Capítulo 1 — O Primeiro Olhar
A manhã começou com o cheiro de chuva prestes a cair, como se o campus respirasse por frestas, expelindo umidade pelas folhas brilhantes dos plátanos e pelas escadas de pedra que se tornavam ligeiramente escorregadias ao toque dos sapatos apressados dos estudantes . Nos corredores centrais, o murmúrio de vozes se misturava ao som abafado das portas que batiam, à vibração metálica dos armários e a uma expectativa silenciosa que antecedia a aula de Literatura Contemporânea, a mais disputada do semestre . Ela chegou cedo, como sempre, caderno impecável, canetas organizadas por cor, post-its alinhados, a disciplina inteira transcrita no traço firme de quem encontra conforto na perfeição milimétrica .
Escolheu o terceiro assento da primeira fileira, de onde podia ver o quadro negro inteiro e a janela que cortava a sala com a luz cinzenta vinda de um céu indeciso . Ajustou a barra do suéter creme, cruzou os tornozelos e abriu o livro do dia — uma coletânea de contos que ela já havia lido duas vezes, sublinhando com cuidado as passagens sobre culpa, desejo e os limites da linguagem . Escrevera nas margens perguntas que fingia dirigir ao autor, mas que no fundo eram modos de manter a mente quieta, longe do território desconhecido que as palavras teimavam em insinuar .
Quando a porta se abriu, não foi apenas a sala que ficou silenciosa; foi como se a luz também hesitasse, pousando de um modo diferente sobre o homem que entrou . Terno grafite sem extravagâncias, camisa branca com o primeiro botão aberto, mangas do paletó ajustadas ao corpo de quem não se deixa explicar por inteiro . Não era alto a ponto de intimidar pela altura, nem jovem a ponto de provocar curiosidade fácil; havia algo de atemporal, uma seriedade que não pedia licença para existir e uma contenção que presumia segredos .
Ele depositou os livros sobre a mesa com um cuidado estudado, como quem sabe o peso simbólico de cada volume, e então ergueu o rosto . O olhar percorreu a sala sem pressa, não como quem conta cadeiras, mas como quem mede profundidades . Quando os olhos dele a encontraram, ela sentiu a pele dos braços se eriçar sob o suéter, uma reação corporal que pareceu indecente por ser involuntária . Não era um olhar agressivo, tampouco complacente; era uma pergunta silenciosa, talvez a mais perigosa de todas: “O que não está escrito aí?”
— Bom dia — disse ele, a voz grave e clara, como metal quente mergulhado em água fria . — Comecemos pelo que não desejamos admitir — acrescentou, e o sussurro de cadernos sendo abertos soou, de repente, como uma confissão coletiva .
Ela baixou os olhos para o livro, mas só conseguiu fixar-se na quina da página, sentindo um traço fino de nervosismo percorrer-lhe a nuca . Lembrou-se das recomendações a respeito dele: exigente, rigoroso, intransigente com mediocridades, dono de uma reputação que misturava admiração e cautela . Um professor que fazia perguntas que não cabiam em respostas curtas e que, dizia-se, tinha uma história que ninguém contava direito .
— Vamos ler o conto “As Mãos” — anunciou, tocando as páginas com a ponta dos dedos, como se tocasse a pele de um animal arisco . — Prestar atenção ao que o narrador evita nomear é mais importante do que sublinhar o que ele admite .
Leu trechos em voz alta, e a cadência com que as palavras saíam de sua boca parecia reorganizar o ar dentro da sala . Havia uma gravidade controlada no ritmo, uma firmeza que dispensava teatralidade, como se cada sílaba estivesse submetida a uma regra invisível . Quando interrompeu a leitura, ergueu os olhos na direção dela de novo, não como quem escolhe ao acaso, mas como quem retorna a um ponto que decidiu observar .
— Você — disse, sem precisar perguntar o nome, como se já o soubesse, ou como se o nome pouco importasse diante do que lhe interessava de fato . — O que o narrador recusa dizer, e por quê?
Ela engoliu, recompôs a postura e respondeu com a lógica afiada que a destacava entre os colegas .
— Ele recusa dizer “desejo” — começou, a voz firme, embora baixa — porque teme que, ao nomeá-lo, o torne real demais . E porque prefere manter a ilusão de controle que a ausência da palavra oferece .
Um canto de boca do professor se ergueu sutilmente, não o suficiente para ser um sorriso, mas o suficiente para parecer aprovação .
— Controle é uma palavra confortável — disse ele, arrastando a cadeira alguns centímetros para trás, de modo a vê-la por inteiro —, especialmente para quem acredita que domina tudo o que estuda . Mas controle também é uma máscara .
Ela sentiu a frase encostar na pele como um tecido áspero . Quis responder que não se tratava de controle, e sim de método, disciplina, rigor . Quis argumentar que confundir as coisas era cometer um erro conceitual, mas, ao abrir a boca, encontrou apenas silêncio .
— O senhor está sugerindo que o narrador é covarde? — arriscou, por fim .
— Estou sugerindo que o narrador entende os riscos de admitir o que o ultrapassa — devolveu, sem elevar o tom —. Há coragem em negar e covardia em assumir, às vezes o contrário . Depende do que se perde em cada gesto .
As canetas pararam de riscar por um momento . O ar parecia mais denso, e ela percebeu que alguns colegas a observavam de lado, talvez esperando que continuasse a disputa invisível que se instalara . Em vez disso, ela baixou os olhos e anotou: “o que se perde quando se diz” .
A aula seguiu com perguntas pontiagudas, idas e vindas entre trechos do texto, comparações com autores que ela conhecia de cor . Ainda assim, algo novo se instalara: uma consciência aguda do próprio corpo, do modo como respirava, do peso da caneta entre os dedos, da tensão discreta no conjunto dos ombros . Como se a cada intervenção dele, uma lâmina afiada aparasse bordas dentro dela, acentuando contornos que preferia manter indistintos .
No intervalo, quando os colegas se dispersaram num burburinho de comentários, ela permaneceu sentada, fingindo rever anotações . A porta estava aberta, mas a sala parecia uma caixa ao redor de ambos . Ele recolhia os livros com a mesma calma metódica, a mão direita revelando um corte fino já cicatrizado sobre o dorso — detalhe sem importância, mas que grudou na memória dela como um post-it que recusa descolar .
— Seu texto da semana passada — disse, aproximando-se até que a sombra dele tocasse a borda da mesa — é brilhante onde você decide não se proteger .
Ela levantou os olhos, surpresa .
— Eu… não pensei que estivesse expondo nada — respondeu, sincera .
— Todo bom texto expõe — afirmou, sem suavidade —. A questão é se o autor sabe disso .
Ele estendeu a folha corrigida . Havia sublinhados precisos e comentários laterais, composições entre vigor e exigência . No rodapé, uma única frase, em caligrafia inclinada: “A lucidez também é uma forma de risco” .
— Risco? — ela repetiu, devolvendo a palavra como quem testa seu peso .
— Para quem se orgulha do controle, mais do que imagina — disse, e então deu as costas, encerrando a conversa como quem fecha um volume raro .
Ela ficou ali, sozinha por alguns segundos, escutando o som do corredor — passos, risos, o eco longínquo de uma goteira no pátio — enquanto a frase no rodapé latejava no fundo da mente . Levantou-se devagar, guardou o caderno com o cuidado de sempre, mas a precisão de seus gestos agora parecia um disfarce transparente demais . Quando saiu, o corredor devolveu-lhe a vida comum: cartazes sobre congressos, um aviso de monitoria, o cheiro doce e ácido do café recém-passado na máquina perto da escada .
Encontrou Clara, a amiga que às vezes a puxava para a superfície do mundo, encostada no corrimão, rindo de alguma coisa que Ícaro, o colega de cinema, acabara de dizer . Clara percebeu-lhe o semblante e arqueou uma sobrancelha .
— Você levou um nocaute intelectual ou se apaixonou em trinta minutos? — brincou, meio sério, meio provocação .
— Nem uma coisa nem outra — ela respondeu, rápido demais .
Ícaro riu, com aquele humor meio cínico, meio gentil .
— Dizem que ele desmonta certezas como quem desmonta relógios — comentou —. E que nunca sobra peça solta… pelo menos para quem assiste .
Ela forçou um sorriso, mas o corpo denunciava outra coisa — um fio de adrenalina tardia, um estado de alerta que misturava admiração e inquietação .
— Tenho biblioteca — disse, como quem invoca uma rotina para expulsar o imprevisto .
Na biblioteca, o silêncio parecia uma substância, algo que se depositava sobre as mesas como poeira fina . Os abajures criavam ilhas de luz, os corredores entre as estantes eram passagens estreitas para territórios particulares . Ela escolheu uma mesa no fundo, perto da seção de teoria, onde as vozes eram apenas rumor . Abriu o caderno no comentário final dele e releu a frase, como quem passa o dedo numa cicatriz recente .
“A lucidez também é uma forma de risco” .
Sentiu-se vistas por dentro, como se alguém tivesse acendido uma lâmpada numa sala que mantinha fechada . Era ridículo, repetia a si mesma, permitir que uma frase alterasse o eixo das coisas . E, no entanto, ali estava: a linha tênue entre método e controle, a suspeita de que o rigor que a protegia pudesse ser, também, a forma mais discreta de medo .
— Precisa deste volume? — a voz veio baixa, atrás, e ela se virou tão rápido que a cadeira arranhou o chão .
Ele segurava um livro da prateleira superior, o título gravado em dourado: um compêndio sobre erotismo na literatura moderna, daqueles que pretextam o científico para lidar com o indizível . Ela assentiu sem falar e ele depositou o volume diante dela, a mão parando por um segundo a mais do que o necessário sobre a capa, uma suspensão que fez o ar ficar mais pesado .
— O senhor vai… — começou, e interrompeu-se, surpresa com o próprio atrevimento — discutir este livro em aula?
— Não hoje — respondeu, um traço de ironia muito sutil passando pelo canto da voz —. Mas convém que quem pretende dominar a forma conheça suas bordas .
— Bordas? — repetiu, como eco .
— O lugar onde o texto para e o corpo começa — disse, e retirou-se com a mesma discrição com que surgira, levando consigo um resto de temperatura .
Ela ficou imóvel por um momento, antes de abrir o livro . As primeiras páginas discutiam metáforas de posse e entrega em autores que ela respeitava, e aquilo a incomodou, como se a teoria tocasse um ponto de nervo . Subitamente, percebeu que alguém a observava do outro lado do corredor de mesas: Helena, colega de sorriso fino e olhos atentos demais, famosa pela competência e por um talento particular para farejar fraquezas . Helena sorriu sem mostrar os dentes e levantou o próprio exemplar do livro, quase idêntico, como quem diz: “eu também vejo” .
A tarde escorreu entre períodos de concentração e distração, até que a chuva prometida finalmente caiu, batendo no vidro com uma constância hipnótica . Quando o horário de fechamento se aproximou, ela devolveu os volumes, guardou as coisas e tomou o corredor que levava ao bloco de gabinetes . Não era sua intenção extravagante, disse a si mesma; precisava apenas recuperar um artigo que deixara com o professor substituto na semana anterior . Mas os pés, guiados por um mapa que o corpo conhece antes da mente, a levaram até a porta com o nome dele gravado discretamente na placa .
Batidas leves . Um intervalo . A voz dele, do outro lado: — Entre .
O gabinete era outra espécie de silêncio . Havia uma janela alta, livros alinhados por temas e, sobre a mesa, um relógio de ponteiros que parecia mover o tempo em outro ritmo . Ele ergueu os olhos do papel com a mesma atenção total, como se não houvesse nada no mundo mais importante do que aquilo que olhava naquele instante .
— Perdi um artigo — ela disse —. Pensei que pudesse estar com o senhor… por engano .
Ele indicou a cadeira diante da mesa . Ela sentou-se, sentindo a madeira mais sólida do que deveria .
— Não está comigo — respondeu, depois de checar uma pilha —, mas posso ajudá-la a reconstituí-lo, se necessário . Um bom texto é menos frágil do que parece .
— Eu tenho o hábito de não perder coisas — saiu-lhe, rápida, numa mistura de desculpa e defesa .
— Há hábitos que nos protegem do mundo e outros que nos protegem de nós mesmos — disse, sem inflexão moralizante —. São os segundos que custam mais caro abandonar .
O relógio marcou um minuto inteiro de silêncio . Ela percebeu a respiração confortável dele, sem pressa, como quem habita o próprio corpo com disciplina . E percebeu também o que a incomodava: não era arrogância, era o domínio tranquilo que sugere força mesmo quando calado .
— Seu texto sobre culpa — ele continuou — sugere que a culpa nasce do choque entre desejo e regra . E que a regra, em última instância, é uma forma de linguagem . Está disposta a testar a hipótese?
— Testar… como? — perguntou, embora parte dela já tivesse medo da resposta .
Ele apoiou os cotovelos na mesa, entrelaçou os dedos, e aquele gesto simples pareceu um código .
— Escreva, nesta semana, duas páginas em que a regra falhe — disse —. Não uma teoria sobre a falha, mas a falha em si . Sem filtros .
— O senhor está pedindo… confissão? — o calor subiu-lhe ao rosto, violento .
— Estou pedindo literatura — devolveu, seco —. A confissão é uma forma pobre quando não sabe o que faz .
Ela respirou fundo . Ao se levantar, os joelhos roçaram discretamente na madeira da mesa, e o pequeno impacto repercutiu como um grão caindo em tambor . Ele estendeu um livro fino — poemas marcados por tiras de papel — e apoiou-o nas mãos dela por tempo demais para o gesto ser neutro .
— Leia o poema vinte e três — disse, quase num sussurro —. Devagar .
Ela assentiu . Quando a palma de sua mão tocou a contracapa, sentiu a textura áspera, um convite tátil que não dependia do texto . O olhar dele baixou para suas mãos, e ela percebeu: ele repara em tudo — no modo como segura, como devolve, como tenta esconder o tremor .
— Obrigada, professor — conseguiu dizer, e a palavra professor doeu, como se fosse, naquele momento, uma cerca entre dois terrenos e, ao mesmo tempo, um caminho estreito que os ligava .
— Boa noite — respondeu, sem sorriso —. E lembre-se: o risco não precisa ser grande para ser verdadeiro .
Ela saiu com passos firmes, mas o corredor se tornou mais comprido do que lembrava . A chuva havia lavado o campus, e os postes criavam circunferências de luz sobre o piso brilhante . No bolso do casaco, os dedos encontraram um bilhete que não lembrava ter colocado ali . Abriu debaixo de um toldo, protegida da água e exposta a tudo o mais .
“Quando a palavra falha, os olhos continuam lendo” .
A caligrafia era inclinada, familiar . Ela ergueu o rosto para a noite, sentindo na língua o gosto metálico da descoberta . Pela primeira vez, admitiu para si mesma que havia entrado em território onde a disciplina não desenha mapas . E que, ainda assim, queria continuar .
Ao caminhar para o portão, uma certeza a acompanhou como a sombra de um poste ao próximo: aquilo tinha começado antes do bilhete, antes da frase no rodapé, talvez antes mesmo da primeira aula . Começara no instante em que alguém, em algum lugar dentro dela, desejou saber o que acontecia quando a regra falhava . E, por mais que a parte disciplinada gritasse perigo, outra parte — insondável, íntima, recém-desperta — sussurrou com paciência: continue .
Capítulo 2 — Voz e Silêncio
A chuva deixara um rastro de frescor nos jardins, e o campus amanheceu com o cheiro de terra molhada que entra pelas janelas como uma lembrança da noite anterior, insistente e discreta . No corredor que levava ao auditório menor, os cartazes da Semana de Literatura tremulavam sob as correntes de ar, anunciando mesas redondas sobre fronteiras do texto, ética do narrador e, num horário periférico, um tema que a fisgou de imediato: “Metáforas do Corpo na Ficção Moderna” . O nome do palestrante principal estava lá, impresso com sobriedade, sem adjetivos, como se não precisasse de nenhum .
Ela chegou cedo, de novo, por hábito e por ansiedade, e ocupou um assento lateral na quarta fileira, onde poderia vê-lo sem ser o centro de nenhum olhar . O auditório tinha a luz filtrada por cortinas longas, e as cadeiras estofadas engoliam ruídos, criando um silêncio acolchoado que convidava as palavras a pesarem mais . Os colegas falavam baixo, com a excitação ligeira de quem antecipa um espetáculo intelectual; Helena entrou dois minutos depois, sem pressa, e se posicionou uma fileira atrás, diagonal à direita, numa distância que dizia “não estou longe” .
Quando ele subiu ao palco, não fez discurso de abertura . Apenas pousou a mão no púlpito, olhou a plateia, esperou um segundo além do confortável e começou .
— As metáforas do corpo existem porque a linguagem não suporta dizer tudo o que sente — disse, a voz moderada, sem apelo à dramatização —. Quando o texto admite o que falta, aproxima-se da verdade .
Ela percebeu o próprio coração marcar um compasso diferente, não por descontrole, mas por reconhecimento — aquela frase tocava a mesma corda do bilhete encontrado no bolso . Tomou notas rápidas, atenta às passagens em que ele tangenciava o que preferia não nomear .
— Não confundam honestidade com exibicionismo — prosseguiu —. O texto que se despe sem saber por quê está nu por vaidade, não por coragem .
A palavra “nu” cruzou a sala como uma linha invisível de corrente fria, e alguns risos discretos se espalharam, não por humor, mas por constrangimento elegante . Ele não sorriu . Continuou a traçar ligações entre autores e cenas de leitura em que a linguagem se esticava até alcançar o nervo do que era dito .
No período de perguntas, um professor de teoria levantou uma questão sobre limites éticos da representação .
— Onde o senhor coloca a fronteira entre o que é estético e o que é puro sensacionalismo? — perguntou, com voz que trazia uma história de debates anteriores .
— Coloco na precisão — respondeu ele, sem hesitar —. Se cada palavra está onde deve, se o gesto narrativo é necessário, a cena se justifica por si. O sensacionalismo é frouxo; a boa prosa é tensa .
Helena ergueu a mão .
— E quando a precisão machuca? — disse, com doçura estudada —. Quando expõe pessoas reais sob o disfarce da ficção?
— A ficção não é disfarce — ele devolveu —. É outra forma de verdade. Ainda assim, toda verdade cobra um preço. Cabe ao autor decidir se pode pagá-lo .
Ela escreveu: “preço” . E sentiu a palavra encontrar vizinhança com “risco” na sua página .
Quando a mesa terminou, os corredores do auditório se abriram em fluxos de gente que falava ao mesmo tempo sobre as mesmas frases, ansiosa por fixar no ar o que ainda vibrava . Ela hesitou — podia voltar para a biblioteca, afundar-se em notas e permitir que o dia seguisse a cartografia confiável das leituras . Ou podia fazer o que não fazia: aproximar-se, fazer uma pergunta que não coubesse no protocolo .
A fila de cumprimentos formou-se com rapidez . Helena ocupou seu lugar sem pudor, e foi uma das primeiras a falar com ele, longa o suficiente para parecer demasiado . Quando chegou a vez dela, o auditório já tinha esvaziado quase completamente .
— Agradeço a palestra — disse, segurando o caderno com força —. Tenho uma pergunta sobre a linguagem que falha .
Ele a olhou, e ela sentiu o mesmo peso da aula, uma presença que desarrumava o ar ao redor .
— A linguagem falha quando quer dizer demais ou quando quer dizer o que não deve? — perguntou, e percebeu tarde demais a ambiguidade .
— Falha quando não quer assumir o que quer — respondeu, sem tom —. E quando se acovarda diante do que precisa .
— E quando a linguagem teme as consequências? — ela insistiu .
— O medo é um editor útil — ele disse —. Mas não deve assinar o texto .
Ela assentiu, sentindo que entendia e não entendia, como quem vê um mapa de cima e, ao mesmo tempo, pisa num terreno irregular .
— O poema vinte e três… — começou, baixando um pouco a voz —. Lido devagar, como pediu .
Ele não perguntou o que tinha achado . Inclinou levemente a cabeça, como quem reconhece um protocolo cumprido e, ao mesmo tempo, deixa espaço para um desvio .
— Hoje, às seis — disse —. Café da esquina, o da porta verde. Traga suas duas páginas .
Ela quase disse que ainda não tinha escrito nada . Que só tinha anotações e um punhado de frases que não obedeciam à ordem que costumava impor . Mas apenas assentiu .
— Seis — repetiu .
Na saída, Clara a alcançou com seu passo leve e olhar clínico .
— Convite acadêmico? — provocou, sem malícia —. Ou… outra coisa?
— Texto — ela disse, o tom mais seco do que pretendia —. É sempre texto .
— Texto também é lugar — Clara sussurrou —. E alguns lugares exigem cuidados extras .
Ela riu, quase para escapar . E prometeu a si mesma que era apenas isso: um encontro para falar de prosa, de escolhas de palavras, do ritmo das frases . Voltou para a biblioteca com a tarde já inclinada, e escreveu as duas páginas como quem atravessa um rio por pedras irregulares, consciente de cada passo, sentindo a água gelada bater nos tornozelos . Não confessou nada específico; encenou a falha da regra como pedira, um relato em que uma personagem muda o caminho de casa por um desvio aparentemente sem sentido e, ao fim, descobre que o desvio era o caminho verdadeiro .
Às cinco e cinquenta, estava diante da porta verde . O café tinha mesas pequenas de tampo de mármore, luminárias amarelas e um balcão onde uma mulher de meia-idade servia, com o mesmo gesto paciente, expressos dobrados e fatias de bolo simples . Ele já estava lá, de costas para a rua, e o casaco no encosto da cadeira . Não levantou quando ela chegou; apenas moveu o olhar para recebê-la, como quem diz que o encontro começara antes do relógio apontar as seis .
— Trouxe — ela disse, pousando as folhas .
Ele não tocou nelas . Tomou um gole de café e indicou o copo dela, que esperava, negro e quente .
— Leia — pediu .
Ela leu . A própria voz lhe soou mais baixa do que o usual, mas firme, como quem percorre um corredor estreito sem roçar nas paredes . Quando terminou, um silêncio breve se instalou, mais denso que o de qualquer biblioteca .
— Você controlou demais — ele disse, por fim —. É bom. Preciso, elegante. Mas a falha que você prometeu não sangra .
— Eu… pensei que a elegância fosse suficiente — ela arriscou .
— A elegância é o modo — ele respondeu —. Não o conteúdo. Há momentos em que o texto precisa perder a polidez para ganhar verdade .
Ela sentiu uma fisgada de irritação, não por discordar, mas por reconhecer que ele alcançara o ponto exato que temera .
— Quer que eu seja… explícita? — perguntou, sustentando o olhar .
— Quero que seja honesta — ele devolveu, firme, a palavra pousando no tampo da mesa como um objeto com peso —. E que saiba até onde vai .
— E se eu passar do ponto? — a pergunta saiu antes que pudesse aparar .
— Então aprenda a voltar — disse, e pela primeira vez a sombra de um sorriso atravessou o rosto, não de deboche, mas de reconhecimento da coragem alheia —. Isso também é domínio .
Ela abriu a boca para responder, mas o sino da porta tocou e, por um reflexo quase infantil, ela virou o rosto . A professora de crítica, rival dele declarada em debates, entrou acompanhada de um docente visitante . Os olhos da professora percorreram o salão com aquele radar que mede não apenas quem está, mas quem deveria estar . Demoraram um segundo a mais sobre a mesa deles .
— Problema? — ele perguntou, sem olhar na mesma direção .
— Talvez — ela disse, baixando a voz —. Ela não gosta de mim .
— Ela não gosta de quase ninguém — ele corrigiu, seco —. E tem bons motivos para isso. O mundo foi gentil com poucos .
— Inclusive com o senhor? — a ousadia surpreendeu até a si mesma .
— Gentilezas e golpes se alternam — ele disse, e por um instante o olhar ficou longe, como quem atravessa uma sala escura em busca do interruptor —. Aprendi a ficar em pé .
A professora rival fez o pedido no balcão e, ao sair, roçou o olhar de novo na direção deles, mais curto, mais cortante . O visitante, curioso por profissão, também percebeu o arranjo: duas xícaras, folhas, uma proximidade de vozes que não era íntima, mas que tinha uma concentração que raramente pertence ao banal .
— Escreva de novo — ele pediu, devolvendo as páginas sem anotações —. Uma única cena. O momento em que alguém escolhe o desvio . Sem explicar por que .
— E se eu precisar explicar? — ela insistiu, meio rindo, meio pedindo misericórdia .
— Explique com o corpo da frase — ele disse —. Não com comentários .
Ela guardou as folhas na pasta, sentindo que carregava uma tarefa que pesava de modo estranho, como se tivesse densidade própria . Ao se levantar, a cadeira arranhou o chão e ela sentiu o impulso tolo de pedir desculpas ao espaço . Ele pagou no balcão com um gesto rápido e, do lado de fora, a noite já havia retornado a umidade ao ar .
— Caminhe pelo pátio interno — ele sugeriu, apontando com o queixo —. Evite a avenida hoje .
— Por quê? — perguntou, embora obedecesse sem discutir .
— Porque a avenida é luz demais — disse —. E há dias em que ver tudo atrapalha .
Ela atravessou o pátio com as lâmpadas difusas refletindo nas poças, e o cascalho molhado contou seus passos com discrição . No meio do caminho, percebeu alguém parado à sombra da arcada: Helena, braços cruzados, expressão neutra demais para ser casual .
— A palestra foi boa — Helena disse, como quem oferece um assunto seguro antes de pular para o outro —. E o café, melhor ainda?
— Encontrei um professor — ela respondeu, sem ceder nem agressividade nem defesa —. Discutimos texto .
— Texto é um ótimo nome para muitas coisas — Helena sorriu, breve —. Quase tão bom quanto “pesquisa” .
— Está insinuando algo? — ela perguntou, sem elevar o tom .
— Estou observando — Helena respondeu —. Como sempre . E observadores, você sabe, escrevem melhor .
Ela deixou a frase cair entre elas e seguiu . Ao chegar aos degraus da biblioteca, parou sob a luz amarela e, sem saber por quê, virou-se . Helena ainda estava lá, mas agora olhava o celular, como se nada tivesse acontecido .
No quarto, horas depois, a cidade parecia respirar por frestas outra vez . Abriu a janela, sentou-se à mesa e escreveu a cena pedida, desta vez sem as amarras do comentário . Uma personagem atravessa um corredor estreito, sente o cheiro de café no ar, ouve o sino de uma porta, e quando a pergunta que importa aparece — “por que desviou?” — ela não responde . Apenas encosta a mão na madeira morna da mesa e respira . A frase final veio sem polidez e, por isso mesmo, exata: “porque meu corpo já tinha escolhido antes de mim” .
Leu em voz alta, sozinha, e sentiu o rubor subir não por vergonha, mas por reconhecimento . A cena não confessava nada, mas dizia o suficiente . Apagou a luz com cuidado, como quem guarda um objeto delicado no escuro . Antes de deitar, encontrou na pasta algo que não lembrava ter guardado: uma folha em branco com uma única palavra escrita ao centro, na caligrafia inclinada que começava a conhecer .
“Domínio” .
Ficou olhando a palavra até que os olhos cansassem . E, quando o sono enfim chegou, não foi um sono calmo: foi um sono de quem sonha com corredores, portas semiabertas, e uma voz que pede precisão ao mesmo tempo em que abre uma brecha para o imprevisto . Amanhã haveria aula, biblioteca, corredores, pessoas que observam e pessoas que fingem não observar . Haveria, sobretudo, a continuação de uma linguagem procurando admitir o que falta . E a certeza incômoda de que, mesmo quando a palavra falha, os olhos continuam lendo .
Capítulo 3 — A Redação
Na manhã seguinte, a claridade entrou pelo quarto com uma suavidade traiçoeira, como se o dia tivesse decidido pisar nas bordas do tapete para não fazer barulho . Ela acordou com a sensação nítida de uma palavra ainda pousada na língua — “domínio” — e levou alguns segundos para compreender que não era sonho, mas resíduo do papel que encontrara na pasta, um centro branco com um comando discreto . Levantou-se cedo, como sempre, preparou o café com a precisão que acalma os inquietos e, antes de qualquer outra tarefa, releu a cena que escrevera na noite anterior, avaliando o peso e o ritmo de cada frase, como quem testa a resistência de uma corda antes de atravessar a ponte .
Na universidade, o corredor da ala de Letras tinha um brilho úmido nas paredes, herança da chuva que não chegara a secar por completo . Cartazes novos anunciavam a seleção de monitoria de Teoria e um seminário sobre ética da pesquisa, e o contraste entre essas palavras e as que ocupavam a cabeça dela — falha, risco, domínio — provocou um pequeno curto-circuito . Encontrou Ícaro perto da máquina de café, debatendo com entusiasmo um filme que transbordava símbolos, e Clara, paciente, sustentando um copo de papel e um sorriso que dizia: “não vou me perder no seu labirinto hoje” .
— Cara de quem dormiu com um dicionário debaixo do travesseiro — Ícaro brincou, mexendo no cabelo com a mão livre —. Ou com um poema que não fecha .
— Com uma cena que não cabe em moldura — ela respondeu, deixando escapar mais do que pretendia .
— Molduras são para salas de estar — Clara disse, com doçura prática —. A universidade é mais bagunçada que isso .
Sorveram o café num conjunto de segundos compartilhados, o pequeno ritual que faz os dias parecerem sustentáveis . Quando a turma começou a entrar na sala de Literatura, ela escolheu o mesmo assento, o terceiro da primeira fileira, agora com uma consciência incômoda do gesto como repetição, quase uma superstição íntima . O quadro-negro ainda trazia vestígios da aula anterior, um contorno de giz que resistira ao apagador, como um sussurro de frases mortas .
Ele entrou sem anúncio, como fazia, e o ar pareceu alinhar-se em torno do corpo dele, não por cortejo, mas por uma gravidade sutil que desloca as coisas para seus lugares . Deixou os livros, verificou a lista de presença com um olhar rápido e ergueu a cabeça . Os olhos varreram a sala, tocaram rostos, pararam um segundo a mais no dela, e seguiram .
— Hoje, redações — disse, e o murmúrio dos alunos foi quase imperceptível, uma mistura de expectativa e resignação —. Quero ouvir fragmentos. Sem prefácios, sem justificativas .
Algumas mãos se levantaram por medo de parecerem lentas, outras ficaram imóveis por medo de parecerem ansiosas demais . Ele escolheu uma ordem que não obedecia ao alfabeto nem à proximidade, e ainda assim desenhou uma cadência, saltando de vozes seguras a vozes incertas, como se compusesse um coro . Quando chamou o nome dela, o som pareceu reverberar de um modo diferente, menos por quem ouvia, mais pelo que carregava .
Ela levantou o papel e leu a cena do desvio . Não explicou nada . Não suavizou o verbo nem aparou as bordas que deixara propositadamente ásperas . Ao terminar, pousou a folha sobre o caderno e segurou a caneta para impedir que a mão mostrasse o tremor .
— Precisão — ele disse, seco, como um diagnóstico —. E um risco que, desta vez, existe .
Não houve elogios verbosos nem aplausos tímidos . Houve um silêncio pequeno, denso, e depois a continuação da aula, como se um rio tivesse engolido um obstáculo e retomado o curso . Helena leu mais tarde, um texto de observação fria sobre uma sala de espelhos onde ninguém se reconhece; a prosa era limpa, elegante, e o comentário dele foi calculadamente curto: “eficiente” .
No fim, ele recolheu algumas redações prometendo devolver na semana seguinte com anotações . A dela permaneceu com ela, mas o olhar que ele lançou ao papel sugeria outra coisa: que a leitura mais importante não viria escrita a lápis .
— Grupo de estudos às quatro, biblioteca, sala reservada — anunciou, já de saída —. Tema: narradores não confiáveis .
A tarde partiu-se em tarefas: um artigo para Teoria, uma visita rápida ao laboratório de línguas, um almoço atrasado no refeitório com arroz que sempre parecia refeito e um pedaço de peixe de sabor indeciso . Às quatro, ela chegou à sala reservada da biblioteca, uma dessas salas com mesa longa, paredes de vidro e isolamento acústico que deixa as vozes parecerem realçadas, como se alguém tivesse ajustado a frequência para confidências .
Havia seis alunos, além dele . Entre eles, a professora de Teoria que cobria eventualidades e um doutorando de crítica que falava com o cuidado de quem sempre antecipa a objeção . Discutiram textos em que o narrador não diz o que precisa, ou diz demais, e aprenderam a diferenciar a falha estética da falha ética . Em certo momento, ele pediu que reescrevessem, em cinco minutos, um trecho clássico alterando apenas uma escolha de ponto de vista . Ela escreveu como quem muda a câmera de um filme, e viu a cena transformar-se — de descrição asséptica a proximidade febril, apenas porque os olhos agora respiravam de dentro .
— Melhor — ele disse, ao recolher os papéis e detê-la por um segundo com um olhar —. Agora você sabe o que acontece quando a câmera chega perto demais .
Ao sair da sala, Clara a interceptou com uma expressão irônica .
— Narradores não confiáveis… adoro quando as teorias fazem o serviço de nomear o que a vida pratica sem pedir permissão — disse —. Café?
— Mais tarde — ela respondeu —. Preciso terminar um relatório de pesquisa .
— Pesquisa — Clara sorriu, enfatizando a palavra como quem a segura no ar por um segundo —. Bom nome .
Elas riram, amigas demais para se ofenderem com o subtexto . Quando desceu as escadas para o térreo, encontrou o corredor meio escuro por causa de uma lâmpada que piscava, e o som distante de chuva voltou como uma memória, embora o céu estivesse limpo . Ao virar a esquina para o bloco de gabinetes, quase colidiu com a professora rival .
— Desculpe — disse, afastando-se um passo .
— Acontece — a professora respondeu, o tom neutro, os olhos avaliando rápido, como quem fotografa e arquiva —. Você é a aluna que faz as perguntas difíceis .
— Tento fazer as perguntas certas — ela disse, consciente de uma linha invisível no chão .
— Cuidado para não confundir — a professora devolveu, um sorriso que não suavizava nada —. Às vezes, as perguntas fáceis são as mais perigosas .
Ficou olhando a professora se afastar com passos afiados, e sentiu uma pontada de curiosidade, não exatamente sobre teoria, mas sobre a história que sustentava aquela ferocidade . Quantas guerras invisíveis havia naquele departamento? Quantos pactos e rachaduras, quantos segredos escondidos atrás de prateleiras com lombadas impecáveis?
O gabinete dele estava com a porta encostada . Ela bateu duas vezes e ouviu a voz dizer “entre” com a mesma firmeza contida de sempre . Na mesa, pilhas de artigos, um abajur com luz morna e um quadro com uma fotografia antiga em preto e branco de um homem mais jovem, tão parecido com ele que, por um segundo, ela pensou ser o próprio; depois percebeu: havia uma diferença no olhar — menos peso, mais futuro .
— Sua redação — ele disse, indicando a cadeira —. Leu para a turma, mas não para mim .
— Li — ela respondeu, sentando-se —. E ouvi suas palavras. Precisão. Risco .
— Falta uma palavra — ele disse, recostando, os dedos tocando de leve o tampo da mesa como quem marca um compasso invisível —. Custo .
— Quanto custa? — ela perguntou, baixa .
— Depende de quem paga — ele disse —. E de quem cobra .
Ela respirou fundo . Havia perguntas demais que não se podia fazer sem acionar alarmes . Havia perguntas que, só de serem formuladas, criavam uma cena .
— Seu passado — ela arriscou, sentindo a palavra atravessar a sala como um objeto que pode quebrar —. Dizem… dizem muitas coisas .
Ele sustentou o olhar por um segundo longo, depois voltou aos papéis .
— O passado é um mau narrador — disse, por fim —. Edita mal, escolhe trilha sonora errada e tem mania de flashback . Prefiro falar de textos .
— Textos contam — ela insistiu, com suavidade —. Mesmo quando fingem não contar .
Uma contração leve cruzou o rosto dele, não um sorriso, mas um músculo que se move .
— Você veio aqui por quê? — perguntou, raspando de leve as sílabas .
Ela poderia ter dito: por causa da redação, por causa das dúvidas, por causa da monitoria . Em vez disso, disse a verdade que cabia, a única que não incendiava nada e ainda assim acendia algo .
— Porque o senhor pediu que eu lesse devagar — falou, e o silêncio que se seguiu parecia feito de tecido grosso .
Ele tirou da gaveta um livro fino, outro, com uma fita no meio .
— Poema vinte e quatro — disse —. Desta vez, leia em voz alta .
Ela abriu na marca e começou . O poema falava de uma casa com portas que nunca fechavam por completo, e de mãos que sabiam a medida da madeira sem precisar de régua . A certa altura, a palavra “comando” apareceu, não como ordem militar, mas como um acordo secreto entre gesto e resposta . Quando terminou, sentiu o próprio rosto quente .
— Percebeu? — ele perguntou, sem indicar o quê .
— O acordo — ela disse —. O tipo de acordo que não está escrito, mas rege a cena .
— Exato — ele respondeu —. É disso que falo quando falo de domínio .
— Domínio de quê? — ela perguntou, e a pergunta abriu espaço para outra, que não disse .
— De si — ele disse, seco —. O resto é consequência .
Ela assentiu, sem confiar na voz . Na periferia do campo de visão, a fotografia antiga insistia como um fantasma educado .
— Quem é? — saiu, antes que pudesse conter .
— Meu irmão — ele disse, e havia uma sombra na voz, não de dor, mas de distância —. Morreu cedo .
A frase ficou no ar, um enigma sem detalhes . Ela percebeu que havia mais, muito mais, mas também viu a cerca, e respeitou .
— A redação — ele retomou, devolvendo-lhe o papel com duas notas enxutas —. A primeira frase é exata. A última, melhor .
Ela leu as anotações: “retire um advérbio; diminui a força” e “não explique a respiração; a frase faz isso por você” . Sorriu de leve, não por cortesia, mas por reconhecimento técnico .
— Obrigada — disse .
— Evite o corredor principal ao sair — ele falou, recolhendo outra pilha —. Estão trocando as lâmpadas .
— Lâmpadas — ela repetiu, e quase riu do símbolo fácil .
— Às vezes os símbolos só são símbolos — ele cortou, seco, como quem recusa a alegoria por economia —. Não transforme tudo em metáfora .
Ela saiu pela porta lateral, um atalho que a conduziu a um pátio quase vazio . O ar tinha cheiro de livro velho e grama cortada, uma combinação estranhamente íntima . Ao virar a arcada, deu de frente com Helena, que fingia estar distraída examinando um cartaz sobre bolsas de pesquisa .
— Redações devolvidas? — Helena perguntou, com curiosidade polida .
— Algumas — ela disse, guardando o papel com movimento automático —. A sua… “eficiente”, não foi?
— E a sua… “precisa” — Helena respondeu, sorrindo sem doçura —. Gosto quando ele economiza adjetivos. Torna tudo mais… legível .
— Legível para quem? — ela perguntou, sem azedume .
— Para quem sabe ler — Helena devolveu, e a frase, inofensiva na superfície, tinha pontas .
No fim da tarde, a biblioteca a recebeu com seu silêncio substancial . Ela sentou-se, abriu o caderno e tentou voltar ao artigo de Teoria, mas as palavras derrapavam como pneus numa curva molhada . Apanhou o poema vinte e quatro e leu de novo a palavra “comando”, e desta vez sua mente não fugiu: encarou de frente a linha tênue entre conduzir e ceder, entre nomear e calar .
O celular vibrou sobre a mesa, e o nome de Clara surgiu com uma mensagem breve: “Jantar? Preciso de conversa que não cite autores mortos” . Ela sorriu e respondeu que sim, que às sete no restaurante de massa perto do portão . Guardou as coisas e, ao passar pela recepção, percebeu um envelope pardo com seu nome, letra inclinada, depósito discreto numa bandeja de correspondências internas . A biblioteca, com seus protocolos, não era lugar de bilhetes, mas ali estava .
Abriu no corredor vazio . Uma única folha, duas linhas:
“Quando a câmera aproxima, quem segura o foco?
Assine com a mão firme” .
Nenhuma assinatura . Nenhuma necessidade .
A noite prometia ser de massa, risos e descanso . Promessas são úteis . Mas o que de fato a acompanhou até a esquina foi a sensação de que, de agora em diante, cada frase que escrevesse teria, por trás, a exigência silenciosa de uma mão que conhece a medida da madeira sem precisar de régua . E, embora a parte prudente quisesse recuar, outra parte, teimosa e recém-alfabetizada no idioma do risco, aceitava o preço de aprender a segurar o foco .
Capítulo 4 — Ecos na Biblioteca
O dia seguinte amanheceu com um vento seco que varria folhas pelo pátio interno, como se a estação tivesse decidido mudar de página antes do calendário admitir a virada . Ela chegou à biblioteca mais cedo do que precisava, movida por uma mistura incômoda de prudência e ímã, aquela tendência do corpo a ensaiar rotas que a mente finge não mapear . As luzes ainda eram poucas, acesas uma a uma pelos funcionários, e o silêncio tinha aquele frescor inaugural que torna as mesas mais espaçosas e o ar mais fino .
Escolheu um lugar discreto entre as estantes de crítica, não longe da seção de poesia, onde as lombadas se alinhavam como guardas atentos . Tirou da bolsa o caderno, o poema vinte e quatro e uma cópia amassada das anotações de Narradores Não Confiáveis, como se precisasse construir uma fortaleza de papéis ao redor de si . Escreveu por meia hora, frases firmes, cortes precisos; quando a caneta começou a patinar no mesmo verbo, ela levantou e foi buscar um volume pequeno, difícil de achar sem conhecer o território: um ensaio sobre o olhar como ato ético na narrativa .
No corredor estreito da seção de teoria, ouviu passos medidos aproximarem-se e recuou um meio passo por reflexo, como quem oferece passagem . Ele surgiu no vão entre estantes com a mesma economia de movimentos, uma presença que não precisava de ruído para preencher o espaço . Vestia um casaco leve, o colarinho da camisa aberto, as mangas discretamente dobradas, como se o gesto prático contivesse um protocolo de intimidade controlada .
— Bom dia — disse, baixo, como se respeitasse o acordo tácito com as lombadas .
— Bom dia — ela respondeu, conscientes os dois da proximidade e da escolha de permanecer .
Ele passou os dedos pela lombada do ensaio que ela procurava e o retirou com precisão de quem não tateia .
— Procurava isto — afirmou, não como pergunta . E estendeu o volume .
A mão dela encontrou o livro no meio do caminho, e por um segundo as peles roçaram, como dois parênteses que se tocam antes de abrir a frase . O gesto foi mínimo, mas o ar mudou de densidade, como se umidade tivesse entrado pelas frestas .
— O olhar como ato ético — ela leu em voz baixa —. E quando o olhar se torna invasão?
— Quando olha para tomar, não para compreender — ele disse —. Quando a câmera viola, em lugar de revelar .
— E se quem olha não sabe a diferença? — ela cortou, sincera .
— Aprende pelos limites — ele devolveu —. E pelo retorno .
Uma funcionária passou com um carrinho de livros, uma ilha de barulho no mar de silêncio, e os dois se afastaram meio passo, como se obedecessem a um coreógrafo invisível . Ele devolveu o olhar a ela, com a mesma firmeza controlada de sempre, e a pergunta que se formou não era acadêmica .
— As duas linhas do envelope — ela disse, antes que a coragem se desfizesse —. Foram suas?
— A pergunta correta — ele respondeu, medindo sílabas — é se eram necessárias .
— Eram — ela assentiu, um pouco mais rápido do que pretendia .
Houve uma pausa . A iluminação da manhã filtrava poeira em partículas visíveis, como se o ar fosse um texto onde se pudesse sublinhar .
— Hoje, após as cinco — ele disse —. Sala de seminários três. Traga um trecho novo .
— Sobre… — ela começou .
— Bordas — ele completou, sem hesitar .
A palavra ficou entre eles, com a temperatura de metal aquecido . Ele se afastou primeiro, com o mesmo passo que não admite pressa nem hesitação, e desapareceu por trás da estante de poesia como quem fecha uma cortina . Ela voltou à mesa com o ensaio em mãos e a sensação de que o prédio inteiro pulsava, como se o concreto tivesse vasos onde corresse uma forma de sangue .
Concentrou-se no texto com disciplina — a única ferramenta que sabia manejar sem falhar — e anotou: “olhar como responsabilidade; proximidade que não confisca; retorno como critério” . A cada duas páginas, porém, um ruído interno interrompia o fio, uma memória de pele breve que insistia em se tornar argumento . Ao meio-dia, Clara apareceu com dois sanduíches embrulhados em papel pardo e uma garrafa de chá gelado, como um mensageiro da vida prática .
— Resgates para intelectuais famintos — ela anunciou, pousando as oferendas no canto da mesa —. Já que você esquece de comer quando pensa demais .
— Gratidão — ela disse, rindo, e aceitou o sanduíche como quem assina um armistício com o corpo .
— Ouvi um rumor — Clara baixou o tom sem teatralidade —. A professora rival está montando um dossiê sobre “ética departamental” para a reunião do conselho . Dizem que vai puxar a corda até encostar em gente que se acostumou a ter folga .
— Rumores fatigam — ela tentou, mas a frase saiu menos leve do que queria .
— Rumores são molduras vazias — Clara respondeu —. O problema é quando alguém decide preenchê-las com pinturas de pessoas vivas .
Helena passou na outra extremidade da sala, como quem não passa, os olhos registrados pela periferia da visão . Trazia nas mãos um livro fino de capa vermelha e a postura de quem já nasceu preparada para ser observada . Por um instante, os olhares se cruzaram; não houve hostilidade declarada, apenas a cortesia fria de competidores que reconhecem a pista .
Às cinco, a sala de seminários três estava vazia, com as cadeiras empilhadas num canto e a mesa longa impondo um eixo à sala . Ela chegou dois minutos antes, com as páginas recém-impressas ainda quentes, e esperou de pé, como quem não quer deixar marcas no estofado . Ele entrou à hora, fechou a porta com cuidado e baixou a persiana o suficiente para quebrar a visibilidade, sem fechar o mundo .
— Leia — disse, sentando-se na extremidade oposta da mesa .
Ela leu . O texto era um corredor descrito em detalhes, a textura da parede, o eco dos passos, o modo como a luz se partia ao atravessar venezianas . No centro, um gesto: uma mão que para antes de tocar e decide, por decisão que parece não ser só dela, encostar .
— Onde começa a borda? — ele perguntou, quando o silêncio retornou .
— No espaço entre intenção e gesto — ela respondeu, sem pensar .
— E onde termina? — ele insistiu .
— Onde a linguagem já não dá conta — ela disse, e só depois entendeu que tinha respondido outra coisa .
Ele se levantou, percorreu a lateral da mesa e parou a uma distância que não cabia em rubricas . Não tocou . Não invadiu . Apenas existiu ali, próximo o bastante para que o corpo dela precisasse escolher entre avançar um milímetro ou recuar o mesmo milímetro . Ela ficou .
— O olhar como ato ético — ele retomou, quase como citação —. Quem segura o foco agora?
— Eu — ela disse, e percebeu que a palavra tinha peso suficiente para deslocar o ar .
Ele recuou um passo . Voltou à extremidade da mesa, como quem devolve o equilíbrio ao ambiente .
— Então escreva — concluiu —. E lembre-se: domínio começa em si. Todo o resto virá ou não virá .
Quando saiu para o corredor, os sons da biblioteca pareceram um dial mais alto — risos contidos, tosses discretas, o ranger de uma cadeira que recusa silêncio . Ao descer a escada, cruzou com Helena, que subia devagar, como quem não tem pressa de chegar ao próprio destino .
— Bordas — Helena disse, sem preâmbulos, como se a palavra fosse um cumprimento —. Tema fértil .
— Para bons jardineiros — ela disse, e manteve o passo .
Helena riu, um som breve que poderia ser lido como admiração ou aviso . Do lado de fora, a tarde se desmanchava numa luz dourada e baixa, o tipo de luz que transforma o campus em fotografia antiga por alguns minutos . Ela caminhou até o portão pensando que, por algum mecanismo invisível, a biblioteca tinha paredes mais porosas do que parecia . E que certas cenas, mesmo sem toque, deixavam marcas mais nítidas do que dedos .
Capítulo 5 — A Reprovação de Helena
A notícia correu como notícias correm em lugares onde todos fingem estar ocupados demais para fofocas: rápida, sussurrada, inevitável . Helena havia sido reprovada no artigo submetido à revista interna, um parecer duro acusando “brilho estilístico sem coragem analítica” — frase que, para mentes treinadas, soava como uma bofetada de veludo . O rumor trouxe consigo hipóteses: retaliação acadêmica, azar na banca, excesso de confiança; nenhuma com provas, todas com convicção .
Na sala de aula, Helena entrou com a coluna ainda mais ereta, o sorriso pequeno e impecável, como quem domina a arte de transformar feridas em postura . Sentou-se duas fileiras atrás, alinhada com a janela, de onde a luz recortava seu rosto em planos e sombras . A aula começou com um texto sobre inveja na literatura e a maneira como narradores projetam no outro o que não suportam admitir em si . A coincidência temática não passou despercebida, e o ar vibrou com a malícia contida que universidades cultivam melhor do que jardins .
— Inveja é um narrador eficiente — ele disse, de pé, as mãos apoiadas na mesa —. Porque narra demais . Na página, o excesso costuma denunciar o medo .
Olhou para a sala sem pousar em ninguém por tempo suficiente para acusar . Ainda assim, a frase encontrou destinos . Clara, duas fileiras à frente, mexeu no cabelo com um gesto que sinalizava desconforto pela proximidade com o tema . Ícaro sorriu de lado, sempre disposto a colecionar bons aforismos . Helena não se moveu .
Ao fim, ele recolheu três trabalhos para leitura em gabinete — método habitual quando queria discutir a frio, longe das teatralidades da sala . O nome de Helena estava entre eles . O dela, não . Uma parte recuou, aliviada; outra parte sentiu a ausência como uma exclusão que não doía, mas coçava .
No corredor, Clara enfiou-se ao lado dela como quem protege do vento .
— Aconteceu algo — disse, direto —. Helena foi cortada onde dói, e gente cortada treina faca no escuro .
— Acha que ela… — ela começou .
— Não acho nada — Clara disse, prática —. Só digo: afine o ouvido .
A tarde trouxe a monotonia útil dos relatórios e formulários, mas a quietude não prendeu por muito . No meio do preenchimento de uma planilha, o celular vibrou com um e-mail curto do departamento: “Reunião extraordinária do Conselho — pauta: diretrizes éticas em projetos de pesquisa discente e docente” . Três linhas abaixo, a assinatura da professora rival . No anexo, uma coletânea de normas que todos conheciam, mas quase ninguém lia de ponta a ponta .
— Isso não é sobre normas — Ícaro disse, apoiando-se na borda da mesa dela —. É sobre pessoas .
— Sempre foi — ela respondeu .
Quando o relógio marcou cinco, a biblioteca tornou-se mais cheia, como acontece quando os dias afunilam para prazos . Ela ocupou um canto, determinada a despregar a mente dos rumores e mergulhar no texto a entregar; mas a primeira hora foi um desfile de distrações: o ranger específico de uma cadeira distante, o espirro abafado do bibliotecário, o estalar de um dedo impaciente duas mesas adiante . Quando finalmente começou a escrever com tração, um bilhete caiu de dentro do livro emprestado, colado ao miolo como folha renitente .
“Enfoque e exposição são coisas diferentes.
Aprenda a diferença antes que aprendam por você.”
A caligrafia era, outra vez, inclinada . A advertência não parecia poesia . Ela guardou o papel sem responder ao impulso de olhar em volta . Deu-se cinco minutos para respirar e retomou a frase do parágrafo aberto, decidida a atravessar o texto por dentro, sem ceder ao teatro do entorno .
Às seis e meia, a reunião do Conselho começou numa sala ampla com janelas altas e cadeiras que pareciam feitas para diminuir a estatura dos presentes . A professora rival conduziu com a frieza de quem traz as regras na ponta da língua e os fatos numa pasta que não mostra inteira . Falou-se de limites, de exposição indevida, de relações assimétricas que viciam ambientes; ninguém disse nomes . Quase no fim, uma frase cortou o ar:
— O problema não é o rumor — disse a professora —. É quando criamos contextos que o tornam plausível .
Ninguém aplaudiu . Ninguém contestou . O silêncio que seguiu cheirava a coisa antiga: medo respeitoso .
À saída, ela cruzou com Helena no corredor . A colega trazia a pasta justa ao corpo como quem segura um escudo leve .
— Pauta pesada — Helena comentou, sem malícia visível .
— A universidade adora conceitos pesados — ela respondeu —. São fáceis de empilhar .
— E de derrubar — Helena sorriu breve —. Com um empurrão no lugar certo .
— Estamos falando de quê, exatamente? — ela perguntou, com a calma estudada que reserva para provas orais .
— De geometria — Helena disse —. Vetores, forças, ângulos . Você entende .
— Entendo o suficiente para não tropeçar de propósito — ela devolveu .
— Ótimo — Helena assentiu, como quem fecha um acordo sem termos —. Porque há gente que tropeça bonito e gente que cai feio .
Helena se afastou com passos que não faziam ruído . Ela ficou parada por um segundo, contando os próprios batimentos como quem calibra instrumento . Ao virar a esquina para o pátio, viu-o, de longe, atravessando a linha de sombra até a faixa de luz de um poste . Não acenou . Não chamou . A presença dele, naquela hora, era um lembrete do que estava em jogo: um texto que crescia em silêncio e um ambiente que começava a tremer ao redor .
Na noite desse dia, escreveu uma página curta, sem título, sem tema declarado . Era apenas a imagem de uma mesa longa numa sala com persianas, duas pessoas a extremos diferentes, e uma pergunta que flutuava no espaço entre elas: “quem segura o foco quando a luz muda?” . Ao terminar, não sabe dizer por que, assinou com a mão firme, nome inteiro, letra clara .
Dobrou a folha e guardou no envelope pardo que tinha em casa, o mesmo que agora parecia ter se tornado parte do mobiliário da sua rotina . Antes de dormir, leu duas páginas do ensaio sobre o olhar e sublinhou uma linha que, naquele momento, soou como profecia: “Todo olhar cria o seu retorno” . Apagou a luz e, no escuro, compreendeu a dimensão da frase . Porque já sentia o retorno aproximando-se, com passos medidos, pelos corredores da universidade que, de dia, cheiram a livro e, de noite, cheiram a segredo .
Capítulo 6 — O Convite
A universidade parecia respirar mais baixo naquela manhã, como se uma instrução silenciosa tivesse reduzido o volume do mundo para que os corredores coubessem nas entrelinhas dos acontecimentos recentes . A reunião do Conselho deixara um resíduo no ar, feito de cautela e frases medidas, e até as portas pareciam se fechar com delicadeza ensaiada, temendo chamar atenção para o próprio ato . Ela atravessou o pátio com passos regulares, tentando disciplinar o corpo para que a cabeça obedecesse; mas as palavras que trazia por dentro — foco, exposição, retorno — insistiam como notas repetidas de um instrumento afinado demais .
Na aula, o texto do dia tratava de promessas tácitas, esses contratos que pessoas firmam sem assinatura, e que regem mais destinos do que muitos termos em papel . Ele leu sem pressa, a voz cortando as frases com a precisão de quem separa músculo de nervo, e ao final pousou o livro sobre a mesa como quem repousa um bisturi .
— Contratos invisíveis têm uma cláusula que poucos leem — disse —: a do silêncio . Nem todo silêncio é cumplicidade; às vezes, é terreno de trabalho .
A frase espalhou pequenos choques elétricos pela sala . Helena não anotou; ficou olhando a janela como se o vidro devolvesse uma versão do texto que só ela lia . Clara, duas fileiras à frente, recostou, como quem aceita a lição, mas guarda reservas . Ele terminou a aula sem teatro, como sempre, apenas uma última pergunta lançada ao quadro-negro: “o que se deve à verdade?” .
Quando os alunos começaram a sair, ele recolhia os livros com método quando ergueu a cabeça e, num gesto que poderia passar por casual, encontrou o olhar dela .
— Hoje — disse, baixo, não para a sala, mas para o ponto exato onde a voz iria chegar —, às sete, livraria do centro. Lançamento discreto . Autores menores, ideias incompletas, bom para pensar nos intervalos .
Ela entendeu “convite” onde ele disse “lançamento”, e entendeu “discreto” onde ele disse “autores menores” . Não perguntou quem mais iria; a pergunta soaria como necessidade de mapa, e ela tinha decidido aprender a caminhar com menos placas .
Clara surgiu ao lado, com o olfato aguçado das amigas que mapeiam o tempo do outro melhor do que calendários .
— Programa? — perguntou, leve .
— Lançamento, no centro — ela disse, mantendo a voz neutra —. Ideias incompletas .
— Ideias incompletas são as mais perigosas — Clara mordeu o lábio, meio rindo —. Completar ideias é um gesto íntimo .
— E essencial — ela devolveu .
Às sete, a livraria do centro tinha o ruído bom de páginas e passos, a luz branca que não romantiza livros, mas os deixa respirando numa claridade útil . Havia um pequeno círculo de cadeiras ao fundo, um autor jovem falando sobre mínimas epifanias urbanas e um público de trinta pessoas que alternava atenção sincera e performance de atenção . Ele estava encostado em uma estante lateral, braços cruzados, olhar que assistia e avaliava sem dar o espetáculo de uma expressão .
— Chegou — disse, quando ela se aproximou, como se o verbo registrar fosse suficiente .
— Cheguei — repetiu, sentindo, na própria voz, a pequena vibração que separa constatação de escolha .
Ouviram o autor, que falou bem sobre pouco, e isso era um mérito . No intervalo, a livraria diluiu-se em corredores, e os dois se moveram como quem participa da mesma casa de ecos . Ele puxou um volume fino de uma prateleira alta — contos de uma escritora de guerra — e abriu numa página marcada .
— Leia o último parágrafo — pediu .
Ela leu . Era uma despedida que não dizia adeus, uma cena em que duas figuras param a um passo de um gesto e decidem, por amor ao gesto, preservá-lo no não-feito .
— Às vezes, preservar é a forma mais exigente de coragem — ele disse, depois —. E a mais mal interpretada .
— Preservar o quê? — ela perguntou, consciente de que a palavra abrangia mais do que o texto .
— O que ainda não sabe dizer seu nome sem se quebrar — ele devolveu .
A rival passou pelo corredor oposto, acompanhada de um professor visitante, os olhos varrendo as lombadas como quem busca um título e encontra cenas . Não parou . Não cumprimentou . Mas a sua presença ali, somada à dos rumores e à pauta do Conselho, acendeu uma luz de emergência nas paredes invisíveis .
— Café? — ele sugeriu, sem adornos .
— Sim — ela respondeu, sabendo que “café” era também um protocolo para dizer: um lugar onde as palavras podem respirar um pouco mais sem testemunhas oficiais .
O café ao lado da livraria tinha mesas de madeira escura e lâmpadas pendentes que desenhavam círculos de luz sobre cada par de vozes . Sentaram-se em uma mesa lateral, de onde se via a rua em recortes . Ele pediu curto; ela, médio, como sempre .
— Os bilhetes — ela começou, escolhendo tocar no nervo —. São uma forma de aula?
— São uma forma de método — ele disse —. E de economia . O que pode ser dito em uma linha não merece duas .
— E o que não pode ser dito? — ela perguntou .
— Treina-se o silêncio — ele respondeu —. Até que o silêncio fale com precisão .
Ela encostou os dedos no copo morno, como se pudesse tirar da borda uma espécie de coragem tátil .
— A reunião do Conselho… — disse, sem transformar a frase em pergunta .
— A universidade vive de rituais — ele respondeu, neutro —. Alguns úteis, outros punitivos . É bom conhecê-los todos .
— Punitivos para quem? — ela insistiu .
— Para quem não lê as cláusulas pequenas — disse, e o olhar pousou nela sem dureza, mas sem concessão .
— Está me avisando? — ela manteve a voz baixa .
— Estou frisando um rodapé — ele corrigiu —. Como faço nos textos .
Ela sorriu, breve, pela coincidência entre método e vida . Ao sair, chovia um fio tão fino que a cidade parecia envolta em gaze . Caminharam até a esquina sob a mesma marquise, próximos o suficiente para que o cotovelo dela quase tocasse o casaco dele, distantes o suficiente para que qualquer observador lesse ali apenas o acaso .
— Amanhã, biblioteca, sala reservada — ele disse, já na despedida —. Traga uma cena sobre preservar .
— Sobre não fazer? — ela precisou .
— Sobre escolher não fazer — ele corrigiu —. O verbo importa .
Ela assentiu e ficou vendo-o desaparecer entre sombras e vitrines, uma figura que sempre parece caminhar num eixo próprio, como se carregasse sua luz . Voltou para casa com a cidade colada ao vidro do ônibus e escreveu até tarde, perseguindo a gramática exata do que se mantém de pé justamente por não ser tocado . A última frase veio quando já não esperava: “ninguém soube que foi heroico; e ainda assim foi” .
Capítulo 7 — No Café da Esquina
A sala reservada da biblioteca amanheceu com cheiro de papel novo e poeira antiga, uma combinação que parecia explicar a própria universidade: o novo sempre assenta sobre uma camada persistente do que já foi . Ela chegou com as páginas úmidas de tinta, um incômodo dos que escrevem tarde e imprimem cedo, e colocou-as sobre a mesa como quem depõe uma peça de evidência . Ele entrou na hora habitual, fechou a porta até o primeiro encaixe — jamais até o clique completo — e sentou-se com a postura que escolhe o eixo antes do argumento .
— Leia — disse .
Ela leu a cena de preservar . Era um quarto com janelas entreabertas, um copo de água esquecido e um gesto interrompido com a perfeição daquilo que não se completa porque sabe que, se completar, morrerá . Quando terminou, a sala parecia menor, não por claustro, mas por foco .
— Agora há custo — ele disse, após segundo e meio de silêncio —. E há escolha .
— A escolha pesa — ela admitiu .
— Deve pesar — ele respondeu —. Escolhas leves quase sempre são imposturas .
O som do ar-condicionado preencheu o intervalo, e ela se pegou ouvindo o próprio coração com atenção de relojoeiro .
— A reunião do Conselho gerou um adendo — ele disse, trocando de assunto sem anunciar —. Monitorias e orientações deverão, por ora, acontecer em grupos. Evita-se… mal-entendidos .
Ela entendeu o não-dito: a malha apertando . O método institucional tentando impor distância como forma de higiene moral .
— Então, grupos — ela concordou, sem teatralizar .
— Grupos — ele repetiu —. Mas o rigor não muda .
Ela guardou as folhas com cuidado e, ao fazê-lo, percebeu algo sob a mesa: um grão de giz, desses que se desprendem do quadro e sobrevivem além do apagador . Pegou o grão, uma miudeza, e sentiu a aspereza entre os dedos — objeto sem valor que, naquele instante, lhe pareceu um marcador de realidade .
— Café? — ele perguntou, e a palavra carregava agora um duplo sentido menos inocente .
— Café — ela confirmou .
O café da esquina já lhes pertencia por reiterado acaso, e ser proprietário de um acaso é quase ser proprietário de um segredo . Sentaram na mesa do fundo, onde a lâmpada pendente criava um círculo de luz levemente amarela, bom para conversas que pedem temperatura . A barista, que os reconhecia, serviu sem perguntar, como quem entende que certas rotinas são pactos .
— O texto preserva, mas você não — ele disse, olhando-a com uma precisão que não feriu —. Você avança .
— Avanço para dentro de mim — ela corrigiu, sentindo que precisava ser justíssima com a gramática da própria ação —. O resto é consequência .
— Domínio — ele assentiu, como quem confere uma tese .
— Domínio não é controle total — ela disse, quase em defesa de algo que nem sabia precisar —. É saber o que fazer quando o controle falha .
Ele inclinou a cabeça um milímetro, gesto dele que equivalia a aprovação .
— Explique com a frase — ele devolveu o próprio método .
— Domínio é “eu volto” — ela disse —. Mesmo quando algo me puxa para fora .
Um silêncio bom se instalou, e o barulho da rua parecia longe . Ela queria perguntar coisas que incendiavam — sobre o irmão na fotografia, sobre a ex-aluna do rumor, sobre quando a vida dele aprendia as suas próprias cláusulas —, mas escolheu o verbo certo: preservar . Havia perguntas que guardam melhor o que importa quando ficam quietas .
— Recebeu avaliação da revista? — ele perguntou, neutro, alterando o tema com a naturalidade de quem muda a trilha sem mudar o filme .
— Ainda não — ela respondeu —. Submeti outro texto, menos… inflamável .
— Inflamável é um adjetivo de leitores — ele disse —. Para autores, o adjetivo é “necessário” ou “excessivo” .
— E para professores? — ela arriscou .
— Para professores, “rigoroso” ou “preguiçoso” — ele cortou, com uma ironia seca .
O sino da porta tocou, e um professor do departamento entrou com dois alunos; ao notar o par no fundo, desviou o olhar por um segundo longo demais para ser simplesmente cortesia . O mundo observava . E quando o mundo observa, aumenta o preço do gesto .
— Sabe a diferença entre insinuar e dizer? — ele perguntou, baixando o tom um grau —. O mundo pune mal a primeira e mal a segunda . O único juízo que conta é se você aguenta o retorno .
— Aguentar… — ela repetiu, sentindo a palavra descer como metal quente .
— Aguenta? — ele perguntou, e, pela primeira vez, havia algo inequívoco no olhar: vulnerabilidade guardada por trás de um casco fino .
— Ainda não sei — ela respondeu —. Mas não fujo do treino .
Ele assentiu e, sem aviso, empurrou um caderno pequeno na direção dela — capa preta, elástico, papel sem linhas .
— Para as cenas que não cabem nas telas oficiais — disse —. Use quando precisar sair do protocolo para continuar no rigor .
Ela passou os dedos pela capa, sentindo o material levemente áspero .
— Presentes criam contratos — observou .
— Só se você assinar — ele devolveu .
— Assino com trabalho — ela disse .
— É a única assinatura que aceito — ele encerrou, e o gesto de levar a xícara à boca foi a versão dele de um ponto final .
Na saída, a cidade estava clara e fria, e o vento trouxe cheiro de ferro da obra da esquina . Atrás deles, a professora rival surgia do outro lado da rua, falando com alguém ao telefone, e os olhos que ela não desviou eram uma anotação no rodapé do dia . Clara escreveu poucas horas depois: “Ouvi dizer que a pauta ética vai continuar. E que alguns vão se aproveitar da névoa para atirar pedras” . Ela respondeu com uma foto do caderno novo, legenda breve: “rigor” .
Nessa noite, escreveu três páginas sem parágrafos no caderno de capa preta, frases que testavam o fôlego e a paciência, e em cada uma a decisão de onde respirar era uma pequena liturgia . Antes de dormir, deixou o caderno aberto na cômoda, como quem permite que as palavras enxuguem o próprio suor . Ao apagar a luz, uma certeza ficou acordada: preservar e avançar não eram verbos opostos; eram o mesmo verbo em tempos diferentes . E a gramática que aprenderia dali em diante teria, fatalmente, o corpo como dicionário e o silêncio como conjugação .
Capítulo 8 — Fragmentos de Controle
Os dias seguintes chegaram como páginas numeradas, mas a ordem aparente escondia fissuras, pequenas rachaduras por onde o imprevisto respirava . A universidade, com sua face ordeira de horários e protocolos, parecia ter ganho um subsolo: corredores paralelos onde olhares duravam um segundo a mais, onde portas encostadas valiam mais do que portas abertas, onde palavras eram pesadas pela densidade e não pelo número . Ela tentava manter o método — acordar cedo, ler antes de responder mensagens, escrever antes de pensar em vidas alheias —, mas o método agora convivia com um outro tipo de disciplina: a de não ceder à curiosidade do que o silêncio talvez estivesse dizendo .
Na segunda-feira, ele mudou a ordem da aula . Não pediu leituras iniciais; lançou, de saída, uma pergunta: — Quem aqui já sentiu que uma frase o puxou para um lugar que não queria ir? Metade das mãos ergueu-se por reflexo de participação, a outra metade permaneceu baixa por reflexo de prudência . Ele escolheu três vozes ao acaso, ouviu descrições, recortou o excesso, reteve o essencial e, ao final, disse: — A boa frase é um comando que não precisa gritar .
Ela anotou “comando silencioso” e sentiu a expressão vibrar como uma corda afinada demais . Quando a aula terminou, a professora rival estava à porta, esperando uma conversa com ele que começou civilizada e terminou com um ponto final duro demais para ser apenas sintaxe . Ninguém ouviu o conteúdo; todos ouviram o tom .
No corredor, Helena escorou-se na parede com a desfaçatez de quem domina o próprio cenário .
— Gostei do “comando que não grita” — disse, fingindo elogio acadêmico —. Serve para muitas disciplinas .
— Inclusive para a de “não presumir demais” — ela devolveu, sem perfume .
— Presumo o mínimo — Helena sorriu —. O resto, confirmo .
O grupo de estudos daquela semana trocou de sala em cima da hora, oficializando uma tendência a mover peças para escapar de olhos e ouvidos . Na sala nova, menor, o ar parecia mais espesso, e a conversa sobre narradores não confiáveis transformou-se, inevitavelmente, num debate sobre confiabilidade pública versus integridade privada . O doutorando falou de cartas trocadas entre autores e editores, de cortes exigidos para “proteger reputações”, e, em certo momento, Ícaro, que frequentava por amor ao caos, brincou: — Toda ética é, no fundo, edição . Ele não riu, mas não desmentiu .
No fim, enquanto os demais discutiam datas, ela recebeu um envelope pardo menor do que os anteriores, quase um cartão . Abriu quando ficou sozinha, no corredor onde a lâmpada piscava desde a semana passada .
“Faça o corpo da frase obedecer quando a cabeça tremer.”
Ela encostou as costas na parede fria e respirou, medindo o tamanho do recado . Obediência, ali, não tinha nada a ver com servilismo; era técnica . Escrever quando o resto vacila . Caminhou até o pátio interno e sentou-se num banco de cimento, o caderno preto no colo, e escreveu três parágrafos onde cada período parava exatamente onde devia, sem concessão a pruridos .
À noite, Clara mandou mensagem: “A rival está recolhendo declarações sobre condutas ‘impróprias’ entre docentes e discentes. Não há nomes, há sombras. Sabe como é” . Ela respondeu com uma única palavra: “sei” . E, por cima do saber, uma camada: escolher o próximo gesto .
No dia seguinte, uma lista de comunicados apareceu num mural eletrônico: novas regras para atendimento em gabinete, preferência por portas abertas, recomendação de encontros em espaços compartilhados . Tudo em linguagem de serviço, tudo com cheiro de aviso . Na prática, ele adaptou o método: reuniões rápidas ao final das aulas, exercícios trocados por envelopes fechados, anotações mais concisas . O rigor não cedeu; o mundo apertou .
Na biblioteca, os encontros passaram a ser acidentes coreografados: ele no corredor da seção de poesia, ela na de teoria, um cruzamento na mesa de periódicos, a troca de um livro com marcações mínimas — tiras de papel quase invisíveis — que diziam mais do que parágrafos . Numa dessas, ele apontou com o olhar, e só com o olhar, uma linha sublinhada: “A confiança é o risco voluntário de se expor a um retorno” . Ela entendeu que a palavra “retorno”, que a perseguia, tinha agora uma conjugação prática: que retorno estava disposta a suportar?
Na quinta, uma cena mudou a arquitetura do dia . Ao sair de uma aula, virou o corredor e viu a professora rival na porta do gabinete dele, com uma pasta azul-escuro sob o braço, o cenho crispado de quem traz um inventário . Não ouviu as palavras, mas viu um gesto dele que nunca tinha visto: os dedos tocando a ponte do nariz, como quem calcula, e o olhar ligeiramente para baixo, como quem decide perder um segundo para ganhar o minuto . Quando a professora saiu, cruzou por ela com um olhar que não se deteve, mas não precisou .
À tarde, ele não apareceu no grupo de estudos . A justificativa foi seca: “imprevisto departamental” . O doutorando conduziu, alternando competência e nervosismo, e a conversa descarrilou do texto para a vida por duas vezes, até que ela puxou de volta com uma pergunta técnica sobre foco narrativo . No final, Clara a alcançou no corredor com um saco de pães de queijo e notícias: — Ele foi chamado pela direção. Alguém empilhou palavras como quem empilha caixas, e agora querem ver o que tem dentro .
A noite soube o travo do esperado . No quarto, ela escreveu uma página de frases curtas, como quem aprende a respirar sob água . No final, uma linha sozinha: “Se o mundo aperta, afino” . Dormiu tarde e sonhou com corredores que se estreitavam até virarem uma linha, e com a sensação estranha de que, no limite, a linha era trilho . Acordou com a certeza de que, apesar da tensão crescente, a escrita tinha ficado mais limpa, mais justa, como se o perigo retirasse os adverbios supérfluos da vida .
Na manhã seguinte, encontrou um livro na mesa que costumava usar na biblioteca, deixado como quem deixa uma xícara a mais de café: Poéticas do Limite . Dentro, uma única marca: “Quando o mundo muda as regras, responda mudando de escala” . Passou o dedo por cima da linha sublinhada como quem confirma o tato . Mudaria de escala . Menos exposição, mais precisão . Menos cena, mais texto . E, ainda assim, o texto carregando a cena inteira nas costas, sem derramar .
Capítulo 9 — O Bilhete
O sábado trouxe uma claridade de vidro, dessas que não aquecem, mas fazem as coisas parecerem recortadas com nitidez . Ela decidiu trabalhar em casa pela manhã e, à tarde, ocupar seu lugar na biblioteca como quem cumpre um ritual de passagem entre mundos . Às três, entrou no salão grande e sentiu o cheiro partido de madeira e papel, essa mistura que às vezes parece consumir oxigênio, às vezes produzi-lo . Escolheu uma mesa perto de uma janela lateral e arrumou o território: caderno preto à direita, caneta no centro, livro aberto à esquerda .
Meia hora depois, percebeu o envelope . Não pardo, desta vez, mas creme, fino, dobrado com a precisão de quem conhece a diferença entre vincar e amassar . Não tinha nome na frente . Não tinha selo . Apenas existia, encostado ao canto do livro, como se sempre tivesse estado ali .
Olhou ao redor por reflexo — duas estudantes de doutorado discutindo notas ao fundo, um bibliotecário no balcão, um rapaz fotografando páginas com o celular — e decidiu abrir . Dentro, uma folha menor que a palma da mão, uma única frase:
“Hoje, 18h, prateleira 801.4. Leia em voz alta.”
Ela sorriu, apesar de tudo . A notação decimal era uma brincadeira que só faz sentido para iniciados: 800 para Literatura, 801 para teoria, 801.4 para estilo e retórica . Às seis em ponto, caminhou até a seção, as estantes altíssimas fazendo corredores de sombra onde a voz do mundo vinha filtrada . 801.4 estava no meio do corredor, três prateleiras acima da sua cabeça . Ela puxou um livro aleatório de estilo e, entre suas páginas, encontrou um marcador improvisado — uma tira fina de papel com um poema de quatro linhas, sem autor .
Não havia ninguém à vista . Ainda assim, cumpriu o protocolo: leu em voz baixa, como se obedecesse a uma liturgia invisível .
“Há mãos que ensinam sem tocar,
vozes que guiam sem elevar,
olhos que pedem sem mandar,
e corpos que escolhem sem explicar.”
Ao terminar, um barulho delicado atrás, como o roçar de uma manga de camisa numa lombada . Virou-se devagar . Ele estava ali, a dois corredores de distância, metade do rosto num retângulo de luz que a janela emprestava . Não se aproximou . Não falou . Apenas ergueu a mão até a altura do peito e, com dois dedos, indicou o próprio olhar, como quem pergunta: “foco?”
Ela assentiu . Fechou o livro, recolocou-o no lugar, e caminhou até a interseção dos corredores, onde a proximidade é inevitável por geometria . Pararam a um metro, como se o espaço houvesse sido previamente medido .
— A biblioteca tem boa acústica — ele disse, sem ironia —. Palavras pequenas crescem aqui .
— Algumas nascem aqui — ela devolveu .
— E algumas morrem — ele completou, neutro —. Quando não aguentam o teste do silêncio .
Os dois ficaram assim por um tempo que, em qualquer outro lugar, teria sido constrangedor . Ali, não . Ali, era estudo . Ele inclinou a cabeça na direção da saída lateral . Ela entendeu “caminhe” onde ele apenas moveu o gesto .
No pátio, a luz tinha o tom baixo de fins de tarde que prometem frio . Sentaram-se num banco que raramente usavam, mais exposto, paradoxalmente mais invisível .
— O Conselho abriu processo de apuração — ele disse, direto, como quem desinfecta uma ferida antes de tocá-la —. Sem nomes, com pistas suficientes .
— Sobre você — ela disse, sem travessia .
— Sobre o departamento — ele corrigiu, mas o timbre denunciou o alvo —. Há memórias velhas e vontades novas .
— A ex-aluna — ela falou, vendo a sombra passar pela face dele como uma nuvem rápida —. Verdade?
Ele não desviou . — Verdade que houve proximidade — disse —. Verdade que foi consentida e adulta — completou —. Verdade que a universidade não perdoa cenas que ela não dirige .
— E o preço? — ela perguntou .
— Pagou-se silêncio e discreção por anos — ele disse —. Agora, querem revisão contábil .
Ela encostou os dedos no banco, sentindo a aspereza do cimento . O concreto tinha mais textura quando o corpo precisou de provas .
— Diga “pare” — ele disse, de repente, olhando-a com a gravidade que não era ameaça, era método —. Se em algum ponto o texto que escrevemos passar de risco para imprudência .
— Eu digo — ela respondeu —. E espero ouvir também .
— Ouvirá — ele garantiu, e haver garantia da parte dele valia como assinatura em cartório .
O sino distante da capela do campus marcou seis e meia, e estudantes passaram falando de jogos e provas, desmentindo com vida o teatro de tensão que eles encenavam . Ele levantou primeiro .
— Escreva hoje sem advérbios — disse, como quem oferece um fio de controle no meio do turbilhão —. Veja o que sobra .
— Sobra o osso — ela respondeu, já sorrindo —. E os ossos sustentam .
— Exato — ele disse, e o gesto de afastar-se foi preciso, sem ruído —. Ossos não pedem aplauso .
Ela voltou à biblioteca e escreveu três páginas nuas, secas, sem adorno, e percebeu que a nudez do texto, ao contrário da do corpo, não expõe por exibicionismo; expõe por precisão . Ao fim, tinha uma cena que doía nos lugares certos . Deixou na mesa de coleta com o nome dobrado por dentro, um pequeno truque que o método aceitava .
Na saída, encontrou Helena à sombra da escada . A colega folheava um livro sem vê-lo e, ao notar a aproximação, disse:
— Belos poemas na 801.4 — como quem comenta o clima .
— A teoria às vezes rima — ela respondeu .
— E, às vezes, confessa — Helena disse, guardando o volume —. A biblioteca ouve .
— E lembra — ela encerrou .
Caminhou para fora com a certeza incômoda de que cada gesto agora devolvia eco . A responsabilidade do eco é uma forma de domínio . E aprender a caminhar com ele exigiria força de frase e ossos de aço .
Capítulo 10 — O Passado Dele
Domingo amanheceu com o campus quase vazio, a grama ainda escura de orvalho e os corredores soando maiores por falta de vozes . Ela decidiu caminhar pela ala antiga, onde as paredes guardavam marcas de gerações de alunos e o piso de madeira rangia como um instrumento temperamental . Trazia no bolso o caderno preto e, na cabeça, uma pergunta que já não se contentava com voltas: o que, afinal, sustentava a frieza do professor além do método?
O gabinete dele estava trancado, como seria esperado num domingo . No corredor, um quadro de avisos exibia recortes antigos: reportagens de prêmios, fotos em preto e branco de colações de grau, e, num canto, uma matéria amarelada sobre um congresso em outra cidade, anos atrás . A foto mostrava o professor mais jovem, sem a dureza completa que ela aprendera a reconhecer, ao lado de uma mesa com exemplares de um livro de capa cinza . O título, seco, parecia feito para não chamar atenção, e, justamente por isso, chamava .
Pesquisou no catálogo digital da biblioteca e encontrou um único exemplar, sem circulação por anos, guardado no depósito . Pediu a retirada e, meia hora depois, recebeu das mãos do bibliotecário uma caixa de papelão com a etiqueta da década anterior . Abriu com cuidado e segurou o livro como quem toca um arquivo sensível . Havia no prefácio uma dedicatória curta, quase dura: “a M., pelo rigor; ao meu irmão, pelo silêncio” .
Leu ali, entre ensaios sobre ética do narrador e elegância sintática, um capítulo que parecia escrito com sangue discreto: “Sobre perdas que não se editam” . O texto não dizia “morte”, não dizia “culpa”, não dizia “família”, e, no entanto, dizia tudo: um acidente cedo demais, uma ausência que obriga o sobrevivente a se organizar ou a ruir, e a escolha consciente por um tipo de frieza que protege, uma armadura de precisão . A frieza, compreendeu, não era vaidade; era uma forma de não enlouquecer .
Fechou o livro devagar, como se devolvesse um objeto ao lugar certo dentro de um corpo . No pátio, o sol apareceu por um minuto e desapareceu, como um gesto que recua antes de tocar . Sentou-se no banco de cimento e escreveu no caderno: “Algumas friezas são respiradores” .
Quando a segunda-feira começou, o e-mail oficializou o rumor: a direção instaurara uma comissão para “apurar práticas e assegurar o cumprimento de normas de convivência acadêmica” . O tom neutro não enganava ninguém . No corredor, rostos metade curiosos, metade exaustos . A professora rival circulava com papéis e uma eficiência que dispensava teatralidade . Helena, impecável, parecia ainda mais afiada . Clara, atenta, fazia o que sempre fez: ocupava o lugar da sanidade .
— Tudo bem? — Clara perguntou, sem açúcar .
— Estou alinhando os ossos — ela respondeu, e a amiga entendeu o código .
Na aula, ele entrou como sempre, e, ainda assim, trouxe outra coisa no ar — uma atenção que não pedia desculpas e uma calma perigosa . Falou de autores que escreveram sob censura, de como a forma encontra vias quando as portas oficiais se fecham, de como o rigor é um tipo de liberdade . Houve quem anotasse “liberdade” com gosto de slogan; ela anotou “rigor” com gosto de pão .
Ao final, ele não chamou ninguém pelo nome . Disse apenas: — As portas do departamento estão se movendo. Aprendam a passar por vãos estreitos sem derrubar os batentes .
A frase soou como metáfora e como instrução . No corredor, ela esbarrou no doutorando, que sussurrou: — Ouvi dizer que pediram a ele uma lista de encontros com discentes nos últimos meses . — Rotina burocrática ou caça — ela devolveu . — No nosso país, as duas coisas conversam — ele disse, triste .
Ao meio-dia, foi até a livraria do centro, sozinha . Comprou uma edição nova do livro antigo dele — reimpressão discreta — e, de volta ao campus, deixou o exemplar, com um marcador na página do capítulo “perdas que não se editam”, na caixa de correspondência interna do departamento . Não escreveu bilhete . O marcador, um retângulo vermelho, era bilhete suficiente .
À tarde, a biblioteca estava mais cheia do que o habitual, como sempre acontece quando a realidade decide ser mais densa e as pessoas buscam papéis para respirar . Ela escreveu com a ferocidade calma dos que estão cansados de ser distraídos . Ao levantar para beber água, viu Helena sentada na mesa próxima à janela, o rosto muito sério, o olhar por dentro de um texto que leitores experientes reconhecem: o olhar de quem decidiu algo .
No fim do dia, recebeu um e-mail curto, sem cabeçalho institucional, apenas um endereço frio: “Sala 204, 18h. Traga o texto sem advérbios” . Respondeu com uma linha: “Trago o osso” . Às seis, a sala 204 — uma sala de seminários vazia, com persianas que não fechavam por completo — tinha o eco limpo de espaços que acolhem conversas difíceis . Ele entrou, fechou a porta até o primeiro encaixe, e pediu: — Leia .
Ela leu . O texto parecia estalactite: havia levado tempo para formar e agora pendia do teto com a firmeza silenciosa de coisas que não pedem aplauso . Quando terminou, ele disse: — Agora há coragem — e ela percebeu que, junto do elogio, havia um aviso: coragem não livra de consequências .
— Li o livro antigo — ela falou, sem rodeios . — “Perdas que não se editam” .
Ele a olhou como quem agradece e recusa ao mesmo tempo .
— Todos temos capítulos que não cabem em reedições — disse .
— Alguns sustentam o livro — ela devolveu .
Houve um silêncio espesso, e, nele, o som do mundo se recolheu . Ele respirou fundo, como quem deixa o ar fazer seu trabalho .
— Obrigado pelo marcador vermelho — disse, por fim, e a precisão da referência, sem que ela tivesse nomeado, era a assinatura dele .
Capítulo 11 — O Primeiro Toque
Na quarta-feira, o departamento exalava o cheiro metálico de documento assinado . Placas com horários atualizados de atendimento, portas mais abertas do que o usual, vozes um tom acima da prudência . Ela passou por três colegas que fingiram não a ver — não por hostilidade, mas por tática de autopreservação . Clara, ao contrário, encostou-se na parede ao lado do gabinete de Teoria e disse: — Quando o prédio vira palco, a plateia apaga o celular e se faz de ausente .
— E os atores? — ela perguntou .
— Ou sabem o texto, ou improvisam com rigor — Clara deu de ombros —. E torcem para não cair luz errada .
A aula daquele dia foi sobre “o gesto mínimo que muda tudo” . Ele leu um trecho em que duas personagens movem um objeto dois centímetros e, com isso, toda a geometria da cena muda . Nadinha a ver com escândalo; tudo a ver com precisão .
Ao fim, ele pediu que deixassem os textos na mesa e saiu por uma porta lateral, nonchalant, como sempre . Ela esperou a sala esvaziar e, então, recolheu seu caderno com o cuidado de quem oculta uma chama . No corredor, um funcionário prendeu um cartaz novo: “Evite portas encostadas” . Ela quase riu do paradoxo .
Às cinco, um e-mail sem assunto: “Gabinete. Agora. Porta aberta.” O coração apertou o compasso, não por pânico, mas por um alinhamento de forças . Chegou em três minutos; a porta estava de fato aberta, um palmo generoso . Ele estava de pé, sem casaco, mangas dobradas, o caderno preto dela sobre a mesa .
— O capítulo sem advérbios — disse, tocando a capa —. É o melhor que você escreveu até agora .
— Os ossos aprenderam — ela respondeu, recuperando o próprio humor seco .
— Sente-se — ele pediu, e o pedido parecia menos ordem do que método .
Ela sentou . Ele contornou a mesa e ficou ao lado, próximo o suficiente para que o perfume discreto de papel e sabão o definisse . Abriu o caderno, apontou uma frase com a ponta do lápis e disse: — Aqui, você segura o foco apesar do tremor . — E aqui — outra linha — você devolve o foco quando o mundo tenta pegar de volta .
Ela seguiu o lápis com os olhos, e a proximidade virou uma coisa concreta . O corredor tinha ruído, a porta aberta era uma moldura, e, ainda assim, a sala parecia ocupada por uma bolha que o ruído respeitava .
— Diga “pare” — ele repetiu, agora não como promessa, mas como ensaio .
— Ainda é texto — ela respondeu, medida .
Ele assentiu, e, ao recuar um passo, a mão roçou na dela sobre o tampo da mesa . Não foi acidente bruto; foi acidente coreografado pelo mundo . A pele encontrou pele por um segundo que durou três, e, nesse intervalo, não houve metáfora . Houve tato . E houve decisão .
Ela não moveu a mão . Ele não insistiu . O toque foi o gesto mínimo que muda a geometria . O ar moveu-se, como se alguém tivesse aberto uma janela interna .
— Bordas — ele disse, baixíssimo, não como lembrete, mas como nome .
— Eu seguro o foco — ela respondeu, e a frase não tremia .
Ele retirou a mão primeiro, com a elegância de quem conhece a diferença entre gesto e posse . Voltou para trás da mesa, anotou duas palavras no rodapé do texto e empurrou o caderno de volta . No rodapé, ela leu: “presença exata” .
A porta, ainda aberta, deixou passar o vulto da professora rival no corredor . A rival olhou para dentro como quem confere a temperatura de um ambiente, viu duas pessoas a uma distância inquestionável e seguiu . A cena foi, ao mesmo tempo, um escudo e um aviso .
— Amanhã, sem sala reservada — ele disse, formalizando a adaptação —. Exercício: narre um toque e suas consequências sem usar a palavra “toque” .
— Sem substantivo — ela registrou, já calculando ângulos —. Só efeito .
— E custo — ele completou .
Ela levantou-se, recolheu o caderno e, ao sair, tocou com a ponta dos dedos o batente da porta, como quem anota no corpo a altura do limiar . O corredor pareceu mais longo, mas o passo veio certo . Clara a esperava perto da escada com dois cafés de máquina e o olhar que não pede relatórios .
— Dia de osso — Clara disse, oferecendo o copo .
— Osso e janela — ela respondeu .
— Então, respira — a amiga concluiu —. Porque amanhã vai ventar .
À noite, ela escreveu o exercício pedido, evitando a palavra interditada com a precisão dos que obedecem sem servilismo . Falou de pele que aprende a lembrar sem foto, de ar alterado de densidade, de um objeto que muda de lugar na mesa e redimensiona a sala . Ao final, uma linha sem adorno: “depois, tudo coube diferente” .
Fechou o caderno e o deixou sobre a cômoda, aberto na última página, como na noite anterior, e, ao apagar a luz, entendeu uma coisa simples e imensa: o gesto mínimo não retrocede . Ele reescreve . E, dali em diante, todo o texto sabe .
Capítulo 12 — Entre Livros e Sombras
A quinta-feira trouxe um céu de chumbo, e a biblioteca, sob essa luz, parecia mais funda, como se as estantes tivessem criado porões onde a claridade não alcança . Ela chegou cedo, levando no caderno o exercício da véspera — narrar um gesto sem nomeá-lo — e a respiração disciplinada de quem decidiu não correr à frente do próprio texto . O salão principal fervilhava em silêncio, esse modo peculiar como lugares de estudo agitam o ar sem ruído . Na mesa habitual, abriu o caderno e releu a linha final: “depois, tudo coube diferente” .
Às dez, um bilhete branco escorregou pelo tampo, vindo do lado oposto, sem mão identificada . Uma linha só: “801.7, às 10:05. Leia o título e pare” . 801.7 — crítica e interpretação . Levou o caderno, como quem leva o próprio pulso, e seguiu . Na prateleira indicada, um livro puxado meio centímetro a mais do que os demais, como uma tecla erguida . Tirou o volume e leu o título em voz baixa: “A proximidade como forma” . Parou . O corredor tinha a acústica das confissões que não querem plateia .
Ele apareceu a três passos, o suficiente para que o campo de visão só abrigasse os dois . Não disse “olá” . Não disse “venha” . Disse: — Leia a primeira linha . Ela leu: “Toda forma é uma ética da distância” . Ele assentiu, quase imperceptível .
— Seu exercício — pediu, com a voz baixa que muda o ar sem empurrá-lo .
Ela abriu o caderno e leu a cena onde um objeto muda de lugar e a sala se recalibra . Enquanto lia, sentiu, primeiro, a consciência do próprio corpo; segundo, a consciência do corpo dele; terceiro, a dissolução dessa consciência na forma, como se a linguagem, ao fazer seu trabalho, colocasse ambos dentro do mesmo ritmo . Ao terminar, o silêncio respirou entre as lombadas .
— Exato — ele disse —. Você escreveu sem pedir desculpas .
— Pedir desculpas é uma forma de roubar força da frase — ela respondeu, quase automática .
— E de roubar responsabilidade — ele completou .
Ela guardou o caderno devagar, como quem fecha um instrumento . O corredor, estreito, obrigava os dois a uma proximidade que não se explica para quem mede distância apenas com fita . Ele deu meio passo, não suficiente para invadir, suficiente para que o calor do corpo dele mudasse um grau do clima imediato .
— Diga “pare” — ele repetiu, método virando hábito .
— Ainda é forma — ela disse, e o fio de voz não vacilou .
O primeiro beijo veio sem prolegômenos, como vêm as coisas inevitáveis depois de muita gramática . Não houve pressa . Não houve cena de cinema . Houve um encostar de bocas na penumbra das estantes, um aprender de respirações, um ajuste cuidadoso onde cada excesso seria erro e cada timidez, também . As mãos ficaram quase imóveis, como quem respeita o litígio do mundo com as imagens . O tempo contraiu . A biblioteca, por um instante, foi apenas duas pessoas e a história das palavras que as trouxeram até ali .
Quando se afastaram, um centímetro só, o ar voltou como depois de uma suspensão . Ela sentiu a pele acesa sem exposição, o coração ritmado sem desordem . Ele manteve a voz baixa, como antes:
— Agora, custo — disse .
— Sei — ela respondeu .
— Você segura? — ele perguntou, não por vaidade, por responsabilidade .
— Seguro — ela disse —. Se ouvir “pare” .
— Ouvirá — ele afirmou, e, nessa afirmação, havia mais do que promessa; havia uma norma .
Um estudante virou o corredor dois vãos adiante e, ao ver os dois, recuou como quem erra de seção . O mundo avisava que existia . Eles se moveram com naturalidade, sem teatralizar recato . Ele pegou um livro ao acaso, ela outro, e os dois voltaram ao salão como se tivessem apenas cumprido um protocolo de pesquisa .
Clara a interceptou na saída para o café interno, segurando duas xícaras e o olhar arguto de sempre .
— Você está… diferente — disse, não como acusação, como observação técnica —. Como quem aprendeu uma nota nova .
— Ajustei o metrônomo — ela respondeu, deixando a metáfora fazer o serviço .
— Então, cuidado com o regente — Clara sorriu, por cima do afeto .
A tarde passou como passam tardes que carregam acontecimentos densos: lenta e rápida ao mesmo tempo . O Conselho mandou mais um comunicado burocrático, o departamento reorganizou horários, Helena apresentou um trabalho impecável e sem um palmo de pele, e a professora rival percorreu os corredores como vento que não desloca papel, mas muda temperatura . À noite, ela escreveu, sem advérbios, uma cena em que duas pessoas decidem não se explicar porque a explicação, naquele momento, seria uma forma de diminuir a grandeza do que escolheram . Antes de dormir, releu a primeira linha do ensaio da manhã: “Toda forma é uma ética da distância” . Pensou: e da proximidade também . Fechou os olhos com a sensação de que, se havia abismo, ao menos aprendera a medir a largura com passos .
Capítulo 13 — A Rendição
Sexta-feira chegou com um sol limpo que fazia o mármore das escadas brilhar como se alguém tivesse decidido polir o dia . Ela vinha de uma sequência de noites dormidas pela metade e, ainda assim, sentia-se mais precisa do que cansada, um tipo de exatidão que às vezes nasce do risco . Na aula, ele tratou de submissão e liberdade nos diários de um autor que atravessou guerras e censuras, e a discussão, tensa, ficou entre os limites do texto e os limites do corpo — sem pronunciar o corpo, mas sem fugir dele . Helena fez uma intervenção brilhante sobre consentimento como função de linguagem; ele respondeu com um “exato” que soou mais cortante do que elogioso .
Depois, no corredor, um convite dito como quem comenta clima: — Hoje, sete e meia — ele disse, baixo —. Preciso devolver um livro a você. O meu endereço está no bilhete . O bilhete veio dentro de um volume que ela, de fato, havia emprestado: endereço, bairro, andar, a palavra “discreto” sublinhada .
Ela passou o dia em estado de método: leu, anotou, andou, bebeu água, falou o mínimo . Às sete e vinte, estava diante do prédio, uma construção antiga com elevador que gemia e portaria que sabia de mais do que dizia . Subiu . A porta abriu com um clique curto, e ele a recebeu com a mesma calma de sempre, agora em roupas que desistiam do paletó e admitiam a informalidade de um homem fora do palco .
O apartamento era simples, arejado, cheio de livros, como se a vida dele fosse uma biblioteca com janelas . Havia uma fotografia em preto e branco na estante — o irmão — e um quadro pequeno com linhas geométricas que lembravam partitura . Na mesa, uma xícara solitária com marca de café, um caderno aberto, duas canetas .
— O livro — ele disse, apresentando o pretexto, e pousou sobre a mesa o volume que, por ironia, tinha “distância” no título .
— Obrigada — ela respondeu, pousando a bolsa, e o gesto foi uma assinatura: estava ali, inteira .
— Vinho? — ele ofereceu, neutro, sem insinuar hospitalidade sedutora; era apenas um líquido para molhar a conversa .
— Um pouco — ela disse .
Sentaram-se frente a frente, a janela aberta deixando a cidade entrar com sua respiração de sexta-feira . Por minutos, falaram de texto — sempre o refúgio e o caminho —, de uma vírgula que pode salvar um parágrafo, de uma metáfora que estraga uma página . Depois, a conversa mudou de pele sem mudar de tom .
— O gesto mínimo — ela disse —. Ele não retrocede .
— Não — ele confirmou —. Mas pode aprender a caminhar devagar .
— E quando corre? — ela perguntou .
— Corremos juntos — ele disse, com franqueza que não fere —. Ou paramos juntos .
Houve um silêncio sem ansiedade . Eles se levantaram quase ao mesmo tempo, não por coreografia ensaiada, mas por sintonia de ritmo . A aproximação não foi de caça; foi de construção . Ele tocou o rosto dela com a mão inteira, gesto que dizia: “presença exata” . Ela encostou a boca no lugar onde o maxilar encontra a têmpora, como quem saúda a disciplina do outro .
A rendição, quando veio, não teve gritos . Teve comandos claros e pactos firmes, ditos baixos, olhados de frente . Ele conduziu com a precisão de quem conhece os nomes do que faz, sem atropelos, sem teatralidade, atento ao “pare” antes mesmo que fosse preciso . Ela seguiu com a entrega ativa dos que não confundem ceder com desaparecer . Havia dominação, sim, mas da espécie que não humilha; da que oferece estrutura para um desejo que, sozinho, se dispersa . Havia também vulnerabilidade, e ela a viu quando ele hesitou um segundo, como quem verifica se a ponte aguenta, e só então avançou .
O apartamento, por um tempo, foi apenas respiração acordada e frases curtas, funcionais, que desenhavam a cena com a economia de um poema rigoroso . Quando o ritmo arrefeceu, ela percebeu uma lágrima solitária, não de dor, não de culpa, mas de reconhecimento: o corpo tinha encontrado gramática . Ele encostou a testa na dela, ainda segurando o espaço, e disse:
— Diga “pare”, a qualquer momento .
— Digo “continue” — ela respondeu, sem heroísmo .
E continuaram, dentro dos limites que eles mesmos haviam escrito, como quem experimenta uma partitura nova, sabendo que a música é boa quando suporta silêncio entre notas .
Depois, deitados de lado, sem necessidade de teatralizar afeto, olharam a janela . A cidade fazia barulhos de gente chegando em casa, de crianças que não queriam dormir, de copos lavados . Ele falou do irmão, sem detalhes sórdidos, só o suficiente para que ela entendesse a engenharia da frieza . Ela falou da disciplina como armadura, e de como desconfiava, há algum tempo, que seu rigor também escondia medo .
— Medo do quê? — ele perguntou, não para colher confissão, mas para ajustar estrutura .
— De não conseguir voltar — ela disse —. Se um dia eu me perder .
— Então treine voltas — ele respondeu, e a simplicidade era luminosa —. Ancore frases no caminho .
Ela riu baixo, por dentro . Aconchegou-se no ombro dele e, pela primeira vez em muito tempo, dormiu um sono inteiro, sem o sobressalto do método . Ao despertar, ainda escuro, sentiu o corpo pesado e leve, como depois de nadar . Havia uma folha sobre a mesa, com a caligrafia inclinada que ela aprendera a reconhecer:
“Domínio é quando o sim e o não se reconhecem,
e obedecem.”
Assinou com a mão firme, abaixo, não um nome, mas uma palavra que os dois, agora, entendiam da mesma maneira: “acordo” . E saiu quando a cidade ainda bocejava, levando no bolso o caderno preto, e no corpo, a gramática nova que não dependia de bilhetes para existir .
Capítulo 14 — Ecos de Culpa
O sábado dissolveu-se em pequenos gestos domésticos — trocar a roupa de cama, lavar a caneca preferida, dobrar duas pilhas de papéis — como se o corpo precisasse de uma liturgia banal para assentar o extraordinário da véspera . Ainda assim, a memória do apartamento, das frases curtas, do “pare” que não foi necessário e do “continue” pronunciado sem heroísmo, rondava cada superfície como um perfume que se recusa a ir embora . A disciplina, tão fiel, tentou reinstalar o protocolo de sempre: planilha de leituras, meta de páginas, horários medidos; mas o método, agora, tinha uma camada nova, um subterrâneo que respirava por conta própria .
No fim da tarde, ela caminhou até o campus, vazio como costumam ficar os sábados de feriados não oficiais . A biblioteca abria apenas uma ala, a de periódicos, e o silêncio tinha a gravidade dos lugares que sabem dos segredos dos outros . Sentou-se perto da janela e começou a escrever, sem destino claro, como quem deixa a mão informar o pensamento . A primeira linha foi uma confissão técnica: “o corpo aprende depressa; a culpa, devagar” . A segunda foi uma pergunta: “a culpa é minha ou do mundo?” . A terceira foi um recuo: “pergunta mal feita; reescrever” .
Reescreveu . Não usou “culpa”; usou “peso” . Não usou “mundo”; usou “olhos” . A frase ficou assim: “o peso dos olhos altera a densidade do ar que respiro” . E isso, por ora, era mais verdadeiro .
A noite trouxe mensagens espaçadas: Clara mandou três palavras e um emoji que sugeria sopa e cobertor; Ícaro enviou um link de filme e um comentário sobre planos-sequência; Helena não escreveu . O silêncio de Helena tinha qualidade de anúncio . Às onze, fechou o caderno, tomou banho demorado, como quem enxágua uma ideia, e deitou . O sono veio com imagens em que portas se abriam para corredores conhecidos, mas os móveis mudavam de lugar um centímetro, e esse centímetro alterava a casa inteira .
Domingo de manhã, despertou com a sensação de ter dito em sonho uma frase que queria lembrar . Anotou no celular, antes que evaporasse: “não devo explicações à maldade; devo rigor ao que amo” . Fez café, leu um ensaio curto sobre reservas morais, e, ao meio-dia, recebeu o e-mail que vinha temendo e esperando: “Convidamos para entrevista com a Comissão de Ética. Terça, 14h. Assunto: práticas departamentais” . O e-mail não mentia; também não dizia a verdade inteira .
Na segunda, a universidade recobrou a pulsação habitual, mas com uma arritmia leve, como se o prédio houvesse bebido café demais . Na aula, ele manteve o método — texto, pergunta, corte, síntese —, e, ainda assim, uma sombra de atenção redobrada pairou sobre cada gesto . Falou de orgulho e humilhação em narradores que confundem grandeza com volume, e terminou com uma linha que cortou a sala: — Quem grita, às vezes, quer cobrir o barulho do próprio vazio .
No corredor, a professora rival conversava com dois membros da comissão; o tom era administrativo, o subtexto, não . Helena passou carregando um maço de papéis e o olhar fixo em alguma coisa que não estava à vista . Clara encostou-se ao corrimão e disse: — Você está firme — como quem confirma um diagnóstico .
— Ossos — ela respondeu .
À tarde, escrever foi como atravessar mar revolto com braçadas treinadas . Não havia inspiração; havia método . E o método, sozinho, às vezes é mais que suficiente . Ao anoitecer, um bilhete escorregou por baixo da porta do seu apartamento — papel comum, letra inclinada, nenhuma assinatura: “Terça, 13h20, pátio dos plátanos. Cinco minutos” . Guardou no livro de teoria, não por romantização, mas por ordem . Dormiu mal, mas dormiu . O corpo, afinal, aprende depressa .
Capítulo 15 — A Chantagem
Terça, 13h20, o pátio dos plátanos tinha a luz quebrada de um dia parcialmente nublado, e as folhas no chão riscavam o piso como letras que não fecham palavra . Ela chegou dois minutos antes, porque a pontualidade tem a utilidade de reduzir o terreno do imprevisto . Encostou-se no tronco mais próximo e fingiu ler uma mensagem no celular; a mão não tremia, e essa constatação trouxe um conforto mínimo .
Helena veio pela esquerda, como quem já sabe de onde quer surgir numa cena . Usava um casaco escuro, o cabelo preso com uma firmeza que parecia metáfora, e a pasta sob o braço como quem traz consigo a narrativa .
— Obrigada por vir — Helena disse, cordial como um e-mail de banca .
— Não disse que viria — ela corrigiu, sem agressividade —. Disse que estaria aqui .
— Precisão — Helena assentiu —. Gosto .
Houve um segundo de silêncio . Helena olhou para as folhas no chão, e depois para o prédio ao fundo, como se decidisse a escala do que estava prestes a fazer .
— Não vou rodear — disse, afinal —. A comissão tem perguntas e, até agora, poucas respostas . O departamento quer cortar cabeças e pendurá-las como aviso . Este é o cenário .
— E o meu papel nele? — ela perguntou, sem oferecer trilhas .
— Você tem talento, método, e um futuro que cabe numa bolsa de pesquisa e numa carreira internacional — Helena enumerou, como quem lê um currículo —. E tem… proximidades .
— Proximidades não são crimes — ela disse, cada sílaba com seu peso .
— Às vezes, são atalhos — Helena devolveu —. E atalhos incomodam quem caminha na velocidade do regulamento .
— O que quer de mim? — perguntou, simples .
Helena respirou, como quem decide a versão do discurso .
— Que assine uma declaração objetiva — disse —. Sobre procedimentos, horários, espaços — pausou —. E que adote… distâncias .
— Distâncias de quem? — ela cortou .
— Do professor — Helena disse, sem adjetivos —. Por um tempo .
— E se eu não assinar? — perguntou .
— O conselho vai transformar rumores em narrativas — Helena respondeu, sem elevar o tom —. E narrativas em atos . Talvez baste para suspensões que mancham anos .
— Você está me ameaçando — ela disse, com a calma aprendida .
— Estou explicando geometrias — Helena corrigiu —. Vetores, forças, ângulos .
— E o seu vetor? — ela insistiu —. Aponta para onde?
Um músculo dispensável tremeu no rosto de Helena, quase nada .
— Meu vetor aponta para onde sempre apontou — disse —. Para o topo . E para o lugar onde o trabalho tem peso e o teatro, não .
— E o que acontece com quem está no caminho? — ela perguntou .
— Aprende a contornar — Helena disse —. Ou é empurrado para a lateral .
— Você quer o lugar dele — ela concluiu, não como ataque, como soma .
— Quero o lugar do mérito — Helena respondeu —. E não serei feita de escada de ninguém .
Houve um silêncio que, em outro pátio, teria sido apenas vento . Ali, era cálculo .
— Não assinarei a sua redação da minha vida — ela disse, por fim —. Assino o que escrevo . E assumo meus focos .
— Então prepare-se para a edição alheia — Helena respondeu, sem rancor —. Porque, quando não escrevemos, escrevem por nós .
Helena virou-se e foi, passos regulares, cabeça erguida . Ela ficou alguns segundos encostada no tronco, sentindo a aspereza da casca nas costas, um lembrete material de que o mundo existe fora das frases . Respirou, calibrando o compasso interno . Depois, foi ao gabinete dele — porta entreaberta, a medida exata do risco .
— Helena — disse, ao entrar —. Chantagem polida .
Ele não se surpreendeu . Apenas ouviu, inteiro, o relato preciso, sem adjetivos, como preferia .
— Decisões pedem custo — ele disse, ao fim —. E respaldo .
— Tenho o meu — ela respondeu —. Preciso do seu .
— Tem — ele disse, com a mesma franqueza com que pede cortes de frase —. Mas com regras: encontros apenas em lugares que suportam luz; textos circulando por grupos; nada que possa ser montado como teatro fácil .
— Concordo — ela disse .
— E uma coisa mais — ele acrescentou —. Se vier o golpe, não reagiremos em cena. Reagiremos no texto . Publicação, pareceres, cartas assinadas . O que se vence no papel pesa mais no prédio .
— Rigor — ela respondeu, quase sorrindo .
— Rigor — ele confirmou .
Na saída, ela cruzou com a professora rival . A rival mediu-a com o olhar que não humilha, mas tampouco acaricia .
— Às 14h — disse, apenas —. Comissão .
— Estarei lá — ela respondeu .
A entrevista com a comissão aconteceu numa sala clara, com copos d’água idênticos e perguntas calibradas para parecer objetivas . Respondeu com precisão e economia, recusando armadilhas de “sim” e “não” que pediam novela . Ao final, um dos membros disse: — A universidade preza pela aparência do bem tanto quanto pelo bem — como se pedisse desculpas por um sistema que se alimenta de vitrines .
No corredor, Clara a abraçou com o cuidado de não quebrar ossos úteis .
— E então? — perguntou .
— Ainda estamos escrevendo — ela disse —. E não entregarei a caneta .
Naquela noite, o caderno preto recebeu uma página que começava com uma sentença curta: “Não assinarei textos alheios sobre mim” . Depois, vieram outras linhas, poucas, densas, e, ao fim, um bilhete que ela não enviou, mas escreveu: “Quem edita minha vida sou eu. Com rigor” . O sono, quando veio, trouxe a imagem de plátanos resistindo ao vento, as folhas indo, os troncos ficando . E a convicção de que, do outro lado do vendaval, ainda haveria sala, livro, mesa, mãos, e um acordo que não dependeria da bondade do prédio para existir .
Capítulo 16 — O Confronto
Quarta-feira amanheceu com um frio claro, desses que fazem o metal dos corrimãos parecer mais duro do que o normal, e o campus assumiu a nitidez de um cenário antes da cena principal . O e-mail da direção chegou às 8h12: “Sessão de esclarecimentos às 17h, auditório (entrada restrita a docentes e discentes convidados). Pauta: relatório parcial da Comissão de Ética” . A palavra “parcial” soou como promessa de continuidade e arma de teste ao mesmo tempo . A universidade, há dias, parecia juntar combustível; agora, alguém anunciava o fósforo .
Ela atravessou a manhã com método de trincheira: uma hora de leitura, meia hora de escrita, vinte minutos de andar, repetição disciplinada que anula ruídos por saturação . Ao meio-dia, Clara apareceu com a praticidade de quem conhece o peso dos rituais: dois sanduíches, água, um comentário seco — “hoje, palco” — e um olhar que evitou o melodrama com elegância . No corredor, Ícaro ensaiava piadas com teorias da encenação, mas a própria boca parecia cansada de ser cortina .
Às quatro e meia, o auditório filtrava pessoas por convites impressos como passaportes . A professora rival tomou a mesa com a compostura de quem já decorou as rubricas e não precisa olhar o script . À esquerda, dois membros da Comissão; à direita, a direção, postura de neutralidade tensa . O público ocupava o escuro com suspiros controlados e celulares guardados, como mandam os costumes do sagrado laico .
— Este é um relatório parcial — começou a rival, sem adorno —. Reitero: parcial . A intenção é apresentar procedimentos, resguardar pessoas e recomendar medidas imediatas que protejam o ambiente acadêmico .
Listou regras, lembrou códigos, citou casos sem nome, mencionou “relações assimétricas” e “contextos suscetíveis a interpretações danosas” . Não disse “escândalo”, mas o auditório ouviu . E então abriu a parte que todos esperavam: “recomendações provisórias” . Entre elas, uma que gelou o ar: suspensão preventiva de orientação individual de discentes por parte de dois docentes, “até ulterior deliberação” . Ninguém precisou perguntar quem eram .
Ele, na plateia, manteve a postura de quem não dá espetáculo nem para o próprio orgulho . Não levantou a voz, não pediu réplica; esperou a rodada oficial de falas . Quando lhe passaram o microfone, falou como sempre: baixo, exato, inexorável .
— Regra é régua — disse —. Aceito medidas que protejam, rejeito narrativas que condenem sem prova . Minha prática pública é conhecida; minha vida privada não é pauta desta comissão — pausou —. Ainda assim, por respeito ao corpo docente e discente, acato a suspensão provisória, com a condição de que os critérios sejam escritos, os prazos, definidos, e os casos, diferenciados por evidência, não por rumor .
Foi um golpe limpo . Conseguiu, com três frases, aceitar o necessário e exigir rigor, desmontando a tentação do espetáculo . A professora rival apertou os lábios por um segundo, como quem reconhece um adversário que jogou corretamente . As perguntas da plateia vieram com o travo do medo — “como garantir neutralidade?”, “o que é proximidade aceitável?” — e respostas administrativas recobriram o que era humano com verniz .
Depois, no saguão, as conversas se partiram em grupos . Helena surgiu à frente dela com a compostura impecável que agora tinha um vinco .
— Bom discurso — Helena disse, sem veneno —. Melhor do que muitos artigos .
— Discursos não mudam fatos — ela respondeu —. Só os organizam .
— Às vezes, organizam o suficiente para que virem fatos — Helena replicou, com a lógica fria que sempre manejou bem .
— Você entregou o quê, hoje? — ela perguntou, cortando jogo .
— O que me pediram — Helena disse —. Procedimentos, horários, padrões . E o que eu sabia — pausou —. O que julguei necessário .
— Você não sabe de mim — ela devolveu .
— Sei o bastante para reconhecer risco — Helena disse —. E para não permitir que o mérito vire acessório de romance .
— O mérito não precisa de sua proteção — ela encerrou, já caminhando .
No fim da tarde, o departamento afixou o comunicado: “Suspensão provisória de orientações individuais pelo professor X e professora Y; encontros apenas em grupos; revisão de protocolos” . Havia assinatura, selos, data, a linguagem impessoal que tenta domesticar violência . Ele mandou mensagem curta: “Sala reservada, grupo, amanhã, 14h. Tema: textos sob pressão” .
À noite, ela abriu o livro antigo e releu “perdas que não se editam” . Substituiu “perdas” por “pressões” mentalmente e viu a engrenagem permanecer . Escreveu três páginas de prosa limpa, nenhuma linha supérflua, como quem faz musculação com frases . Antes de dormir, anotou: “Quando o mundo apertar, afinar. Quando o mundo calar, escrever” .
Capítulo 17 — A Queda
Quinta-feira carregava o peso de uma promessa ruim: todo mundo sabia que o dia seguinte do relatório é pior do que o dia do relatório . O grupo das 14h encheu a sala reservada com cadeiras extras; havia alunos curiosos e alunos comprometidos, gente que queria aprender a escrever sob pressão e gente que queria ver de perto o teatro discreto de uma resistência . Ele abriu com método: leu dois parágrafos de um autor que escreveu com o ouvido da censura encostado na porta e, ao fim, disse: — Entre editar por medo e escrever com rigor, escolham a segunda e paguem o preço .
Helena entrou atrasada, postura intacta, olhar que, de vez em quando, pousava nela como quem mede a distância do alvo . A discussão foi boa porque teve tempo e porque o tema era verdadeiro . Ao final, ele recolheu exercícios, devolveu outros com anotações milimétricas e, na porta, disse, sem ênfase: — O departamento convocou reunião com imprensa universitária para “esclarecimentos” às 17h .
“Imprensa” apareceu como personagem nova e perigosa . Entre quatro e cinco da tarde, os corredores ficaram com cheiro de fio aquecendo . O auditório menor recebeu uma câmera, dois gravadores e três blocos de notas . A direção abriu com um discurso previsível, a Comissão resumiu “avanços e recomendações”, e, então, alguém, provavelmente orientado, fez a pergunta que gosta de sangue: — Existem relacionamentos impróprios em andamento?
A direção ensaiou neutralidade, a Comissão recorreu ao léxico de “não comentamos casos específicos”, e o repórter insistiu com outro formato: — Há denúncias recentes? Foi quando a rival cometeu o primeiro erro: adjetivou . Disse “indícios preocupantes” e “padrões reincidentes” . O auditório não precisava de nomes; bastavam silhuetas . E, naquele instante, nomes se desenharam no ar .
No fim, o comunicado “vazou” como coisas vazam quando se quer que vazem: apareceram trechos num perfil de estudantes, recortados de modo a ferir . Comentários começaram, anônimos e assinados, e em dez minutos já havia uma narrativa improvisada com heróis e vilões . A Queda, entendeu ela, não é o momento da suspensão; é o momento em que o edifício da reputação recebe um arranhão público . O resto é gravidade .
Ele foi chamado pela direção . “Afastamento temporário de atividades de sala por uma semana, até a reunião extraordinária do Conselho” . A notícia não veio por e-mail; veio por rumor com selo, a pior espécie . Ela recebeu a informação por Clara, que a recebeu por alguém da secretaria — “confirmado” — e por Ícaro, que a recebeu por uma mensagem que dizia “não sei se é verdade, mas…” . Era .
No fim da tarde, o gabinete dele estava fechado . O corredor, curioso, acumulava passos que fingiam destinos alternativos . Ela não bateu . Em vez disso, foi à biblioteca, como sempre fez quando o mundo fez barulho demais . Na 801.4, puxou um livro de retórica e encontrou, entre as páginas, uma tira de papel com a letra inclinada: “Não discutiremos no corredor. Escreveremos no papel. Carta amanhã, 9h. Assine se concordar” .
A carta, imaginou, seria uma defesa técnica: procedimentos, critérios, compromisso com método, refutação de boatos, afirmação de limites . E assinaturas de discentes que se recusam a ser figurantes de teatro ruim . Dormiu pouco, mas dormiu o suficiente para que o corpo não sabotasse a manhã .
Às nove, sala de seminários três . Ele estava lá, não como professor em cena, mas como autor em oficina . Sobre a mesa, duas páginas . Leu-se, debateu-se verbo, retirou-se um advérbio, ajustou-se um período . A carta dizia, em resumo: “Rejeitamos o espetáculo. Reivindicamos o rigor. Apoiamos medidas transparentes. Recusamos difamação. Reconhecemos assimetrias e regras. Confirmamos que nosso trabalho ocorreu e ocorrerá conforme protocolos. E exigimos que as avaliações se baseiem em evidências, não em narrativas apressadas” .
Ela assinou . Clara assinou . O doutorando assinou . Ícaro assinou, com um comentário lateral: “a arte agradece” . Helena não estava . Nem viria . Ao final, ele recolheu as páginas com a mesma calma de sempre e disse: — O preço subiu. A qualidade também .
No corredor, um cartaz novo brilhava: “Assembleia estudantil aberta, 19h: ‘Ética, Poder e Aprendizado’” . O prédio inteiro vibrava . Nas horas seguintes, ela escreveu como quem precisa respirar, frases sem gordura, ideias sem sobras . Às seis e meia, recebeu uma mensagem curta dele: “Afastado, por ora, do palco. O texto é sua casa. Volto quando houver chão” .
Ela respondeu com uma linha que não pedia consolo nem dava: “O chão somos nós que escrevemos” . E, pela primeira vez em dias, sorriu com a exatidão de uma frase que sustenta um corpo .
Capítulo 18 — Entre Amor e Ruína
Sexta-feira amanheceu com a claridade dura de um corredor de hospital, e o campus, embora vivo, parecia falar baixo, como se cada pessoa escolhesse verbos de menor impacto para não acordar monstros . O afastamento dele, anunciado de modo torpe, instalara na universidade um tipo particular de silêncio: aquele que, em vez de poupar, vigia . Cartazes foram colados e arrancados, postagens foram feitas e deletadas, e os corredores, agora, tinham olhos nas paredes e ouvidos nas maçanetas . Em meio a esse teatro de cautelas, ela decidiu fazer a única coisa que ainda lhe oferecia chão: trabalhar . E, por “trabalhar”, entendeu escrever com a ferocidade limpa dos que sabem o preço, mas não recuam .
Às dez, a sala de seminários três recebeu um grupo menor do que o habitual — os fiéis ao método, os curiosos fatigados pelo barulho, os que preferem papel a rumor . Ele não estava; não podia estar . O doutorando assumiu com competência protegida, Clara organizou a dinâmica com a precisão invisível dos amigos que conhecem o relógio alheio, e ela ancorou a discussão naquilo que permanece: texto . Leram passagens de autores que escreveram sob estilhaços e ainda assim afinaram a frase; discutiram o risco de transformar ferida em estilo; falaram do trabalho como uma ética que não pede aplauso . Ao fim, combinaram que a carta circularia com mais assinaturas e menos adjetivos, como convém aos documentos que precisam sobreviver à tempestade .
No intervalo, Ícaro encostou-se na máquina de café e disse, sombrio: — Falaram em “romance” numa postagem que já foi apagada, mas foi lida — o que, no mundo, significa: foi dita . — Quem? — ela perguntou, sem urgência . — Anônimo com vocação de eco — Ícaro deu de ombros —. Mas se repete o suficiente, vira cenário . — Cenários podem ser desmontados — ela disse, seca . — Com que ferramentas? — ele provocou, um pouco por humor, um pouco por desespero disciplinado . — Com método — ela encerrou, e Ícaro sorriu, grato por palavras que não fingem heroísmo .
Às duas, ela recebeu um envelope pardo na mesa da biblioteca, entregue com a discrição antiga dos recados que não querem palco . Dentro, uma folha com três linhas, letra inclinada, pura ossatura: “Hoje, 20h. Não no campus. Onde o vento não vigia. Traga um texto que você não mostrou a ninguém” . Nenhum endereço; apenas um desenho pequeno, esquemático, de uma marquise e uma esquina reconhecíveis — a livraria do centro, com o café ao lado . O corpo, obediente ao método, respondeu organizando o resto do dia em caixas: leitura, almoço, banho, roupa neutra, caderno preto no bolso, coragem afinada .
Às vinte horas, a cidade exalava o cansaço feliz de sextas sobrevividas, e a marquise da livraria oferecia abrigo a insones e leitores tardios . Ele estava na mesa do fundo do café, o casaco dobrado no encosto, a postura que não precisava de cenário para sustentar a presença . Havia em seu rosto um traço novo — não de queda, mas de decisão .
— Trouxe — ela disse, pousando o caderno . — Trouxe — ele repetiu, pousando o próprio . O garçom deixou dois cafés sem perguntas; os amigos dos lugares entendem quando um excesso de polidez seria violência .
— O Conselho extraordinário foi marcado para segunda — ele disse, sem golpe de teatro —. A direção quer encerrar o assunto com um parecer robusto, a Comissão quer alongar com recomendações, e a rival quer… — pausou, não por hesitação, por economia — quer o que sempre quis: saldo e palco .
— E você? — ela perguntou, não por protocolo . — Eu quero continuar trabalhando — ele disse, e isso, na boca dele, significava tudo —. Se exigirem uma pausa, pausarei sem acrobacias. Se exigirem teatro, não dou .
— E nós? — a palavra saiu, inevitável, limpa . — Nós não faremos da vida um argumento a favor de ninguém — ele disse —. Nem contra. Se existir, existirá fora da dramaturgia alheia. Se não puder existir assim, não existirá . Ela respirou esse “se” como quem sorve metal . Doeu pela honestidade, aliviou pela integridade .
— Leia — ele pediu . Ela leu um texto que nunca havia mostrado, um relato da manhã posterior à rendição: as xícaras, a luz oblíqua, a partitura geométrica no quadro, a frase sobre sim e não que obedecem . Não havia confissão barata; havia observação de quem sabe nomear sem despir o que não deve . Ao fim, ele ficou um tempo em silêncio, o silêncio de relojoeiro, e então disse: — É literatura . — E, ainda assim… — ela começou . — E, ainda assim, viver cobra preço — ele concluiu, cortando com delicadeza a ilusão de que estética salva biografia .
Choveu fino de repente, e a água riscou o vidro como unha paciente . Ele tocou o caderno dela com a ponta dos dedos e fixou o olhar sem dureza, mas sem fuga: — Se, segunda, vier a exigência que recusa nossa ética, eu saio antes — disse —. Não dou a cena, nem a você, nem a eles. Saio por cima da própria vontade, não pela mão dos outros . — Sair como? — ela perguntou, um susto pequeno na garganta . — Afastamento sem barulho — ele disse —. Pesquisa em outra cidade, cartas de recomendação, trânsito silencioso . — E a gente? — a palavra insistiu . — A gente só existe se não virar degeneração do que nos fez chegar aqui — ele afirmou . Era uma crueldade honesta, e honestidades assim, entendeu ela, são o preço de amar alguém que escolheu o rigor como religião particular .
Saíram juntos, sem encostar, como pede a liturgia da sobrevivência . Na esquina, o vento cortou a conversa, e foi ali que ela encostou a mão no casaco dele por um segundo, uma assinatura pequena, e disse: — Se escolher sair, me avise com uma linha — pausou —. Não me dê a ausência sem texto . — Terá uma linha — ele prometeu —. E não será bonita . — Não quero bonita — ela disse —. Quero verdadeira .
Dormiu mal, acordou cedo, escreveu como quem levanta peso, e esperou a segunda-feira como se esperam sentenças: vivendo . Segunda amanheceu com o ar frio e limpo, e às nove, uma mensagem curta chegou: “Carta entregue. Conselho às 18h. Sem plateia. Sem imprensa” . O dia se arrastou em tarefas que imitam normalidade — relatórios, leituras, uma ida ao banco —, e às cinco e meia ela estava sentada num banco do pátio, olhando os plátanos como quem olha pilares .
Às sete e vinte, a direção publicou uma nota: “Em respeito ao processo e à integridade da comunidade, comunicamos o afastamento por prazo indeterminado do professor X, que continuará vinculado à universidade em funções de pesquisa. Reiteramos nosso compromisso com a ética e o trabalho” . Não houve julgamento, mas houve efeito . Na prática, era uma expulsão elegante .
A mensagem dele veio às sete e vinte e dois: “Não espere no corredor. Não me procure. Não dou cena. Receberá uma carta. Cuide do texto” . Não era bonito . Era verdade . Ela chorou, limpa, sem barulho, num banco de cimento em que tantas vezes havia lido, e, entre uma respiração e outra, entendeu uma coisa que a literatura ensina mais do que a vida: o amor, às vezes, é o contrário do espetáculo . Voltou para casa andando devagar, contando passos para não contar hipóteses, e, ao deitar, deixou o caderno aberto como quem deixa porta entreaberta para um amigo que ainda virá . Veio o sono, e com ele uma imagem: dois corredores paralelos, sem portas entre eles, mas com janelas em certos trechos, por onde olhos se encontram e decidem não quebrar o vidro . A ruína, percebeu, não era o fim; era um cenário . E, no cenário, ainda cabia trabalho . Ainda cabia amor . Mesmo que em outra gramática .
Capítulo 19 — A Carta
Passaram-se dias que não sabiam se eram dias, porque o tempo, sem a rotina das aulas, perde a capacidade de se orientar por campainhas e corredores . A universidade seguiu viva: trabalhos entregues, provas aplicadas, seminários reorganizados; o prédio, resiliente, aprendeu a não mostrar buracos na fachada . Ela, por sua vez, inventou uma disciplina que não constava dos manuais: acordar cedo, correr por ruas vazias, escrever por blocos de quarenta minutos, ler em voz alta para testar ossos, cozinhar o suficiente para lembrar do corpo, dormir no horário combinado com a cabeça . O caderno preto, que antes era segunda pele, virou costela .
A carta chegou numa quarta-feira, tarde, pelo correio comum — envelope branco, papel simples, assinatura manuscrita que bastava para autenticar o mundo . Abriu de pé, apoiada na bancada da cozinha, como quem se recusa a ritualizar uma dor que devia ser recebida de pé .
“Não escrevo como professor, porque esse papel me foi retirado do palco por ora. Escrevo como homem que tenta honrar o método que escolheu para si: rigor e responsabilidade. O Conselho decidiu pelo meu afastamento, com a condição benigna de que eu permaneça em pesquisa. Aceitei porque recuso a cena. E porque compreendi que minha presença, agora, alimentaria narrativas que não posso aceitar, nem sobre mim, nem sobre você.
Não peço desculpas pela noite do nosso acordo. Peço cuidado com o que essa noite significa quando lida por olhos de fora. Não lhe peço silêncio por covardia; peço precisão. O que vivemos não foi um atalho de poder. Foi a escolha de dois adultos, sob pactos claros. A universidade, porém, vive de aparências. E eu não lhe darei o papel de coadjuvante de uma peça que abomino.
Saio da cidade por um tempo. Há uma posição de pesquisa que me permite trabalhar sem palco por alguns meses. Não o chame de exílio; chame de método. Se eu ficasse, gastaria a gramática da minha vida respondendo a ruídos. E não me admito nessa sintaxe.
Você me pediu uma linha. A linha é esta: continuo. Continuo você sem você. Escrevo isso sem literatura, porque a literatura está com você e deve permanecer limpa. Se, ao fim de um intervalo que não me atrevo a definir, ainda houver em nós uma parte que não virou argumento, voltarei pela porta mais discreta que houver, com as mãos vazias e o mesmo rigor.
Não transforme o que vivemos em defesa. Transforme em força de frase. Ninguém tem o direito de editar sua vida. Nem eu. Menos ainda a universidade. Prometa-me uma única coisa: que não abandonará o método. Sem ele, o mundo vence pela pior razão: o barulho.
Com respeito e desejo — na ordem possível,
A.”
Leu mais de uma vez, como quem aprende partitura . Não havia dramas decorativos, nem promessas indevidas — havia método até no adeus . E, ainda assim, em duas palavras — “respeito e desejo” —, a carta segurou o que a história não podia entregar em voz alta . Chorou de novo, agora sentada, deixando que a água cumprisse sua função física de lavar um lugar interno onde se acumulam pós . Quando a vista desembaçou, escreveu uma resposta breve, não para enviar, mas para preservar a outra metade do pacto: “Continuo. Escrevo. E não lhe peço retorno. Se vier, que venha pela mesma porta: rigor” .
Nos dias seguintes, os corredores pareceram menos hostis, não porque o mundo melhorou, mas porque a decisão, tomada, reduz fantasia . Ela apresentou um trabalho no seminário de teoria — “O olhar como ato ético: proximidade, distância e retorno” — e falou com a precisão que aprendera a amar nele e em si . Clara assistiu com olhos úmidos de orgulho sem aplausos . Ícaro comentou, após, que o cinema às vezes inveja a literatura porque ela sabe dizer sem mostrar, e ela respondeu que a literatura às vezes inveja o cinema porque ele sabe mostrar sem explicar — saudades como formas cruzadas de linguagem .
A professora rival cumprimentou com frieza educada — “bom trabalho” — e, por um segundo, algo quase humano atravessou sua face: o reconhecimento de qualidade quando ela resiste . Helena, por sua vez, não disse nada; apenas entregou um artigo digno, seco, brilhante . Competição não precisava de sangue para existir .
No sábado, ela voltou ao café da esquina sozinha, pediu o mesmo médio de sempre, abriu o caderno e escreveu sem cronograma . O texto que saiu foi um relato sem nomes de uma sala com persianas e de duas pessoas que aprenderam a medir distância com ética . No fim, uma linha simples: “o amor que não vira degrau talvez não vire escândalo; às vezes, vira texto” .
Guardou o caderno, pagou, caminhou até o campus, encostou no plátano que conhecia e fechou os olhos . O vento moveu as folhas como páginas, e ela, pela primeira vez desde a queda, sentiu não paz, mas eixo . Eixo basta para continuar . No domingo, receberia um e-mail de uma editora pequena convidando-a a submeter um ensaio para uma coletânea sobre “ética e forma” . Ela diria sim . Não por vingança . Por método . Porque, no fim, a única coisa que sabiam fazer sem se perder era isto: escrever com rigor o que a vida tenta bagunçar com barulho .
Capítulo 20 — Epílogo: O Professor e a Memória
Os anos não passaram como rios — passaram como livros; alguns foram lidos até o fim, outros ficaram com marcadores teimosos, e houve aqueles que ela abandonou com a honestidade de quem reconhece quando a história não é para agora . A vida organizou-se em camadas de trabalho: pesquisas aceitas, artigos recusados, aulas ministradas com a serenidade tensa de quem sabe que o conhecimento tem peso, mas não grita . A cidade mudou pouco, o campus quase nada — os plátanos cresceram um tanto, a biblioteca recebeu lâmpadas novas e o café da esquina trocou as cadeiras, mas manteve a lâmpada amarela sobre a mesa do fundo, como um farol de hábitos . Ela, que voltara como docente convidada e depois efetiva, ensinava “Ética e Forma” numa sala com janelas altas, falando a jovens que queriam urgência e a outros que queriam segredos; a ambos oferecia rigor .
No primeiro dia do semestre, chegou à sala antes de todos, como quem respeita o palco por amor, não por vaidade . Alinhou o giz, testou o projetor, abriu na página de um ensaio que sempre usava para começar — “o olhar como ato ético” — e escreveu no quadro, com a caligrafia que o tempo tornara mais redonda: “Toda forma é uma ética da distância, e da proximidade” . Quando os alunos entraram, sorriu com a contenção que a vida lhe ensinou: entusiasmo quieto . Falou de como a precisão é uma forma de carinho, de como o excesso é, às vezes, uma forma de medo, e de como o silêncio pode ser trabalho quando a palavra for barulho .
Na saída, percorreu a biblioteca como quem reconhece um rosto antigo . Os corredores estavam mais claros, os sensores de presença acendiam luzes em pequenos sustos elegantes, e o silêncio tinha a mesma substância de sempre — uma mistura de papel e expectativa . Na 801.4, passou os dedos pelas lombadas como quem afaga um arquivo afetivo . Não procurava nada, e, por isso mesmo, encontrou .
Um volume fino, que não lembrava ter visto, estava um centímetro adiante dos outros — a tecla erguida de anos atrás, repetida pela mão do acaso ou por outra . Puxou o livro — uma reedição ampliada de “Poéticas do Limite” — e, ao abri-lo, uma folha caiu, pousando no chão como pousam coisas que sabem que serão apanhadas . Era um bilhete simples, papel comum, caligrafia inclinada que seu corpo reconheceu antes da mente .
“Se chegou até aqui, é porque o método venceu o barulho.
Não devo à universidade explicações; devo a você um retorno.
Não volto para ocupar seu cenário. Volto para caber nas margens.
Se ainda houver, em nós, uma parte que não virou argumento,
estarei às 18h, no banco sob a lâmpada amarela, no café da esquina.
Traga nada. Traga apenas a frase que o tempo lhe ensinou.
A.”
Ela ficou parada com o papel nas mãos, não atônita, mas cheia — como quem enche os pulmões antes de mergulhar . Sentou-se na mesa ao lado e releu, respirando entre linhas, permitindo que cada verbo ajustasse uma engrenagem antiga . Não era uma convocação; era uma oferenda com cláusulas precisas: margens, não palco; retorno, não espetáculo; frase, não tese . Guardou o bilhete no caderno — agora não mais preto, mas de capa cinza, herdeiro de cadernos que já cumpriram vida — e seguiu para o gabinete com passos que a surpreenderam por sua calma .
Às 18h, a lâmpada amarela do fundo do café preservava a cor exata, como se a eletricidade tivesse memória . Sentou-se com as mãos vazias, como pedira o bilhete, e, por um momento, contou o tempo com os olhos: o moço que servia copos, a senhora que lia um romance com um dedo marcando o avanço, dois estudantes rindo baixo de uma piada que exigia siglas . Ele chegou dois minutos depois; não apressado, não tardio . O cabelo tinha mais cinza, o rosto, mais ossos, e o olhar, a mesma temperatura que um dia moveu o eixo da sala de aula sem levantar a voz .
— Boa noite — disse, e a voz, grave, tinha menos metal, mais madeira .
— Boa noite — ela respondeu, e a palavra pousou com uma ternura sóbria que a surpreendeu por não doer .
Não se tocaram . Não contaram ausências, nem passaram inventário de dores, porque certas contabilidades empobrecem o que querem salvar . Pediram dois cafés, como antes, e deixaram o cheiro do líquido fazer parte do texto silencioso .
— O método venceu — ele disse, sem triunfalismo —. Pelo menos o suficiente para que o barulho ficasse ao fundo .
— O método me manteve inteira — ela respondeu —. E me ensinou a ensinar .
— Soube — ele disse, com um brilho discreto de orgulho que não pede créditos —. Li seu ensaio sobre proximidade e ética — pausou —. “Quem segura o foco quando a luz muda?” — citou —. Exato .
— Você me ensinou a pergunta — ela disse —. O resto foi trabalho .
— E o preço? — ele perguntou, não para sacralizar dor, mas para não apagá-la .
— Pagamos e seguimos — ela respondeu —. Sem juros emocionais .
Ele riu, de leve, a economia de um homem que não gasta riso . O silêncio pousou, confortável, e, nele, coube tudo o que não caberia dito sem perda . Decidiram, sem dizer, que não reconstituiriam a noite do “acordo”, que não reabririam cartas com data, que não fariam da memória um roteiro de tribunal . O passado, afinal, é um mau narrador . Preferiram falar de livros — os que envelheceram bem, os que traíram o próprio tempo, os que ficaram do lado certo das perguntas .
— Traga a frase que o tempo lhe ensinou — ele disse, lembrando o bilhete .
Ela pensou por um momento, não para escolher entre duas, mas para ouvir se a melhor vinha inteira . Veio .
— “Domínio é voltar” — disse, simples —. Não é não cair. É voltar .
Ele assentiu devagar, como quem endossa um artigo .
— E o amor? — perguntou, não para armar armadilhas, mas para honrar o que um dia os trouxe àquela mesa .
Ela não decorou, não dramatizou; usou o músculo que melhor treinou .
— O amor que nos serve — disse — é o que não vira atalho, nem degrau, nem desculpa. É o que cabe nas margens — pausou —. E, nas margens, é imenso .
A lâmpada amarela inclinou um pouco a luz sobre a mesa, como se cedesse o foco aos dois por um minuto . Ele estendeu a mão, não para tomar, mas para oferecer superfície — o gesto mínimo . Ela encostou a própria, por um segundo inteiro, e retirou . Não era fuga; era forma . O corpo reconheceu que a gramática antiga ainda existia, mas agora obedecia a outra sintaxe, onde o “pare” vinha antes da vontade, e, por isso mesmo, protegia .
— Caminhamos? — ele perguntou .
— Caminhamos — ela disse .
Saíram sem alarde, atravessaram a rua, contornaram a praça e chegaram ao portão lateral do campus, que, àquela hora, parecia guardado por sombras benignas . Pararam diante dos plátanos, maiores, e riram da memória que a árvore tem do vento, mesmo quando a noite é calma . Ele não pediu nada do que destruiria; ela não ofereceu nada do que se arrependeria . Trocaram, no lugar, um acordo novo, sem papel: veriam-se em lugares de luz, conversariam sobre trabalho, protegeriam a vida do teatro dos outros, e deixariam, ao tempo, a liberdade de decidir se ainda havia verbo comum além desses .
Na manhã seguinte, ela entrou na sala e escreveu no quadro, como sempre, uma frase para começar a aula . Não era de nenhum autor canonizado; era dela — e, ainda assim, vinha de muitos: “Toda precisão é uma forma de cuidado” . Os alunos copiaram sem perceber que, com aquela linha, uma história inteira se fechava e outra se abria, sem estrondo . Ao final da aula, de volta à biblioteca, pegou por hábito um volume de “Poéticas do Limite” e, por reflexo, sacudiu-o leve, como quem espera que caia um bilhete . Não caiu . Sorriu . Nem tudo precisa de bilhete para existir .
Deixou, ela mesma, entre as páginas, um papel simples, sem assinatura, endereço, convite ou hora . Apenas uma linha, para o próximo leitor que precisasse, um dia, de uma régua para atravessar a própria confusão:
“Se o mundo gritar, afine.
Se o mundo apertar, respire.
Se o mundo confundir, escreva.
Se o amor pedir, cuide.
E, acima de tudo, volte.”
Fechou o livro, devolveu à prateleira 801.4, alinhou-o com as lombadas, e saiu para a luz fria da tarde com o passo certeiro dos que sabem que a vida, quando escrita com rigor, aguenta retorno . E, no caminho, sem olhar para trás, soube que a história não tinha sido de ruína, mas de eixo — e que, nas margens, o amor, quando escolhe a forma, não diminui: aprende a permanecer .
Coda — Margem, Foco, Retorno
No fim de um semestre sem bilhetes, a universidade preparou-se para a cerimônia discreta de premiação interna — um auditório sem pompa, nomes lidos sem discurso, aplausos econômicos que respeitam quem veio por trabalho . Ela estava na plateia, ao lado de Clara e Ícaro, quando anunciaram o prêmio de melhor ensaio do ano: “O Olhar como Ato Ético: Proximidade, Distância e Retorno” . O nome dela soou sem adjetivos, e foi melhor assim . Subiu ao palco com o passo certo de quem sabe que troféus não seguram livros, mas deixam marcas nas lombadas . Recebeu a placa, agradeceu com duas linhas, sem teatro: “Obrigada ao método que me manteve de pé. Que a precisão seja uma forma de cuidado” .
Na saída, o corredor estava mais claro do que o usual, como se a eletricidade, por uma vez, tivesse entendido onde pôr luz . Perto da porta, encostado ao bebedouro, ele — mais ossos, o mesmo eixo — aguardava sem urgência, como esperam os que não reclamam do tempo . Não havia segredo em estar ali; não havia cena a temer .
— Parabéns — disse, e a voz continha aquele metal temperado que nunca feriu .
— Obrigada — ela respondeu —. É seu também, de um jeito que não cabe na placa .
— É seu — ele corrigiu, firme —. O método, você levou além .
Ficaram um instante no silêncio confortável dos que não precisam de provas . Então, como quem troca não presentes, mas responsabilidades, ele estendeu um envelope fino, sem carimbo institucional . Dentro, um único contrato de coautoria para um artigo aceito numa revista estrangeira — tema: “Precisão e Cuidado: Éticas da Forma em Tempos de Barulho” — com duas assinaturas possíveis e um espaço em branco entre elas .
— Se quiser — disse —. Nas margens certas, com luz .
Ela olhou o papel, não como quem pesa prestígio, mas como quem mede foco . Não respondeu com futuro; respondeu com forma . Pegou a caneta, assinou com a mão firme, devolveu o contrato e ergueu os olhos .
— Sim — disse —. Pelas margens .
Saíram juntos para o pátio dos plátanos, onde um vento leve movia folhas como páginas que aprenderam a voltar sozinhas . Clara, alguns passos atrás, fez um aceno curto que dizia “vai” sem empurrar . Ícaro, de longe, apontou o celular como quem registra não uma foto, mas uma direção de cena, e guardou sem clicar — respeito raro que a amizade aprende .
No banco de sempre, sob a luz que já sabiam ler, ela pousou a placa ao lado e abriu o caderno cinza . Escreveu uma linha, devagar, como quem assina um pacto com a respiração:
“Escolhemos a margem para caber mais verdade.”
Ele passou os dedos pela madeira do banco, lembrando o antigo giz na ponta dos dedos, e assentiu sem necessidade de palavra . Não houve beijo, porque alguns finais não são beijo; são eixo . Não houve juramento, porque juramentos são barulho quando a forma já diz . Houve, apenas, a certeza limpa de que o amor que não vira degrau pode virar trabalho, e que o trabalho, quando honesto, devolve foco ao que o mundo tenta desfocar .
Ao levantar, ela recolheu a placa, fechou o caderno e, num gesto mínimo, encostou a mão no antebraço dele por um segundo — o mesmo segundo de sempre, agora com outra sintaxe . Disse:
— Voltamos .
Ele respondeu:
— Dominamos .
E caminharam para a biblioteca — não para procurar bilhetes, mas para devolver livros —, enquanto a lâmpada do café, acesa ao longe, parecia inclinar um pouco de luz sobre a margem onde a história escolheu permanecer . Porque, ali, entre ética e forma, eles descobriram uma verdade simples e inquebrável: quando o mundo grita, afinar é uma forma de amar . E, quando se volta pelo caminho que se escreveu, o fim não é ruína — é retorno .