraçado — retrucou ela. — Achei que seu instinto o mandaria fugir de mim.
Leonardo deu um passo à frente, e o espaço entre eles pareceu se contrair.
— Talvez eu esteja cansado de fugir.
Por um segundo, o cenário se dissolveu. Os sons do salão, o burburinho da elite, o tintilar das taças — tudo ficou distante. Era só ele e ela. Um duelo silencioso. Uma batalha que nenhum dos dois admitia estar travando.
Helena quebrou o momento. — Estou em Florença a convite da curadoria. Tenho relações no mundo das artes, lembra? Apesar de o seu olhar sugerir que eu vim aqui por você.
— Você sempre foi boa em insinuar verdades evitando mentiras — disse ele.
Ela riu suavemente. — E você é bom em transformar curiosidade em acusação. — Pegou uma taça no garçom que passava. — Aceita um brinde? À coincidência, ou ao destino, talvez?
Ele pegou a taça das mãos dela.
— Ao perigo — respondeu.
Os olhares se cruzaram acima do cristal. O toque das taças ecoou como um pacto silencioso.
Mais tarde, já do lado de fora do palácio, o vento noturno trouxe um frio súbito. A lua banhava o Arno, e a cidade parecia respirar em compasso com os dois que caminhavam juntos, sem admitir que era intencional.
Helena foi a primeira a falar:
— O que você realmente quer de mim, Leonardo? Porque, desde o começo, parece esforçar-se para me odiar e não consegue.
— Quem disse que não consigo? — respondeu, com um sorriso torto. — Eu consigo. Só não dura muito.
Ela parou, o encarando sob a luz amarelada de um poste. Os olhos cinza-esverdeados estavam sérios agora.
— O seu pai merece respeito.
— E você acha que está conseguindo dar isso a ele? — rebateu, aproximando-se. — Olhe bem nos meus olhos e diga que escolheu meu pai… e não o poder que o nome Vasconcelos oferece.
— Você fala com tanta convicção porque já se acostumou a acreditar que todo mundo quer algo de você — disse ela, a voz firme. — Talvez o problema seja que ninguém quer você de verdade.
Leonardo sentiu o golpe. Poucas pessoas ousavam falar com ele assim.
— Cuidado, Helena. Está cruzando a linha.
— E você? — provocou. — Está me dizendo isso por moralidade, ou porque não suporta o que está começando a sentir?
Ele ficou imóvel, respirando fundo. O controle escapava por entre os dedos, mas continuava disfarçando.
— Sinto repulsa, talvez. Pela situação, pelo risco, por tudo isso ser… errado.
— Repulsa não faz o coração bater desse jeito — sussurrou ela.
Antes que ele respondesse, adiantou-se, parando tão perto que o perfume dela — jasmim com algo quente, indefinível — o envolveu.
Leonardo fechou os olhos por uma fração de segundo, tentando conter o impulso. Quando abriu de novo, encontrou Helena o encarando, serena, mas com a respiração levemente acelerada.
— Você me odeia, Leonardo — disse ela, num fio de voz. — Mas continua aqui.
— Odeio o quanto você me desafia — murmurou. — Odeio não conseguir te ler como os outros. Odeio… — Ele interrompeu a própria frase, sustentando o olhar. — E odeio o fato de que, às vezes, penso em você.
Helena sorriu de leve. — Ódio é um sentimento intenso. Intensidade é o teu vício.
E antes que ele pudesse responder, ela se afastou, descendo os degraus de pedra.
Leonardo permaneceu parado, o coração descompassado, observando-a desaparecer na noite.
Sabia que devia esquecê-la — mas algo dentro dele, obscuro e inevitável, já havia se partido.
A primeira fissura no seu controle acabava de se abrir.
E ele sabia: impossíveis não voltam atrás.

Capítulo 5 — Jogo de Espelhos
Os dias seguintes à viagem a Florença pareciam desfilar em câmera lenta. Leonardo mergulhara de volta ao caos dos negócios: reuniões, acionistas, fusões e cifras que exigiam precisão implacável. Mas por trás de cada planilha, havia um nome que ecoava incessante — Helena.
Tentar esquecê-la era inútil. Ela tinha invadido seus pensamentos como uma falha no sistema, um vírus impossível de eliminar. O que o irritava não era apenas o desejo, mas o fato de que, pela primeira vez em anos, ele não controlava o próprio jogo.
E Leonardo não suportava perder.
Uma noite, após uma sequência de negociações desgastantes, ele foi forçado pelo pai a comparecer a um evento beneficente da Fundação Vasconcelos. O salão do hotel Ritz brilhava em dourado, repleto da nata empresarial e política do país. O nome Vasconcelos garantia manchetes, investimentos, influência — e, agora, também escândalos silenciosos.
Leonardo entrou no salão cumprimentando banqueiros e ministros, o sorriso afiado no rosto, o terno perfeitamente talhado. Até que a viu.
Helena estava ali.
Ela surgiu descendo a escadaria central, trajando um vestido longo prateado, o tecido fluindo como água. Cada passo parecia medido, calculado para guardar mistério e poder. O colar que usava — o mesmo da noite em Florença — capturava as luzes do lustre e as lançava de volta para o salão como pequenas lâminas. E, por um instante, ele jurou que o brilho o atingiu no peito.
— Então era verdade… — murmurou Antônio Vasconcelos, aproximando-se. — Meu filho ainda comparece quando falo de dinheiro. Fico satisfeito.
Leonardo não desviou o olhar da mulher que agora conversava com um senador. — Vim por cortesia, não por lucro.
O pai riu. — Até o lobo precisa vestir pele de cordeiro quando a matilha está assistindo. — Depois completou, orgulhoso: — Diga o que quiser, mas Helena sabe brilhar. Ela nasceu para este mundo.
Leonardo respondeu apenas com um movimento leve de mandíbula. Sabia que o pai falava sério — Antônio gostava de exibir Helena como um troféu, como se ela validasse o império e rejuvenescida sua imagem. E aquilo o irritava de forma inexplicável.
Quando Helena notou sua presença, o olhar deles se cruzou por um segundo longo. Não houve sorriso, apenas uma troca silenciosa — reconhecimento e provocação, num só gesto.
Minutos depois, quando se viram sozinhos na varanda de mármore, ela o abordou primeiro.
— Não esperava te ver hoje — disse, apoiando as mãos delicadamente no parapeito. — Achei que esse tipo de evento já não te interessasse.
— E não interessa — respondeu. — Mas você parece aproveitar bem esse mundo.
Ela virou o rosto, estudando-o. — Ainda preso em suas análises, Leonardo? Sempre medindo as pessoas pela utilidade delas?
Ele se aproximou lentamente, até que o perfume dela o envolvesse. — Não costumo me enganar sobre intenções, Helena.
— Então me esclareça. — Seu tom era calmo, mas os olhos estavam atentos. — O que exatamente acha que quero?
— O mesmo que todos querem de mim: o poder que carrego, mesmo que o neguem.
Ela soltou um riso baixo. — Que arrogância fascinante.
— Ou lucidez. — Ele deu outro passo, agora absurdamente próximo. — Mas sabe o que é interessante? Você também tem poder. Só que o seu é mais perigoso… não precisa ser dito.
Helena inclinou o rosto, desafiadora. — E o seu problema é que o meu não pode ser comprado.
Leonardo sentiu o sangue pulsar, lento e pesado. — Você adora me provocar.
— Você adora ser provocado.
O silêncio entre eles se estendeu, tenso, denso. O som distante da orquestra misturava-se ao próprio ritmo das respirações. Leonardo deixou escapar um sorriso curto.
— Um dia, esse jogo vai nos custar caro.
— Talvez seja esse o encanto — respondeu Helena, sem desviar o olhar.
Um garçom interrompeu a tensão passando com duas taças de champanhe. Ela pegou uma e ergueu como um brinde.
— À hipocrisia? — ele perguntou.
— Ao controle. O seu. O meu. O que fingimos ter e o que estamos prestes a perder.
Ele aceitou a outra taça e beberam. Helena virou-se para ir embora, mas parou à porta e disse sem olhar para trás:
— Cuidado, Leonardo. Os espelhos mostram só o que queremos ver. Mas, às vezes, também revelam o que tentamos esconder.
Leonardo a observou se afastar, o coração batendo forte, o som dos saltos dela ecoando no mármore como uma sentença.
Naquele instante, teve certeza: o jogo começara.
E ele não sabia mais se queria vencê-lo — ou se perder seria exatamente o que desejava.

Capítulo 6 — O Segredo
As luzes da madrugada filtravam-se pelas enormes janelas do apartamento de Leonardo. A cidade, silenciosa, parecia dormir sob um manto de fumaça e concreto. Ele, porém, não dormia.
Na tela do computador, um dossiê se expandia linha após linha, como uma ferida aberta.
— Helena Albuquerque de Sá Vasconcelos. — ele murmurou o nome, lendo cada detalhe da investigação confidencial que encomendara. — Nasceu em Lisboa, 27 anos, formação incompleta em História da Arte, passagem curta por galerias na França, relações financeiras com empresas desconhecidas…
Nada parecia criminoso, mas tudo era vago demais. As lacunas gritavam mais do que os fatos.
Leonardo jamais fora homem de se deixar consumir por curiosidades sentimentais, mas algo o empurrava para dentro daquele labirinto. Helena não podia ser apenas o que dizia ser — ele sentia isso como uma verdade física, instintiva.
Levou o copo de uísque aos lábios, o gelo tilintando contra o cristal. Do outro lado da cidade, uma mulher dormia ao lado de seu pai, sem saber que estava sendo dissecada como um segredo de Estado.
Dois dias depois, um tabloide publicou uma nota venenosa — “A nova senhora Vasconcelos teria um passado controverso com um empresário europeu ligado a evasão fiscal?”
O escândalo não chegou a explodir, mas foi suficiente para gerar desconforto. Helena notou a mudança nos olhares à sua volta, notou os cochichos dos funcionários e, principalmente, o silêncio pesado que pairava na mansão.
Numa tarde chuvosa, decidiu encontrar Leonardo.
Ele a recebeu no escritório, o mesmo cenário de mármore, madeira escura e janelas infinitas. Quando Helena entrou, trazia um casaco creme e um olhar que misturava indignação e tristeza.
— Você mandou investigar meu passado — disse sem preâmbulos. — Foi obra sua, não foi?
Leonardo reclinou-se na cadeira, o rosto impassível.
— Eu apenas protejo o que é meu.
— O que é seu? — rebateu. — Você fala como se eu fosse propriedade.
— Falo como alguém que já viu gente demais destruir tudo que meu pai construiu por ganância.
— E acha que eu sou uma dessas pessoas?
Ele não respondeu de imediato. Observou-a em silêncio, o olhar frio, clínico, quase cruel.
— Acho que você é boa demais para ser verdadeira.
Helena se aproximou, lenta, as mãos tremendo de leve.
— E o que faria se descobrisse que meu passado realmente é imperfeito?
— Depende do tipo de imperfeição.
Ela riu sem humor. — A sua arrogância é quase comovente. Acha que pode medir caráter com planilhas?
Leonardo se levantou. — Eu confio em números. Eles não mentem.
— Mas omitem. — Ela o fitou com firmeza. — E você vive omitindo o que sente.
Ele desviou o olhar. Não queria, mas as palavras o atingiram. Quando voltou a encará-la, havia fúria e desejo misturados.
— Fale, então, Helena. O que devo saber?
Ela respirou fundo. — Há algo que jamais contei ao seu pai. E nunca planejei contar a ninguém.
Leonardo deu um passo à frente, a voz tensa. — Continue.
— Eu vivi com alguém antes dele. Um homem muito influente na Europa. Rico, poderoso… — Ela hesitou. — Perigoso. Quando terminei com ele, as ameaças começaram. Eu fugi, mudei de identidade, tentei reconstruir minha vida. Conheci o seu pai quando já estava exausta de correr. Ele me ofereceu paz.
— Paz ou proteção? — perguntou em tom baixo.
— Ambos. — Helena baixou os olhos. — Mas meu passado é uma sombra que nunca me deixou em paz.
Leonardo ficou em silêncio por longos segundos. O corpo inteiro parecia sustentado por tensão.
— E por que me contar isso agora?
— Porque você precisa entender que minha presença aqui não foi um golpe. Eu lutei para me libertar de um homem que me tratava como caçador trata presa. Não sou o monstro que você quer enxergar.
Ele deu outro passo, ficando tão perto que sentiu o perfume dela.
— E por que, então, parece se encaixar tão bem no papel de mulher que manipula?
— Porque é o único papel que os homens como você deixam disponíveis — disparou.
O silêncio que se seguiu foi denso, quase palpável. Leonardo sentiu o coração acelerar, o sangue ferver. Parte dele queria continuar interrogando-a; outra parte queria apenas tocá-la, como quem testa se o perigo é real.
Helena o encarou, séria. — Diga alguma coisa.
Ele respondeu, baixo: — Eu não sei mais se quero te destruir… ou te entender.
Ela deu um meio sorriso melancólico. — Talvez não consiga fazer uma coisa sem a outra.
E saiu, deixando para trás o rastro leve do perfume e o peso da confissão.
Naquela noite, Leonardo revisou novamente o dossiê. As informações pareciam frias, inofensivas — até ele perceber o nome do homem com quem Helena vivera: Miguel Ferrer, o mesmo empresário que anos atrás traíra a confiança dos Vasconcelos em um acordo milionário de importação.
Coincidência?
Ou destino, com seu humor perverso?
O coração de Leonardo apertou.
O passado de Helena estava amarrado ao dele muito antes de se conhecerem.
E, de repente, o que era desejo proibido começou a se transformar em algo mais perigoso: obsessão.

Capítulo 7 — O Beijo Proibido
A noite se espalhava sobre São Paulo como um manto de sombras e neon. A chuva fina refletia nas avenidas, transformando-as em espelhos líquidos onde as luzes dos carros se misturavam à pressa e ao segredo. Leonardo dirigia sem rumo. Há dias não dormia, e o rosto diante do espelho retrovisor parecia o de alguém à beira do abismo — mas ainda elegantemente controlado.
Depois das revelações de Helena, algo dentro dele se quebrara. A raiva se misturava com algo que ele não queria nomear, e o raciocínio lógico — seu refúgio — deixara de bastar.
Quando o telefone vibrou, ele atendeu quase de imediato.
— Leonardo… — a voz de Helena soou do outro lado, contida, hesitante. — Precisamos conversar.
Ele permaneceu em silêncio por alguns segundos antes de responder:
— Esta conversa pode esperar?
— Não. — Houve um breve som de respiração do outro lado. — Estou na galeria da fundação. Sozinha.
Ela desligou antes que ele respondesse.
Meia hora depois, ele estacionava diante da galeria particular administrada por Helena — um espaço elegante, com vitrais e esculturas de luz tênue. Chovia mais forte agora, e ele atravessou o pátio com o casaco escuro colado ao corpo.
Quando entrou, as luzes estavam parcialmente apagadas. Apenas alguns focos iluminavam quadros e sombras que pareciam se mover. O som da chuva contra o vidro era o único ruído.
— Helena? — chamou.
Ela apareceu logo em seguida, caminhando descalça pelo chão de mármore, o cabelo solto e úmido. Usava um vestido leve, cor de vinho, que parecia absorver o brilho suave do ambiente.
— Achei que não viria.
— Achei que deveria te evitar. — Ele se aproximou aos poucos. — Mas você não facilita.
— Não vim facilitar. Vim esclarecer.
Leonardo a observou em silêncio. Cada gesto dela era uma provocação silenciosa — não proposital, mas inevitável.
— Desde aquele dia em que me contou sobre seu passado… — disse ele, a voz mais baixa —, eu não consigo tirar da cabeça o fato de que o homem com quem você viveu é o mesmo que destruiu metade dos contratos da minha família.
Helena desviou o olhar, contornando uma escultura. — Eu não sabia disso quando o conheci. Nunca planejei nada contra os Vasconcelos.
— Difícil acreditar em coincidências.
— A dúvida é mais confortável que a fé, não é? — retrucou, parando diante de um dos quadros. — Você confia tanto no controle que esqueceu o que é apenas sentir.
Leonardo deu um passo à frente. — Sentir é fraqueza.
— Não. — Ela se virou, os olhos brilhando. — É humano.
O silêncio que se seguiu era quase tangível. A tensão pairava no ar como eletricidade antes do trovão.
Helena se aproximou mais um pouco, a voz quase um sussurro:
— Você me odeia porque eu te enfrento… ou porque desperto algo que você tenta enterrar?
Ele respirou fundo. — Talvez as duas coisas.
Ela estendeu a mão, lentamente, pousando-a sobre o peito dele, bem onde o coração batia.
— Então pare de lutar contra o que já começou.
Leonardo segurou a mão dela por reflexo, os olhos fixos nos dela. Houve um momento breve, inevitável, em que nenhum dos dois respirou. E então, como se o universo tivesse esperado tempo demais, ele cedeu.
O beijo aconteceu sem preâmbulo, intenso, fervente, mas contido pelo peso da culpa. Suas mãos alcançaram o rosto dela, enquanto Helena se ergueu na ponta dos pés, correspondendo sem hesitar. A chuva do lado de fora pareceu cessar, o mundo inteiro reduzido àquela explosão contida de desejo e negação.
Quando se afastaram, os dois respiravam rápido.
— Isso não devia ter acontecido — sussurrou ela, ainda ofegante.
— Concordo — respondeu ele, a voz rouca. — Mas vai acontecer de novo.
Helena deu um passo para trás, o olhar oscilando entre fascínio e pavor. — Você não entende o perigo disso.
— O perigo sou eu, Helena. — Leonardo deu outro passo, aproximando-se. — E você já está dentro.
Ela o encarou em silêncio, o tremor leve nos lábios denunciando o conflito. Depois, simplesmente se virou.
— Vá, Leonardo. Antes que não tenhamos mais para onde voltar.
Ele permaneceu por um instante, como se realmente buscasse forças para obedecer. Depois, sem dizer palavra, saiu.
Lá fora, a chuva o engoliu. O gosto dela ainda estava em sua boca, doce e proibido, como uma sentença.
E, enquanto dirigia de volta sob a tempestade, Leonardo teve a certeza do inevitável: a guerra que antes era entre eles agora também era dentro dele. E nenhuma vitória seria possível — porque o desejo já escolhera o vencedor.

Capítulo 8 — A Culpa
A chuva que caía do lado de fora da galeria parecia espelhar o caos dentro de Leonardo. Ele dirigia em silêncio, as mãos firmes no volante, mas o corpo inteiro tomado pela lembrança — o toque de Helena, o gosto do beijo, o instante em que a razão deixou de existir.
O carro cortava a cidade enquanto as sombras das luzes o acompanhavam através dos vidros. Ele não sabia ao certo se sentia raiva ou alívio. Talvez os dois. Tudo o que passara anos construindo dentro de si — rigidez, orgulho, controle — começava a ruir.
Ao chegar em casa, foi direto para o escritório. Tirou o paletó, afrouxou a gravata e se jogou na poltrona de couro, massageando as têmporas. Na mesa, três telefones piscavam com notificações de negócios pendentes, mas nenhuma importava.
A única coisa que via era o rosto dela.
Helena.
Fechou os olhos e a viu novamente, molhada pela luz fraca da galeria, os lábios entreabertos, o olhar que dizia sim enquanto a boca dizia não.
— Maldita hora — murmurou. — Maldita mulher.
Na mansão dos Vasconcelos, Helena caminhava pelo corredor silencioso com passos lentos. As lágrimas ainda não tinham caído, embora estivessem presas em seus olhos. Ela parou diante do espelho no fim do corredor, encarando a própria imagem.
— O que você fez… — sussurrou.
O reflexo não respondeu. Só devolveu o olhar de culpa e desejo.
O som de passos a fez virar. Antônio estava ali, com um copo de vinho nas mãos.
— Helena — chamou, em voz baixa. — Ainda acordada?
Ela forçou um sorriso. — Não consegui dormir. A tempestade…
— Também não durmo bem quando chove — disse ele, se aproximando. — Parece que o mundo fica mais barulhento por dentro nessas noites.
Helena assentiu, tentando parecer tranquila. O marido se inclinou e a beijou na testa, um gesto terno, quase paternal. Ela fechou os olhos, sufocando a culpa.
— Está fria. Amanhã vamos ao campo. Vai te fazer bem — disse ele, antes de subir as escadas.
Quando ficou sozinha, Helena se permitiu chorar. As lágrimas caíram silenciosas, misturadas à chuva batendo nas janelas.
Ela sabia que cruzara uma linha da qual não havia retorno.
Dias depois, Leonardo e Helena tentaram manter distância. Fingiam normalidade à mesa, em eventos, nas conversas superficiais. Mas cada olhar era um lembrete do que haviam feito.
E cada tentativa de se afastar parecia apenas reacender o fogo.
Numa tarde, durante um evento interno da empresa, o acaso os colocou lado a lado em uma reunião. O ar entre eles parecia vibrar.
Enquanto um diretor falava, Helena mantinha os olhos na tela do laptop, mas a respiração acelerava toda vez que sentia o olhar dele sobre ela.
Quando a reunião terminou, ele foi o primeiro a sair — mas ela o seguiu. Pararam no corredor vazio.
— Não podemos continuar assim — disse Helena, a voz baixa, trêmula.
— Concordo — respondeu ele, seco.
Ela cruzou os braços. — Então por que parece impossível parar?
Ele se aproximou, tão perto que ela sentiu o calor do corpo dele. — Porque já deixamos de decidir faz tempo.
Ela desviou o rosto, mas ele segurou o queixo dela com firmeza. — Olhe para mim.
— Leonardo, por favor…
— Eu tento, Helena. Tento odiar você todos os dias. Mas cada vez que olho, só me lembro do que senti.
Ela fechou os olhos, lágrimas ameaçando cair. — Isso é errado. É cruel com todos.
— Eu sei. — A voz dele falhou. — Mas o que você quer que eu faça? Fingir que não aconteceu? Fingir que não quero?
Ela recuou um passo. — Quero que me deixe esquecer.
Mas Leonardo apenas sorriu de forma amarga. — Então que Deus tenha piedade de nós, porque eu não vou conseguir.
Ela virou-se e saiu rapidamente. Quando a porta se fechou, Leonardo apoiou a testa na parede, respirando fundo, como alguém lutando contra o próprio coração.
A culpa os consumia.
Mas o desejo, silencioso e voraz, continuava crescendo.

Capítulo 9 — Silêncio na Mansão
A mansão Vasconcelos parecia mais silenciosa do que nunca. As janelas altas deixavam entrar a luz fria do amanhecer, iluminando móveis e segredos com o mesmo tom pálido.
Antônio começava a desconfiar. Não havia provas, apenas o instinto de quem domina pessoas há décadas. Helena, antes tão falante, agora evitava o olhar dele; Leonardo, por sua vez, tornara-se ainda mais reservado.
No café da manhã, o som dos talheres era o único ruído.
— Você está pálida, Helena — observou o patriarca. — Está se alimentando direito?
Ela assentiu rapidamente. — Sim, só ando cansada.
Leonardo manteve o olhar fixo na xícara de café. O silêncio entre os dois era tão intenso que parecia poder ser ouvido.
Antônio continuou: — Tenho reparado em algo estranho. O clima entre vocês mudou.
— Clima? — perguntou Helena, forçando serenidade. — Deve ser impressão sua.
— Talvez — respondeu ele, mas o olhar demorou-se entre os dois. — De qualquer forma, pretendo viajar a Londres por alguns dias. Negócios pendentes.
Quando o pai deixou a mesa, Helena soltou um suspiro tenso. Leonardo levantou-se em seguida.
— Vou ao escritório — disse, evitando encará-la.
— Leonardo… — Helena chamou, em voz baixa.
Ele parou, mas não se virou.
— Por favor. — Ela se aproximou, o rosto tomado de angústia. — Prometa que não vai deixar isso nos destruir.
Ele virou-se lentamente, os olhos frios, mas tristes. — Já destruiu, Helena. Só estamos fingindo que não.
E se afastou.
Ela permaneceu ali, com o coração pesado, sentindo a casa inteira observar o que não podia mais ser dito.
Nas semanas seguintes, o silêncio se tornou rotina. O amor proibido que os consumia agora encontrava refúgio em olhares rápidos, toques fugazes e palavras que não precisavam existir.
Mas o controle de um segredo jamais dura para sempre.
E, nas sombras da mansão Vasconcelos, algo — ou alguém — já começava a suspeitar.

Capítulo 10 — Alianças e Traições
O som insistente do telefone rasgou o silêncio do escritório. Leonardo atendeu de imediato, o olhar ainda fixo nos relatórios sobre a mesa.
— Fale. — A voz saiu fria, automática.
Do outro lado, o diretor financeiro da Vasconcelos Holdings parecia hesitar. — Senhor… tivemos um problema. Um vazamento de informações. Dados do contrato com o consórcio europeu caíram em mãos erradas.
Leonardo endireitou-se na cadeira. — Quais mãos?
— De um grupo concorrente. A mídia ainda não sabe, mas já estimamos perdas milionárias.
Por alguns segundos, o silêncio pesou.
Quando falou, a voz de Leonardo foi tensa, controlada e perigosa.
— Encontre a origem. Agora.
— Já estamos rastreando. E… senhor, há outra coisa.
— Diga.
— O contato que originou o acesso está vinculado a um e-mail da fundação de arte da senhora Helena Vasconcelos.
A frase caiu como uma sentença.
Leonardo desligou o telefone sem responder.
Os olhos fixos no nada, o coração disparado.
Helena?
Imediatamente tentou negar a hipótese. Ela não seria imprudente — nem idiota — a ponto de se envolver nisso. Mas, em algum ponto profundo, o fantasma da desconfiança ergueu-se.
E, como sempre, ele precisa de respostas.
Horas depois, ele entrou na galeria dela sem avisar. Helena estava sozinha, analisando uma nova exposição.
— Leonardo? — perguntou surpresa ao vê-lo. — O que houve?
Ele não respondeu. Passou direto, trancando a porta atrás de si. Os olhos que antes a olhavam com desejo agora ardiam com raiva e decepção.
— Quero uma explicação. — A voz dele era baixa, mas cada sílaba cortava o ar. — O seu nome apareceu num rastreamento de acesso aos nossos contratos.
— O quê? — Ela empalideceu. — Isso é impossível.
— Um e-mail partindo da sua fundação foi usado para enviar documentos reservados.
Helena deu um passo à frente, confusa. — Leonardo, eu jamais faria isso.
Ele a interrompeu com um gesto brusco. — Como posso acreditar, Helena? — O tom dele oscilava entre dor e fúria. — Já mentiu antes. Escondeu seu passado, suas ligações com Ferrer… agora isso?
— Eu escondi o passado porque ele me assombra! — gritou, a voz embargada. — Mas não te traí. Não trairia você.
Leonardo se aproximou, o olhar tempestuoso. — Não acredite que o que temos possa te salvar, se eu descobrir que foi parte de um golpe.
Ela o fitou com os olhos marejados. — Então é isso? O homem que… que dizia se importar comigo agora me ameaça?
— O homem que se importa está tentando não se enganar outra vez.
Helena respirou fundo, controlando o tremor das mãos. — Leonardo, houve alguém aqui na fundação nos últimos dias. Um funcionário novo da equipe de tecnologia que seu pai indicou. Talvez ele tenha usado meus acessos.
— Nome.
— Rafael Duarte.
Leonardo anotou o nome no celular. — Se estiver mentindo, eu vou saber.
— Se estiver errado, você vai se arrepender por me duvidar. — A voz dela, agora baixa, soou como aço.
A troca de olhares durou longos segundos, incandescente, até que ele se afastou, saindo sem olhar para trás.
Helena segurou o batimento acelerado no peito. Sabia que havia algo mais ali — um jogo de manipulações em que ambos agora eram peças vulneráveis.
Naquela noite, Leonardo recebeu o relatório completo. O tal Rafael Duarte era, de fato, um infiltrado. Funcionário fantasma, contratado semanas antes por uma empresa ligada a Miguel Ferrer.
O coração dele gelou.
Helena estava dizendo a verdade.
A culpa o atingiu como um golpe. Pensar no medo no rosto dela, nas lágrimas contidas, fez tudo dentro dele doer. Pegou o casaco e saiu, ignorando a madrugada e a chuva.
Encontrou-a na sacada da mansão, o cabelo solto, os olhos vermelhos. Ao vê-lo, Helena recuou um passo, insegura.
— O que veio fazer aqui?
Leonardo parou à sua frente. — Você estava certa. Ferrer está por trás de tudo. O homem que te perseguiu está tentando usar você de novo — e eu fui idiota o suficiente pra duvidar.
Ela não respondeu; apenas mordeu o lábio, lutando entre o alívio e a raiva.
— Helena, eu… — Ele tentou se aproximar. — Eu errei.
— Não é a primeira vez que você me fere, Leonardo.
— E talvez nunca seja a última. — A sinceridade da frase escapou sem controle. — Mas eu não vou deixar Ferrer tocar em você.
As lágrimas escorreram silenciosas pelas bochechas dela. — Você não pode lutar o tempo todo.
— Posso, se for por você.
O silêncio entre eles foi dissolvido pelo som distante de trovões. Helena desviou o olhar, mas Leonardo segurou o rosto dela com delicadeza.
— Olhe pra mim — sussurrou. — Eu preciso acreditar que ainda posso te proteger.
Ela respirou fundo. — E quem vai me proteger de você, Leonardo?
Ele não respondeu. Apenas a puxou para si num abraço tenso, onde o perdão e o desejo se misturavam.
Naquele instante, sabiam que o que os unia era mais forte que o medo — e mais perigoso que qualquer inimigo.
Mas ao longe, no portão da mansão, um carro preto esperava.
De dentro, um homem observava a cena, um cigarro entre os dedos e um sorriso frio no rosto.
Miguel Ferrer acabava de voltar.

Capítulo 11 — Confissão
O amanhecer chegou envolto em neblina. Helena acordou com a mente pesada, como se o sonho e a realidade tivessem se fundido. O rosto de Leonardo ainda estava em sua memória — o toque firme, o calor do abraço, a promessa muda de que ele lutaria por ela.
Mas a guerra real, ela sabia, não seria romântica.
Antes mesmo de o café ser servido, Antônio Vasconcelos já estava na sala, o semblante fechado.
— Helena, precisamos conversar. — O tom dele era cortante, como nos velhos tempos de negociações. — Recebi informações preocupantes.
Ela sentou-se, tentando disfarçar o tremor. — Que tipo de informações?
— Seu ex-companheiro, Miguel Ferrer. Há indícios de que ele esteve no Brasil nas últimas semanas. E parece interessado nas nossas empresas. — Antônio a observava atentamente. — O que esse homem quer?
Helena manteve a calma, mas o coração batia rápido. — Antônio, ele está obcecado em me atingir. Não tem a ver com seu império, mas comigo.
— Com você, tudo tem a ver comigo — respondeu ele, seco. — E se houver algo que não esteja me contando, é melhor me dizer agora.
Helena respirou fundo. — Há algo, sim.
As próximas palavras vieram pesadas, quase dolorosas. Ela contou sobre as ameaças, a chantagem, a manipulação — tudo o que vivera antes de fugir e reinventar o passado. Contou sobre as cartas anônimas, os recados deixados, os rastros de medo.
Antônio ouviu em silêncio, o maxilar travado. Quando ela terminou, ele se levantou lentamente.
— Você colocou nossos nomes no alvo desse homem.
— Eu tentei poupar vocês — defendeu-se, emocionada. — Fugi de tudo isso pra ter paz!
— Paz? — Ele riu sem humor. — Casar comigo foi a sua paz?
As palavras dele a feriram fundo.
— Eu te amei, Antônio. — A voz dela saiu trêmula. — Só não esperava que o passado voltasse desse jeito.
Ele olhou para ela por alguns segundos longos demais. — Não sei mais no que acreditar.
E saiu da sala, deixando Helena mergulhada num silêncio sufocante.
Do lado de fora, Leonardo o esperava no corredor.
— Pai — tentou dizer alguma coisa, mas Antônio ergueu a mão, cortando-o. — Não se meta nisso.
Leonardo ficou parado, sentindo o mundo desmoronar ao redor.
Helena, dentro da sala, chorava baixinho, sem saber o quanto ainda teria de perder antes de ser livre.
Mas lá fora, entre as sombras do poder e da culpa, Miguel Ferrer já traçava o próximo movimento.
E, dessa vez, ele vinha disposto a recuperar o que julgava seu — nem que tivesse de destruir cada um deles para isso.

Capítulo 12 — Quebrar Correntes
A noite era densa, o tipo de escuridão que parece pesar nos ombros. Leonardo atravessava a sala principal da mansão com passos firmes, enquanto o eco de sua própria fúria o acompanhava. Do outro lado do corredor, a voz de Antônio Vasconcelos soava alta — ordens, telefonemas, ameaças travestidas de autoridade.
Helena estava trancada no quarto de hóspedes, abatida, arrasada pela discussão anterior. O rosto pálido refletia o medo que ela achava ter deixado para trás.
Mas agora, o passado tinha voltado. E com ele, o homem que jamais desistiria até destruí-la.
Leonardo bateu à porta do pai sem pedir permissão.
— Precisamos conversar.
Antônio ergueu o olhar, surpreso com a ousadia, mas não cedeu. — Estou ocupado.
— Vai querer ouvir o que tenho a dizer.
O pai abaixou lentamente o telefone, cruzando as mãos sobre a mesa. — Então diga.
Leonardo caminhou até o centro da sala, a voz controlada, mas carregada de emoção contida. — Você não tem o direito de tratá-la assim.
— Refere-se à sua madrasta? — O tom de desprezo era evidente. — A mulher que acabei de descobrir que trouxe um criminoso até a minha casa?
— Ela não trouxe nada. Ela fugiu desse homem.
— E agora o mesmo homem ameaça o meu império! — A raiva de Antônio explodiu. — Você entende o que está em jogo, Leonardo? Tudo o que construí!
Leonardo respirou fundo, tentando conter o impulso de gritar. — Já entendi há muito tempo. Mas o que está destruindo a família não é Ferrer. É você.
O silêncio caiu pesado. Antônio o fitou, incrédulo. — O que disse?
— O que ouviu. — Leonardo deu um passo à frente. — Tudo na sua vida é poder, controle, aparência. Você acha que pode comprar qualquer coisa — até o amor das pessoas ao seu redor.
Antônio levantou-se, a postura ainda autoritária. — Cuidado, Leonardo. Está ultrapassando limites.
— Os seus limites. — A voz do filho endureceu. — Porque os meus acabaram no dia em que vi o medo nos olhos dela por sua causa

Capítulo 12 — Quebrar Correntes

A noite era densa, o tipo de escuridão que parece pesar nos ombros. Leonardo atravessava a sala principal da mansão com passos firmes, enquanto o eco de sua própria fúria o acompanhava. Do outro lado do corredor, a voz de Antônio Vasconcelos soava alta — ordens, telefonemas, ameaças travestidas de autoridade.

Helena estava trancada no quarto de hóspedes, abatida, arrasada pela discussão anterior. O rosto pálido refletia o medo que ela achava ter deixado para trás.
Mas agora, o passado tinha voltado. E com ele, o homem que jamais desistiria até destruí-la.

Leonardo bateu à porta do pai sem pedir permissão.
— Precisamos conversar.

Antônio ergueu o olhar, surpreso com a ousadia, mas não cedeu. — Estou ocupado.

— Vai querer ouvir o que tenho a dizer.

O pai abaixou lentamente o telefone, cruzando as mãos sobre a mesa. — Então diga.

Leonardo caminhou até o centro da sala, a voz controlada, mas carregada de emoção contida. — Você não tem o direito de tratá-la assim.

— Refere-se à sua madrasta? — O tom de desprezo era evidente. — A mulher que acabei de descobrir que trouxe um criminoso até a minha casa?

— Ela não trouxe nada. Ela fugiu desse homem.

— E agora o mesmo homem ameaça o meu império! — A raiva de Antônio explodiu. — Você entende o que está em jogo, Leonardo? Tudo o que construí!

Leonardo respirou fundo, tentando conter o impulso de gritar. — Já entendi há muito tempo. Mas o que está destruindo a família não é Ferrer. É você.

O silêncio caiu pesado. Antônio o fitou, incrédulo. — O que disse?

— O que ouviu. — Leonardo deu um passo à frente. — Tudo na sua vida é poder, controle, aparência. Você acha que pode comprar qualquer coisa — até o amor das pessoas ao seu redor.

Antônio levantou-se, a postura ainda autoritária. — Cuidado, Leonardo. Está ultrapassando limites.

— Os seus limites. — A voz do filho endureceu. — Porque os meus acabaram no dia em que vi o medo nos olhos dela por sua causa.

Por um instante, o ar entre eles pareceu prestes a explodir.

— Está me desafiando por uma mulher? — perguntou o pai. — Por ela?

Leonardo manteve o olhar fixo. — Não é sobre ela. É sobre mim. Eu passei a vida tentando ser o que você queria, mas há coisas que nem você pode controlar.

Antônio riu, sem humor. — Está confuso. Essa mulher te enfeitiçou.

— Ela me fez enxergar o que você não vê há anos — respondeu. — Que não há império suficiente que apague o vazio aqui dentro.

O pai se virou para o bar, servindo-se de um copo. — Ridículo. Você sempre foi emocional demais.

Leonardo sorriu, amargo. — Então é isso que acha? Ótimo. Porque eu estou cansado de fingir ser de pedra.

Bateu o punho sobre a mesa, os cristais tilintando. — Se quiser me tirar da empresa, faça isso. Mas não ouse usar Helena como alvo do seu ressentimento.

Antônio o encarou em silêncio, surpreso com a ousadia.
— Você fala como se a amasse.

Leonardo demorou a responder. E quando o fez, as palavras saíram baixas, quase um sussurro:
— Eu a amo.

O silêncio que veio depois parecia infinito. Antônio pousou o copo devagar, os olhos agora apertados — uma mistura de choque e fúria.

— Está dizendo… — começou, com a voz rouca. — Que está apaixonado pela mulher do seu pai?

— Estou dizendo que o amor não pediu permissão. — Leonardo o encarou sem recuar. — E não adianta tentar apagá-lo. Já aconteceu.

Antônio fechou os olhos por alguns segundos, respirando com esforço, tentando manter a calma. Quando os abriu, estava pálido, envelhecido.
— Deixe minha casa. Agora.

Leonardo não hesitou. Virou-se e saiu sem olhar para trás.
No corredor, Helena o esperava.

— O que você fez? — sussurrou ela, aflita.

— O que precisava ser feito.

— Leonardo… ele vai te destruir.

Ele segurou o rosto dela entre as mãos. — Então ele vai ter de destruir algo que ele mesmo criou.

E a beijou.

Um beijo de desespero, de liberdade e pecado, selando o que se tornara inevitável. Nenhum dos dois falou mais nada. Apenas se abraçaram enquanto o mundo que conheciam começava a ruir.

*****

Na manhã seguinte, Leonardo acordou em seu apartamento, longe da mansão. Do lado de fora, a cidade parecia calma, indiferente às guerras particulares dos poderosos.

O telefone tocou. Era Marcelo, seu amigo e advogado de confiança.
— A situação está ruim, Léo. Seu pai congelou tua participação na empresa. Fechou as contas. Está preparando uma ofensiva pra te tirar de tudo.

Leonardo respirou fundo, impassível. — Era esperado.

— E Ferrer?

— Ainda está à solta. — A voz dele ficou fria. — Mas é questão de tempo até eu encontrá-lo.

Quando desligou, o celular vibrou novamente. Desta vez, uma mensagem.

“Precisamos conversar. — H.”

Ele olhou o relógio. 8h15.
Respondeu apenas: “Onde?”

“No hotel Aurora, quarto 904.”

Leonardo fechou o punho. Sabia que, qualquer que fosse o próximo passo, já não havia retorno.

E, no fundo, sentia que algo muito maior estava prestes a acontecer.


Capítulo 13 — O Preço da Verdade

O quarto 904 do hotel Aurora tinha a vista mais cara da cidade. Cortinas de seda, vinho tinto sobre a mesa, o cheiro de flores frescas no ar. Helena esperava encostada à janela, os cabelos soltos, o olhar perdido na vista lá fora.

Quando Leonardo entrou, ela virou-se lentamente.

— Achei que talvez não viesse.

— E te deixar sozinha, no meio de tudo isso? — Ele fechou a porta. — Nunca mais.

Ela se aproximou com passos lentos. — Antônio te odeia agora.

— Ele odeia tudo que não pode controlar.

Helena abaixou a cabeça, murmurando: — E Ferrer… ele me ligou.

Leonardo a segurou pelos ombros, firme. — O que ele disse?

— Que quer me ver. Que, se eu não for, ele vai destruir tudo. Fotos, documentos, a empresa. — Os olhos dela se marejaram. — Disse que quer ver o que o “filho e a viúva do Vasconcelos” estão escondendo.

Leonardo fechou os olhos por um instante. — Ele sabe.

— Sobre nós?

— Sobre tudo. — A voz dele estava pesada. — E se soube, alguém falou.

Helena respirou fundo, tocando o rosto dele. — O que vamos fazer?

Leonardo a olhou com um misto de dor e decisão. — O que sempre faço: enfrentar. Mas desta vez, não em nome do império… em nome de nós.

Ela o abraçou, forte, como quem sabe que o mundo lá fora estava prestes a colapsar.

E enquanto a chuva começava a cair lá fora, os dois compreenderam que a verdade jamais é gratuita. Sempre cobra.
E o preço estava apenas começando.

 

Capítulo 16 — Os Fantasmas Voltaram

A rodovia cortava o interior da França como uma lâmina úmida, lustrosa sob a garoa. O GPS marcava um destino simples: Lyon. O que não estava no mapa era o que Leonardo carregava no peito — aquela mistura de fúria controlada e promessa. O passado tinha rosto, cheiro e método. E um nome: Miguel Ferrer.

No banco do passageiro, um dossiê aberto: transações trianguladas, nomes de empresas laranja, fotos de segurança com Ferrer entrando e saindo de hotéis discretos. O traço comum era o rastro de destruição deixado para trás: reputações arruinadas, sociedades implodidas, mulheres quebradas. Ferrer não negociava, cercava. Não tomava, cercava mais. Um cerco não tem pressa.

O telefone vibrou. Marcelo.

— Consegui o que pediu. Ferrer está num clube privado em Lyon, chamado Le Nadir. Jogo pesado, gente que não aparece em foto. — Curto silêncio. — Vai entrar mesmo assim?

— O que você acha? — Leonardo mantinha a voz baixa, sem qualquer tremor.

— Então ouça: o cara não opera sozinho. Dois seguranças fixos. E tem alguém daqui alimentando ele. Alguém que conhece tua rotina. Eu ainda não fechei quem é.

— Fecha. Hoje. — Leonardo desligou sem cerimônia.

Chegou a Lyon no fim da tarde. A cidade parecia uma pintura lavada, onde as margens do Saône carregavam sombras de bronze. O Le Nadir ficava num porão de fachada histórica. A entrada, escondida, era marcada por uma luz discreta e um porteiro vestido como um diplomata.

— Membro? — perguntou o homem, em francês seco.

— Convidado de Ferrer. — Leonardo sustentou o olhar. — Ele está me esperando.

A dúvida durou meio segundo. Depois, a porta se abriu.

O salão era um útero de veludo e fumaça, com mesas baixas, cristal e um piano sussurrando notas empoeiradas. Homens e mulheres conversavam sem pressa, como quem tinha comprado tempo. No fundo, um reservado com paredes de madeira escura. E lá, com o terno cinza grafite e um sorriso econômico, estava Miguel Ferrer.

— O herdeiro rebelde — disse, levantando-se. O sotaque ibérico escorregava nas consoantes. — Pensei que viria antes. A paixão costuma apressar os passos.

Leonardo não se sentou. — Deixe Helena em paz.

— Direto ao assunto. — Ferrer indicou a cadeira com a ponta dos dedos. — Sente-se, por favor. A civilidade é o primeiro degrau do respeito.

— Não confunda civilidade com covardia. — Leonardo encarou-o. — Quanto custa o seu silêncio?

Ferrer inclinou a cabeça, como quem admira uma peça curiosa. — A pergunta certa é: o que você está disposto a perder?

— Já perdi. Agora só decido o ritmo.

Ferrer riu baixo. — Você fala como quem nunca foi algemado pela própria biografia. Eu sei tudo, Leonardo. Sei onde jantou com Helena. Sei das diárias em Paris. Sei dos bilhetes, dos horários, das ausências. Também sei que seu pai não aguenta mais seu nome. — O sorriso afinou. — O amor que desafia tabus é um luxo muito caro para se pagar com orgulho.

— Está vendendo? — Leonardo deu meio passo à frente. — Eu compro.

— Não vendo. — Ferrer piscou devagar. — Eu coleciono.

O silêncio caiu pesado. O piano cessou. Pela primeira vez, Leonardo sentiu o ar mudar — não por medo, mas porque reconheceu a natureza do inimigo: alguém que se alimentava de danos irreversíveis.

— Qual é o seu fim? — Leonardo perguntou. — Dinheiro? Destruição? O que você quer de verdade?

Ferrer se inclinou para a frente, os olhos escuros sem brilho. — Quero que ela me peça. — Cada palavra caiu fria. — No dia em que Helena me pedir, eu paro.

O sangue de Leonardo ferveu, mas o rosto permaneceu indiferente. — Ela não vai pedir. Nem hoje, nem nunca.

— Todos pedem. — Ferrer ergueu dois dedos. Dois homens se aproximaram ao fundo. — E quando pedem, aprendem a pronunciar o preço. Ou… a perder mais.

Leonardo deixou o olhar percorrer a sala: saídas, distâncias, reflexos nos espelhos. Quando voltou a encarar Ferrer, trazia outra arma: a informação.

— Você lavou dinheiro usando a logística portuária de Cádiz e Lisboa. Mas se escondeu atrás de uma fundação de restauro que desviava tributos via leilões simulados. Achei os recibos, os catálogos falsos, as estimativas duplicadas. — Ele pousou um envelope sobre a mesa. — Três promotores já têm cópia.

Ferrer não tocou o envelope. Não precisou. — Você não aprenderá do jeito fácil. — O sorriso morreu. — Tudo bem. Podemos tentar do jeito que dói.

Antes que os seguranças avançassem, uma voz cortou o ar:

— Acabou o concerto ou ainda vale repetir do começo?

Helena.

Ela estava à porta do reservado, o rosto firme, o coque milimetricamente preso, um vestido de tecido pesado que caía como armadura. Ninguém a esperava ali. Nem Ferrer, nem Leonardo. Principalmente, a culpa dentro dela.

— Você não devia ter vindo — Leonardo disse, num sopro.

— Vim terminar. — Helena deu dois passos, ignorando os seguranças. — Miguel, você não entendeu. Não sou mais a mulher que corre. Sou a mulher que encerra.

Ferrer sorriu, sinceridade ausente. — Você sempre foi a melhor peça do meu tabuleiro.

— E você sempre errou o tabuleiro. — Ela pousou um celular na mesa. — Gravação desde o início desta conversa. A imprensa de arte não gosta de crimes românticos, mas adora crimes fiscais.

— A imprensa que você acha que controla? — Ferrer apontou de leve para o teto. — Sabe quem está acima de você? Dinheiro. Sabe o que está acima do dinheiro? Mais dinheiro.

— E sabe o que está acima disso? — Helena cruzou os braços. — O aplauso de quem te derruba. Já vivi com seu medo, Miguel. Nunca mais.

Os seguranças se moveram. Leonardo os mediu com o corpo e o olhar de quem lutou poucas vezes, mas todas quando foi preciso. O primeiro investiu; Leonardo desviou, prendeu o pulso e o jogou contra a mesa com técnica seca. O segundo hesitou: tempo suficiente para Helena erguer o spray de defesa que tirou da bolsa. Um jato no rosto, um grito, uma cadeira caindo.

Ferrer não recuou. Apenas pegou o envelope e sorriu. — Eu voltarei. Eu sempre volto.

— Não desta vez — disse uma nova voz na porta.

Marcelo entrou com dois agentes discretos da polícia tributária francesa. Documentos em mãos. Mandados de busca. Linguagem oficial.

— Senhor Miguel Ferrer, o senhor nos acompanhará para esclarecimentos sobre transações vinculadas à Fundação Arges e a leilões realizados em território europeu.

O salão inteiro pareceu prender a respiração.

Ferrer simplificou a cena com uma frase: — Nada é definitivo.

— Exato. — Leonardo encostou na mesa, exausto por dentro e intacto por fora. — Mas isso é um começo.

Enquanto Ferrer era conduzido, ele virou o rosto uma única vez para Helena. Não havia raiva. Nem amor. Só cálculo. O cálculo de quem ainda achava que dominaria o tabuleiro quando as luzes estivessem baixas e os fotógrafos cansados.

Quando a polícia saiu, o piano recomeçou, como se a noite tivesse apenas mudado de tom. Helena fechou os olhos por um segundo. O corpo inteiro tremia; a postura, não.

— Acabou? — ela perguntou.

— Ainda não — respondeu Leonardo. — Mas pela primeira vez, começou a acabar.

— Ele terá gente em todo lugar.

— Então seremos dois. — Leonardo tocou a mão dela. — E agora eu sei como você vence: não fugindo.

Helena respirou fundo, como quem reaprende a usar os próprios pulmões. — Vamos embora daqui.

Na rua, a chuva cessara. A cidade parecia um cenário desmontado. No alto, nuvens finas deixavam entrever um fio de lua. Ao entrarem no carro, ela apertou os olhos por um instante.

— Obrigada por ter vindo — disse, baixinho.

— Obrigado por ter ficado de pé — ele respondeu.

O motor ligou. O mapa indicava Paris. Mas o destino — o real — indicava outra coisa: consequências.

No retorno, o celular de Leonardo vibrou com uma mensagem anônima: “Nada termina. Olhe para casa.” Anexa, uma foto de Antônio entrando em um hospital.

O passado soltara uma gargalhada. E estava de volta ao endereço de origem.

— Vamos para o Brasil — disse Leonardo, a voz num fio.

— Agora? — Helena soltou o ar, como se a coragem tivesse peso. — Então vamos.

E foram.


Capítulo 17 — Redenção

O hospital privado tinha corredores alvos demais para a quantidade de sombras que carregava. Nos monitores, linhas verdes desenhavam a teimosia da vida. Antônio Vasconcelos, antes um edifício de marfim e aço, jazia mais magro, mais curto, mais humano daquela cama que não negociava com ninguém. O diagnóstico, rápido e frio: colapso decorrente de estresse, pressão alta ignorada, um coração acostumado a vencer batalhas que, de repente, recusou uma.

Leonardo entrou primeiro. Parou aos pés da cama. O silêncio entre pai e filho foi maior do que qualquer fortuna, maior do que qualquer briga. O orgulho, ali, não tinha onde sentar.

— Pai — ele disse, sem armadura.

Antônio abriu os olhos, límpidos pela primeira vez em anos. A voz saiu áspera: — Veio ver meu fim?

— Vim ver você — respondeu Leonardo. — Pela primeira vez.

Um canto de boca tremeu. Talvez fosse um sorriso, talvez fosse dor. — Trouxe ela?

Leonardo olhou para trás. Helena ainda estava no corredor, mãos unidas, a recusa de entrar era respeito e medo. Ele fez um gesto sutil. Ela deu três passos, depois mais dois, e ficou. Não junto. Presente.

— Helena — disse Antônio, sem veneno. — Eu sempre gostei do seu silêncio. Era o único quieto nesta casa.

Ela engoliu em seco. — Sinto muito, Antônio.

— Sente nada. — Ele apertou os lábios, cansado demais para elegâncias. — A vida me cobrou com juros. Talvez eu merecesse a fatura.

Leonardo se aproximou. — Não é sobre merecer.

— Sempre foi. — Os olhos do pai se cravaram no filho. — Eu te fiz de ferro. Você me devolveu em espelho. — Respirou mais fundo. — Dizem que você a ama. Dizem que eu a casei. Dizem que somos monstros. — A tosse veio curta. — Os jornais dizem muito. O meu coração, não. Ele só diz que dói menos agora.

Helena sentiu as lágrimas queimarem, mas não chorou. Não ali. Antônio virou o rosto para ela:

— Você me pediu paz. Eu te dei paredes. Paredes seguram o vento, mas não calam a tempestade. — Ele ergueu uma mão trêmula. — Chegue mais perto.

Ela se aproximou, devagar. O velho empresário segurou-lhe os dedos, e a força que restava concentrou-se naquele gesto.

— O passado te perseguiu porque você o deixava entrar pela porta dos fundos. Tranque. — Fitou Leonardo. — E você, pare de confundir amor com guerra. — Um brilho quase humorado. — A guerra você sabe ganhar. O amor… aprenda.

O monitor cantou um pequeno alarme, logo silenciado pela equipe que entrou e saiu sem violência. Antônio aguardou que a sala ficasse novamente só deles.

— Eu não tenho mais nada para dar — disse, a voz sendo gasta palavra por palavra. — O resto é com vocês. — Olhou para o filho, um segundo a mais, como quem entrega uma senha. — Cuide dela… longe de mim.

A última frase ficou suspensa, a metade do perdão que pai e filho entenderam inteira. Antônio fechou os olhos, não para sempre, mas para descansar. A enfermeira sinalizou com um gesto: estável, por ora. Horas críticas à frente. Tendências que a medicina lê, mas não prevê.

No corredor, um silêncio líquido envolveu os dois. Helena sentou, por fim, o corpo pedindo chão.

— Ele te perdoou — sussurrou.

— Eu não vim pedir isso. — Leonardo apoiou a testa na parede fria. — Mas talvez fosse a única coisa que ainda me faltava para te amar inteiro.

— Não diga isso aqui — ela respondeu, uma dor doce e aguda atravessando as palavras.

Leonardo assentiu. — Tudo bem. Eu digo em qualquer outro lugar.

Ele se afastou para falar com médicos, advogados, equipe. Resolveu em minutos o que precisaria de dias: isolamento de dados, auditoria interna, afastamento de diretores ligados à fuga de informações. Um CFO que parecia leal demais foi colocado sob avaliação. Marcelo chegava, com novos relatórios.

— Dois nomes: Vasconcelos e Cultura Viva, uma ONG de fachada para irrigar mídia cinzenta. O CFO, Álvaro, pode estar nesse eixo. — Marcelo passou as folhas. — Se Ferrer for preso mesmo, eles precisam de um plano B. E esse plano B é te arruinar por dentro.

— Então vamos por dentro — disse Leonardo.

No fim da tarde, ele voltou ao quarto. Antônio dormia. Helena observava o jardim através da janela, mãos cruzadas, postura de quem não abandona o posto.

— Ele falou comigo — ela disse, sem virar. — Não com a voz. Com o que sobrou dela. Eu entendi.

— O que você entendeu?

— Que paz não se herda. Se constrói. — Ela o encarou, finalmente. — E que a nossa só existe se for… limpa. Sem escombros.

Leonardo respirou fundo. — Você quer ir embora.

— Eu quero ficar. — A firmeza surpreendeu até a ela. — Mas não posso ficar vivendo em um corredor de hospital e manchetes. Eu fico se você prometer que não vai transformar o nosso amor num troféu de guerra.

Ele deu um passo, depois outro, até que a distância fosse a exata da sinceridade. — Eu prometo que não vou vencer você. Só caminhar ao lado.

— E se for preciso perder?

— Perco meu sobrenome. Não perco você.

Ela quase sorriu. — Cuidado com promessas ditas perto de uma cama. Elas viram destino.

— Então deixa virar.

Um toque na porta. A médica entrou, breve: exames estáveis, 48 horas críticas, visitas reduzidas. Helena assentiu; Leonardo assinou documentos sem ler duas vezes. Ao sair, encontraram Álvaro, o CFO, colado ao celular, olhos rápidos demais para quem não tinha nada a esconder.

— Álvaro — disse Leonardo, num tom que era convite e aviso. — Meu escritório. Agora.

— Aqui? — Álvaro ensaiou. — No hospital?

— Aonde eu estiver — respondeu.

Entraram numa sala de espera vazia. Leonardo de pé, Álvaro sentado com desconforto visível, Marcelo encostado à moldura da porta.

— Quero sua senha de e-mail e o histórico das últimas três semanas — disse Leonardo.

— Isso é ilegal — Álvaro rebateu, seca e burocraticamente.

— Ilegal é vender a empresa do meu pai por dentro. — Leonardo cruzou os braços. — Eu só vou fazer a contabilidade moral.

— Não tenho nada a ver com vazamentos.

— Engraçado. — Marcelo consultou o tablet. — O IP da Cultura Viva acessou planilhas às 2h13 da manhã, no dia X. O seu login, recuperado por token, validou a sessão.

— Fui hackeado.

— Hacker bonzinho, que ainda corrige nossos erros de formatação? — Marcelo ergueu a sobrancelha.

O silêncio pesou. Álvaro respirou fundo, o suor aparecendo como uma assinatura. — Vocês não entendem. Isso é maior que vocês. Esse dinheiro tem dono. Esse jogo tem regras. — Olhou para Leonardo com uma espécie de piedade invertida. — Apaixonar-se pela mulher do pai? Você acredita mesmo que vai sair inteiro?

— Não — Leonardo respondeu, calmo. — Mas vou sair eu.

O CFO tentou levantar. Marcelo bloqueou a porta com o corpo, sem tocar. Leonardo ligou para segurança corporativa. Dois homens vieram discretos. A conversa terminou com um pedido formal de auditoria, afastamento do cargo, e uma frase de Leonardo que serviu como ata de intenções:

— A partir de agora, só o que é limpo passa. O sujo não toca em mim. Nem nela.

Quando a noite se fechou, Helena estava sentada no jardim interno, sozinha. Ele se aproximou devagar, como quem aprende a chegar.

— Posso? — ele perguntou.

— Pode — ela respondeu, e pela primeira vez desde que todo aquele mundo desabou, encostou a cabeça no ombro dele. — Eu tenho medo do amanhã.

— Eu também. — Leonardo cruzou os dedos nos dela. — Então vamos ficar aqui até o hoje cansar.

Ficaram. O vento noturno moveu as folhas como quem vira uma página.

No alto, a lua rasgou o céu de hospital com a ousadia dos que não pedem licença.

Horas depois, perto do amanhecer, Antônio abriu os olhos novamente. Não falou. Mas viu — os dois, juntos, quietos, do lado de fora, como dois culpados em trégua com a vida. Havia, naquele quadro, qualquer coisa parecida com o que ele sempre buscou: permanência.

Fechou os olhos outra vez. Talvez, pela primeira vez, sem medo de perdê-los.

— O que você quer para depois daqui? — Helena perguntou, a voz tão baixa que poderia ser pensamento.

— Verdade — respondeu Leonardo. — Mesmo quando doer.

— E eu quero… paz. — Ela suspirou, cansada e inteira. — Mesmo quando custar.

— Então a gente tem um plano.

— Temos.

O telefone vibrou. Uma mensagem curta de Marcelo: “Ferrer prestou depoimento. Há um acordo em curso. Pode cantar.”

Leonardo olhou o horizonte cinza que nascia. — O mundo vai tentar nos aplaudir pela razão errada.

— Então a gente aprende a aplaudir baixo — disse Helena.

E foi assim, com as mãos dadas e os olhos cansados, que decidiram o próximo passo: dizer a verdade, não como escândalo, mas como escolha. Não por coragem, mas por necessidade.

O que vier depois, eles ainda não sabiam. Só sabiam que, pela primeira vez, o inimigo não estava fora. E isso, paradoxalmente, era libertador.

— Vamos começar pelo começo — disse Leonardo.

— E qual é?

— Contar a verdade a quem deve escutá-la antes de todos.

— Seu pai?

— Meu pai.

Ela assentiu. — Eu vou com você.

— Eu não saberia ir sem.

No corredor, as luzes se acenderam uma a uma, como se alguém, em algum lugar, tivesse decidido que o dia merecia nascer.

 

Capítulo 18 — Ruínas e Esperança

A manhã nasceu áspera, com o céu de um cinza que lembrava aço. No quarto silencioso, apenas o bip compassado do monitor dava ritmo ao que restava de um império: um homem cansado, um filho desarmado, uma mulher que aprendera a atravessar tempestades sem fechar os olhos. Helena ajeitou as flores no vaso, como quem organiza o caos possível. Leonardo respirou fundo, passou a mão pelos cabelos e assentiu — era hora.

Antônio abriu os olhos ao ouvir passos. Não havia guarda pretoriana nem plateia. Só aquilo que homens muito poderosos muitas vezes evitam: intimidade.

— Pai — começou Leonardo, sem circunlóquios. — Antes de qualquer um, o senhor precisa ouvir de mim.

Antônio o observou, atento. No rosto havia menos dureza e um cansaço honesto. — Fale, então. Desta vez, sem negociar.

Leonardo encarou Helena, que assentiu em silêncio. Ele continuou: — Eu e Helena nos apaixonamos. Não começou limpo, não começou certo. Tentamos negar, tentamos fugir, tentamos destruir. Não conseguimos. Hoje, o que temos não é argumento. É fato.

O silêncio foi tão denso que parecia material. Antônio virou o rosto para Helena. — Você?

— Não vim pedir perdão — disse ela, a voz firme e baixa. — Vim aceitar as consequências. Mas preciso que saiba: não entrei na sua vida para te usar. Entrei para tentar sobreviver ao que me perseguia. E quando amei seu filho, eu perdi qualquer desculpa.

As pálpebras de Antônio pesaram como portas. Uma lembrança cruzou-lhe o olhar — um passado em que escolhera poder quando poderia ter escolhido paz. — E agora? — murmurou. — O que esperam de mim? Que eu abençoe a ruína?

— Não — respondeu Leonardo. — Que não a torne maior.

Antônio inspirou devagar. O orgulho, aquela rocha, rachou um pouco mais. — Eu formei você para vencer. E você me entrega a única vitória que não sei nomear. — Virou-se para Helena. — Cuide dele onde eu não soube cuidar.

Foi o mais perto de uma bênção que a vida lhes permitiria. Helena assentiu com um nó na garganta. Leonardo não chorou. Mas a palavra “filho” pousou nele sem as armas.

A médica entrou com atualizações: quadro estável, cirurgia eletiva recomendada para correção de uma artéria — risco calculado, decisões urgentes. Antônio ouviu, olhou para o filho, e entregou a caneta. — Assine. Confio mais na sua lucidez do que na minha teimosia.

Assinou. E, ao fazer isso, Leonardo percebeu que herdava outra coisa que não fortuna: a chance de encerrar uma guerra que não lhe servia.

Horas depois, no corredor, Marcelo chegou apressado. — Duas coisas. Um: Ferrer avançou num acordo de delação em troca de redução de pena fiscal. Dois: o CFO, Álvaro, tentou apagar rastros. Só que deixou a porta dos fundos aberta.

— O que temos? — Leonardo passou do sono ao aço.

— Transferências para a ONG Cultura Viva e para uma offshore em Malta. Relacionadas a três conselheiros e a um jornalista que inflou manchetes. — Marcelo suspirou. — Se você quiser, derruba o conselho hoje. Mas o efeito colateral é explosivo.

— Exploda — disse Leonardo. — Mas sem ferir inocentes.

— Vai te custar o posto, talvez a holding.

— Posto é cadeira. Eu fico de pé.

Marcelo sorriu de um jeito cansado. — É. Agora entendi porque ela ficou.

Na sala de espera, Helena lia um livro fechado, as mãos paradas sobre a capa. Ele se sentou ao lado, encostando o ombro. — Vai doer — disse. — Mas depois melhora.

— Dor conhecida dói menos — ela respondeu. — E eu cansei das desconhecidas.

À tarde, convocaram uma reunião extraordinária no auditório do hospital — lugar indecoroso para um golpe de limpeza, mas adequado à urgência. Conselheiros chegaram de semblante severo, seguranças discretos, advogados com pastas pesadas. Álvaro tentou tomar a palavra; Leonardo começou primeiro.

— Durante anos confundimos sucesso com silêncio. Hoje, vamos desconfundir. — Projetou na tela o diagrama das transferências. — Aqui está o trajeto do dinheiro que comprou manchetes, votos, sabotagens e medo. Aqui estão nomes. Aqui estão datas. E aqui está o meu.

Murmúrios cortaram o ar. Helena observava da última fila, invisível por escolha. Ele continuou:

— Vou facilitar: renuncio hoje ao cargo executivo e ao voto que me prende a este conselho. Em troca, vocês aprovam auditoria externa, afastam o CFO, os conselheiros envolvidos e criam uma blindagem ética que sobreviva a mim e a meu pai. Sem isso, a delação do seu amigo Ferrer vai parecer poesia.

Um dos conselheiros se ergueu, vermelho. — Isso é inadmissível! É teatro!

— Teatro é o que vocês fizeram com o sobrenome do meu pai — disse Leonardo, sem elevar a voz. — Eu só estou abrindo as cortinas.

Marcelo distribuiu documentos. Advogados se entreolharam. Dois conselheiros pediram suspensão. Álvaro suava como quem afunda a céu aberto.

Helena observou o homem que amava caminhar em fogo com uma serenidade dura e, por um segundo, percebeu o que era a verdadeira elegância: não a dos trajes, mas a de quem escolhe não mentir.

Duas horas depois, a decisão: afastamentos, auditoria e um comitê de integridade instaurado naquela mesma noite. A renúncia de Leonardo foi aceita e registrada. Ao sair, alguns tentaram parabenizá-lo. Ele apenas disse: — Não me cumprimentem por fazer o básico.

No corredor, Helena o esperava. — Você acabou de incendiar a casa — disse, sem drama.

— Para tirar o mofo — ele respondeu. — Quer ficar na rua comigo por um tempo?

— Enquanto for rua onde possamos andar lado a lado, sim.

No fim do dia, a cirurgia de Antônio foi marcada para a manhã seguinte. Ele pediu para vê-los. Estava pálido, mas lúcido. — Vi o que fizeram. — Olhou para o filho. — Você me roubou o brinquedo e me devolveu um legado. — Para Helena: — Fique por perto. Eu não gosto da sua coragem, mas respeito.

Ela sorriu de leve. — Eu aprendi com o seu filho.

— Ele aprendeu comigo — Antônio retrucou, um fiapo de humor atravessando a dor. — Nem tudo que ensino é ruim.

Antes de apagar para o pré-operatório, fixou os olhos nos dois e disse a frase que nenhum tabloide imaginaria: — Sejam felizes. Longe de mim, mas felizes.

Ninguém chorou ali. Pouco depois, do lado de fora, sim.

À noite, Leonardo levou Helena para a cobertura. Não para celebrar, mas para respirar. A cidade parecia outra, como se estivesse alguns andares abaixo da própria história. Ele abriu as portas de vidro; o vento trouxe cheiro de chuva antiga.

— Quando isso tudo passar — ele disse —, quero te levar para uma casa sem elevador e sem assessoria de imprensa. Com janelas que abrem e vizinhos que batem. Quero ver você pintar sem medo. E quero aprender a caber em mim.

— Não podemos ter luxo? — ela brincou, com ternura.

— Podemos ter o luxo de dormir em paz.

Ela chegou mais perto. — Fecha os olhos.

— Por quê?

— Para aprender a confiar sem ver.

Ele obedeceu. Helena encostou a testa na dele. — Hoje, escolho você. Não contra ninguém. Só por nós.

Os olhos dele arderam. Quando abriu, não havia São Paulo, nem império, nem manchetes. Havia só o que finalmente importava: começo.

O telefone vibrou. Mensagem de Marcelo: “A imprensa vai cair em cima. Quer que eu segure?” Ele respondeu: “Não. Amanhã, falamos nós.”

E assim ficou decidido o tom do dia seguinte: verdade, doendo onde precisasse doer.

Na madrugada, choveu. Pela primeira vez, não pareceu ameaça. Pareceu batismo.


Capítulo 19 — A Última Promessa

O auditório da fundação amanheceu aceso como se aguardasse estreia. Jornalistas, câmeras, microfones, o faro do escândalo farejando absolvições ou mais cadáveres. Leonardo subiu ao palco sem gravata, terno escuro limpo, olhar direto. Helena ficou ao lado, alguns passos atrás — não como sombra, mas como raiz.

— Bom dia — disse ele. — Hoje, não darei números. Darei nomes e decisões.

O burburinho aprumou as lentes.

— Eu renunciei ao meu cargo na Vasconcelos Holdings. Pedi e obtive auditoria externa, afastamento de executivos e conselheiros envolvidos com corrupção e manipulação de informação. — Pausa breve. — E, por respeito à verdade, confirmo: mantenho um relacionamento com a senhora Helena Vasconcelos, iniciado após o casamento dela com meu pai. É um fato. É um erro moral na origem. E é, hoje, a coisa mais honesta que vivi.

Perguntas espirraram como chuva de verão. Ele ergueu a mão e continuou:

— Não peço aplauso nem absolvição pública. Quero só o direito de reconstruir sem mentir. Se me perguntarem onde errei, responderei. Se me perguntarem por que insisto, direi: porque prefiro ser um homem com uma verdade feia do que um fantasma com uma mentira bela.

Uma jornalista disparou: — E seu pai? O que ele diz?

— Ele diz que doeu. E diz que, talvez, doa menos agora. — Um quase sorriso. — A medicina trabalha para curá-lo. Eu trabalho para merecer o sobrenome que ele me deu — não por riqueza, mas por caráter.

— E Helena? — outra voz. — Você se arrepende?

Helena deu um passo à frente. O salão prendeu o ar. — Eu me arrependo de tudo que feriu quem não merecia. — A voz não falhou. — Mas não me arrependo de amar. O amor não justifica, mas explica. Eu aceito as consequências. — Olhou para Leonardo. — Com ele, aprendi que paz e verdade andam juntas. E que às vezes a verdade tem cara de pecado.

Houve um silêncio que não era hostil. Era raro.

Ao final, sem perguntas ensaiadas, sem fuga, encerraram. Saíram pela porta principal. Flashes, vozes, caos. Do outro lado, a luz do dia parecia normal, quase gentileza.

No carro, os dois respiraram como quem descobre o funcionamento dos próprios pulmões. — Sobrevivemos? — Helena perguntou.

— À primeira onda — ele respondeu. — As outras virão menores. Ou nós, maiores.

O telefone tocou. A médica: cirurgia bem-sucedida, sinais vitais bons, recuperação em andamento. O velho guerreiro resistira. Leonardo fechou os olhos, uma gratidão seca, sem fogos.

— Vamos — disse. — Há promessas para cumprir.

À tarde, foram ao hospital. Antônio estava sonolento, mas lúcido o bastante para um gesto: um aceno curto, um “depois” sussurrado que os dispensava com uma benção de avarento. Era suficiente.

No corredor, encontraram Augusto, o mordomo de décadas, com um envelope nas mãos. — Seu pai pediu que entregasse quando fosse a hora.

Leonardo abriu. No papel encorpado, poucas linhas: “A casa de Campos é sua. Não porque você venceu mais uma batalha, mas porque talvez ali caiba uma paz que eu nunca soube comprar. Não tragam imprensa. Tragam silêncio.”

Eles foram naquela noite.

A estrada para Campos cortava um mar de sombra e serra. A casa dormia há meses: madeira antiga, lareira muda, quadros herdados de ancestrais que jamais imaginaram esse capítulo. Helena acendeu as luzes devagar, como quem desperta um animal pacífico. Leonardo abriu as janelas; o frio entrou com educação.

Na sala, havia uma tela em branco. Helena sorriu. — Ele sabia — disse.

— Sabia que o silêncio pesa, mas cura — respondeu Leonardo.

Ela montou o cavalete. Ele alimentou a lareira. Um ritual sem espectadores, sem discursos, sem números. Quando a primeira chama pegou, Helena falou, sem olhar: — Prometa uma coisa.

— Duas, se quiser.

— Que, se um dia eu tiver medo, você não vai aumentar o meu medo com o seu orgulho.

— Prometo.

— E que, se um dia você tiver saudade do que era, vai me dizer. Para eu te lembrar de quem você é.

Ele se aproximou por trás, a boca perto do ouvido: — Prometo não te perder de vista. Nem quando eu me perder de mim.

— Então pinta comigo — ela disse, rindo de leve. — Mesmo que seja torto.

Ele pegou um pincel. O quadro começou com traços torpes, dois aprendizes em tela grande. A imagem era indistinta: um horizonte que não sabia ainda se amanhecia ou anoitecia. A incerteza, desta vez, não doía.

A madrugada foi breve e inteira. Dormiram tarde, pela primeira vez sem sobressaltos. O telefone no modo silencioso, a porta sem trancas extras, os fantasmas para o lado de fora.

No dia seguinte, a notícia correu: Ferrer homologara acordo; executivos foram indiciados; a holding anunciava uma reestruturação ética. Havia quem chamasse de estratégia, quem chamasse de fraqueza, quem chamasse de golpe de imagem. Para eles, era só uma limpeza.

Na varanda, o café esfriava lento. Helena trouxe a tela inacabada para a luz. — Acho que é um rio — disse.

— Acho que é um caminho — ele respondeu.

— Todo caminho é rio se a gente não endurece.

— Então que a gente não endureça.

Ela encostou a cabeça no ombro dele. O vento trouxe cheiro de terra úmida. No alto, nuvens ralas escondiam o sol sem negar sua existência.

— Falta uma promessa — disse Helena.

— Qual?

— Que, se um dia o mundo nos aplaudir pela razão errada, a gente volte para cá e reaprenda a aplaudir baixo.

— Fechado — disse ele. — E, se um dia o mundo nos vaiar pela razão certa, a gente também volta para cá. Para reaprender a falar baixo.

Riram. A paz, afinal, tinha humor.

No fim da tarde, um carro simples subiu a estrada. Era Augusto, trazendo uma cesta e um recado breve: “O velho pergunta do quadro.” Eles sorriram. Havia vida. Havia ponte.

— Vamos terminar antes de mostrar — disse Helena.

— Vamos começar melhor para não precisar terminar — devolveu ele.

E ficaram ali, diante da tela, pintando um horizonte onde duas silhuetas caminhavam lado a lado, pequenas diante do cenário, grandes o suficiente uma para a outra.

A última promessa não foi dita em voz alta. Apenas escrita na cor: se o destino vier de novo como maré, eles saberiam nadar — não contra, mas através.


Capítulo 20 — Entre o Desejo e o Pecado

Meses depois, a cidade os recebeu sem manchetes. Talvez por cansaço, talvez por costume. A Vasconcelos Holdings respirava outro ar — menos perfume, mais oxigênio. Antônio, mais magro, reaprendera o tom de voz que falava com pessoas, não com planilhas. Não viraram santos. Viraram gente.

A exposição de Helena, marcada e adiada, finalmente abriu numa noite de outono. O título era simples: “Entre”. Quadros que não fechavam sentido, fotografias de sombras encostadas, instalação de espelhos que devolviam o rosto em fragmentos honestos. A crítica, que costumava escrever com veneno, escreveu com água: “É uma obra sem alarde, mas com pulso.”

No salão, pessoas murmuravam apreciações. Alguns reconheciam o sobrenome, outros fingiam não reconhecer. Leonardo ficou à margem, como sempre preferiu. Um colecionador se aproximou, sorriso social pronto: — Parabéns pela coragem, Vasconcelos.

— Não é coragem — disse Leonardo. — É ausência de alternativa.

— Ainda assim, poucos escolhem.

— Porque não veem para onde dá. — Ele ergueu o olhar para um quadro de horizonte. — Dá para casa.

Helena veio até ele, o vestido preto simples, a beleza sem esforço. — Ele gostou — sussurrou, apontando com o queixo. Antônio, ao fundo, em pé, apoiado discretamente numa bengala nova, observava uma fotografia. Não se aproximou. Não discursou. Mas esteve.

— Isso é mais do que eu esperava — disse Leonardo, mexido.

— Isso é o que a gente merece — ela respondeu.

No fim da noite, quando o salão esvaziou, Helena apagou as luzes uma a uma. Ficaram apenas sob a claridade de segurança, os quadros como janelas abertas no escuro. Leonardo passou o braço nos ombros dela.

— Sabe o que ainda me apavora? — ele perguntou.

— Sei. — Ela sorriu. — A felicidade quando não tem muro para se apoiar.

— Isso.

— A gente apoia um no outro. Dá mais trabalho, mas compensa.

Ele assentiu, rindo baixo. — E, se tudo desandar?

— A gente volta para Campos. — Ela ergueu o rosto. — E pinta de novo.

O beijo, ali, não foi resposta. Foi hábito bom.

Na saída, o vento trouxe um jornal esquecido numa banca. A manchete falava de eleições, do dólar, de um escândalo que não era o deles. O mundo continuava. E naquela continuidade havia um alívio estranho: não serem mais o centro era a melhor notícia.

No carro, enquanto a cidade passava flechada de luzes, Leonardo se pegou pensando no rapaz que entrara em guerras para não sentir — e sorriu de um jeito que o antigo ele chamaria de fraqueza. O atual chamava de músculo.

— O que foi? — Helena perguntou.

— Nada. — Ele apertou de leve a mão dela. — Tudo.

No semáforo, um vendedor de rua bateu no vidro. Ofereceu um maço de flores miúdas, quase desimportantes. Leonardo comprou, sem pensar. Helena riu. — Kitsch.

— Luxo — ele corrigiu. — O único que importa.

Chegaram em casa tarde. As janelas estavam abertas. Na mesa, a tela que teimava em não terminar. Ele a encostou na parede, pegou um lápis, traçou uma linha fina no horizonte — não para encerrar, mas para dizer: seguimos.

Helena se encostou no batente, os braços cruzados, contente. — O que é?

— É a margem do rio — disse ele. — E o lugar onde a gente senta.

— Parece uma despedida.

— É só um descanso.

Ela apagou as luzes. A cidade, lá fora, continuou sendo cidade. O desejo, aqui dentro, continuou sendo vida. O pecado, memória. O amor, trabalho. E, entre todos eles, uma casa possível.

Se foi final feliz, trágico ou aberto, ninguém escreveu no catálogo. Não precisou. Quem estava ali entendeu: o inesperado não é o beijo proibido; o inesperado é a coragem de não fazer dele um altar.

E, quando o último abajur se apagou, restou apenas o som de duas respirações cansadas e mansas. Um capítulo que não pedia ponto final — apenas um parágrafo novo, em linha contínua.

Fim… do começo.

Rolar para cima