Capítulo 1
Amparar a Coroa
Acorda com três toques delicados na madeira e se ergue, ainda espreguiçando, enquanto observa pela janela a manhã límpida, de céu polido, o tipo de tempo que acende uma faísca discreta de otimismo no peito. Levanta, atravessa o quarto e abre a porta para dar passagem à sua assistente, Mara.
— Bom dia, senhorita Azevedo. — Bom dia, Mara — responde com um sorriso pequeno.
Mara trabalha na casa há anos e, por afinidade e confidências trocadas ao pé da estante, tornou-se a melhor amiga que não se escolhe por sobrenome, mas por gosto em comum — sobretudo o amor quase religioso pelos livros. Por ter vindo de origem simples, Mara raramente compra novos exemplares; o salário, mais de uma vez, ela manda para o tratamento da mãe, que vive no interior de Portugal, e foi trazida para a família quando tinha dez anos, por insistência do pai da casa. A narradora tinha seis quando percebeu o brilho de curiosidade de Mara, abriu-lhe as portas da biblioteca e, entre lombadas gastas, selaram uma amizade que (com o tempo) o pai aprovou e a mãe tolerou, desde que, quando estivessem a sós, dispensassem formalidades.
— Não trouxe meu café?
— Seu pai pediu que a chamasse. Quer falar com a senhorita com urgência — diz, cruzando os braços e soprando de leve uma mecha castanha que insiste em cair sobre a testa.
— Tem ideia do assunto?
— Só sei que pediu para sua mãe descer também para o café. Deve ser importante — responde, pensativa.
— Provável que seja algo da companhia. Talvez queira ajuda com algum discurso tolo — comenta, com ironia mansa.
Mara ri, aproxima-se e desfaz o laço das costas do camisão de dormir. A dona do quarto veste o roupão que pendia do cabide do armário e segue para o banheiro amplo, onde Mara abre as torneiras, tempera a água e derrama algumas gotas de essência de gardênia, a favorita.
— Se fosse discurso, ele não precisaria de você, Helena — diz, convicta.
— Então é melhor descer logo e descobrir — devolve, dando de ombros, antes de rirem juntas do jeito apressado que a define.
Entra na banheira, deixa que a água quente desate os nós dos ombros e lava o cabelo devagar, enquanto, ao fundo, escuta Mara arrumar o quarto com sua ordem silenciosa. A mente corre: o que o pai quer, afinal? Se não fosse sério, não teria pedido a Mara para tirá-la da cama. A verdade é que raramente vê os pais: o pai, engolido pelos conselhos e reuniões; a mãe, devota de joias e almoços compridos com amigas da alta roda. Aquilo sempre lhe pareceu supérfluo. Gosta do conforto, sim, mas preferia investir nos outros do que ostentar para si.
A mãe, senhora Teresa Azevedo, discorda. Diz que deveria se aproximar de moças do “mesmo nível”, para um dia encontrar um homem “à altura” e casar-se. Mas, em pleno século XXI, a ideia de casamento por conveniência parece-lhe uma peça de teatro antiquada. Nunca foi de se apaixonar. O máximo foi um carinho adolescente por um colega de escola — gentil, atencioso —, que não prosperou quando as expectativas dele seguiram caminhos que ela não estava pronta para trilhar. E, para ser franca, ainda não se entregou a ninguém — e não tem pressa.
Sai do banho às pressas. Veste uma calça de alfaiataria que desenha a silhueta, uma blusa de gola alta azul-escura, deixa o cabelo solto, penteado simples, e finaliza com maquiagem leve. Quando olha o relógio, leva um susto: passara uma hora desde o recado de Mara. O pai certamente estará contrariado. Calça os tênis, pega o celular — nenhuma nova mensagem. Amizades nunca foram muitas; na escola, os olhares vinham enviesados por ser filha de Augusto Azevedo, como se ter dinheiro fosse um pecado público. Preferiu estudar e compartilhar romances históricos com Mara.
Chegou a sugerir que Mara largasse o cargo de funcionária e ficasse apenas como amiga da casa, com ajuda da mesada para sustento da mãe. Mara recusou com doçura e firmeza: preferia estar por perto trabalhando do que pesar na consciência de alguém. Respeitou o limite.
No espelho, encara uma mulher de traços finos, cabelo castanho-claro, pele de porcelana e um sorriso largo que revela dentes alinhados e brancos. Suspira, ajeita uma mecha teimosa e segue para a porta. O corredor é comprido, uma sucessão de quadros de família que parecem observá-la enquanto desce as escadas rumo à sala de jantar. O pai está na cabeceira; a mãe, ao lado, segurando-lhe a mão. Os dois ostentam um semblante severo, quase sombrio. Um aperto gelado toma-lhe o estômago.
— Demorou, Helena — diz o pai, soltando o ar pelo nariz.
— Eu estava no banho, desculpe — responde, em tom manso.
— Sente-se. Precisamos conversar — ele indica a cadeira.
Uma funcionária serve-lhe café. A mesa se divide entre frutas, pães, queijos, compotas. Ela se serve mecanicamente, enquanto observa a mãe, que permanece calada e rígida, como se uma palavra pudesse quebrá-la.
— Aconteceu alguma coisa, mãe?
— Vai saber já — diz a mãe, num sopro.
— Como vão os estudos? — pergunta o pai, tentando um protocolo normal que não engana ninguém.
— Vão bem. Ainda não decidi o curso da faculdade. Tenho lido um pouco de cada coisa que me encanta — responde, apoiando a mão sobre a mesa.
Ele estende a mão e a segura. O toque é quente, mas os olhos, tristes.
— Precisamos tratar de um assunto delicado — diz, acariciando os dedos da filha.
— Estou ouvindo — ela endireita a postura.
— Lembra de Álvaro Montenegro?
— Vago. É alguém do seu círculo de negócios?
— Fomos amigos por anos. Ele fez fortuna no mercado financeiro. Montou um verdadeiro império.
— Como o seu — ela tenta um sorriso. O do pai vacila.
— Não basta erguer um império. É preciso saber mantê-lo — ele comenta, com dureza controlada.
— E o que Álvaro tem a ver com isso? Ele quebrou e pediu ajuda? — arrisca, confusa.
— Não. Quem pediu fui eu, anos atrás — confessa.
— Certo… aonde quer chegar? — ela sente o ar ficar mais pesado.
— Lembra que Álvaro tem um filho?
— Nunca o vi. Difícil lembrar de quem não se conhece — responde, meio rindo, meio sem graça quando o silêncio cai como uma cortina.
— Não queria envolver você, mas temos um problema grande. A Azevedo & Filhos está mal — ele diz, enfim.
Ela pensa no paradoxo: o pai, conhecido por recuperar empresas naufragadas, agora lutando para manter a própria à tona. Como isso aconteceu?
— Se for para cortar gastos, tudo bem. Cancelo compromissos, eventos, e a Mara dá um jeito em cabelo e unhas, que ela tem talento — oferece.
— Não é só isso — a mãe intervém, com olhar que mistura raiva e pena.
— Devo muito a Álvaro. O que temos não cobre. Fizemos cortes profundos e ainda assim não sei por quanto tempo sustentamos a operação — o pai resume, exausto.
— Como chegou a esse ponto, se tudo parecia bem?
— Às vezes, para escalar, a gente aceita trocas que não gostaria. Obstáculos… pessoas… decisões — ele escolhe as palavras como quem pisa em vidro.
— Está dizendo que passou por cima de gente? — a pergunta sai num sussurro descrente.
— Isso não vem ao caso agora. Sinto muito. Não está sendo fácil — ele fecha os olhos por um segundo.
— O que precisa de mim? — ela insiste, firme.
— Álvaro propôs um acordo para liquidar a dívida. Ele assume o controle, mantém uma participação para mim, salva a estrutura e apazigua os credores — explica.
— E aceitou?
— Em partes. Há uma condição. O filho dele — ele pausa —, Henrique.
— O que tem o filho?
— Uma união entre as famílias. Um casamento. Disse que isso consolidaria a transição, fortaleceria a confiança do mercado e salvaria o nosso império — conclui, com a voz falhando na última palavra.
— Casamento? Com quem?
— Com você, Helena. Álvaro quer que você se case com Henrique. É a única saída que ele aceita — diz o pai, encarando a xícara, incapaz de sustentar o olhar da filha.
Capítulo 2
Uma escolha indigesta
Casamento. A palavra ricocheteia na cabeça de Helena como um badalo insistente, a ponto de deixá-la zonza. Como é possível unir duas vidas sem amor? A ideia, só de ser dita em voz alta, parece uma farsa cara. É sério que o pai considerou isso?
— O senhor aceitou?
— Não. Quer dizer… ainda não — responde Augusto, suspirando, levantando-se para caminhar de um lado ao outro.
— Álvaro me deu vinte e quatro horas. Se não houver resposta, promete destruir o que restou — ele diz, a voz mais áspera do que o normal.
— E por que seria vantajoso ao filho dele se casar com a filha do devedor? — Helena retruca, erguendo-se.
— Unimos famílias, deixamos de ser rivais e ele consolida o controle. Salva minha participação, mas a Azevedo & Filhos não seria mais minha — admite.
— E eu ficaria presa a um casamento sem alegria — diz, a mão no peito.
— Não encare assim. É absurdo em pleno século XXI, mas as opções acabaram. Se perdermos tudo, ninguém me empregará. E velhas histórias podem vir à tona — Augusto aperta a ponte do nariz.
— O senhor percebe a insanidade? Não vivemos na era de contratos nupciais entre clãs. É grotesco!
— Helena Azevedo, modere o tom ao falar com seu pai — intervém Teresa pela primeira vez, a voz firme. — Não queríamos isso. Mas se recusar, tudo desaba. Nem Mara poderá continuar, e a mãe dela depende desse salário.
— Isso é chantagem emocional e vocês sabem. Nunca prejudicaria a Mara ou quem trabalha aqui. Mas estão dispostos a me sacrificar pela própria pele. É mesquinho.
— Não será com qualquer um — Augusto tenta suavizar. — O filho de Álvaro é CEO do grupo, respeitado. Mal o verá.
— Exceto pelo “detalhe” de ter que deitar com ele. Ou acha que alguém aceita esse arranjo e ignora o resto?
O silêncio cai pesado. Helena luta contra a vontade de chorar.
— Tem até as seis para responder. Se ficar calada, tomarei como um sim — Augusto sentencia.
— E se eu disser não, o que muda?
— Pouco. Só será mais difícil.
Helena engole em seco, a garganta em brasa.
— Então saiba: não aceito. E estão me condenando. Não perdoarei nenhum dos dois.
Dá as costas, sai sob o chamado aflito do pai e o sussurro apaziguador da mãe. Tranca-se no quarto, atira-se na cama e chora sem freio, buscando alguma brecha de fuga desse destino imposto.
Não desce para o almoço nem aceita bandejas no quarto. Nem Mara consegue arrancar um sorriso. A possibilidade de se ver casada com um estranho revirava algo dentro do peito, como se mãos invisíveis arrancassem o coração. Pensa no tal Henrique, o filho de Álvaro. Quase pesquisa o rosto, mas bloqueia a própria mão. Não quer uma imagem para odiar.
A ideia de fuga toma corpo: mala pequena, algumas joias, dinheiro do cofre e estrada. Mas por quanto tempo? Augusto a encontraria. Mais cedo ou mais tarde, encontraria. “Não há saída, Helena. Resta aceitar.” O destino, sempre ele, parece um carrasco paciente.
— Não adianta choramingar — murmura para si. — Ele já decidiu. Só veio anunciar a sentença.
Cogita o divórcio futuro. Romper depois de casar. Mas a quebra do acordo poderia piorar tudo. Na escala dos danos, seu casamento é só mais uma peça no tabuleiro onde Augusto já empurrou tanta gente.
Uma batida discreta.
— Helena, sei que está aí. Passei na biblioteca antes — sussurra Mara, mexendo na maçaneta. — Abre. Trouxe sorvete e brigadeiro.
Helena abre. O carrinho traz copos altos de sorvete, brigadeiro cremoso e calda brilhante.
— Dessa vez venceu — ela diz, cedendo passagem.
Mara serve uma taça com chocolate e calda generosa. A primeira colherada arranca um gemido involuntário.
— Está perfeito!
— Fiz ontem — Mara sorri, provocando um pouco de vaidade bem-vinda.
Sentam na cama.
— Sinto muito pelo que ouvi dizer — comenta Mara.
— As notícias correm — Helena suspira. — Aceito ou fujo?
— Fugir para quê? Para ser trazida de volta e me ver demitida? Plano excelente.
— Debochada — Helena ri apesar de tudo.
— Não é fácil, mas vai precisar ser forte.
— A palavra da moda — ela revira os olhos.
— Helena, ouça: ele vai aceitar por você. Os preparativos virão num piscar. É contrato.
— Nunca pensei que viveria um desses livros. Só que aqui dói — ela diz, empurrando o brigadeiro com a colher.
— Vê pelo lado prático: se o cara é poderoso, quase não estará em casa.
— O problema não é vê-lo. É “satisfazê-lo” — ela cora.
— Por ser virgem? Ele vai adorar.
— Ele, sim. E eu?
— Se ele souber, você também. É bom — responde Mara, meio sapeca, meio sincera.
— Safada, Mara Costa.
— Um pouco. Agora sério: use isso a seu favor.
— Como?
— Não dê a ele o gosto de “silêncio é consentimento”. Vá e diga que aceita… com condições.
— Mas eu não quero aceitar.
— Diga que aceita e imponha termos. É poder de barganha.
Helena pensa na palavra “condições” e sente, pela primeira vez no dia, um fio de controle.
— Você é um gênio.
Mais tarde, faltando quinze minutos para as famigeradas seis, Helena sai do quarto. O corredor exibe retratos que já não lhe parecem família, mas espectadores. A escada em espiral desemboca no hall, onde, pela manhã, havia esperança. Agora, só resignação.
No caminho ao escritório, ela cruza a foto do casamento de Teresa: véu leve, vestido fechado, buquê de rosas brancas. Um dia, Helena jurou querer aquela felicidade. Hoje, entende que a própria versão será uma encenação. Não amará esse homem. E espera que ele também não ouse amar; seria mais simples.
— Filha? — Teresa surge no corredor, alinhada num blazer escuro.
— Quero falar com o papai — Helena responde, o humor drenado.
Entram. Augusto encerra uma ligação e a encara.
— Quero falar com vocês dois — ela diz, a voz tensa.
— Diga, querida — Teresa encoraja.
— Eu aceito — Helena observa o alívio instantâneo nos rostos. — Mas imponho condições que o senhor vai ajustar com Álvaro.
— Quais? — Augusto pergunta.
— Mara vai morar comigo e com o futuro marido. Só ela sabe do que preciso. O salário dela aumenta e terá visitas anuais à mãe, sem descontar dos dias. — Espera o pai tentar interromper. — Ainda não terminei. Vou e venho como quiser, sem ser tutelada. Uma cerimônia simples, poucos fotógrafos. E ele só me toca com minha permissão.
— Ele vai respeitar — Teresa se apressa.
— Ele sabe que vai se casar ou descobrirá na hora?
— Isso é com Álvaro — Augusto corta.
— Por fim, nada de filhos. Não serei mãe por imposição.
— Filhos fazem uma família — Augusto arregala os olhos.
— Famílias começam com afeto e escolha. Não é o nosso caso.
— Está bem — ele cede, voz baixa.
Helena percebe os sorrisos de alívio deles. Dentro dela, o vazio.
Capítulo 3
Conhecerá o noivo no altar
Os pais respiram mais leves desde a decisão, mesmo diante do olhar turvo de Helena. Aceitar, por ora, parece a única forma de estancar a hemorragia. A noite desce, e com ela o pensamento obsessivo: como tudo muda tão rápido? De manhã há chão, à tarde o abismo. Por um segundo, desejar não acordar seria descanso.
Passa das dez quando Helena abandona o quarto e desce até a biblioteca. As prateleiras abarrotadas a reconhecem; é o único canto da casa que ainda lhe pertence. Percorre lombadas, puxa um romance qualquer e imagina um amor possível. Pergunta-se se um dia vai ser feliz ao lado de um desconhecido. “Procura a foto dele, Helena”, zomba de si. Guarda o impulso e afunda na poltrona, tentando ler até que a mente silencie.
Adormece ali. O tombo do livro a desperta. Recolhe, devolve o volume ao lugar e, no caminho de volta, nota uma sombra próxima ao escritório. Os passos desaceleram. A curiosidade vence.
— Tem certeza, Augusto? — Teresa sussurra. — Acha mesmo que isso será bom para ela?
— Não sei. Só sei que é o que nos resta. Sem isso, afundamos — ele responde, cansado.
— E se Álvaro planejar algo contra a nossa filha?
— Ele pode ser duro, mas não é covarde — Augusto retruca. — Vamos ter que arriscar. Não gosto de tirar dela a chance de amar, mas prefiro isso a vê-la em perigo.
— Você fala como se ele fosse nos matar por causa da dívida — Teresa, aflita.
— Você duvida? Álvaro é capaz — Augusto diz, sombrio.
— Assim como você — Teresa solta, amarga. — O que ocorreu no passado… aquele acidente… sei que tem sua mão.
— Chega, Teresa! Foi um acidente — ele estanca.
— Se não fosse pelas suas escapadas… — ela cospe a dor antiga.
— Pensei que tivesse me perdoado.
— Perdoar, talvez. Esquecer, nunca.
Helena recua, o coração aos tropeços. Traição. Acidente. Ameaças. O mosaico familiar, antes polido, racha por dentro. Ela foge de volta ao quarto e tranca a porta. As perguntas se multiplicam, como se todos os fios levassem à mesma mão invisível.
No dia seguinte, a ressaca emocional persiste. Enquanto dobra roupas para uma mala que ainda não sabe para onde vai, Helena revê cada palavra da conversa.
— Em que está pensando? — pergunta Mara, ajudando a organizar o closet. Pela manhã, Augusto já avisara: era prudente ir adiantando malas.
— Em nada que valha a pena dizer em voz alta — Helena tenta escapar.
— Engana seus pais. A mim, não — Mara cruza os braços. — O que mais além desse casamento?
Helena conta. Do acidente, da traição, do medo explícito na voz do pai. Mara ouve e, ao final, segura a mão da amiga.
— Promete que não vai cavar isso? Pode respingar em você.
— E se a verdade já estiver me respingando?
— Mesmo assim. Há coisas que é melhor varrer para debaixo do tapete. Por enquanto, foque em sobreviver a essa cerimônia.
Uma batida na porta.
— Filha, visita — avisa Teresa.
Mara abre. Teresa entra, avalia o visual da filha, aprova com um aceno.
— Seu futuro sogro está lá embaixo. Quer cumprimentá-la.
— Para quê? — Helena escapa num fiapo de ironia.
— Para conhecer a futura nora. Tenta colaborar — Teresa pede.
Helena retoca o brilho nos lábios, ajeita o cabelo e esboça um sorriso que não alcança os olhos.
— Satisfeita?
— Vai ser rápido, prometo — Teresa assegura.
— Que eu leve um tiro no caminho — Helena resmunga.
— Como?
— Que eu mal posso esperar para escolher os padrinhos — ela corrige, segurando o riso.
— Pensando nisso… e se Mara fosse madrinha? — Teresa lança.
— Senhora, sou funcionária… — Mara começa.
— Não aqui — Helena corta, quase suplicando. — Por favor.
— Se isso não atrapalhar vocês — Mara cede.
— Ao contrário — Teresa prossegue. — Quando Helena se casar, você irá com ela. Não como empregada doméstica; como governanta pessoal. O salário permanece, pago pela casa dele. Vai cuidar do que a Helena precisa, e não faltará serviço numa casa grande.
Mara e Helena trocam um olhar espantado.
— Entendido — Mara responde, contida.
— Obrigada, mãe — Helena sussurra, surpresa com o raro gesto de acolhimento.
— Eu não queria isso para você — Teresa confessa. — Mas ter a Mara por perto me acalma.
Descem. No escritório, um homem alguns anos mais velho que Augusto, de pele clara e expressão pétrea, levanta-se ao vê-las. Os olhos de Álvaro Montenegro medem o ambiente como quem toma posse.
— Está uma moça desde a última vez que a vi — ele comenta, forçando um sorriso.
— Prazer — Helena oferece a mão. — Desculpe não lembrar.
— Era pequena demais — ele responde, rindo curto. O som arranha os nervos dela.
— E seu filho? — Helena pergunta, sem rodeios. — O meu… futuro marido.
Álvaro ergue os cantos da boca.
— Não pôde vir. Está resolvendo a casa de vocês e detalhes das férias após a cerimônia. Conhecerá seu noivo no altar. Garanto que é educado, gentil e muito bonito.
A palavra “altar” pesa como ferro.
— Compreendo — Helena mente com polidez estudada.
— Álvaro é generoso — Augusto se apressa. — Ofereceu a viagem de lua de mel para onde quiser.
— Muito gentil — Helena encena, mantendo a postura.
— É uma doçura, como a mãe — Álvaro comenta, um elogio que soa como análise de ativo. — Escolhi a noiva certa para meu filho.
A fúria percorre Helena como corrente elétrica. É isso: um acerto, uma compra, uma transferência de posse com laço branco. Ela engole a revolta, estende a mão novamente, com um sorriso impecável.
— Foi um prazer conhecê-lo. Há previsão para a data?
— Em breve. Esta semana fechamos convites, prova do vestido e detalhes. Não poupe nada. Meu filho faz questão de arcar com tudo.
— Então escolherei um vestido inesquecível. Um marco, não é, papai? — ela vira o rosto para Augusto, que engole em seco e concorda.
— Se nos dão licença… — Augusto indica a mesa cheia de papéis. — Álvaro e eu temos pontos para concluir.
— Claro. Até breve — Helena se despede, deixando o escritório com a sensação de nó apertando a garganta. A loucura não está vindo; já chegou, pontual como um carrasco.
Capítulo 4
Preparativos
A semana se arrasta com um enjoo que não passa. Helena quase não sai do quarto; evita os pais como quem evita espelhos. Aceitou a sentença, mas não consegue fingir que nada mudou. Não pesquisa Henrique, o noivo invisível; o desconhecido, por ora, é mais suportável do que um rosto concreto.
Mara vira fábrica de consolo: sorvetes, doces, pratos preferidos. Teresa a repreende, lembrando que a noiva precisa “entrar no vestido”. O início dos preparativos piora tudo: degustações, reuniões, provas. Augusto escolhe uma orquestra, apesar do pedido por algo simples. A lista de convidados vira um desfile de parceiros de negócios dos Azevedo e dos Montenegro. A cerimônia será católica; para Helena, um altar sem amor é palco de teatro.
O dinheiro que Álvaro pôs à disposição corre sem pudor. Augusto compra um carro novo “da noiva”. A festa será em casa. A casa deles, porque logo Helena pertencerá a outro endereço — e a um homem que não conhece.
— E então, futura governanta? — Helena brinca enquanto Mara finaliza uma trança embutida.
— Sincera? Melhor do que lavar banheiro. A parte ruim são as aulas de etiqueta da sua mãe — Mara revira os olhos.
— Alivia saber que vai estar comigo.
— Vai mudar, Hel. Você terá um marido. Atenção vai ter que ser dividida.
— Eu sei. Mas ter você perto me dá chão.
— Esse penteado pro casamento?
— Nem pensar. A gente decide lá na hora — Mara ri. — Vai se arrumar, o jantar sai já.
Na mesa, Augusto tenta normalidade.
— Está animada?
— Com o quê? Seja específico.
— Pelo menos finge, filha. Vai entrar na igreja com cara de velório?
— Se depender de mim, sim.
— Chega. Para o quarto — ele ordena.
Helena se ergue, derruba a cadeira.
— A melhor parte disso tudo é que não vou mais conviver com o senhor.
Sai antes da resposta. Atrás, o estilhaço de porcelana na parede. No quarto, deseja que o tal dia chegue logo, só para poder ir embora de vez.
Os preparativos aceleram. O noivo não aparece, não liga, não manda recado. Talvez também esteja infeliz. Talvez esteja aliviado. Helena empurra as hipóteses para longe e enfrenta a estilista.
— Pode ser qualquer modelo, contanto que seja feito do zero — pede.
Medidas tiradas, taça de espumante na mão, Helena fala, enfim:
— Quero decote frontal, pedras no busto, curvas em evidência.
Olhares surpresos.
— E sem economizar — completa.
— Deixa comigo — promete Cayenne, a estilista.
Mais tarde, Teresa bate à porta. Passeia os olhos pelas bonecas de porcelana na penteadeira, presentes da avó.
— Você cresceu num piscar — diz, tocando a primeira boneca.
— Sinto falta da vovó — Helena segura o brinquedo antigo.
— Se estivesse aqui, talvez nos livrasse dessa ideia louca.
— Mãe, não finja. Você está aliviada — Helena fala sem rodeios.
— Me perdoe. Não vi outra saída — Teresa murmura.
— Ouvi vocês. A traição. O “acidente”.
— Esqueça, Helena. Seu pai errou, faz muito tempo. Não se meta.
— Difícil esquecer o que você mesma jogou na cara dele.
— E se eu fugisse? — arrisca Helena.
— Ingratidão? — Teresa endurece. — Demos tudo a você. É hora de retribuir.
Helena sente a faca das palavras. Depois Teresa suspira, suaviza:
— Desculpe. É nossa obrigação cuidar de você. Só… tente parecer feliz. Quem sabe o amor não surpreende?
— Como se apaixonar sem conhecer?
— Às vezes acontece quando menos se espera — Teresa aperta a mão da filha.
Talvez reclamar não adiante. O destino, por ora, está traçado.
Capítulo 5
A prova do vestido
Os dias passam como minutos. A cada hora, o “sim” se aproxima. Helena tenta distrações: biblioteca, provas de doce, filmes batidos. Nada segura o peso no peito. Evita falar com Augusto. Ele tenta, ela se levanta antes da sobremesa.
Álvaro cumpre a parte dele: dinheiro entra, pendências saem. Augusto reaprende a sorrir. Helena vai para o banho, torcendo para a água lavar a angustia.
— O vestido chegou — Teresa anuncia na porta.
Helena apenas assente. Pediu um modelo do zero para ganhar tempo; de pouco adiantou.
Na sala, Cayenne ergue o plástico e revela o tecido claro. O decote brilha com pedras, as costas em tule, uma cauda generosa. É exatamente o que Helena sempre imaginou — para outro tipo de casamento.
Veste a peça com ajuda da estilista. O encaixe é perfeito. O espelho devolve uma mulher magnífica. O véu pousa, e Helena tem vontade de chorar.
— Está lindo — ela admite, com a voz raspando.
Teresa também se emociona.
Passos na porta. Augusto entra. Os olhos marejam de um jeito que parece sincero.
— Você está linda — diz. — E… desculpa.
— Pelo quê, se já decidiu tudo? — Helena devolve.
— Se eu pudesse escolher diferente… — ele começa.
— Podia. Anos atrás. As escolhas de então me trouxeram até este vestido agora.
Ele respira fundo.
— A data está próxima. Convites, prazos, tudo em andamento. Quero pedir uma coisa: no dia, tente parecer feliz.
— Posso. Em troca de um acordo.
— Qualquer um.
— Não me leve ao altar. Vou sozinha.
— Inadmissível — Augusto estaca. — Sou seu pai.
— Eu queria escolher meu marido. Não consegui. Escolher meus passos até o altar, consigo.
Ele cede.
— Você vai no carro novo. Eu levo sua mãe. Sem gracinhas.
— Sou uma mulher de palavra — encerra.
Ele dá um passo em direção à filha. Helena recua. Ele entende e sai.
Na madrugada, um sonho. A sala clara vira igreja. O rosto do homem ao altar é um borrão. Só os olhos: escuros, quentes, predatórios. A mão dele aperta seu pulso e o sorriso é doentio. Ela grita e não sai som.
— Não! — Helena desperta sentada, suada. O relógio marca cinco. Bebe água, tenta racionalizar. Não vai pesquisar a foto dele. Talvez a ignorância seja o último cobertor. Pensa numa trégua possível: quartos separados, sem sexo. Se ele também não quiser o casamento, pode concordar. Adormece nessa ideia, frágil como uma bolha.
Capítulo 6
Data marcada
A data vem com hora: daqui a uma semana. Convites disparados. A única convidada de Helena, além da família, é Mara — sua madrinha. O vestido amarelo-claro cai bem nela, e o entusiasmo da amiga sustenta um pouco do peso.
— Vai dar certo. Quem sabe não se apaixona? — Mara provoca.
— Tomara que não — Helena ri de si. — A ordem certa seria conhecer, beijar, namorar, entregar a alma e, por fim, casar. Eu vou conhecer no altar.
— Porque não quer procurar. Se quisesse, saberia tudo em cinco minutos. Pensa que, ao menos, estabilidade você terá.
— Não quero depender de homem. Quero estudar, fazer faculdade, ver o mundo.
— Se ele for decente, você fará. Não estamos no século XVIII.
— Espero que não — Helena sussurra.
A semana corre como areia. Quatro dias viram três, depois dois. A casa fervilha: flores, mesas, cadeiras, arranjos, garçons, música. Exagero por todos os lados. Helena só pensa no depois do “sim”.
Banho demorado. Depilação caprichada — um gesto prático diante do inevitável. Ao sair, o quarto está tomado: Teresa, Mara, Cayenne, um maquiador, um cabeleireiro. Helena veste a lingerie de renda sem pudor, se enrola no roupão e senta.
— Hoje é dia grande — Cayenne anima. — Joseph no cabelo, Josh na make.
— Mal dormi a semana toda — Helena ironiza.
Escova, topete suave, coque frouxo, mechas soltas. A tiara de prata da avó, discreta, dá nobreza e memória. A maquiagem é contida: olhos esfumados, delineado, batom tom de pele. O reflexo devolve uma beleza clássica, e, por um segundo, casar não parece um horror.
— Você está linda — Teresa sussurra, com as lágrimas contidas.
— Não me faz chorar — Helena ri com o nariz. — O Josh vai me matar.
Cayenne chega com o vestido. O zíper sobe. O véu repousa. A cauda desliza pelo chão.
— Estou linda — Helena admite, surpreendida por si mesma.
— Está mesmo — Mara aplaude, emocionada.
Teresa chora baixinho e abraça a filha.
— Torço pela sua felicidade. Se precisar, chama.
As mãos de Helena tremem.
— Mãe… me leve ao altar.
— Pensei que iria sozinha. Seu pai disse…
— Eu quero que seja você.
— Claro, meu amor.
Helena encara o espelho pela última vez. Não há mais ajustes. O momento chegou.
Capítulo 7
Acidente de trânsito
O coração de Helena tamborila quando desce a escada rumo à saída. As mãos úmidas, a respiração curta.
— Mantenha a calma — sussurra Mara, ao lado.
Helena aperta a mão da amiga.
— Obrigada por estar aqui.
O céu está denso, um chumbo sem fendas. Parece luto. Por dentro, ela já se sente morta — e o corte tem o nome de um casamento sem amor.
— O carro está chegando — avisa Teresa.
— E o papai?
— Foi antes, recepcionar os convidados.
O sedã entra no jardim. Teresa e Mara conduzem a noiva pelos degraus, segurando cauda e véu.
— Mara e eu vamos em outro carro. Quero te dar alguns minutos sozinha — diz Teresa, ajeitando um fio de cabelo da filha.
Helena assente, entra, toma o buquê e observa as duas seguirem ao segundo veículo. Conta até cinco. O carro arranca. Pelo vidro traseiro, a casa da vida inteira encolhe até virar lembrança. Em minutos, não será mais dela.
No trânsito, coloca o buquê no banco ao lado e torce as mãos. Pensa no noivo que se recusou a ver antes. Imagina-o grotesco, ou com mau hálito, ri sozinha da hipótese e se arrepende do humor azedo. Lembra o pesadelo: olhos escuros, sorriso sádico. Fecha os punhos até as unhas marcarem a palma. Inspirar, expirar.
O impacto vem sem aviso. Um solavanco, o peito bate no encosto da frente. O buquê rola.
— O que houve? — a voz sai trêmula.
— Está bem? — o motorista pergunta, num zelo protocolar.
— Estou.
— Bateram em nós.
Ele encosta, salta. Helena abre a janela, o vê examinando a traseira amassada.
— E então?
— Ferrados — ele suspira.
Helena sai com alguma dificuldade. O outro carro para alguns metros adiante, com a frente esmagada.
— Excelente timing — ela resmunga.
O motorista alheio desce, nervoso.
— Desculpem. Acelerei mais do que devia. Vocês estão bem?
— Da próxima, atenção dobra. Que ironia: correu e agora perdeu mais tempo parado — ela responde, seca.
— Sinto muito, senhorita… Vai se casar, não é? — diz, olhando o vestido.
— Vai e já está atrasada.
— Sinto muito.
— Pensando bem, obrigada — ela solta um sorriso —, qualquer pausa é bem-vinda hoje.
A porta traseira do carro adversário se abre. Um homem sai. E o entorno silencia. O resto some, como se a rua tivesse apagado. Ele é bonito de doer: cabelo escuro, olhos castanhos fundo de lenha acesa, barba alinhada, mandíbula marcante sob o smoking. A gravata borboleta, impecável.
— O que houve, Reginaldo? — a voz grave arrepia Helena.
— Conferindo se a senhorita está bem — responde o chofer.
— Está? — o homem pergunta, agora para ela.
— Sim. Ele me atrasou, mas… sigo viva.
— Posso consertar o carro depois. Também estou atrasado para o meu casamento — ele comenta, como quem relata o tempo.
A coincidência arranca um quase sorriso dela.
— Deixamos os motoristas resolverem?
Eles trocam cartões, combinam. O homem volta a olhá-la.
— Bom casamento, senhorita…
— Helena.
— Gael. Boa cerimônia, Helena.
— Para você também.
Os primeiros pingos de chuva caem. Ela entra e acena. O carro dele passa; Gael lhe lança um último olhar — sério, enigmático. O motorista de Helena volta ao volante, comenta sobre a entrada triunfal com a lataria amassada. Ela ri, por instinto.
Logo a igreja aparece. Teresa e Mara esperam do lado de fora e correm ao ver o amassado.
— O que aconteceu?
— Um apressadinho. Engraçado: o noivo dele também o aguardava — Helena sorri de leve.
— Agora, foco. Quando estiver pronta, entramos — Teresa diz.
O medo volta já conhecido.
— Mãe, segura minha mão. Não me deixe vacilar.
— Nunca.
Mara entra para o lugar de madrinha. Helena sobe os degraus com Teresa. É cômico levar flores rumo ao inferno. Ainda assim, segue.
Capítulo 8
Casada com o CEO
A marcha nupcial soa como marcha fúnebre. Helena ergue o olhar para o altar e trava, a meio caminho. A igreja inteira prende a respiração. O noivo é o homem do acidente. Gael. O mundo, às vezes, tem senso de humor de gosto duvidoso.
— Foi ele quem bateu no carro — sussurra para Teresa.
O pai, a poucos metros, a fuzila com o olhar para que recomece a andar. Eduardo observa, intrigado. Mara abre um sorriso nervoso.
Helena retoma os passos. Gael a observa com surpresa mansa.
— Então era você, noiva do trânsito — ele murmura, quando ela chega.
— Ridículo. — Pausa. — Digo, a situação toda é ridícula.
O padre pigarreia. Gael segura a mão de Helena. O toque dispara eletricidade nos nervos dela — vivo, quente, inexplicável.
— Boa tarde — o padre começa e escolhe um versículo. As palavras passam por Helena como vento.
— Sua mão está suando — Gael sussurra.
— A sua é uma fornalha — ela retruca, mordendo o riso.
— Nesta tarde, dois jovens se unem por amor… — o padre declara. Os dois quase riem.
— Podemos pular? — pede Helena, envergonhada, arrancando risos dos convidados.
— Vocês que sabem — o padre tenta recuperar a liturgia. — Gael Montenegro, aceita Helena Azevedo…?
— Aceito — ele responde, com uma curva de sorriso nos lábios.
— Helena Azevedo, aceita…? — Helena olha Augusto, que parece vidro prestes a trincar. Teresa chora miúdo. Volta aos olhos de Gael.
— Aceito — ela diz, sentindo a soleira de algo escuro.
— Eu os declaro casados. Pode beijar a noiva.
Gael ergue o véu devagar. O beijo começa contido e vira encontro. Há pasta de dente e morango, calor e pressa, uma química que não pediu licença. Ela corresponde mais do que imaginava, puxa-o para perto, perde a noção do tempo até os aplausos devolvê-los à nave. Ele termina com um selinho, contido.
Assinam.
— Esposa — ele diz, baixo.
— Esposo — ela devolve, sem jeito.
Braço no braço, caminham aplaudidos sob chuva de arroz. Lá fora, o carro amassado aguarda como piada interna. Gael abre a porta para Helena. Ela joga o buquê sem ver quem pega.
— Para onde?
— Para sua antiga casa. Troca de roupa, menos peso no corpo — ele diz.
— Agradeço.
— O destino é engraçado — Gael comenta, no trajeto. — Nosso primeiro encontro, um para-choque.
— Às vezes ele brinca com as pessoas. Posso perguntar?
— Tecnicamente, já perguntou.
— Por que não me procurou antes?
— Estava fora. Fiquei sabendo e voltei ontem. Seria mentira dizer que queria me casar.
Ela se encosta no banco, aliviada com a franqueza.
— E você?
— Eu o quê?
— Queria se casar comigo?
— Com um desconhecido? Não.
— Mas aceitou.
— Por falta de opção.
— Você não me reconheceu no acidente. Não pesquisou? — ele pergunta.
— Preferi deixar o monstro para o altar. Vai que era horrível.
Gael ri, ela acompanha.
— Superei?
— É bonito. Muito.
— E sim, sou CEO do grupo do meu pai há um ano. Transformou a vida num aeroporto — ele diz.
— Então nos veremos pouco.
— Pedi para reduzir viagens. O casamento foi moeda de troca.
— Fico feliz por servir a algo — ela ironiza.
Chove forte.
— E você, viu minha foto?
— Não. Mesmo raciocínio: surpresa no dia.
— Entrei pelos fundos para ninguém ver antes — ele explica.
Eles seguem em silêncio confortável.
— Fui uma péssima noiva, nem vi quem pegou o buquê — ela brinca.
— Vai descobrir. A noite é longa.
— Você beija bem para um ator — ela provoca.
— Não estava atuando. E você também não.
— Arrogante. Como tem certeza?
— Certas coisas o corpo não finge. Mas posso atuar no resto, se quiser.
— Por favor, finja que somos felizes — ela encerra, olhando a rua.
Chegam. Gael a ajuda a descer, mão quente.
— Pensei que não voltaria aqui tão cedo — ela comenta.
— A nostalgia tem hora marcada — ele sorri.
— Vou me trocar.
— Uísque me espera na sala.
No quarto, um vestido branco com pérolas a aguarda. Ela tira o de noiva com alguma luta e fica de lingerie, senta na cama e encara o abismo do “para sempre”. Uma batida. Ela se enrola no tule por reflexo; a porta abre.
— Desculpe, sua mãe pediu pressa — Gael diz, parado no batente.
— Fique. De costas. Se minha mãe vir você no corredor e eu trancada, inventa um escândalo.
Ele obedece. Ela veste o novo vestido em segundos.
— Pronta.
Ele a olha um instante longo demais. O pomo de Adão sobe e desce.
— Belíssima. Meu pai escolheu bem — ele murmura.
— Obrigada.
Descem. Aplausos os recebem. É hora do teatro.
Capítulo 9
Festa de casamento
— Calma. É só uma multidão de estranhos — Gael comenta, à meia voz.
— E você conhece alguém?
— Conheço meu pai. Os seus. E, agora, minha esposa.
Descem devagar. Os saltos são punição somada ao olhar coletivo. Teresa a abraça e beija a testa.
— Obrigada, querida — sussurra.
— Hoje, só sorrisos, mãe.
Augusto abraça Gael, depois a filha.
— Um dia você me perdoa. Quem sabe o amor nasce.
— O perdão, talvez. O amor? Não aposte.
— Aquele beijo disse outra coisa — ele provoca.
— Hora de aproveitar a festa — Gael a puxa pela cintura, salvando-a da discussão.
A música orquestrada dá um tom elegante. Palmas os acompanham no salão.
— Se ninguém nos conhece, por que batem palmas? — Gael faz graça.
— Você é bom nisso, senhor Montenegro.
— Ainda não viu meus outros talentos, senhora Montenegro.
A mesa principal reúne Teresa, Augusto, Eduardo e os lugares dos noivos. Helena puxa uma cadeira para Mara, que chega radiante.
— Quis te dar espaço — Mara cochicha, abraçando-a.
— Te amo — Helena responde, sentando-se. Gael puxa a cadeira para ela, gesto simples que a desarma um pouco.
A conversa à mesa corta como lâmina lenta: Eduardo celebra, Augusto transborda alívio e fala de negócios. Helena sorve a taça sem provar o gosto.
— Dança comigo? — Gael pergunta, oferecendo a mão.
— Tenho dois pés esquerdos.
— Vai render boas fotos.
— Há imprensa aqui?
— Claro — ele ri, e os olhos dele, quando ri, iluminam as pontas de angústia dela.
Eles vão para o centro.
— Espero que não se importe, escolhi a música quando ainda estava longe — ele diz.
— Quando? Você não saiu do meu lado.
— Antes de voltar. Pedi um favor.
As primeiras notas de A Thousand Years, no violino, cobrem o salão. Ele estende a mão; ela aceita.
— Não me deixe cair.
— Nem pensar.
Mão na cintura, mão no ombro. Ele guia. Ela pisa no pé dele às vezes; ele não reage, cavalheiro. E, dançando, Helena percebe o óbvio que evitou: todo casamento tem primeira dança. Podia ter treinado. E percebe o que não esperava: Gael a surpreende de novo — gentil, paciente, atento. Não é o carrasco do pesadelo.
A música termina. Ele a encara, os olhos descendo até a boca por um segundo que parece mais longo.
— Não foi tão ruim — ele sussurra, suando leve.
— Levarei como elogio.
Palmas. O salão se enche de outros casais. Eles voltam à mesa.
— Para alguém infeliz, você sorri muito — ele alfineta.
— Você também.
— Justo.
Mara, com os olhos marejados, se aproxima.
— Você estava linda dançando — ela comemora.
— Se soubesse quantas vezes pisei nele… — Helena ri.
— Faz parte.
Cortam o bolo. O tempo corre mais rápido. Quando os convidados começam a sair, Helena sente o gelo da próxima fase encostar na nuca. Noite de núpcias.
“Ele não forçaria nada”, repete para acalmar o corpo.
— Filha — Teresa senta ao lado. — Suas coisas estão no carro do Gael.
— Sei.
— Você sabe o que vem… — Teresa tenta contornar.
— Sei o que é sexo, mãe. E sei dizer não — Helena corta. — Casamento imposto é uma coisa; meu corpo tem dono.
— Está certa. Desculpe.
Gael volta.
— Podemos ir agora, ou espera a última mesa sair?
— Vamos.
— Aviso o motorista. Ah, sobre a Mara: vai para casa em alguns dias, depois da nossa viagem.
— Então vamos viajar?
— Se você quiser.
— Eu quero.
Helena combina com Teresa: enquanto estiverem fora, Mara organiza a mudança. Abraça a mãe, recebe um abraço protocolar do pai e um apertado da amiga.
— Estarei lá quando você voltar — Mara garante.
Eduardo surge, polido.
— Foi uma decisão sábia, minha jovem.
— Boa noite — Helena encerra, seca.
Lá fora, Gael a espera, encostado no carro. Ela respira, conta até três, desce os degraus devagar, aceita a mão dele e entra. Olha pela janela: mãe, pai, amiga. As figuras encolhem até virarem manchas. Uma lágrima escapa; ela a caça com o dorso da mão.
Gael a observa, em silêncio respeitoso. Ela encara a estrada adiante e pensa, sem resposta: e agora?
Capítulo 10
Noite de núpcias? Sem chance!
A chuva persiste, e o carro avança devagar até que os portões se abrem para uma propriedade cercada de verde. A fachada em pedra rústica lembra um pequeno castelo moderno, e a ideia de “chegada” pesa nos ombros de Helena. O arrepio que sobe não é de frio; é do momento que, supostamente, costuma vir depois do “sim”.
Um rapaz com guarda-chuva abre a porta, gentil, elegante, uns vinte e poucos anos.
— Bem-vinda, senhora Montenegro — ele exagera na reverência, divertido.
— Obrigada — Helena aceita a mão e desce sob o abrigo.
Gael dá a volta correndo na chuva e os alcança, camisa molhada colando no corpo.
— Preston, obrigado por segurar as pontas — ele comenta, cúmplice.
— Achei que precisaria de apoio com as malas dela, senhor — o rapaz responde.
O motorista deposita as bagagens e dois funcionários as levam porta adentro. Quando as malas cruzam o umbral, a realidade afunda: aquela casa agora é o endereço dela.
— Entra, está gelado — Gael toca de leve o braço de Helena.
O hall é amplo: escadaria de mármore, painéis em madeira, quadros por toda parte. Na parede frontal, um retrato de Gael torso nu, realista a ponto de os pelos do peito serem quase tocáveis. O olhar do retrato a segue. Quase sorri, desconcertada.
— Enquanto sobem suas coisas, te mostro a casa — Gael diz.
No corredor leste, pinturas — algumas famosas, outras desconhecidas, todas com presença.
— São lindas — Helena para diante de uma tela de uma mulher de costas, frente ao campo.
— São minhas — Gael confessa, corando leve.
— Não imaginava que o senhor CEO tivesse tempo para isso.
— Na tela achei paz quando minha mãe morreu.
— Sinto muito.
— Faz tempo — ele devolve, simples, sem melodrama.
Ele abre outra porta. Biblioteca. Prateleiras até o teto, títulos por ordem alfabética.
— É um bom refúgio. Seu pai comentou o quanto gosta de ler — Gael explica.
— Então preparou tudo depressa — ela brinca.
— Eu também vivo aqui quando não estou em reunião. Quis te mostrar um canto familiar para começar.
Seguem por escritório, cozinha, sala, um pequeno cinema. No andar de cima, um corredor de portas.
— Queria te dar uma escolha — Gael para.
— Que escolha?
— Dormir comigo. Ou no seu próprio quarto.
A tensão no peito dela cede um pouco.
— Pensei que você fosse exigir a… tradição.
— Seria mentira dizer que não quero. Mas sei que você não quer hoje. Amanhã viajamos ao anoitecer.
— Para onde?
— Surpresa.
“Quarto separado”, decide a mente antes do coração.
— Prefiro sozinha, por enquanto.
— Claro — ele indica o fim do corredor.
A suíte é simples, cheirando a limpeza recente. Cama de casal, cômoda, um espelho.
— Suas coisas estão no closet — ele aponta uma porta. — Mandei trazer direto para cá.
— Obrigada.
— Boa noite, Helena.
Ele entra na porta ao lado. Sozinha, Helena cai na cama. O choro vem como maré. Por que Eduardo quis esse casamento? Que jogo está em curso? Pensa no retrato de Gael e no beijo na igreja. Adormece abraçada ao travesseiro com a dúvida e o gosto de morango.
Gael
Sangue, suor e acerto de contas. Foi o que guiou cada passo. Quando meu pai anunciou o plano — casar com a filha do homem que arruinou a nossa família — o roteiro parecia simples. Investiguei Helena Azevedo: livros, lealdades, coragem. Uma mulher que aceita um casamento de fachada para salvar os pais não é rasa.
Minha mãe foi assassinada. O nome na ponta da faca do passado é Augusto Azevedo. O jogo do meu pai: tratar Helena como rainha e, quando o castelo estiver erguido, puxar uma pedra da base. O inimigo cai quando o coração dele cai.
Mas ela entrou na igreja e alguma coisa… tremeu. Vale destruir quem não apertou gatilho? Vale ferir para redimir o passado?
“Ninguém recua, Gael.” A voz do meu pai vive no osso. Bebo uísque no meu quarto, o gelo derrete devagar. Penso nela no quarto ao lado. Não toco em quem não diz sim. Esse é o único código que não rompo.
Abro a porta dela em silêncio. Está dormindo de lado, ainda de vestido. A paz no rosto me invade e me derruba. Bato na madeira sem querer. Ela salta, assustada.
— Desculpa. Queria saber se está bem.
— Estou — ela mira minha cueca e desvia, corada.
Vou sair. Mas peço.
— Posso te beijar?
Ela hesita um segundo. Depois, assentimento pequeno. O beijo acende, sem esforço. A mão dela desliza inquisitiva até a barra da cueca, para ali. Minha ereção reage, imparável, e toca sua pele. Ela estremece. O corte é lento quando me afasto.
— Você beija muito bem — digo.
— Você também.
— Pena ter recusado a noite de núpcias. Eu teria te mostrado o que minha boca faz além de falar — sussurro no ouvido. Ela cora. Saio com o gosto dela na língua. A sensação é clara e perigosa: prender essa mulher será fácil. Soltar, talvez não.
Capítulo 11
A viagem
Helena acorda tocando os lábios. Vem a lembrança do beijo e, com ela, um pensamento culpado: não odeia como imaginou. No banheiro, encontra uma escova nova e seus itens no lugar. Veste jeans, tênis e blusa de manga — zero rituais de esposa perfeita.
Uma batida.
— Bom dia, senhora Montenegro. Estamos combinando até na roupa — Gael aparece, sorriso de canto.
— Bom dia.
— Café?
No corredor, ele a puxa de volta com um toque no pulso.
— Não vai me dar um bom dia de verdade?
— E o que seria “de verdade”?
— Melhor não dizer. Um beijo serve.
Ela inclina para um selinho; ele aprofunda, rouba-lhe o ar. Quando ela o empurra, os dentes dele prendem o lábio dela sem querer. Arde.
— Ai.
— Deixa ver — ele segura o queixo dela, analisa o corte. — Nada sério.
Ele encosta a boca devagar e suga o sangue, como quem tira uma farpa. Estranho. Íntimo. Incômodo e… quente.
— Café — ela encerra.
Mesa posta, ovos, pães, frutas. Ele come, ela observa, depois se serve.
— Pensando em decolar cedo. Suas malas já estão prontas.
— Para onde?
— Surpresa. Como está a boca?
— Ardendo um pouco. Nada demais.
Ele muda o tom, mais frio:
— Se não quiser me beijar, diga. Mas somos casados. E fizemos isso por você e pelos seus pais. Sem esse acordo, estaria tudo em ruína.
Dói porque a verdade às vezes soa como crueldade.
— É muito novo.
— Para mim também. Você quer anular e assistir à queda?
— Não. Só te peço paciência.
— Não existe “nós”, Helena. Existe contrato.
Ela sente o golpe. Levanta-se.
— Quando for a hora, me chama.
Ele a segura pelo punho.
— Desculpe. Não lido bem com rejeição.
— Não te rejeitei. Só parei o beijo antes que me devorasse — ela sussurra.
— E eu quero te devorar. Você é tentação — ele confessa, a voz rouca. — Te encontro em minutos.
No quarto, ela arruma a mala e envia uma mensagem para Mara. A amiga responde que humores feridos fazem homens agirem como meninos. “Se ele já ficou assim por causa de um beijo, imagina se eu disser ‘não’ na cama?”, pensa Helena, apertando o celular.
Outra batida.
— Pronta?
— Pronta.
No carro, ela mesma abre a porta. Ele contorna, entra, pede que o motorista reduza quando ela reclama da velocidade.
— Como é estar longe dos seus pais pela primeira vez? — ele pergunta, genuíno.
— Estranho. Principalmente por estar com um estranho.
— Aos poucos, deixo de ser.
— Você quer me conhecer?
— Vai facilitar. Estamos indo para uma ilha. Só nós dois.
A palavra “ilha” pesa. No hangar, o jato os espera. Ele afivela o cinto dela, toca onde a fita arranha a pele.
— Assim está melhor — a voz macia se mistura com outra, mandona, quando ele manda servir champanhe.
— Não quero.
— Aceita. Um brinde.
Ela cede, ergue a taça.
— Ao quê?
— Ao que eu quero fazer com você — ele responde, sem disfarçar.
O avião sobe. Helena encara as nuvens. “Casar foi o menor dos problemas”, pensa. “O maior está começando.”
Capítulo 12
Viagem de barco
Seis horas depois, o pouso num aeroporto mínimo. A brisa salgada bate no rosto.
— Barco até a ilha — Gael avisa.
— A ilha é sua?
— É.
Ele acerta logística com um homem baixo e careca. Volta sorrindo.
— Vão levar as malas. Quer ver algo por aqui?
— Melhor. Preciso arejar a cabeça.
Ele a leva a uma boutique. As vitrines brilham.
— Leva esse — aponta um colar de diamantes.
— É exagero.
— Não pra mim. E quero ver em você.
Ele a ajuda a fechar o fecho. O diamante brilha no pescoço; os olhos dele, também.
— Ficou mais bonito em você do que na vitrine.
— Obrigada.
Dois seguranças discretos os acompanham até o píer.
— Necessário?
— Com joias, sim. Com meu sobrenome, sempre.
O barco é grande, madeira carvalho por dentro, piscina no deque, cabine de comando à vista.
— Já andou de barco?
— Não.
— Vai gostar.
— Senhora Montenegro, que bom revê-la — Preston reaparece.
— Vai com a gente?
— Só até a partida. Depois voltamos.
Ele a guia pelo barco. Mostra a saleta, o quarto com as malas já arrumadas, o banheiro. Gael desce.
— Partimos agora.
— Ansiosa? — ele pergunta.
— Curiosa.
— Dorme um pouco — ele sugere, erguendo o queixo dela com o polegar. — Ainda leva horas.
— É longe, então.
— Longe o suficiente para ninguém bater à porta.
Ela tenta deitar, não pega no sono. O mar desenha passos sob o casco. O pensamento martela: “Quem é Gael, afinal? Onde termina o cavalheiro e começa a sombra?” Sem sinal no celular, sobe para o convés. O céu se abre em laranja e azul. Na proa, senta no chão, observa a linha em que mar e céu parecem se tocar — e não se tocam.
Gael se aproxima, mãos nos bolsos.
— Te vi daqui. Tudo bem?
— Só… pensando.
Senta ao lado.
— Quer algo? Água, comida?
— Não.
O silêncio é um tipo de conversa.
— É bonito, esse truque do horizonte — ele diz. — Parece perto. É longe.
Helena concorda. É um retrato deles: lado a lado, ainda distantes. Um passo de cada vez — se houver passo. Ela não sabe se quer. Ele não sabe se pode. O mar segue, teimoso, como se soubesse o destino antes dos dois.
Capítulo 13
Jantar
Duas horas depois, a ilha surge como miragem no horizonte. O barco ancora, Gael oferece a mão, e Helena pisa na areia fina, tirando os sapatos para sentir a maciez. Coqueiros vergam ao vento, o mar lambe a margem com preguiça, e a luz derrama um brilho de filme antigo. Os homens descarregam malas e caixas, seguindo por uma trilha que desemboca numa casa de vidro, piscina ao lado, área gourmet com churrasqueira e um deck de espreguiçadeiras. O sorriso de Helena se instala sem pedir permissão.
— Vem — Gael a puxa pela mão. — Vou te mostrar.
A sala integrada respira mármore claro, linhas limpas e uma sobriedade que não pesa. A cozinha ao lado exibe aço e ordem, eletros novos, prateleiras enxutas. No corredor, um lavabo e duas portas gêmeas — dois quartos idênticos.
— Eu fico em um, você no outro. Até se sentir confortável para dividir cama.
— Isso não te incomoda?
— Nem um pouco. Sou bicho da noite: uísque, charuto e passos pelo piso quando o resto do mundo dorme.
— Terapia?
— Algo assim.
Preston comanda o reabastecimento: armários cheios, geladeira estufada, caixa de primeiros socorros no lugar. Ao terminar, faz uma mesura.
— Sem sinal de telefone ou internet. Voltaremos na data combinada.
— Perfeito. Obrigado, Preston — diz Gael, firme e cordial.
O barco afasta com a equipe, deixando um silêncio bom.
— Quanto tempo ficamos? Temos tudo? — Helena mira o leste.
— O bastante. Comida, água, higiene, remédios. Os vidros são blindados e as travas, discretas. Aqui, a única fera é a imaginação.
— Preferia avisar minha mãe que chegamos.
— Pedi para reportarem aos seus. Melhor ficarmos fora do radar. A mídia ainda está se alimentando da cerimônia.
Na sala, Helena se joga no sofá. Gael retorna da cozinha com suco para ela e uísque para si. Observam-se um instante, bebem outro.
— Está bom?
— Está — ela responde, recostando.
Ela pede licença, pega o roupão e vai ao banho. A água quente derrama cansaço e peso pelo ralo. Lava o cabelo, ensaboa o corpo, encontra paz no vapor. Ao abrir a porta, esbarra em Gael; ele a segura pelo cotovelo.
— Tudo certo?
— Eu e minha habilidade com portas — ela ri, corada pelo roupão, pelo susto, por ele.
— Vou tomar meu banho e, depois, cozinho.
— Combinado.
No corredor, a porta do quarto dele fica entreaberta. Helena chama. Sem resposta. Avança um passo e o flagra nu, de costas, secando-se. A mão cobre a boca sozinha. Ele se vira, ambos se assustam.
— Desculpa! — ela vira o rosto.
— Já pus a toalha — ele provoca. O peito definido à mostra, a toalha justa na cintura.
— Eu… chamei e…
— Veio checar se um macaco me atacou? — Gael ri.
— Essas paredes me deixam vulnerável.
— Tudo inteiro, como você mesma conferiu. Quer verificar a frente?
— Por enquanto, passo — ela dispara, saindo antes que ele vença a cena.
Na cozinha, ele surge de boxer e torso nu. O rubor dela faz curva no rosto.
— O que você come?
— De tudo.
— Comeria o que eu quero agora? — ele mira, malicioso.
— Depende do cardápio.
— Acho que você negaria.
— Então é melhor escolher outra coisa.
— E se eu disser que quero agora?
— Eu nego. Não estou pronta.
Ele abre a geladeira, tira batatas, pousa no balcão.
— Por que negaria purê? — ri. — Pensou que eu falava de outra coisa?
— Não sei.
— Descascaria? Faço bife com purê.
Ela encara, sem saber se ri ou foge.
— Gosto. Mas ainda estou curiosa. O que você queria comer?
Ele sustenta o olhar.
— Você sabe.
— Diz.
— Sua boca. Aqui no balcão. E, depois, te levar além — ele crava, sem pudor.
O sangue dela sobe, quente. Ele não sabe que é a primeira vez dela.
Ela ataca as batatas, sem resposta. Ele tempera a carne, põe no fogo uma trilha de música clássica de CD. O purê ganha brilho de manteiga; o bife, pontos de tostado. Na mesa pequena, pratos, talheres, taças. Um vinho suave.
— Um brinde ao nosso primeiro jantar sem incendiar a cozinha — ele ergue a taça.
— Ao jantar — ela sorri, mais solta.
O purê é cremoso, a carne no ponto. Ele observa enquanto come, e isso a deixa consciente dos gestos. Ao final, ela recolhe pratos e ataca a pia. Ele limpa o fogão com a mão enfaixada.
Na sala, com o vinho, Gael pede história.
— Tudo. Infância, escola, o que te irrita e o que te cura.
— Minha infância foi calma e solitária. Para ver meu pai, eu ia ao escritório. Minha mãe, presente, mas com metas: chá de sociedade, postura, sorrisos certos — ela ri. — Às vezes, parecia século XVIII.
— Então minha esposa coleciona chás.
— Detesto.
— E seu pai sempre no trabalho — ele repete, pensativo.
— Sempre. Estranho um homem que viveu para os negócios precisar casar a filha para salvar os negócios.
— Nem todo mundo nasceu para isso. Meu pai é… eficiente. E generoso quando quer.
Ela conta do dia em que derrubou uísque nos documentos do pai e foi banida do escritório até crescer. Ele fala de aulas de luta impostas, da morte da mãe, do primeiro cargo na empresa.
— Sinto por ela — Helena diz.
— Eu também. E sinto por quem fez — a mandíbula dele endurece. — Um dia, paga.
— Tenho a mesma esperança — ela responde.
Ele se ergue.
— Vou deitar. Toma a casa.
— Até amanhã, marido.
— Boa noite, esposa.
No quarto, o sono vem rápido. A ilha silencia. O mar respira.
Capítulo 14
Confusa
A noite de Helena é um cinema estranho. Um quarto opaco, Gael de costas, o corpo quente sob a mão dela. Ele vira o rosto — lábio cortado, olho inchado — e tapa os ouvidos como se a voz dela doesse. A boca dele se mexe; nenhum som. Corte. Altar. O noivo é Gael e não é: olhos de breu, sorriso de aço, uma faca na mão. A boca dele se mexe — nenhum som — antes da lâmina subir.
Ela desperta ofegante. O sol risca as cortinas, oscilando. Dois sonhos, o mesmo homem: um ferido e mudo, outro cruel e mudo. O que significam? O que ela já percebeu sem querer perceber?
Gael
O plano foi meu até não ser. A ilha era ideia do meu pai: isolar, cortar sinal, substituir conforto por controle. O roteiro dele para ela aqui incluía dureza: pão e água, portas fechadas, medo sem rosto. Eu não quis. Não consigo. A vingança segue acesa, mas a chama dela me queima de outro jeito.
Jantar foi fácil demais. Rir com ela foi perigoso demais. A estratégia agora é outra: conquistar a confiança, aquecer, deixar que venha. Quando o amor pedir abrigo, eu tiro. É mais cruel assim. E mais eficiente.
A mão lateja. O soco na parede foi para calar a voz na cabeça: “Recua, volta ao plano”. Fico no corredor, respiro.
— Seja firme, Gael — digo ao espelho.
— Porra! — a dor sobe quando a pele cede.
A porta dela abre. Vem em roupão e cabelos presos.
— Está bem?
— Machuquei a mão.
Ela busca a caixa. O inventário é frio: curativos, ataduras, um analgésico perdido. Minha mão em suas mãos é fagulha. Ela enfaixa, concentra, manda eu sentar.
— Quer me contar por que socou a parede?
— Pesadelo.
— Eu também tive. Não saí socando nada — ela sorri, leve. — Sonhei com você. Vulnerável. Minha voz te machucava. Depois, no altar, você estava… diferente. Sombra, faca, a boca se mexendo sem som.
Frio nas costas. Como se ela tivesse ouvido uma parte do que não falei.
— Ainda bem que acordou — é só o que digo.
— E o seu sonho?
— Não sou bom de sonhos em voz alta.
Ela entende o recado e troca de assunto: café. Eu aceito e recuo.
Helena
Troco o roupão por um vestido leve, prendo o cabelo, passo um traço de cor nos lábios. Na cozinha, ele está absorto no nada, a mão enfaixada pousada no balcão.
— Ovos e torradas servem?
— Servem.
Ela move-se com precisão de quem aprendeu o básico por amor-próprio, não por obrigação social. Manteiga na frigideira, ovos quebrados, pães dourando, o cheiro de café fresco subindo. Ele a observa com interesse manso, sem dar ordens, sem interferir.
Comem em silêncio bom, até ele se lambuzar de gema e os dois rirem. Quando ela vai à pia, ele tenta lavar com a mão ruim; ela toma a frente. Ele se encaixa por trás para ceder lugar — respiração na nuca, calor de pélvis por um segundo, depois um passo atrás.
— Desculpa — a voz dele baixa.
— Tudo bem — ela tenta, mesmo sentindo que não foi tão “sem querer” assim.
Ele se despede. Ela o segue pelo corredor, segura a mão livre dele por impulso.
— Espera.
Os olhos se encontram e acendem. Helena solta primeiro.
— Desculpa.
— Ok — ele diz, neutro, e some porta adentro.
Ela apoia a testa na parede fria. O corpo fala outra língua. A cabeça traduz pelo dicionário da prudência. E os dois idiomas não estão combinando.
Capítulo 15
Tarde tórrida
O resto da manhã se dilui entre quatro paredes e pensamentos em zigue-zague. As brincadeiras de Gael soam como piada e verdade ao mesmo tempo — é ele testando o terreno ou dizendo o que realmente quer? Quando a fome vence o torpor, Helena vai à cozinha. Liga uma faixa de música clássica, mexe o arroz, doura peixe, mexe o caldo devagar. O canto baixo vira dança discreta. Quando coloca o risoto nos pratos, vira e dá de cara com Gael no batente, sorriso de canto.
— Me assustou.
— Ouvi música. Vim ver o espetáculo.
— E pegou a parte em que eu dançava ridiculamente.
— Não foi ridículo. Era… bonito. Primeiro sorriso inteiro desde que nos conhecemos — ele se aproxima, a voz mais baixa.
— Música me aquieta — ela responde, fugindo para a comida.
— Triste não ser eu o motivo — ele roça os dedos no rosto dela, leve.
— Senta. Está pronto.
Ele prova. Fecha os olhos por um segundo.
— Muito bom.
Depois, no sofá.
— Me conta de você. Tudo.
— Tudo o quê?
— Primeiro beijo. Primeira vez. Como foi.
Ela sente o rosto queimar. A palavra emperra.
— Sou virgem — sai num sopro.
Gael sustenta o olhar, incrédulo por um instante.
— Não precisa brincar comigo. Casamento moderno, ninguém espera…
— Não estou brincando. Estudei, li, vivi pouco. E agora, aqui, sou casada com um estranho numa ilha e… e ainda sou virgem.
Ele muda de posição, senta ao lado.
— Sinto que não tenha provado algumas coisas antes. Talvez nunca prove com alguém que goste.
— E você, já amou alguém com quem foi para a cama?
— Nunca amei.
Ela guarda o julgamento. Nem todos nascem com o mesmo mapa.
— E o que pensa do fato de eu ser virgem?
— Penso que o mundo tem prazeres. E que é uma pena quando alguém é empurrada para um contrato antes de escolher.
— Meu primeiro beijo de verdade foi na escola. O seu… — ela aponta para os lábios — morde mais do que beija.
— Posso provar que não mordo. Ou que só mordo se pedirem.
A pele dela arrepia.
— Você iria para a cama comigo? — ele pergunta, sem rodeio.
— Iria, mas não forçada. Deixando acontecer.
— Posso te beijar?
Ela assente. O beijo vem lento, denso, molhado. Um gemido escapa sem permissão. Ele afasta só o suficiente para olhar.
— Sem pressa. Só sentir.
Ele encosta o joelho entre as coxas dela e a mão boa sobe do pescoço à clavícula. Os dedos passam por cima do tecido, roçando seios, descendo pela barriga, parando na pele nua da coxa. O olhar dele prende o dela.
— Posso?
— Pode.
O vestido sobe, a calcinha desce pela perna com um cuidado que a faz corar.
— É linda — ele diz, cru, sem pudor.
O indicador encontra o clitóris. O toque leve primeiro, depois a cadência curta de dois dedos. A respiração dela falha, o corpo aprende uma língua nova.
— Você já se tocou? — ele pergunta.
— Não.
— O que sente?
— É… bom — a voz mistura gemido e surpresa.
— Quer mais? Vai me deixar fazer tudo que eu quero hoje?
— Sim — ela sussurra, envergonhada com a própria fome.
Ele se ajoelha. Um segundo de tortura com a língua nos lábios. Depois, calor direto, língua na carne, o círculo firme, a mordida precisa no ponto certo.
— Gosta?
Ela só consegue responder com um som alto.
— Então faz comigo — ele propõe. — Enquanto eu chupo, você fricciona o clitóris.
Ela obedece, hesitante no início, depois mais certa, mais rápida. O arrepio vem como onda e estoura. Um grito solto, o corpo dela se curva, os dedos param. Ele se erguendo, boca brilhante, respiração pesada. Na calça dele, o volume óbvio, a mancha escura.
— Por hoje, basta — ele diz, enxugando a boca e se afastando.
Ela fica, coração desgovernado, pernas bambas. Um líquido quente escorre. A mão encontra a viscosidade. O cheiro metálico-doce a confunde. Corre para o quarto, limpa as coxas, cai na cama. A lembrança do prazer se mistura à sensação ruim do abandono. A lágrima desce sozinha. “Fui usada?”, pensa, sem saber onde termina a fantasia e começa o medo.
Gael
A mente é um inimigo paciente. Provoquei e provei. Ela cuidou da minha mão, fez almoço, riu. Eu avancei, e quando o sangue subiu, recuei. Medo do quê? De fazer o que vim fazer. De cruzar uma linha que meu pai desenhou. De me perder na boca de alguém que não sei se quero salvar ou ferir.
Acendo um charuto, o uísque arde. “Você precisa se afastar”, digo ao reflexo. “Lembre o plano.” A palavra “plano” pesa menos do que deveria. Penso no que meu pai espera que eu faça e no que eu consigo fazer. Por enquanto, resta a frieza como escudo. Se for para alguém sair em pedaços, que seja Augusto. Não ela. Não hoje.
Capítulo 16
Estranho
Helena acorda cedo, veste um biquíni vermelho, o roupão leve por cima, brilha os lábios e vai à cozinha. Gael está na sala com um livro — Shakespeare — e o olhar cravado nas páginas.
— Bom dia.
— Dia — ele responde, curto.
Ela monta a mesa com frutas, pães, café. Ele vem sem puxar a cadeira, sem tirar os olhos do texto.
— Gosto desse — ela tenta.
— Você vai gostar mais se não falar.
O rubor queima. O apetite some.
— Desculpa.
— Só toma o café. Em silêncio.
Ela levanta.
— Perdi a fome.
Ele segura o pulso.
— Onde vai?
— Para o quarto. Ou para qualquer lugar que não incomode — ela se solta e segue para a porta.
Ele a intercepta no umbral.
— Não permiti que saísse.
— E eu não pedi permissão. Conveniência não é coleira.
Ela segue pelo jardim, e ele — por orgulho ou hábito — atrás. Na areia, descalça sem perceber, ela solta:
— Se a donzela é você, sim, acordou azeda.
— Você poderia ser menos engraçadinha.
— E você, menos insuportável.
— Você nem sabe o que está acontecendo aqui — ele solta, como quem tenta e não consegue dizer.
— E você sabe?
Ele balança os ombros.
— Faz o que quiser.
— Covarde — ela murmura, sem que ele volte.
A praia é um divã silencioso. O mar lambe a ponta dos pés, o horizonte vira uma linha reta onde a cidade é só borrão. Helena ri amargo ao lembrar da língua dele na pele. “Pelo menos ele chupa bem”, diz só para o vento. A vontade de ligar para Mara morde, mas o sinal morto morde mais.
Horas depois, o sol cai, a sede pesa, a fraqueza alerta. Ela volta, bebe água na pia, morde uma fruta, entra no quarto. Gael está deitado na cama dela.
— Pensei que ia montar barraca na areia — ele diz.
— Não achei graça.
— Fui um idiota — ele se ergue, a mão ainda enfaixada, a expressão sem armadura.
— E achar que pedir desculpas me obriga a aceitar é outro erro.
— Não sou fácil. Muito menos hoje. Me desculpa, de verdade.
Ela avalia a mudança súbita. Beijos ontem. Frio hoje. Desculpa agora.
— Seu humor dá medo. Te desculpo. Mas aprende a não ferrar com o dia dos outros quando acordar torto.
— Jantar? Vai tomar banho. Eu cuido.
Ela tranca o banheiro. Deixa a água levar a areia e uma parte da raiva. “Vai ser longo”, pensa.
Gael
A massa pede foco. Amassar, descansar, abrir. Picar alho, puxar no azeite, tomate que explode doce, manjericão no fim. Música baixa, a mão dói menos. Meu pai odiaria me ver assim: calmo, cozinhando para a mulher que ele mandou eu transformar em arma. Penso no que desejei no balcão. Penso que ela é virgem. Penso que minha cabeça nunca foi tão barulhenta.
Helena aparece de blusinha branca e short curto.
— Cheiro bom.
— Vinho?
— Vinho esquenta. Para esfriar a cabeça, champanhe.
— Se fosse champanhe, faria de você taça — ele solta.
— O quê?
— Esquece. É melhor vinho.
— Agora eu quero saber.
— Tem coisa que assusta e dá prazer ao mesmo tempo.
— Então é sobre prazer?
— Mais do que imagina.
— Melhor você ir para as panelas — ela se refugia no prático. — Estou com fome.
O prato vai à mesa com queijo ralado na hora e manjericão. Taças cheias.
— É delicioso — ela diz, honesta.
— Faz tempo que não cozinho para alguém.
Ele não conta que, em outra vida, teria sido cozinheiro. Ela não pergunta. Comem em silêncio que não pesa. Uma trégua feita de massa fresca, molho simples e olhos que, quando se cruzam, dizem mais do que deveriam.
Capítulo 17
Conversa
O celular vibra assim que o avião desacopla da pista. A voz de Mara enche o ouvido com o mesmo entusiasmo de sempre.
— Como você está? Tô morrendo de saudade!
— Acredita que… bem? — Helena solta o ar. — Você já chegou na casa nova?
— Como combinamos — ela ri. — Tudo pronto pra receber vocês.
— Ótimo. Acabamos de pousar. E meus pais?
— Quase não os vi. Parecem aflitos. Quase sem notícias.
— Gael quis privacidade. Se algo vaza, os abutres pousam — Helena comenta.
— Deve ser isso — Mara diz, meio distraída.
— Não vejo a hora de te abraçar. A gente tem muita coisa pra conversar.
— Quero saber de tudo.
Helena encerra a ligação no exato momento em que Gael aparece, sorriso discreto.
— Nosso carro chegou. Pronta pra voltar?
Ela assente, já imaginando contar a Mara cada detalhe que coube no coração e no corpo nessa viagem.
A alegria explode quando o carro entra no jardim e Helena vê Mara do lado de fora, saia azul-marinho, blazer combinando, cabelo preso, sorriso aberto. Helena salta antes do carro parar, corre, abraça a amiga. As duas riem alto como quem se salva ao se reconhecer. Gael observa, sem interromper.
— Que saudade!
— Também. Depois me conta tudo — Mara pisca.
Gael se aproxima e Mara muda o tom.
— Seja bem-vindo, senhor Montenegro.
— Obrigado, Mara. Sem cerimônia. Se é amiga da minha esposa, é minha amiga também.
As malas entram. Helena e Mara entram de braços dados.
— Seu sogro está aqui — Mara sussurra.
O sorriso de Helena apaga um pouco.
— Veio checar o “casamento”. Claro.
Eduardo está na sala, uísque na mão, sorriso medido. Ao ver as duas, o sorriso se desmancha.
— Filho.
— Pai — Gael inclina a cabeça.
— Vejo… mudanças. Mal chegaram e já está tudo… diferente — o olhar dele pesa sobre os braços entrelaçados das duas.
— O que quer dizer? — Gael endireita o corpo.
— Empregados misturados à gente de “classe”. Mas não me surpreende. Você a fez madrinha, afinal — o nariz torce.
— Como foi que o senhor disse? — Helena dá um passo à frente.
Gael a contém com a mão, sutil.
— Nada pessoal, moça — Eduardo olha para Mara. — Só não estou acostumado com… essa laia.
— Pai, chega — Gael fala, seco.
— O senhor vai falar direito com a minha amiga — Helena rebate.
Eduardo balança a cabeça, decepcionado com a ousadia.
— Estarei no seu escritório — encerra, deixando a sala.
Mara soluça. Helena a envolve num abraço.
— Me desculpem por ele — Gael diz, sincero.
— Vai conversar com seu pai. Tira esse homem da nossa casa — Helena não suaviza. — Sou sua esposa. Não vou ser decorativa.
— Helena… — Mara chama, tentando acalmar.
— Vem, a gente sobe — Helena decide, atravessando o hall com a amiga e sem olhar pra trás.
Capítulo 18
No momento certo
Gael
A porta do escritório se fecha e o cheiro do charuto do meu pai toma o ar. Ele está sentado na minha mesa, copo de uísque meio vazio, olhar tenso.
— Sua esposa parece ótima. Até engordou um pouco — ele alfineta. — A viagem fez bem… a vocês dois.
— O que quer?
— Lealdade. A quem ela pertence?
— Ao senhor.
— Então por que ela parece tão… bem? Não combinamos como tratar os Vargas?
— Combinamos. Mas repensei…
O soco vem sem aviso. O cuspe vem logo depois. A dor sobe pelo rosto; o gosto, pelo orgulho. Eu me levanto devagar.
— Repensou — ele cospe as sílabas. — Você não manda nesse plano.
— Se me deixar terminar…
— Vai dizer o quê? Que não quer mais vingança? Que a morte da sua mãe acabou?
— Eu quero vingança! — o grito me surpreende. — E por que não acabou com Augusto anos atrás?
— Cuidado com o tom — ele ordena, andando. — A ideia era simples: fome, desgaste, colapso. Você fraquejou.
— Não consigo. Não assim. A gente atinge Augusto. Não a filha.
— Você fala como quem sente algo por ela.
— Não sente. Mas não é justo punir quem nem era nascida.
Ele me chama de covarde. Não respondo. Sei a que ponto aceitei chegar. E sei até onde consigo.
— Não sou covarde. Vou destruir Augusto. Direto.
— E com esse casamento?
— Fico casado. Aproximo, arranco o que preciso, pego a verdade dele. E, aí, acabou.
Ele me dá um voto curto, amargo. Sai. Fico com o rosto ardendo e a cabeça em guerra.
Helena
Levo Mara pro quarto, entrego lenços, faço carinho no cabelo dela.
— Me desculpa. Nunca imaginei que ele seria tão baixo.
— Não se culpa. Eu… eu sou empregada, Helena.
— Nunca mais repete isso. Você é minha melhor amiga. Dinheiro não é caráter. Olha pro Eduardo.
— Obrigada — ela sorri entre lágrimas.
— Dorme aqui comigo hoje.
— E seu marido?
— Que é que tem?
— Pensei que vocês…
— Não. Nunca dormimos juntos. Nem acho que vai acontecer tão cedo.
— E na viagem?
— Beijos. E… — o rubor entrega.
— E…?
— Ele me chupou. E me guiou…
— Se tocou?
— Acho que sim.
— E gozou?
— Eu não sei! Foi… estranho e bom e novo.
Ela gargalha e me abraça.
— Amiga, o “líquido viscoso” é gozo. Dá pra gozar virgem, claro. Orgasmo não depende de penetração.
— Minha mãe nunca falou comigo sobre nada disso.
— Século passado. E agora? Vai rolar?
— Não sei. Mas… quero descobrir.
Mara dorme. Eu não. Levanto, atravesso o corredor e bato na porta de Gael. Ele abre rápido, só de moletom, peito nu, a sombra de um hematoma no rosto.
— Tudo bem?
— Vim te ver.
— Me ver?
— Posso entrar?
O quarto é simples, arrumado.
— Fala. Amanhã volto pra empresa.
— Achei que… ficasse uns dias. Casamos há pouco.
— Ficaria se fosse lua de mel de verdade. E se fôssemos um casal de verdade.
Os olhos descem sozinhos pro volume sob o moletom. Voltam.
— Desculpa. É melhor eu ir.
Eu me movo; ele bloqueia a porta com o corpo. A pele dele queima no meu ombro.
— Se veio, é porque é importante.
— Queria saber… como ficou com seu pai.
— Está resolvido.
A mancha no rosto dele me puxa.
— O que aconteceu aqui?
— Nada demais.
— Sou sua esposa.
— Agora é? — a ironia. — Até hoje o que menos foi, foi esposa.
— O que quer dizer?
— Que esse casamento é um contrato. Não me venha com “me importo”.
— Eu me importo. Ridículo ou não.
Ele suspira, olha pro teto, volta pra mim.
— Ele me deu um soco.
— Por quê?
— Não posso dizer. Falou com seus pais?
— Está mudando de assunto.
— Falou?
— Não. Amanhã eu vou até eles.
— O motorista te leva.
— Então… é isso. Eu vou…
— Não disse por que veio.
— Já disse. Seu pai…
— E acha que eu engulo isso?
Silêncio. Então, mais baixo:
— Precisei te ver. Não queria dormir sem…
— Sem?
— Sem te beijar.
Ele pousa o copo, sorri de lado.
— Quer um beijo do seu marido?
— Sou sua esposa, não sou?
— Desde o “sim”, você quase não me deu nada — ele provoca.
— Se for pra provocar, eu…
Ele me puxa. A mão nas minhas costas para antes da bunda.
— Já te disseram que você é convencido?
— Disseram. E ela terminou na minha cama.
Eu enlaço o pescoço dele.
— Deve estar sendo difícil não conseguir o mesmo comigo.
— Mais do que imagina. Mas eu sei esperar o momento certo.
Ele morde, depois suga meu lábio. O beijo desce quente, o álcool chega na língua, o corpo responde inteiro. Ele guia minha mão até o meio das pernas dele.
— Pega.
Toco por cima. Está duro, grosso. Desço a calça, depois a boxer, a mão encontra a pele quente. Ele geme baixo e abre meu robe, encontra a renda, os seios.
— Melhor parar antes de eu te querer na cama.
— Você gosta disso?
— Muito. Droga… você vai me fazer gozar.
— Posso…
— Não hoje.
— O quê?
— Não quero que faça nada por impulso.
— Estou com tesão.
— E amanhã vai chorar arrependida? Somos casados. Vai ser quando tiver que ser. Sem pressa.
— Sou virgem. Quero perder.
— Assim? Por tesão?
— Sim.
Ele ri nervoso.
— Você me fode desse jeito.
— Eu quero que você me foda.
— Veio buscar isso?
— Não. Quer dizer… não só. Nem sei por que vim.
Ele ajeita a calça, respira fundo.
— Vai pro seu quarto. Eu tô a um triz. Não quero te usar desse jeito. Quando você estiver pronta de verdade, eu vou estar aqui. Não é rejeição. É respeito.
Ele beija a minha testa. Eu saio troncha de sentimentos, entre a vontade e a certeza de que, sim, o momento certo é melhor do que o certo agora.
Capítulo 19
Conversa
De manhã, Helena manda mensagem para Mara avisando que passa nos pais antes do almoço. Mara responde com um coração e um “me conta tudo depois”.
No hall, Gael ajusta o relógio, já de terno.
— O motorista te espera às dez.
— Obrigada.
— Qualquer coisa, liga.
— Sem sinal na ilha, sem drama aqui — ela brinca, tentando aliviar.
Ele sorri de canto. A marca roxa no rosto apaga parte do efeito.
— Sobre ontem… — ela começa.
— Eu lembro. E mantenho. Sem pressa.
— Eu sei. Obrigada.
Ele inclina o rosto, quase um beijo que não acontece.
— A gente se vê à noite.
O carro a leva pela cidade que de repente parece outra: a mesma, porém distante do mar, das paredes de vidro, da areia nos pés. O prédio dos pais é o mesmo. O elevador, também. O abraço da mãe tem cheiro de perfume conhecido.
— Minha filha! — Teresa aperta.
— Está tudo bem.
— E o casamento? — Augusto aparece, tentando neutralidade.
— Vivo. E eu também — Helena responde, meio irônica.
Sentam. Chá na mesa, hábito antigo.
— Soubemos que foram pra longe — Teresa comenta.
— Longe o suficiente pra imprensa não alcançar.
— O Gael… trata você bem? — Augusto pergunta, ajeitando a gravata já perfeita.
— Ele é… complexo. Às vezes doce. Às vezes frio. Não é um monstro. Também não é um santo.
— Você… parece diferente — Teresa observa.
— Tô tentando entender onde piso. E onde quero pisar.
Augusto troca um olhar com Teresa.
— O Eduardo passou aqui — ele avisa.
— Passou por lá também. Deixo um recado: na minha casa, quem humilha amiga minha não fica.
— Helena, tenha cuidado — Teresa segura a mão da filha. — Nem todo mundo nesse jogo tem freio.
— Eu sei. Mas eu tenho limites. E memória.
Conversam mais um pouco, evitando abismos. Helena se despede, promete voltar em dois dias, pede que liguem caso algo mude.
Na saída, o celular vibra. É Mara: “Quer que eu faça lasanha à noite?”. Helena ri. Responde: “Quero. Muito”.
De volta à casa, Mara a espera na porta, avental e sorriso.
— Me conta.
— Depois do jantar. Prometo.
Gael chega tarde. O terno cansado, o rosto menos duro. A casa cheira a manjericão e forno quente. Mara, discreta, se despede cedo.
— Boa noite, senhor e senhora.
Na cozinha, a travessa fumega.
— Lasanha? — ele pergunta, surpreso.
— Da Mara.
— E como foram seus pais?
— Em modo “preocupados”. O normal.
Ele puxa a cadeira pra Helena. Ela senta. Ele serve. A primeira garfada quebra o gelo.
— Sobre o meu pai… — ele diz, finalmente. — Não vai acontecer de novo aqui.
— Eu sei me defender. Mas agradeço.
— Eu não vou permitir.
Ela ergue a taça.
— Às pequenas tréguas.
— Ao momento certo — ele completa, tocando o vidro no dela.
A noite avança com passos mais leves. Entre uma conversa e outra, os dois vão entendendo que, por pior que tenham sido as circunstâncias, escolher quando e como se aproximar ainda é a única liberdade que têm. E, por ora, decidem exercê-la.
Capítulo 20
Sangue, dor e corpos
Acordar leva alguns segundos. O teto novo, o quarto novo e a presença familiar de Mara, de pé, já pronta, com um sorriso de acolhimento.
— Bom dia, dorminhoca.
— Bom dia — Helena responde, ainda sonolenta.
Rotina rápida: banheiro, dentes, rosto, cabelo, uma maquiagem leve. O closet organizado facilita a escolha: calça social, blusa de seda clara, salto.
— Como estou?
— Linda. Como sempre — Mara confirma.
Uma batida. Gael entra já alinhado — terno e gravata —, e o olhar pousa inteiro em Helena.
— Bom dia, esposa. Está linda.
— Bom dia, marido — ela ri. — Obrigada. Você também.
Mara sai discretamente, deixando os dois a sós.
— Café comigo antes de eu ir para a empresa? — ele propõe.
— Claro.
— Como passou a noite? — a pergunta tem subtexto.
— Se estivéssemos juntos, teria sido mais interessante — ela brinca.
— Podemos resolver isso. Somos casados, lembra?
Na sala de jantar, Helena percebe Mara encostada, observando.
— Senta com a gente — Gael chama.
— Acho melhor não.
— Eu insisto. É o mínimo depois de ontem.
Helena reforça com um “por favor” leve. Mara senta, pede café com leite, e Gael faz questão:
— Se é amiga da Helena, é minha amiga também. Classe social não define caráter.
Depois do café, Helena decide:
— Vou à empresa com você de manhã. Mais tarde passo na casa dos meus pais.
— Te aviso quando sair — Mara retribui num sussurro cúmplice.
No carro, Gael avisa:
— Lá, vão te chamar de senhora Montenegro.
— Tudo bem.
— Está começando a se acostumar com meu sobrenome?
Helena apenas sorri — silêncio que consente.
O prédio é alto, vidros espelhados e cumprimentos no caminho. No escritório, a vista toma a cidade toda. Mármore, tons claros, um minibar, uma prateleira generosa de livros.
— Dou uns envios e depois te mostro tudo — Gael diz, já ao computador.
Helena percorre a estante com a ponta dos dedos.
— Você lê de verdade — ela provoca.
— Surpreende?
— Um pouco. Homens no seu lugar raramente têm tempo.
— Ainda tenho muito para te surpreender.
— Como é trabalhar com seu pai?
— Um pé no saco — ele sorri. — Ele não é pacífico como parece.
Helena senta numa poltrona, cruza as pernas, sente o olhar dele entre a tela e ela. O calor sobe. A saia desliza meio centímetro. Gael afrouxa a gravata, tira o paletó, abre dois botões da camisa.
— Está quente — ele comenta, voz mais grave.
A mão dele pousa na coxa dela.
— Quer ajuda para se refrescar?
— E o que sugere? — Helena devolve, maliciosa.
Ele desabotoa a calça dela e a puxa até o joelho. A renda aparece. O risco, a porta, as pessoas do lado de fora — tudo intensifica.
— Se continuar me provocando, não cumpro a promessa de ir com calma — ele avisa.
— Então repete o que fez. Me beija… lá.
Gael a ergue no colo, limpa a mesa com o antebraço e a deita ali.
— Você sabe o que é gozar — ele diz. — Mas sabe o que é gozar de verdade?
— Não… ainda não — ela confessa.
— Então relaxa. É o que eu preciso de você agora.
Ele tira a blusa dela, abre o sutiã; ela toca o peito dele, a mão escorrega para o baixo-ventre dele, de relance. Ele a beija fundo, quente, depois desce pela barriga, a deita, põe o dedo dela na própria boca, o suga. A seguir, a boca dele desce e encontra a pele. A língua, o círculo, a mordida certa. Helena morde os lábios, quase geme alto, segura com a mão e falha. Dois dedos dele brincam no ponto exato.
— Sua boca está pronta para mim — ele sussurra.
— Aqui? Agora? — ele confere, já se posicionando.
— Sim. Não vou me arrepender, Gael.
— Sem preservativo.
— Confio.
Ele a traz para a beirada. O primeiro encaixe é dor com espanto. Ela quer afastar, mas envolve as pernas nele e o puxa de volta. O estalo agudo de rompimento e um alívio morno espalhado.
— Não se cala — ele tira as mãos da boca dela. — Deixa acontecer.
— Você é o chefe, não é? — ela ri, nervosa.
Ele entra com cuidado, metade no início, até o corpo dela receber. O ritmo cresce, o desconforto cede ao calor. A mão dela desce para o próprio clitóris, lembrando a lição no barco.
— Estou quase — ele avisa, o rosto suado. — Não consigo te levar junto assim.
— Não para.
O corpo dela embala a mão, o corpo dele. A onda vem, alta. Ela se curva e o líquido quente escorre. Quando ele sai, a cabeça do pênis vem manchada de vermelho. Ele goza no tampo limpo, respiração entrecortada.
— Você é deliciosa — ele diz, com um sorriso no canto.
— Você também.
No lavabo, ele traz uma toalha, limpa com cuidado entre as pernas dela.
— É normal sangrar. Foi a primeira vez.
Ela assente, corada por não ter aprendido o básico com a mãe. Veste-se devagar, encara a vista pela janela e o peso da constatação: casou, se entregou e… está começando a olhar para ele como quem ama.
— Doeu?
— Um pouco. Mas… eu gostei.
— Sem vergonha. Somos casados. Prazer faz parte.
— Que horas são?
— Perto do almoço. Saímos e comemos algo?
O restaurante japonês é perto. Helena envolve o sushi no shoyu, o gemido nasce involuntário.
— Você é boa em gemer — ele ri. Ela tosse, quase engole errado.
— Gael!
— Todo mundo transa, Helena. Acontece.
A conversa volta leve.
— Você foi ao escritório para me provocar?
— Foi acaso.
Ele não parece convencido, mas deixa passar.
Depois, um abraço rápido na saída — desajeitado porque o corpo pede mais. Mara a busca. No carro, Helena só pensa em contar.
— Aconteceu — ela solta, na primeira cafeteria.
— Meu Deus… — Mara bate palminhas. — Como foi?
— Doeu no começo. Depois… foi ótimo. No escritório.
Elas riem e cochicham detalhes entre goles de espresso.
— Ele me chamou de amor — Helena confessa, quase não acreditando.
— Ou é hábito de cama, ou é sentimento — Mara pensa alto.
— Prefiro não pensar. É contrato.
— Você só controla o que sente. Não o que o outro sente.
Mara se recolhe um segundo, muda o olhar.
— Preciso de ajuda.
— Dinheiro?
— Não. É minha mãe. Descobriram que está ilegal na Alemanha. Tentou fugir. Foi detida no consulado. Podem deportar.
— A gente resolve. Vou falar com Gael.
De volta à casa, Helena manda mensagem. Gael chega rápido.
— Está tudo bem? Sua mensagem…
— Precisamos falar. É sobre a mãe da Mara.
Explicação simples e direta. Mara chora sem conseguir conter.
— Qual o nome dela?
— Odete.
— Como ela foi parar lá?
— Fugiu do meu pai quando estava grávida. Era violento. O senhor Azevedo nos ajudou. Trabalho desde criança para mandar dinheiro.
Gael encara Helena, mede as peças daquela história em silêncio.
— Vocês fizeram certo vindo falar comigo. Eu tenho como ajudar. Vou enviar meu advogado ainda amanhã. Daremos entrada para soltura e retorno dela.
Helena abraça e beija Gael ali mesmo, emocionada. Ele sorri, envergonhado pela plateia.
— Obrigado — Mara repete, entre lágrimas.
— Me chama de Gael. Se é amiga da Helena, é minha amiga.
Ligação feita, nomes anotados, orientação passada.
— Em dois, três dias no máximo, você vê sua mãe — ele conclui.
— Vamos preparar um quarto pra ela — Helena já organiza.
— No nosso andar — Gael confirma.
— Obrigada — Helena diz, sem voz.
— O que estiver ao meu alcance por você, eu faço — ele responde, simples.
Ela o olha de um jeito novo. Ele lambe os lábios, meio sorriso.
— Você ainda vai se surpreender muito comigo.
Capítulo 21
Pedido de ajuda
A tarde cai com a leveza do “está em curso”. O advogado de Gael confirma o voo de manhã. Documentos, procurações digitais, tudo adiantado. Mara respira, enfim.
— Sabe o que é mais estranho? — Helena comenta com ela na varanda. — A vida dá uma surra e um afago no mesmo dia.
— Hoje teve os dois — Mara ri, cansada. — Seu “sogro” e o Gael.
— Ele tem um humor difícil — Helena concorda. — Mas quando decide, ele resolve.
— Obrigada por pedir por mim — Mara aperta a mão de Helena. — Sem você, eu iria desmoronar.
— Eu ia te segurar de todo jeito.
Gael passa pela sala ao telefone, anota algo rápido e volta.
— O advogado embarca às sete. Assim que tiver protocolo, avisa.
— Obrigada — Helena repete.
Ela avisa os pais que não irá naquela noite. Combina nova visita daqui a dois dias. Toma um banho quente, troca por roupas confortáveis e, pela primeira vez desde a ilha, deita sem o peso que vinha no peito.
Mais tarde, a campainha do quarto de Gael toca baixa. Helena encosta a testa na porta, sorri, desiste. “Momento certo”, lembra. Na cozinha, um chá. Na sala, um livro. O celular vibra: mensagem de Mara com um coração e “Obrigada de novo.”
Helena apaga a luz, pensa no escritório, no sangue, na toalha, no cuidado, na frase “o que estiver ao meu alcance”. Pensa no sogro, no punho marcado de Gael, na raiva de um plano que talvez esteja mudando de forma dentro dele. E, antes que a mente recomece, adormece.
Na manhã seguinte, a mensagem do advogado chega: “Protocolado. Em andamento. Informo assim que houver despacho.” Helena lê em voz alta e abraça Mara, que chora sorrindo.
— Vai dar certo.
— Vai — Mara repete.
No caminho para a empresa, Helena segura a mão de Gael no console por um segundo.
— Obrigada.
— Não precisa — ele responde, sem retirar a mão. — É o que se faz por quem é da casa.
É a primeira vez que “casa” soa como casa. E, embora tudo tenha começado errado, alguma coisa, aos poucos, vai encontrando o jeito de ser.
Capítulo 22
Dúvidas
As palavras dele não saem da cabeça: “Tudo que estiver ao meu alcance por você, eu farei.” A frase reverbera enquanto o quarto parece pequeno demais para tanta inquietação. Andar, parar, inspirar. A coragem, por um instante, vence a hesitação. A porta do quarto dele não responde. As escadas levam à biblioteca, onde o silêncio costuma organizar os pensamentos e hoje apenas os amplifica. É possível se apaixonar tão rápido? Ontem, não havia amor no vocabulário; hoje, o nome dele muda a temperatura do corpo.
— Falando sozinha, senhora Montenegro?
Ele surge de moletom, copo de uísque numa mão, charuto na outra, olhar que lê pensamentos.
— Estava… procurando você.
— Pois encontrou. O que precisa?
“Coragem agora.”
— Podemos conversar?
Ele senta; ela se opõe, encarando-o de frente.
— Como foi para você o nosso… sexo?
— Por que quer saber?
— Porque você me chamou de “amor”.
Ele concorda com um aceno curto.
— Nos casamos tem dias, Helena. Mal nos conhecemos. É novo para os dois.
— Eu sei. Desculpa…
— Mas eu estou começando a gostar de você. Não vou mentir dizendo “amo”. Ainda. Mas estou me apaixonando pela minha esposa desconhecida.
Ela sente vontade de chorar e nem sabe por quê.
— É incrível que eu sinta o mesmo, marido desconhecido. Estou apaixonada por você.
Ele baixa o copo e o charuto, como se fossem pesos antigos, e se aproxima.
— Me perdoa pela sua primeira vez… no escritório. Você merecia algo especial.
— Não foi o cenário dos sonhos, mas foi ótimo — ela ri, leve.
O beijo na testa desce para o pescoço e encontra a orelha. O corpo responde antes do raciocínio. Ele a ergue; as pernas dela se cruzam no quadril dele; a mesa da biblioteca recebe um riso.
— Temos uma queda por mesas — ele brinca.
— Gael… aqui…
— Agora há pouco prometi que seria decente — ele provoca.
— Você é quem me provoca.
Ele ri, a segura de novo e caminha com ela no colo. As paredes testemunham a passagem até o quarto dele.
— Quer isso?
— Quero. Minha “primeira vez” de verdade.
A cama enorme transforma o fôlego dos dois. Ele tira a calça, ela desfaz o nó da camisola. A renda aparece.
— Mulher linda — ele sussurra.
— Também quero te provar, como mais cedo.
— Fica à vontade.
Ele se posiciona entre as pernas dela, os dedos mapeiam a pele com cuidado.
— Feliz… com o casamento?
— Nunca me imaginei casada com um CEO. Achava todos insuportáveis. Você tem… vantagens — ela devolve, irônica. — Estou começando a ficar feliz, sim.
Ele escurece os olhos, como se algo quisesse sair e não pudesse.
— Você é especial. Merece amor de verdade.
— Todos merecemos.
— Se soubesse quem eu sou…
— Quero saber. Aos poucos. Mas não interrompe isso que a gente tem.
O beijo volta, a calcinha sai, um toque, um suspiro. Diferente do escritório, o ritmo é manso e inteiro. A alça do sutiã desce; a boca dele encontra o mamilo; ela arranha as costas dele. O encaixe vem sem a dor de antes, e o prazer sobe limpo. A mão dele acha o clitóris; os olhos não se soltam. O corpo dela responde com um tremor reconhecível; ele suspira e se afasta, sem pressa, a deitando no peito.
— Dorme comigo?
— Durmo.
Ela adormece imaginando um futuro possível, mesmo sabendo o quão improvável ele ainda parece para os dois.
Gael
O chuveiro tenta lavar um dilema que não descola. Dormimos juntos. Fiz amor com ela — sim, foi isso — e disse que estava me apaixonando. Ela disse o mesmo. “E agora?”, pergunta uma parte que meu pai treinou para vingar, esmagar, concluir. Estou apaixonado pela filha do inimigo que jurei derrubar. O que vence hoje: o morto do passado ou o vivo do presente? Visto o terno, saio sem acordá-la. O carro todo é silêncio e culpa.
Helena
O dia passa rápido demais. Ele não me acordou, não deixou bilhete, não ligou. A euforia de ontem briga com a ansiedade de hoje. Talvez eu esteja sensível demais. Talvez ele só tenha ido trabalhar. Talvez eu precise confiar no que sinto, não no medo.
— O jantar está quase saindo — Mara anuncia.
— Obrigada. Você está impecável, governanta — Helena provoca.
— Essas roupas não são minha cara.
— Não mesmo — as duas riem.
Helena prende o cabelo num coque frouxo, um toque de maquiagem, e desce. Um piano soa no fim do corredor. Ela segue a melodia e encontra Gael tocando com um descanso nos ombros que raramente mostra.
— Você toca.
— E você?
— Tive aulas aos seis. Lembro pouco.
— Escolhe algo.
— Beethoven, Nona?
Ele começa, ela acompanha. O tema enche a sala como se alguém tivesse aberto as janelas dentro deles.
— Você toca muito bem — ele comenta ao fim.
— Eu sei — ela pisca. — Você também.
— Não quis te acordar hoje cedo. Parecia um anjo.
— Chegou faz pouco?
— Sim. Por quê?
— Nada.
— E a Mara?
— Melhor. Obrigada por ajudar. Significa muito.
— Eu sei o que é não ter mãe por perto — ele diz baixo. — Se posso ajudar, ajudo.
— Você é um cavalheiro. A Mara não vê a mãe há anos.
— Foi bom seu pai ter trazido a Mara pra perto de vocês, né?
— Foi. A gente se deu bem desde sempre.
— Sua mãe aceitou?
— Com o tempo.
— Quando o seu pai levou a Mara para casa?
— Eu tinha seis; ela, dez.
— Então ela tem vinte e quatro.
— Sim. Por que…?
— Nada.
Ele se levanta, beija o rosto de Helena e se despede. Ela fica com a pergunta: por que ele contou os anos? Por que ficou estranho de repente?
O jantar, então, é conversa com a própria cabeça. No corredor, a voz dele ao telefone:
— Descubra tudo o mais rápido possível.
A batida na porta do quarto dele recebe um olhar aflito.
— Podemos dormir juntos de novo?
— Eu adoraria. Hoje, não. Não estou bem. Amanhã?
Ele segura o braço dela antes que ela saia.
— Não é você. Só… não hoje.
— Deixa eu ficar com você.
— É melhor não. Amanhã.
Ela volta pro quarto com aquela inquietação que nada consola: o que está acontecendo?
De manhã, café e perguntas.
— Qual o sobrenome da Mara mesmo?
— Connor. Alguma notícia da mãe dela?
— Meu advogado já está lá. Vamos fazer tudo.
Helena respira aliviada, então decide:
— Uma pergunta. Promete não ficar chateado?
— Não prometo. Mas pergunta.
— Tem algum interesse na Mara, além de ajudar por minha causa?
Ele sorri com canto de provocação.
— Ciúme?
— Não. Eu te perguntei outra coisa.
— Fiz porque você pediu. É só isso.
— Você ficou estranho ontem quando falamos dela… e do tempo que está conosco.
— Não leva pro pessoal. Fiquei pensando.
— Pensando…?
— Faz vinte e quatro anos que minha mãe morreu. Eu tinha dez. Seu pai levou a Mara quando ela tinha dez.
— Onde quer chegar?
— Em lugar nenhum por enquanto. Vou trabalhar. Te aviso sobre a mãe dela.
O beijo rápido no alto da cabeça parece um pedido pra adiar uma conversa que ele mesmo acendeu.
Gael
Vinte e quatro anos é muito tempo. Às vezes, suficiente para esconder mais de um segredo. Por que Jorge levou Mara aos dez? Por que mantê-la? Por que a mãe dela foi embora ilegal? Por que mandou a filha com ele? O que liga as datas? Por que isso me interessa tanto agora?
— Vamos beber; a conversa é longa — ofereço ao meu pai.
— Diga.
— Preciso cruzar coisas do Jorge com a Mara Connor.
Ele diz uma piada suja sobre Jorge e uma empregada. Não é isso. Explico sobre a mãe detida, o advogado, as idades.
— O corpo da mamãe foi “identificado” pelas joias. Sem corpo íntegro. Só destroços.
— Joias caríssimas.
— Você acha possível que…
— Que o quê? Que ela esteja viva? Ou que outra pessoa esteja no lugar dela? Eu já te disse: sua mãe e Jorge tiveram um caso.
— Talvez eu esteja ficando paranoico — eu recuo.
— Antes que se apaixone pela vagabundinha — ele explode —, destrua. É pra isso que casou.
Ele me bate. Eu minto que não estou apaixonado. Ele chama minha mãe de fraca; me chama do mesmo. “Destrua sua esposa ou vai ser meu inimigo.”
— Você tem acesso às transações do pai da Helena?
— Sim. O controle é meu.
— Quero ver tudo.
Sozinho, peço relatórios sem alarde. As cifras contam histórias que a boca dele não contaria: prostituição, drogas, casas, carros, bebida — e depósitos mensais, altos, para Odete Connor. A mãe da Mara.
— Filho da puta… — o soco na mesa confirma o que o estômago já sabe. Se Jorge manda dinheiro para Odete, por quê? Por que ela não voltou? Por que a filha ficou? O que os liga?
O uísque não responde. Só queima. O telefone vibra: “Protocolado. Em andamento.” A mãe da Mara deve voltar em poucos dias. E talvez ela traga respostas que nenhum extrato bancário mostra. Porque, para derrubar Jorge, às vezes é preciso puxar o fio que ele pensou que tinha escondido para sempre. E esse fio, agora, tem nome e sobrenome: Odete Connor.
Capítulo 23
Um encontro inusitado
Gael não aparece no café da manhã. O quarto dele está vazio, cama feita, nenhum rastro da noite. Ligações sem resposta. Os cenários disparam: acidente, sequestro, outra mulher. O coração escolhe o mais improvável e o mais dolorido, depois suspira de volta ao chão.
No quarto, Mara está sentada com um silêncio ansioso.
— Amanhã, se tudo der certo, eu vejo minha mãe… Nem lembro do rosto dela.
— Vai ver. E não vai esquecer — Helena segura a mão da amiga. — Já pensou no quão estranho é meu pai ter trazido você pra casa?
— Já. Mas se não fosse isso… eu podia nem estar aqui.
— E está. E, agora, ela também vai estar.
A porta se abre. Gael surge com a mesma roupa de ontem, gravata torta, cabelo em guerra, cheiro de álcool.
— Se arrumem. Voo para a Alemanha em uma hora.
— É sério? — Mara quase grita.
— Roupas quentes. Está frio.
Helena alcança Gael no corredor.
— Onde você estava?
— Outra hora. Minha cabeça está doendo.
— Agora.
Ele suspira, entra no banheiro, água aberta.
— Eu devia ter ligado. Não estou acostumado a… isso.
— A quê?
— Ser casado. Dar satisfação.
— Então aprende.
— Se me perdesse, ficaria mal? — ele provoca.
— Não brinca.
— Desculpa. Passei a noite no escritório. Bebi demais. Só isso.
— Promete que não repete?
— Prometo.
Ele tira a cueca como quem zomba da tensão.
— Está tudo bem entre nós, Lau. Não é por dormir fora que muda.
— Vou te deixar sóbrio. Depois, conversamos.
— Quer me dar banho? Vai dizer que é castigo, mas quer mesmo é pegar em mim — ele ri.
— Castigo é você ficar sem — ela encerra, deixando-o sob a água.
Roupas de frio, botas, casacos. Mara veste emprestado o que coube.
— Linda. Ela vai amar ver você — Helena diz, e as duas se abraçam.
Gael surge mais alinhado, a culpa ainda no rosto.
— Vocês estão lindas — ele se aproxima de Helena, baixo: — Desculpa.
— Vou pensar se aceito — ela responde, seco-doce.
No carro, silêncio. No hangar, embarque rápido. No avião, Mara torce as mãos; Helena aperta as dela.
— Vai dar certo.
— Eu amo você — Mara solta.
— Eu também.
— Algo para beber? — a aeromoça pergunta.
— Água — as duas respondem.
— Uísque — Gael pede.
— Assim perde o fígado — Helena provoca.
— Traz outra água — ele reconsidera, rindo.
— É fácil te dobrar — ela morde o lábio.
— Eu deixo você achar que consegue — ele devolve.
Gael
Mara vai rever a mãe. Uma inveja antiga lateja. Dar tudo por uma chance de ouvir “filho” outra vez, de sentir o cheiro de chocolate quente na cama, do piano à noite. E, agora, amar a filha do inimigo num enredo que rasga cada costura do plano.
— Deita um pouco comigo? — pergunto.
Helena olha para Mara e volta-se a mim.
— Só deita.
No quarto do jato, Helena apoia a testa na minha.
— Não me faz esperar notícia sua de novo — ela pede.
— Não vai acontecer.
Dormimos um pedaço de viagem. Jantamos. Fico passando os dedos no cabelo dela, nomeando cada mecha em silêncio como se isso salvasse alguma coisa dentro de mim.
— Você não usou as joias ainda.
— Nem você me fez ser sua “taça” — ela cora.
— Você era virgem. Agora…
— Talvez algum dia. Ainda estou chateada.
— Então deixa eu melhorar isso.
Cócegas. Gargalhadas. Mãos que desenham corpo e leveza num avião a dez mil metros de altura.
— Rendeu?
— Rendeu — ela admite, rindo, as lágrimas secando no canto do olho.
Pouso. O estômago torce num pressentimento estranho. O hangar não é meu, mas o sócio e amigo, Pietro, emprestou o teto. Helena pergunta sobre ele; eu provoco ciúme. Ela me mostra a língua. E, então, a voz de Mara, baixa, canta uma canção que atravessa anos.
— Canta de novo — peço.
— É a canção que minha mãe cantava.
Ela canta. E o ar some. É a nossa canção. Minha e da minha mãe.
— Quem é sua mãe? — minha voz encontra um caminho.
— Mamãe! — Mara aponta, chorando.
Eu me viro. Ela está ali. O tempo só encostou a mão no rosto dela.
— Mãe… — sai como se fosse a primeira palavra.
Mara abraça a mulher primeiro. Depois, ela vem até mim.
— Oi, Gael.
Helena
O mundo desaba e se recompõe num quadro impossível: Odete — a “mãe da Mara” — é Malorie, a “mãe do Gael”. As peças querem não se tocar, mas se reconhecem.
— Você não está morta — Gael sussurra.
— Não. E vamos precisar de tempo para conversar — ela responde, ainda com Mara no braço.
— Como a senhora conhece o senhor Brown? — Mara busca sentido.
— Ela é minha mãe — Gael diz, como quem testa a frase no ar. — Você a conhece como Odete. Eu, como Malorie.
Mara ri nervosa.
— Isso é uma brincadeira?
— Não é — a mulher confirma.
— Você não parecia ser deportada — Gael observa. — Nem parece ter morrido há vinte e quatro anos.
— Vi nos jornais o casamento. Jorge me contou coisas. Eu inventei a história da deportação porque sabia que Mara pediria ajuda à Helena. E, então, a você. Seu advogado ajudou. Pedi segredo.
— Então foi um plano — Gael conclui. — E Jorge?
— O dinheiro que ele enviou… — ela respira — tudo vai ser explicado na hora certa.
— O que meu pai tem a ver com isso? — Helena pergunta.
— Isso, ele precisa te contar.
Gael anda, contido num corpo pequeno demais para uma raiva tão grande.
— Quem você é, agora?
— Para alguns, Odete Connor. Para outros, Malorie Brown. Mara é minha filha. Sua irmã.
Mara dá dois passos para trás.
— A senhora mentiu pra mim?
— Para te proteger. Para nos proteger.
— De quê? De quem?
— Eduardo Brown. Seu pai.
Gael fecha os olhos como quem toma um soco. A mulher estende os braços.
— Posso te abraçar?
Ele hesita por um segundo. E desaba. O abraço devolve o garoto de dez anos por um instante. Ele gira a mãe pelo ar.
— Está aqui mesmo?
— Estou, meu filho.
Ele a apresenta a Helena. “Me chame de Malorie. Ou Odete.” Depois, puxa Mara para ele.
— Sempre quis uma irmã — Gael diz, e os três se fecham num abraço que parece, finalmente, o oposto do plano de vingança.
— Temos muito pra falar. Vamos pra casa — Gael decide.
O retorno no avião tem menos fala e mais toque. Mãos dadas, olhares que procuram pista sólida. Malorie responde o mínimo: que o dinheiro de Mara está guardado em poupança desde cedo; que a verdade virá no momento certo; que Eduardo não deve saber ainda. Gael concorda, confuso por obedecer.
— Vocês se casaram sem opção, não foi? — Malorie pergunta.
— Como sabe? — Helena rebate.
— Seu pai me disse.
A aeromoça serve champanhe. Gael ri sozinho, lembrando da conversa sobre “taça”. Helena sugere uma ideia simples:
— Quando chegarmos, você cozinha pra gente.
— Boa ideia, esposa — ele sorri.
Capítulo 24
Momento divertido
Helena
“Odete ou Malorie?” A mente avalia, mede. O que meu pai escondeu? Por que ela disse que ele precisa me contar? Ao lado, Mara segura a mão de Helena com força.
— Agora, somos cunhadas — Helena tenta brincar.
— Que mundo pequeno. Mas eu tenho você. E isso basta por enquanto — Mara diz, ainda ferida.
O carro para diante da casa. Malorie olha para a fachada.
— Eu tenho tantas memórias daqui.
— Ele quis vender. Pedi que não — Gael responde. — Está do jeito que você deixou.
— Bem-vinda de volta, senhora Brown — Helena diz, e a mulher a abraça.
— Um banho cai bem — Helena sugere.
— Preparamos um quarto pra você, mamãe — Mara sorri.
Malorie sobe com a filha. Gael e Helena ficam sozinhos no hall.
— Como você está?
— Feliz. Confuso. Tudo ao mesmo tempo.
Ele a beija, longo, como quem respira.
— Tem algo que eu preciso te contar.
— Quando for a hora — ela responde.
— No momento certo — ele concorda, e o peso volta ao lugar.
— Toma banho comigo?
— Sim.
No corredor, ele a pega no colo, e a risada dela espanta o teto.
— Você está feliz.
— Minha mãe está viva. Eu tenho uma irmã. E eu… — ele para — eu me apaixonei pela mulher com quem jurei não me apaixonar.
— Jurou?
— Jurei. Como você.
O quarto os recebe com calor. Roupas no chão. A banheira se enche. Perfume de jasmim. O corpo dele encaixa atrás do dela e o mundo encolhe ao tamanho de dois.
— Gosta?
— É o meu preferido.
Ele lava o cabelo dela com cuidado de quem quer aprender cada fio. O sabonete desenha caminhos nas costas. Ela o vira, o ensaboa, a mão mergulha e encontra o pulso quente que responde.
— O que é isso? — ela se faz de boba.
— O jeito que você me deixa.
— E por que não me devora?
— Aqui? Agora?
— Por que não?
Saem da banheira. Ele a puxa e o beijo desmonta o tempo, a urgência entra pelos dedos no pescoço. A parede do banheiro vira cenário.
— Você quer?
— Eu quero.
— Me diz o que você quer que eu faça.
— Me fode. Aqui.
Ele a vira de frente para a pia, abre as pernas dela com as mãos, um tapa ritmado na bunda, e entra com a pressa certa.
— Gosta, safada?
— Gosto.
O ritmo cresce, os sons encontram seu lugar. A mão dela encontra o próprio clitóris, e a memória da “primeira vez” na ilha vira gasolina.
— Vou gozar — ela avisa.
— Goza no meu pau, meu amor — ele solta, sem pensar.
O corpo dela dissolve o resto do dia. O dele, logo depois. A água fria fecha o círculo; o beijo morno o abre de novo.
Depois, no quarto, as vozes da casa voltam. Malorie e Mara, o ruído de água em outro banheiro, passos domesticando o milagre.
— Vou cozinhar para nós quatro — Gael diz, secando o cabelo dela com uma toalha.
— Vai ser a melhor coisa que você fez hoje — Helena brinca.
— Hoje, eu trouxe minha mãe de volta pra casa — ele responde. — E me trouxe, um pouco, de volta também.
Capítulo 25
Almoço em família
Depois do banho com Gael, a roupa leve ajuda a baixar o coração. Na cozinha, ele já está de avental, mexendo panelas com a calma de quem conhece o fogo.
— Cardápio?
— Espaguete à bolonhesa caseiro. Rápido. Tô morrendo de fome.
A lembrança da lua de mel acende um sorriso nela.
— Perfeito.
Malorie observa os dois com atenção.
— É impressão minha ou vocês estão juntos de verdade?
— Estamos — Gael responde sem desviar.
O rosto de Helena cora; Malorie a abraça.
— Obrigada por cuidar do meu filho. E da minha filha.
— Lucy sempre foi minha irmã de coração. E o Gael… tem sido ótimo — Helena admite.
Música baixa, vinho suave, molho no ponto. Antes de servir, Gael puxa Helena pela mão.
— Dança comigo?
— A Thousand Years… — ela percebe, baixinho.
— Mesmo com dois pés esquerdos.
— Não me importo — ele sorri. — Desde que dance comigo.
Eles dançam alheios ao resto. O tempo, por alguns minutos, é só aquela melodia e o peso leve de um encontro improvável que virou caminho.
— No que você está pensando, meu amor?
— No quanto gosto quando você me chama assim.
— Então, meu amor, se acostume.
A mesa posta: Gael na cabeceira, Helena ao lado, Malorie e Lucy ao redor. O cheiro do molho toma o ar, o queijo ralado cai no ponto.
— Está delicioso! — Malorie aprova.
— Está mesmo — Lucy concorda.
— Agora que vocês sabem que são irmãos… o que acontece com o trabalho da Lucy? — Helena pergunta.
— Ela não trabalha mais. Tem direito a tudo. Isso também é dela — Gael afirma.
— Não quero incomodar — Lucy tenta.
— Não vai — o irmão corta.
— Depois conversamos melhor — Malorie define. — Por ora, quero pedir algo: precisamos pensar em como revelar a verdade.
— Terá de ser dito. Teve… enterro — Gael pondera.
A pergunta não enunciada pesa: quem foi enterrada no lugar dela?
— A hora certa. E eu tenho uma ideia: uma festa. A fantasia.
— Dramático — Helena comenta.
— E memorável — Gael completa.
— Quem convidar? — Lucy pergunta.
— Eduardo Brown. Jorge e Elizabeth Vargas.
— Meus pais?
— Será o momento para as verdades virem à tona — Malorie confirma.
— Inclusive sobre o corpo que papai e eu enterramos? — Gael crava.
— Inclusive isso.
— Então, temos uma festa para organizar — ele conclui. — Para quando?
— Sábado.
— Dois dias — Helena calcula. — Convites por mensagem resolvem.
No dia seguinte, a casa ferve. Gael não vai ao trabalho; passa o dia no escritório com a mãe. Do que escapa, Helena deduz: será grande, barulhento, impossível de ignorar. Lucy senta nos degraus da escada, com o mundo novo na mão.
— Está tudo doido. Até outro dia eu era governanta. Agora sou irmã do chefe.
— Se eu não tivesse me casado, sua mãe talvez não tivesse voltado. E a gente continuaria sem saber — Helena diz.
— Estou feliz por ela. Só não entendo tantas mentiras. A vida toda… Odete. E agora… Malorie.
— E um pai para descobrir.
— Eu pensei nisso a noite toda. E se Eduardo for meu pai?
— Se for, por que esconder? — Helena pergunta.
— Espero que mamãe fale hoje.
— Eu também.
Dois dias passam rápidos: Helena e Gael dormem juntos, a intimidade encontra uma rotina. Ainda há receio — segredos pedem espaço. O pressentimento de que alguém vai sangrar cresce. No relógio do peito, a festa está a minutos.
Capítulo 26
A festa
Gael coordena tudo como um maestro. O salão — um espaço que Helena nem sabia existir — ganha máscaras na parede, luz calculada, um buffet generoso. Trajes escolhidos: ela num vestido de seda cinza de decote fundo e máscara de “Fantasma da Ópera”; ele de “Zorro”; Lucy de Alice.
— Pronta? — Lucy entra no quarto.
— Acho que sim. E você está linda de Alice.
— Estou nervosa. Parece que algo grande vai acontecer.
— Também sinto isso.
— Você acha que Eduardo…? — Lucy hesita.
— Não sei. Perguntou à sua mãe?
— Ela disse: “Hoje.” Só isso.
— Gael e eu mal nos vimos esses dias.
— Então… vocês estão juntos mesmo.
— Parece que sim.
Helena ajusta a máscara; Gael aparece à porta, de preto, capa e chapéu, sorriso de canto.
— Senhora Brown, pronta?
— Sim.
— Ainda tento entender sua “fantasia”.
— Não é fantasia. Só máscara — ela provoca.
— “Fantasma da Ópera.” Está linda.
— Obrigada, senhor Brown.
— Estou louco para tê-la só pra mim de novo.
— Tarado.
— Você me deixa assim. Põe o colar que eu te dei?
— Combina?
— Tudo combina com você. E, a sós… só o colar também combina.
Ela entrega a caixinha; ele fecha o fecho na nuca dela. No espelho, o brilho no colo é promessa.
— Se você se comportar… quem sabe.
— Eu sei que você não resiste.
O salão ferve. Ao ver Helena, a mãe dela a abraça como quem a resgata.
— Por que não atendeu?
— Foi loucura.
— Você e Gael estão se entendendo — não é pergunta.
— Talvez.
— Seu pai está com Eduardo no bar — ela aponta.
Eduardo beija a mão de Helena; ela recua.
— Gostei da festa. Meu filho me surpreendeu. Sem me avisar.
— Surpresas são melhores quando ninguém atrapalha — ela devolve.
— Depois da morte da minha esposa, essa casa ficou pesada. Gael quis ficar. Eu saí.
— Pois é.
— Asqueroso — ela sussurra quando ele se afasta.
— Filha… — a mãe corrige.
— Me poupe, mãe. Vocês detestam o Eduardo e me entregaram num casamento por conveniência. Não finjam.
— Algum problema, esposa? — Gael chega.
— Quero que isso acabe logo.
— Logo acaba. Se quiser, sumimos um pouco…
— Depois. As línguas já têm assunto demais.
Gael
Tudo no lugar. Mamãe circula mascarada sem ser percebida — um palhaço sinistro que causa arrepios e passa batido. Papai fareja, tenta medir. Quer ver Jorge cair no meio da pista. Verá outra coisa.
— Filho — ele aparece, sisudo. — Podemos falar?
— Dois minutos.
Ele olha Helena com fome de controle.
— Sua esposa é… linda.
— Eu sei.
— E sobre o Jorge? Vai expor?
— A noite será memorável.
— Você tem “algo”?
— Mais do que imagina.
— E essa governanta…
— É assunto meu. Minha casa. Quem não gostar, porta.
— Você precisa aprender…
— Aproveite a festa, pai. Beba menos. A surpresa pede sobriedade.
Ele cerra o maxilar, se afasta. Mamãe surge ao meu lado, de máscara, só os olhos dizendo “hora”.
Helena
A hora vem. As luzes baixam; Gael sobe num palco improvisado.
— Boa noite. Obrigado por virem.
Palmas.
— Muitos se perguntam por que tanta pressa para uma festa. Valeu a pena.
Ele pesa as palavras.
— Todos aqui “sabem” que minha mãe morreu há mais de vinte anos, carbonizada num acidente. Ninguém quis investigar.
Eduardo observa com ares de quem já ganhou. Meus pais cochicham. Jorge tenta parecer de pedra.
— Eu cresci com sede de vingança. Aprendi a apontar culpados. E, como a vida gosta de brincar, meus culpados caíram. Ao menos… por ora.
Ele sorri.
— Ao que interessa: uma salva de palmas para Odete Connor, mais conhecida como Malorie Brown.
O salão abre um corredor. Surgem o vestido vinho, o casaco, a máscara assustadora. Flashes estouram. Eduardo não pisca. Elizabeth e Jorge ficam duros. A máscara cai. Malorie sorri.
— É bom estar de volta. Vocês não imaginam a alegria que é estar aqui.
Capítulo 27
Os segredos de Jorge Vargas
Os aplausos demoram a morrer. Quando cessam, Malorie deixa o palco. Gael volta ao microfone.
— As perguntas virão, e vamos respondê-las. Hoje, celebrem esse milagre.
Os cochichos se multiplicam como faíscas. Laureen sente o peso do que ainda falta acontecer.
— Gael Brown.
Eduardo, no centro do salão, rígido, as mãos tremendo.
— Espero você no seu escritório.
Ele some sem esperar resposta. Gael volta, com um meio sorriso.
— Como fui?
— Fantástico. Seu pai… não pareceu feliz.
— Eu resolvo.
Os pais de Laureen se aproximam.
— Precisamos conversar — Jorge diz.
— Filha, você sabia? — Teresa quer entender.
— Sabia. Vamos falar no escritório quando os convidados saírem. Nada de cena.
Mara corre até Laureen.
— Alguns já estão indo. Quem ficou no “enterro” quer saber de corpo.
— Vamos explicar. Com nossos sobrenomes, a conta é sempre maior.
Gael sinaliza que vai encerrar a festa. Em minutos, o salão se esvazia.
— Onde estão?
— No escritório.
Mãos dadas — de Gael, de Laureen, de Mara — o corredor parece mais longo.
— Pronta?
— Nervosa.
— Depois… precisamos falar a sós — ele sussurra. Ela concorda com um aceno curto.
A porta escancara vozes.
— A culpa é sua, seu miserável! — Eduardo late. — Você destruiu tudo!
— O que está acontecendo? — Laureen entra. Malorie, calma e impaciente ao mesmo tempo, fecha a roda.
— Estão brigando por causa da verdade — ela diz.
Eduardo avança e para diante de Malorie.
— Vadia. Como pôde?
— Pai, não — Gael contém, a raiva quase vazando.
Os olhos de Eduardo pousam em Mara.
— O que a empregada faz aqui? Misturando-se com a corja…
— Não fale assim dela — Laureen o atravessa.
— Vai fazer o quê?
— Chega, pai! — Gael explode. — Não fale assim com a minha irmã.
O riso de Eduardo corta o ar.
— Irmã? A empregadinha é sua irmã bastarda?
— Continue, e só se tornará mais ridículo — Malorie diz sem elevar a voz.
Laureen puxa Mara para perto e a envolve.
— Então você teve outra filha — Eduardo cospe.
— Tenho explicações a dar — Malorie mantém —, mas não para você. Para meu filho.
— Nosso filho! Você nos fez acreditar que estava morta. Achamos que Jorge tinha te matado!
O ar some do peito de todos. “Jorge a matou?” A pergunta empurra lembranças em Laureen: a conversa sussurrada dos pais sobre um crime.
— Jorge não me matou. Me ajudou a parecer morta — Malorie devolve.
— Sim — Jorge confirma. — Eu sinto muito. Mas… aconteceu.
— Pai? — Laureen pede da beira do abismo.
— Vou começar do começo — Jorge decide, sentando, antes de encarar um por um.
— Eduardo e eu fomos amigos na faculdade. Sócios depois. Eu fiz um negócio ruim, me afoguei em dívidas. Eduardo me ajudou. Casamos: ele com Malorie, eu com Teresa. Eles tiveram um filho. Teresa e eu decidimos esperar. E, então… eu me apaixonei por Malorie. E ela por mim.
A confissão cai como pedra.
— Eu sempre amei Teresa — ele continua —, e ela me perdoou. Mas Eduardo não é homem que perdoa. Tive medo do que ele faria. Fiz um plano. Contratei uma mulher parecida com Malorie. Dopei. Vesti com as roupas e joias dela. Coloquei uma bomba no carro. Deixei explodir. O corpo virou carvão com restos de tecido e metal. A polícia concluiu: explosivo implantado. Eduardo seria suspeito. Não havia prova. Ele acreditou que eu tinha matado a esposa. Na verdade, matei uma inocente.
Ninguém respira.
— Mandei Malorie fugir. Falsos documentos. Dinheiro. Ela descobriu que estava grávida e embarcou do mesmo jeito. Alemanha. Eu sustentei de longe.
Os anos correm no relato.
— Anos depois, com tudo frio, ela pediu que eu buscasse a menina. Eu cedi. Teresa aceitou. A pequena se deu bem com Laureen. Para despistar, colocamos a menina como empregada quando cresceu. Eduardo nunca parou de vasculhar. Depois, cobrou a dívida antiga. Eu estava falido. Ele propôs o casamento entre nossos filhos, minhas ações em troca. Aceitei. Por Teresa. Por Laureen. Por… Mara.
— Por mim? — Mara pergunta, o choro pronto.
— Por você — Jorge confirma.
— Por quê? — Laureen busca ar.
— Porque Mara é minha filha — Teresa diz, chorando. — Eu perdoei seu pai. Quando a criança chegou, eu não aceitei. Depois… eu a amei. Mantivemos o “emprego” para escondê-la.
— O quê?! — as pernas de Laureen vacilam.
— Você e Mara são irmãs — Jorge encerra.
— Como Mara é irmã do Gael — Malorie completa.
Mara cobre o rosto com as mãos.
— Então, todo esse tempo… você é meu pai?
— Sinto muito — Jorge diz.
— Eu queria ter voltado antes — Malorie suspira —, mas Eduardo achou melhor manter tudo assim. Quando seus filhos se casaram, eu pedi ajuda às avessas, porque sabia que vocês dois, Laureen e Gael, viriam. Mesmo sem saber que eram… irmãos da Mara.
— Tudo foi um plano — Gael fala pela primeira vez. — A minha “vingança” se apoiou numa morte falsa.
— Não foi “só” isso — Eduardo ruge. — Mesmo viva, ela foi roubada de mim. Ele me tirou a mulher. E escondeu a filha.
— Que vingança? — Laureen vira o rosto para o marido.
— Podemos falar depois? — Gael pede, envergonhado.
— “Depois”… — Eduardo ri. — Vocês acham que eu não sei? Esse casamento foi plano meu e do meu filho. Ele casou para vingança. Você foi fantoche. Se ele não tivesse me traído, estaria morta agora.
— Não ouse falar assim da minha filha! — Teresa avança, firme.
— Fantoche — Laureen repete, quebrada. Vira-se para Gael. — Foi tudo mentira?
— Laureen, me perdoa. Eu achava que minha mãe tinha morrido pelas mãos do seu pai. Eu não ia te machucar.
— Não ia mesmo — Eduardo debocha. — O plano da ilha era te deixar com fome, fraca. Ele fez o oposto.
— Você é cruel — Malorie encara Eduardo. — Sua “vingança” não foi por luto. Foi por orgulho ferido.
— Você me usou? — Gael pergunta ao pai, a náusea na garganta.
— Usei — Eduardo admite, seco.
Laureen vê um mosaico desabar: beijos, risos, a palavra “amor” dita duas vezes, as mãos no piano, a água quente na banheira. Tudo sob uma sombra.
— Vocês são doentes — ela diz, enfim, limpando o rosto. — Meu pai por matar uma mulher e esconder minha irmã por 24 anos. Minha mãe por se calar. Você, Eduardo, por usar todos. Você, Malorie, por mentir tanto. E você, Gael…
Ela puxa a aliança, joga no peito dele.
— Anulem isso. Rápido.
— Laureen, por favor…
— Não tem conversa. Você me usou. E conseguiu o que queria: me quebrou.
Mara agarra a mão de Laureen. As duas saem.
— Me perdoa! Eu te amo! — Gael grita.
Ela para por um segundo.
— O pior… é que eu aprendi a amar você também.
E vai.
Capítulo 28
Fim
O quarto recebe as duas como um porto de guerra. Laureen abre malas, atira roupas, tenta caber a raiva entre zíperes.
— LAUREEN, POR FAVOR! ABRE! — Gael, do outro lado. Batidas que ecoam no peito.
— Não o deixa entrar — Laureen pede a Mara, que fica entre a porta e o mundo.
— Se você não abrir, eu arrebento — a voz dele cede. — Se estiver atrás, sai.
Laureen arranca o colar do pescoço e o larga na cômoda.
O estalo é seco. A porta cede. Gael tropeça na madeira partida.
— Eu avisei.
— Não temos nada a dizer — Laureen volta às malas.
— Eu estou implorando. Desculpa.
— Você não deveria ter feito tudo isso, Gael.
— Eu também fui usado! — ele dispara, como quem confessa o óbvio.
— Existe “lado”? Em qual parte foi real?
— Em todas. Eu juro. Me dá uma chance.
— Quando você bate, esquece fácil. Quando apanha, a dor demora. Anula nosso casamento.
— Você acha que eu menti quando disse que te amo, depois de dizer que não nasci para isso?
— Eu não sei mais no que acreditar. Me deixa ir.
Ela fecha um zíper; ele abre e joga roupas no chão. Senta em cima da mala, como se pudesse segurar um destino com o peso do corpo.
— Você não vai sair antes de me ouvir.
— O que mais tem pra dizer?
— Eu cresci ouvindo que o seu pai matou a minha mãe. Ódio alimenta.
— Mesmo que fosse verdade, a vingança era com ele, não comigo! Eu nem era nascida!
— Eu sei, meu amor. E eu também fui manipulado.
— Por que não me contou antes?
— Tentei. Naquela noite… eu travei.
O silêncio reconhece a lembrança.
— Conserta — ela diz, frio.
— Como?
— Começa pelo divórcio. Em dias. E manda minhas coisas em seguida.
Laureen olha para Mara.
— Vem comigo?
— Sou sua irmã. Sim.
As duas atravessam o corredor; Teresa e Jorge esperam, rostos em silêncio. Malorie aparece atrás, hesitante.
— Vamos — Laureen define.
No jardim, o carro as engole. Gael, na calçada, em lágrimas, pede um perdão que não cabe naquela noite.
Gael
Ela foi. E talvez não volte.
Mamãe me segura no hall, a mão no meu cabelo como se eu tivesse dez anos de novo.
Eduardo sai do escritório com o mesmo desprezo de sempre.
— Você escondeu que ela — ele aponta para Malorie — estava aqui.
— Teria feito diferença? Você mentiu por 24 anos. Me usou.
— Se eu soubesse que ela fingiu estar morta, eu mesmo teria terminado o serviço — ele diz, com gosto.
— Não ouse — eu avanço; mamãe me segura.
— Eduardo, você sempre me quis morta — ela atesta.
— Preferiu nos abandonar por um amante e por uma bastarda.
— Jorge foi mais pai para mim do que você marido foi para ela — eu digo. — Alguém sempre sai ferido. Hoje, arrancaram o coração da Laureen. E o meu pai me usou a vida inteira.
— Acabou — eu ergo a cabeça. — Sai da minha casa.
— Agora que essa vadia voltou, você me trata como qualquer um?
— Não é por ela. É por você. Me usou. Me mentiu. Se eu te desprezo, hoje, é por culpa sua.
— Nos vemos na empresa — ele ameaça.
— Não. Não nos veremos. Como CEO, estou te demitindo.
— Você não pode.
— Posso. E faço agora. Se insistir, explico para os sócios que você está no centro de um escândalo.
— Você não teria coragem.
— Aparece lá amanhã e descobre.
Ele espumeja, aponta, grita sobre “minhas empresas”. Eu não me mexo. Ele sai.
— Filho… isso é possível? — mamãe pergunta, ainda surpresa.
— É. E, de todo modo, já há testemunhas demais. A mídia vai mastigar essa história.
— Vai — ela concorda. — E eu estou no olho.
— Amanhã eu seguro o que puder segurar. Hoje, eu só… — o copo de uísque pesa na mão.
A noite que deveria fechar um ciclo abriu todos os abismos. Laureen está indo dormir na casa dos pais que também a traíram. Mara tenta aprender a dizer “pai” para um homem que mentiu para protegê-la e para feri-la. Eduardo perdeu a máscara. Mamãe voltou do túmulo. E eu… eu perdi a mulher que aprendi a amar no exato momento em que precisava dizer a verdade.
Ainda dá tempo de trazê-la de volta? Talvez. Mas não com palavras vazias. Nem com flores, nem com promessas. Só com a verdade inteira e com a coragem que faltou quando mais importava.
Capítulo 29
Documento
“A ganância do ser humano é o que leva ao fundo do poço.” A frase roda na cabeça como um refrão que não deixa dormir. A cama dividida com Lucy consola uma parte e sangra outra. Chorar ajuda a soltar, não a entender. O que Jorge confessou pesa, e o “eu te amo” de Gael dói como se pedisse espaço numa casa pegando fogo. A imagem da porta arrebentada, ele caído entre farpas, e ainda assim pedindo para ser ouvido — tudo isso volta e vai como maré. Se tivesse perdoado? O pensamento pisca e apaga.
Não há perdão imediato para os pais. Ficar aqui foi necessidade, não escolha. Há comida, há teto, há silêncio com Lucy — agora irmã, de sangue e destino —, e uma recusa teimosa de encarar o resto da casa sem atravessar a garganta. O que há de “bom” nisso tudo é descobrir que sempre foram irmãs antes de saber que eram, e que agora o laço tem nome no papel invisível do sangue.
Jorge bateu à porta pela manhã seguinte ao terremoto, pedido de perdão na palma. Laureen devolveu com o que aguentava: quem precisa de perdão é a família da mulher que ele matou. “Tem mais de vinte anos”, ele disse. O tempo não absolve; só muda as perguntas. E elas virão. Haverá um corpo, uma investigação, uma manchete. Agora, porém, a urgência é outra: o contrato, o nome, o fim.
Se Eduardo tomou as ações, a “dívida” se pagou. Se o casamento foi só a alavanca, não há por que manter a farsa. Mesmo que houvesse, como seguir depois do que veio à luz? O “eu te amo” de Gael briga com a cena do escritório e com a voz do pai dele confessando a intenção. Quem ama não quebra de caso pensado.
— Está tudo bem? — Lucy se mexe, os olhos vermelhos, a voz irmã.
— Ainda dói — Laureen admite.
— Em todos nós. É estranho estar aqui e não ser mais “a governanta”… e pensar que foram quatorze anos.
— É muito tempo para uma mentira viver.
— Você não acha que vocês dois deviam, ao menos, conversar?
— Para ele quebrar outra porta? Melhor não.
As malas chegaram. O divórcio, não.
Jorge aparece de novo.
— Podemos falar?
— Tenho escolha?
— É sobre o casamento. Vai te interessar.
Robe por cima do pijama, Lucy junto. Teresa na porta do escritório, um advogado à espera.
— Tão rápido? — Laureen pergunta ao ar.
— Ele é influente. Achei que ficaria feliz — Teresa tenta.
— Oliver — o advogado se apresenta. — Os papéis já estão assinados… por ele.
— Onde eu assino?
Caneta na mão. Assinaturas nos campos indicados. “Laureen Vargas Brown.” Última vez. A pasta volta, e com ela um choque.
— Não é o divórcio — Oliver explica. — É a concordância com a decisão do senhor Brown: ações no valor de dois milhões e a ilha da lua de mel.
— O quê? Eu não quero.
— Já está assinado.
— Você mentiu para mim!
— Foi um pedido dele. Ele paga, eu executo.
— E o divórcio?
— Sugiro que fale com ele. O dinheiro está numa conta no seu nome. Aqui o cartão. A senha é a data do casamento. Além disso, a senhora tem uma cadeira na empresa.
— O quê?
A pasta pesa. Não é um fim; é uma dobra. Ele não quer soltar. Não assim.
— Pois é, irmã, se serve de consolo, você ficou milionária, tem ações, a ilha… — Lucy tenta brincar.
— Não torna nada mais simples. O que ele quer, afinal?
— Você — ela responde, sem maquiagem.
— Mamãe me ligou. Quer que eu vá à empresa. Parece que Gael vai me dar um cargo também. E ele afastou Eduardo.
— Certo ele. O assunto da “morte” da Malorie vai estourar, e com corpo enterrado, a coisa piora.
Silêncio compartilhado.
— O que você vai fazer?
— Devolver. E exigir o divórcio.
— Hoje?
— Hoje.
Jorge pede mais cinco minutos. “É rápido”, ele promete. Uísque no copo, charuto aceso — o velho ritual para a conversa que não é rápida.
— Quero pedir um favor. Eu não devia.
— Pede.
— Não recuse o dinheiro. Nem o cargo. A situação aqui… está ruim.
— E eu que “garanto” o nome da família, certo? — Laureen corta. — Me casou com quem eu não conhecia, por negócios. Agora quer que eu fique com dinheiro que não me pertence?
— Sua mãe está preocupada. A conta zerando…
Ela pensa “estaremos perdidos” e responde “eu me perdi antes”.
— Aceitar seria dizer que somos como eles.
— Eu sou — Jorge sussurra. — Talvez pior.
O carro as leva à empresa. O prédio, um espelho alto, parece maior por dentro. O corpo colabora pouco: mãos suadas, pernas trêmulas.
— No três — Lucy sugere.
— Um.
— Dois.
— Três.
Recepção, olhares, o nome “senhora Brown” que ela corrige por reflexo. Crachás em mãos. Elevador. As portas abrem e um peito conhecido amortece a queda. O perfume faz o resto.
— Você precisa ser menos desastrada, senhora Brown — Gael sorri, contradição em pessoa.
Capítulo 30
Provocações
Ela se recompõe e afasta o toque com a coragem de quem não sabe o que fazer com ele. Gael abraça Lucy — “oi, irmã” soa novo e certo.
— Jantar em casa? — ele propõe.
— Outro dia. Minha irmã precisa de mim — ela devolve, e Laureen sorri de canto.
— Você parece bem — ele mede.
— Você também.
— Veio para a posse?
— Vim falar do divórcio.
— Claro.
Gael chama Guillén, pede que mostre a empresa a Lucy. “Mamãe está aqui”, ele avisa. E então, no corredor rumo ao escritório, o passado entra pela porta antes deles: a mesa, a vista, a lembrança da primeira vez.
— O que a traz, já que não é a sua cadeira? — ele provoca, servindo uísque.
— Devolver seu cartão. Não quero nada que seja seu. E exigir o divórcio. Seu advogado me enganou. Agora estou presa a você.
— Podia ter mandado por alguém — ele observa. — Ou por e-mail. E quando não se lê o que se assina…
— Isso é o que você quer? Se livrar logo?
— Exato.
Ela estende o cartão e o documento.
— O único elo entre nós será a Lucy.
— Se prefere assim… — ele aceita. — Não posso obrigá-la a aceitar o dinheiro. Mas sei quem aceitaria.
— Nem pense em pagar meu pai.
— Eu sei que está com raiva. E tem razão. Mas me ouve.
— O seu lado existe?
— Existe. Eu não fui o homem certo. Mas tive meus motivos.
— “Motivos”. Vingar a “morte” da sua mãe usando a filha do “culpado”. No fim, ela nem estava morta.
— Eu sei. E me arrependo do plano. Se eu tivesse feito metade do que meu pai queria…
— “Atrocidade.” É isso.
— Eu cresci acreditando que ele a matou. Ódio é ácido. Vinte e quatro anos longe achando que ela estava no chão. Eu queria que o culpado pagasse.
— O culpado. Não eu.
— Eu sei. Mas eu te amo — ele fala, e o copo voa, estilhaça no canto.
Ela sente a verdade pesar no ar. E ainda assim, a justiça ferida grita mais alto.
— Eu também te amo. E não sei o que fazer com isso.
— Me deixa tentar — ele pede, encostando o corpo no dela. — Eu não mereço. Mas quero recomeçar. Do zero. Como gente comum.
— Até parece que somos comuns.
— Posso te beijar?
— É melhor não.
— Você quer. Só não admite.
O corpo a trai. O pau dele, duro, denuncia um segundo que dura mais.
— Vamos relembrar aqui? — ele sussurra.
— Você é um canalha. E tem lábia.
A mão dela desce, encontra o volume, aperta.
— Vê o que você me causa? Vamos recomeçar.
— É uma loucura. Voltar é assinar uma sentença.
— Não pensa. Sente.
— Eu que vou te beijar — ela decide, e o devora. Pernas na cintura, vestido subindo, a mesa varrida outra vez. O zíper desce, a boxer preta expõe o que pulsa.
— O que você vai…
— Shh. Quieto.
Ela ajoelha.
— Nunca fiz. Se eu machucar…
— Vai me chupar?
— Você não quer?
— Eu quero.
Ela engole o que dá, lambe o que sabe, aprende o resto no gemido dele. O maxilar dói; a vergonha dissolve. A mão livre desce para a própria boceta; um dedo prova o quanto está molhada. “Sua boca é uma delícia”, ele diz entre dentes.
— Eu vou gozar. Pode tirar.
— Ainda não.
Ela sobe, tira a calcinha, senta com tudo no pau dele. O gemido duplo confirma um encaixe que o corpo não desaprende.
— Quem manda sou eu — ela avisa, cavalgando.
— Sim, meu amor — ele confessa, e o tapa na bunda sela a cena.
— Aproveita. Você foi o único homem que me fodeu.
— E vou ser de novo.
Ele pede para tirar; ela nega e só sai no último segundo, voltando a chupar enquanto ele explode. O gosto pesa; o corpo dela goza junto, sem toque, como da outra vez. Lixeira, água, “cuspir aqui”, e ele a limpa com a boca — uma gentileza derretida em tesão.
— Obrigada — ela sussurra, sem graça.
— Você quis mostrar o que sabe. Eu retribuí.
— Você é um canalha.
— E você, inocente por me provocar assim.
— Para você ver a mulher que perdeu.
Ela caminha para a porta.
— Vai aonde?
— Embora. Vim devolver, recusar e pedir o divórcio.
— E a nossa transa?
— Foi para te provocar.
— Doeu quando o feitiço virou, né?
Ela mostra o dedo do meio.
— Adeus, senhor Brown.
— Eu não vou desistir de você. O tempo que for. Eu vou te reconquistar.
Ela não responde. O corpo dela ainda vibra das escolhas que a cabeça condena. E, no corredor, inspira fundo antes de procurar a irmã — sabendo que, no fundo, Gael não mentiu numa coisa: ele não vai desistir.
Capítulo 31
Escândalo
Os dias passaram como água em pedra: lerdos por fora, devastadores por dentro. Um mês sem falar com Gael, e ainda casada — ele não assinou. O dinheiro que ele jurou não dar acabou nas mãos de Jorge; a falência já andava de braços dados com a casa. Eduardo sumiu do cenário, rosnando de longe, sem aparecer.
Malorie procurou Laureen; o pedido de perdão saiu inteiro. Laureen aceitou, com o peso do que uma mãe já tinha aceitado antes. E então o que era previsível acendeu os holofotes: se Malorie voltou, quem foi enterrada?
— O que faremos? — Teresa caminha no escritório, aflita; Jorge traga silêncio e uísque.
— Vamos dar um jeito — ele diz, enfim. — Se eu for pego, acabou.
A pergunta inevitável cai: vão reabrir a cova? Na época, políticos amigos de Eduardo blindaram, encerraram sem DNA. Agora, para se salvarem, exigirão tudo: corpo, exame, manchete. No fim, aquilo que Jorge teme talvez seja inevitável.
— Se eu tiver de me entregar, eu me entrego — ele decide, cansado.
— E se existir outro caminho? — Laureen pergunta, ainda tateando o tabuleiro.
O “empregado” anuncia “convidados”. Primeiro, Lucy abraça. Depois, Malorie. Por último, Gael — e o ar muda de temperatura, mesmo que ninguém diga o nome do que mudou.
— Gael… — escapa.
— Oi, Laureen.
Jorge pigarreia: a polícia já reabriu. Gael confirma: o pai puxou as cordas. A “verdade” virá — e cada um terá de decidir o que é “verdade”.
— Seu pai e eu decidimos nos entregar — Malorie solta.
— O quê?! — as vozes sobem juntas.
— Não podem! — Lucy reage.
— Deve existir outra via — Laureen anda em círculos. — Crimes pedem prova. Vocês têm?
— Não. Foi limpo — Jorge diz. — Um capanga me ajudou.
— Então, por que a família da mulher não apareceu? — Laureen insiste.
— Era prostituta. Talvez acharam que morreu num beco — ele admite, o gosto do passado na boca.
— E se virássemos o jogo? O marido violento suspeito de matar a própria mulher. Ela fugiu. Ele forjou a morte para sair ileso.
— Congelariam bens, meu nome viraria lama… — Malorie hesita.
— Eu seguro — Gael crava. — Na época, eu era criança. E agora, ele colhe o que plantou.
Teresa levanta uma muralha: não envolvam a filha nisso. Laureen concorda: o corpo erra quando carrega vidas demais. E então a ideia se amarra: uma entrevista. Não um panfleto, mas uma narrativa que preencha o vácuo com rostos, datas, cenas. Teresa tem um “plano melhor”. Malorie topa confiar. Gael levanta a ponte com jornalistas confiáveis. O palco se arma.
Dias depois, a casa de Gael vira estúdio. Fios, microfones, câmera, maquiagem.
— Seus advogados te blindaram? — Laureen pergunta.
— O bastante para o que vem. E o suficiente para o meu pai sentir o que é ficar sozinho — Gael responde.
— Por que fazer isso por mim? — ela arrisca.
— Porque te amo — ele não esconde. — E por nós. Para que exista um “depois”.
Lucy chega: “dez minutos”. O coração bate como relógio sem ponteiros. O ar corta no primeiro “boa tarde”.
“Exclusiva”: Malorie, no sofá, na casa do filho. Ela não foge da flecha: admite o amante, assume Lucy, conta o medo antigo, descreve noites trancada, a recusa ao casamento por conveniência, a escalada de Eduardo, a perseguição, a noite no bar, a troca de roupas. Diz que viu o dopar, que gritou, que fugiu, que foi ameaçada com a vida do filho, que leu no jornal sua própria morte. E aponta, com nome e sobrenome, o homem que fez da morte um álibi: Eduardo.
Capítulo 32
Tempos depois
A entrevista explode. Eduardo vem urrar “mentira”, ameaça, esperneia — tudo vira prova a favor de Malorie, que repete sua história com detalhes, em outros microfones. Delegacia, depoimentos, busca e apreensão. O caso vai a júri: palavra contra palavra, mas, desta vez, com um país inteiro observando.
Malorie ganha — com uma pena pequena por suas próprias frações de culpa. Eduardo é condenado por forjar cenário, obstruir, coagir, e entra no regime fechado sem fiança. O DNA dá nome à indigente; a família nunca a procura. A imprensa cobra, mas ninguém vem. Gael fica limpo; advogados estão onde precisam estar. O sobrenome volta ao lugar que estava antes da mentira.
Gael devolve as ações de Jorge, retira o pai da empresa e se retira também do cargo de CEO. Malorie assume o comando — ironia e justiça andando de mãos dadas. Jorge e Teresa se separam; ela escolhe refazer a vida longe, com herança que lhe cabe e pedido de visitas frequentes. Laureen fica com o pai e entra em Medicina Veterinária — um sonho com cheiro de campo que ela descobre no processo. Lucy assume um cargo grande — de direito e de competência — e doa o dinheiro que guardou para a mãe a quem um dia achou que salvava: uma instituição de caridade recebe o que o passado juntou.
Laureen decide parar de escolher entre versões impossíveis da história: guarda o segredo de Jorge num cofre sem chave — a culpa dele basta como sentença. E, com o tempo, as coisas se ajeitam onde dá: repórteres insistem; não conseguem derrubar. Eduardo não tem rede para aparar o tombo; políticos pálidos demais para sustentá-lo. Malorie conversa “olho no olho” com quem precisa — o método não importa tanto quando a casa para de cair.
Gael e Laureen não voltam. O amor encolhe no armário, mas nunca some. Cada visita dele a Lucy é um terremoto mudo: os olhos se procuram e fazem de conta que não. O corpo lembra; a cabeça manda esquecer. E a cama permanece fiel ao hiato: ninguém mais.
Um ano depois, a data do casamento pisca no calendário como lembrança de um susto. Laureen atravessa o aeroporto, com a chuva amarrando voos e pensamentos. Vai ver a mãe, agora morando em Nova Iorque. Jorge e Malorie estão em lua de mel tardia; Lucy divide casa com o namorado, Marc, e descobre ritmos próprios.
O relógio marca 15h; a mala puxa e puxa; o corpo bate num peito conhecido e a bunda dói ao cair.
— Ai, que droga!
— Laureen?
— Gael?!
O gesto antigo: ele estende a mão, ela pega, o arrepio faz o resto.
— A culpa foi sua.
— Claro. — ele ri. — Um ano e você ainda cai.
— Um ano e você ainda é o culpado.
— Vai ver sua mãe?
— Vou. E você?
— Viajar.
— Você sabe que dia é hoje?
— Um ano do “sim” sem saber. E do “acidente” antes do altar.
— Está estudando? — ele pergunta.
— Vet. E você?
— Não volto para o cargo. Mamãe está bem no comando.
— Seu pai?
— Preso. Por bastante tempo.
“Coincidência” de voos e horários. O destino brinca melhor quando tem plateia.
— Café? — ele arrisca.
— Café.
Entre gole e riso, ciúme flerta com orgulho. “Tem namorada?”— “Não”. “E você?” — “Também não”. Ele fala de mulheres lindas em Nova Iorque; ela de galanteadores. O jogo antigo volta com a mesma naturalidade que sempre teve.
— Senti sua falta, Laureen.
— Eu também senti a sua.
— Você me perdoou?
— Perdoei.
— Ainda me ama?
Ela assente, com os olhos ardendo.
— Eu também te amo. Me dá um recomeço?
“Sim” nasce devagar, mas nasce. Abraço. Beijo. Lágrimas.
— Foi coincidência?
— Digamos que uma certa irmã… maravilhosa… deixou escapar a hora e o lugar.
Lucy. O anjo conveniência travestido de acaso. Laureen ri. Eles combinam não combinar nada além de buscar o final feliz juntos, outra vez, do jeito certo.
Capítulo 33
Até que a morte nos separe
— Vai usar o mesmo vestido? — Teresa franze a sobrancelha.
— Vou. Combina com o que é — Laureen responde, ajustando a tiara da avó.
Lucy e Malorie entram, o coro de elogios deixando leve a sala.
— Da primeira vez foi obrigação. Agora é escolha — Lucy resume.
— E o amor aprendeu a morar onde antes só havia contrato — Malorie completa.
Jorge surge à porta, olhos marejados.
— Pensei que não fosse me escolher para levá-la até ele.
— Hoje, é o senhor — ela sorri.
O carro para diante da casa onde Jorge e Malorie escolheram ficar. O mundo deu voltas suficientes para aceitar o improvável: Malorie, sogra e madrasta; Lucy, irmã e cunhada. O riso ajuda a pontuar o impossível.
O padre espera, poucos convidados compõem a cena: Preston, Guillén, Marc. Mídia, não. O que precisa acontecer, acontece sem plateia. Gael veste o mesmo terno, por teimosia bonita. Laureen ri por dentro. O corredor até ele é breve e infinito.
— Faça minha filha feliz desta vez — Jorge pede, devolvendo a mão de Laureen ao homem de preto.
— Pode deixar — Gael responde sem teatrais.
— Gostei do terno.
— Gostei do seu vestido.
O padre pigarreia e empresta palavras antigas para promessas novas: o amor que é paciente, que não se orgulha, que não guarda rancor. Pergunta se o “sim” ainda é “sim”.
— Prometo — Gael diz, firme.
— Prometo — Laureen confirma, com a voz que treme.
Trocam alianças novas. As antigas carregavam peso demais.
— Posso? — ele pergunta, antes do voto.
— Pode.
— Laureen Vargas Brown, obrigado por me aceitar. Vou te amar nos dias ruins e nos dias piores também. Vou calar quando eu puder atrapalhar e falar quando eu puder somar. Você me tirou do breu. Eu prometo ficar à altura.
Ela responde do jeito que sempre foi dela: diretamente no beijo, sem intervalos para aplauso. E depois, com o que havia guardado:
— Obrigada por provar que dá para aprender a amar. O ódio era alto. O amor fala mais alto.
— Eu te amo — ele sussurra, e ela sabe que, desta vez, nada disso tem gosto de plano.
— Eu também. É só o começo.
— Então vamos — ele estende a mão.
— Vamos — ela pega.
O padre encerra, com aquela alegria simples de quem acredita que algumas histórias merecem ter de novo o direito de começar. Uma música sobe, as palmas vêm de todos, e os dois saem de mãos dadas, prontos para fazer do que era improvável a vida de todos os dias. Porque, afinal, quando alguém escolhe ficar, o “felizes para sempre” não é promessa vazia; é trabalho. E os dois estão, enfim, prontos para trabalhar juntos.
Epílogo
Felizes para sempre
A música corre de leve pela sala enquanto duas taças de vinho preludiam a noite. Gael toca A Thousand Years no nosso piano — a canção que virou promessa e memória.
— Você me fez uma promessa e não cumpriu — provoco, entregando a ele a taça.
— Promessa? Qual?
— Talvez tenha sido eu quem prometeu… — sento ao lado, encaixo os dedos nas teclas, e tocamos juntos.
— Agora fiquei curioso.
— Joias. E… champanhe.
Os olhos dele reconhecem, param a melodia num sorriso de canto.
— Então ainda quer… aquilo?
— Naquela época você falou de confiança. Eu confio em você. Podemos testar coisas novas.
— Ainda te intriga, senhora Brown? — ele lambe os lábios, divertido.
— Desde o primeiro instante. Parece distante.
— Quando a gente ama e é amado, o tempo encolhe — ele diz. — Como se tivesse pressa de compensar o que ficamos longe.
— A gente trabalha junto. Quase não ficamos longe.
— Quase — ele ri.
Desde a renovação dos votos, a vida ganhou rumo próprio. Abrimos nossa empresa — contratando e formando refugiados que precisavam recomeçar — e, ironias de um destino caprichoso, virei a CEO do nosso projeto. Gael escolheu ficar atrás das cortinas do cargo pomposo — “antes eu era o CEO casado, agora sou casado com a CEO”, ele brinca. Concluí Veterinária e montei uma clínica com gente boa no comando.
Mamãe fincou pé em Nova Iorque e virou referência — um perfil no The New York Times a transformou em rosto de etiqueta e chás no século XXI, e um programa de TV a seguiu. Lucy e Marc oficializaram o amor — ela pegou meu buquê e demorou a confessar. Jorge e Malorie tocam a Company Vargas & Brown pelo mundo e, com o tempo, meu pai aprendeu a não flertar com a ruína.
Eduardo perdeu a última apelação e segue cumprindo perpétua. Gael não se inquieta: visitamos uma vez; as palavras que o pai usou para feri-lo doeram menos do que a certeza de que, finalmente, a violência moral encontrou um muro.
A nossa mentira pública teve preço na consciência; por isso, abrimos um instituto para pessoas na mesma rota da mulher assassinada — um jeito imperfeito de reparar o irreparável. Nas empresas, criamos vagas específicas para quem precisou vender o próprio corpo por necessidade, não por escolha. Não é absolvição; é compromisso.
— Em que pensa? — Gael devolve a taça.
— Em tudo que passamos.
— E em como, no nosso “sim” sem amor, nada fazia sentido.
— Faz agora. E, falando em promessas… o senhor não vai atrás de uma certa bebida?
— Vai mesmo me deixar fazer isso?
— Vou.
— Então… vou buscar uma boa safra.
Ele vai até o bar, fareja rótulos, acha a garrafa e ergue no ar.
— Encontrei.
— Perfeito. Me espera no quarto em dez minutos.
No quarto, deixo o vestido cair, nua diante do espelho. As joias — brincos, pulseira, colar — se acendem na pele; prendo o cabelo num coque frouxo, uma trilha baixa preenche o espaço. Deito sobre a cama.
— Pode entrar — chamo, quando ele bate.
Gael surge com a garrafa já aberta. A surpresa dá lugar ao riso baixo.
— Uau.
— Está pronto?
— Para você, sempre.
— Então venha e me dá o melhor orgasmo da minha vida.
Ele deixa a garrafa de lado, dança num ritmo que é só dele e tira a roupa até a boxer preta. Pega de volta a garrafa e sobe na cama.
— O que quer que eu faça, meu amor?
— Me chupa.
Ele entrega a garrafa à minha mão. O beijo no pescoço acende um caminho; a boca nos seios, a descida pela barriga; o corpo se contrai, rendido. A língua encontra meu sexo e rouba um gemido que eu não controlo.
— Não se mexe — ele pede, sorrindo.
— Assim eu gozo “antes da hora”.
— Gozar nunca é “antes da hora”.
Mordida de leve no clitóris, lambidas que evitam pressa. Depois, um silêncio cúmplice: ele estende a mão, puxa meu corpo, os olhos nos olhos. Um beijo, o polegar brincando no bico do seio esquerdo.
— Você está linda com as joias — ele sussurra, mordendo meu lóbulo. — Agora chegou o momento.
A garrafa volta à cena. A boca fria do vidro nos lábios da minha vagina; a introdução lenta, o desconforto breve e o corpo se ajusta.
— Vou virar. Relaxe.
Assinto. O líquido desliza por dentro de mim e um arrepio se espalha pelos braços. É diferente de tudo: um relaxamento que dispara prazer, êxtase e um riso que vira gemido. Ele acompanha o efeito, maravilhado.
Puxa a garrafa, e o jato expulso encontra a boca dele. Ele bebe, lambe, volta a me chupar. O corpo obedece ao pico, sem perguntas.
— Era isso que eu queria te dar, senhora Brown. Gostou?
— S… sim — a voz tropeça no próprio gozo.
— Agora eu vou te comer.
A boxer cai; o pau dele encosta e entra. O beijo tem gosto de champanhe, as mãos seguram as minhas, me esticam os braços; a boca dele volta aos seios; as estocadas se firmam. Cada movimento diz o que a gente aprendeu com o tempo: que confiança dá coragem, e coragem vira prazer.
Eu gemo, desvencilho as mãos, seguro o rosto suado dele.
— Eu te amo, Gael. Sempre vou te amar.
— Eu também, esposa. Sempre.
Ele continua até o fim que pedimos juntos, e a noite abre espaço para mais. Porque, sim, é só o começo do nosso felizes para sempre — trabalho diário, escolha repetida, desejo que não se explica, amor que não pede roteiro. E, desta vez, com champanhe. E joias. E música. E tudo que for nosso.