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Entre Memoria e Destino.762Z

Entre Memória e Destino +18

Danni sempre acreditou que tinha sido abandonada quando criança. Então, o sedutor Sean Ballogh aparece do nada, com uma história surpreendente mudando tudo o que ela pensava que era certo. Ele afirma, que sua família a esteve procurando, desde que desapareceu a vinte anos. E ele veio, para levá-la a sua casa na Irlanda. Agora, Danni deve reescrever a história, para salvar sua família, para lutar contra uma força mais malvada do que imaginou e se encontrará com o homem a quem estava destinada ou se arriscará a viver para sempre no tempo, como nada mais, que uma lembrança etérea, uma trágica e inesquecível beleza.

Capítulo 1
O homem aproximou-se dela um pouco antes do
amanhecer.
Danni acordou sobressaltada, enrolada em sua cama, sem
saber o que tirou seu sono. A negra escuridão que pressionava
contra as janelas, uma entidade escura que queria entrar às
escondidas e assumir o controle. Inquieta, saiu da cama e
arrastando os pés foi até a cozinha para tomar um café.
Foi então que sentiu o ar mudar.
Ele mergulhou em uma força silenciosa e fria que fez com
que suas orelhas assobiassem e que seu estômago se revolvesse.
Como uma lembrança latente, a sensação apareceu de repente;
lá, enchendo sua cabeça, familiar e aterradora, pressão e alívio.
Ela o conhecia; ela o temia. Ela se recordava, apesar de que lhe
escapasse o que era anunciado.
Virou para encontrar o homem parado atrás
dela. Alto, de ombros largos e os músculos de um
guerreiro; estava apoiado no balcão. Como se fosse
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natural para ele estar ali. Como se realmente estivesse na cozinha
dela.
As sobrancelhas escuras e pestanas negras ressaltavam a
incomum cor de seus olhos; não de todo verde, não de todo
cinzas. Olhos como o mar, implacáveis e profundos. Um nariz
reto e contundente dava equilíbrio a seus lábios grossos e a sua
mandíbula quadrada. Havia um ângulo forte e resistente em suas
feições que fazia sua beleza imperfeita e masculina, um pouco
mais convincente que simplesmente estética. Usava uma jaqueta
de couro negro sobre uma engomada camisa branca e jeans que
se ajustavam desde seus quadris magros a suas pernas grossas.
Não só era alto. Não só era largo. Era um homem grande.
Ele a olhou, a avaliando e julgando com a mesma
concentração ponderada que ela lhe dava. Ela se sentia
consciente de si mesma com sua desbotada camiseta do Save the
Children1 e shortinho de cor rosa, o que era ridículo; realmente
ele não estava lá.
Danni sabia disso, mas esse conhecimento não evitava
que seu estômago se tornasse um nó com a incerteza e o medo.
Ela derramou o café pela borda da sua caneca
enquanto a deixava sobre a bancada. E derrubaria
se tivesse a sustentado por mais tempo. O homem
interpretou isso como aquiescência e se moveu. Às
vezes era assim, ela se lembrava dele. Às vezes

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parecia levá-la como guias turísticos em uma viagem
fantasmagórica. Outras vezes, eram completamente conscientes
de que tinham decifrado as linhas da realidade e que obrigavam
Danni a olhar para elas.
Quando menina, as visitas, as visões, foram frequentes e
emocionantes. Os profundos giros do ar a fizeram sentir como se
voasse com ela. Entretanto, as visões pararam fazia tanto tempo
que havia se esquecido de que alguma vez tivessem acontecido.
Não, corrigiu a si mesma. Não havia se esquecido, apagou as
experiências da sua memória com intencionada precisão, porque
só os loucos viam coisas que não eram reais. Mas estava
acontecendo de novo. Por quê? Por que agora depois de todos
estes anos?
O homem deu um passo para trás, fazendo um gesto para
que ela o seguisse, enquanto as familiares paredes da cozinha se
desvaneciam atrás de seus ombros largos e uma pintura se criava
ante seus próprios olhos mostrando uma paisagem austera em
seu lugar. A imagem tinha bordas imprecisas e uma textura
granulada, mas de certa maneira vívida, como o homem.
Parecia tão real. Muito real.
Um mosaico de verdes intensos, marrons
terrosos, e estanho pesado se estendiam para o
infinito. Danni franziu o cenho, tentando pôr um
nome ao lugar. Conhecia-o? Tinha-o visto antes?
O homem cruzou os ladrilhos da cozinha para
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uma grama esponjosa onde devia ter deixado rastros, mas, é
óbvio, não os deixou. Seus passos eram tão irreais como sua
presença. A contragosto, Danni foi com ele.
Pareceu que caminharam durante algum tempo, mas
sabia que nunca tinham saído da sua cozinha. Entretanto, sua
escassa roupa lhe impregnava até os ossos, o frio glacial da terra
contra seus pés, do vento invernal sobre seu rosto e a névoa
úmida aferrando-se ao seu cabelo. As sensações eram nítidas,
viscerais e aterradoras.
Seguiu o homem através de um vale, para um destino que
não podia decifrar. O céu em cima deles se queixou e se encheu
de tons sombrios. Filtrava-se até os exuberantes pastos de cor
esmeralda e saturava o ar gélido.
O vento enérgico levava o sal do mar, enquanto
atormentava seus membros e açoitava o casaco de couro do
estranho de cabelo curto. Podia ouvir as ondas estalarem em
algum lugar próximo.
Para onde está levando-me?
Ele se deteve e a olhou como se ela tivesse
falado em voz alta. Havia algo em seus olhos. Um
desejo. Uma necessidade. Seu coração pulsava
dolorosamente com o eco que era arrastado desde
seu interior. Quem era este homem? Por que
sentia como se o conhecesse?
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Chegaram à beira de um precipício que pendia sobre o
mar agitado. Um atalho marcava um afiado caminho para baixo.
Apesar de rezar para que ele se afastasse de lá, o homem
começou a descer a encosta íngreme. Suas pernas compridas
cobriram a distância com facilidade enquanto desciam, mas
Danni teve que lutar para seguir o seu ritmo; certa de que uma
queda mortal estava em seu futuro, sem ter claro o que isso podia
significar. Se ela morresse em uma visão, morreria na realidade?
Os sons da maré trovejando sem descanso eram mais
fortes agora e sentiu o nítido aroma do mar. Algo grande estava
chegando a sua esquerda, mas não sabia se era real ou
imaginário e não podia se virar e olhar para trás.
Enormes rochas se sobressaíam pela ladeira, os obrigando
a se esquivar à medida que desciam. O esforço a deixou com calor
e agora podia escutar os sons que se elevavam. Uma voz de
mulher… Danni se deteve, escutando o agitado tom. Frenético,
suplicante. Também havia outras vozes. De um homem, talvez
dois. E de crianças.
De crianças assustadas.
O sangue de Danni correu tão rápido que se
sentiu doente. O som das jovens e assustadas
súplicas, a lembrava de sua própria história. Às
noites no dormitório comunitário do lar de
acolhida, onde sempre havia alguém com medo,
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sempre alguém chorando.
Sério e decidido, o homem seguiu descendo com uma
elegante falta de esforço, deslocando os pedregulhos que caíam
até o fundo. Danni permaneceu congelada onde estava,
escutando as afligidas, mas ininteligíveis palavras.
O que estava acontecendo lá embaixo não era bom, e
todos os instintos que Danni possuía, insistiam para que não
continuasse.
Houve uma forte explosão; um disparo seguido de gritos.
Danni se encolheu, com as palmas das mãos escorregadias com
medo frio. Não queria seguir mais o homem. Queria sair desta
visão. E estar de volta em sua cozinha, onde estava a salvo.
Apertou os punhos, desejando escapar. Recusá-lo.
O homem se deteve e olhou para trás. Parecia que sabia o
que ela estava pensando. Seus olhos se obscureceram com
compaixão, mas também com decepção que não pôde ocultar. Ela
o sentiu tanto como o viu. Ele lhe deu um pequeno aceno.
Continua, ele estava lhe dizendo. Fez o gesto sem censura. Ele
estava lhe dando sua permissão para que ela se
afastasse. Para fugir.
Por um momento a orla íngreme, o céu
ameaçador… O homem observando-a…. Tudo
vacilou e Danni pôde ver sua cozinha através da
imagem sobreposta. Tudo o que tinha que fazer
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era passar através da imagem, sair.
Abaixo, os meninos soluçavam e a mulher implorava com
palavras frenéticas e incoerentes. Danni sentiu seu desespero,
seu terror. Sua desesperada necessidade…
O homem começou a descer de novo, agora com urgência.
Danni apertou os olhos com força e respirou fundo. Sabendo que
não podia dar as costas a tal desespero, mentalmente fechou a
passagem para cozinha, fechando a porta para à segurança e à
prudência. Começou a segui-lo uma vez mais, correndo para
alcança-lo enquanto ele desaparecia na escuridão profunda que
cobria a parte inferior.
As conchas e rochas quebradas formavam uma crosta na
franja superficial entre as enormes rochas e as ondas
enfurecidas. O caminho rangia dolorosamente sob seus pés
enquanto seguia o homem a uma porta esculpida na base da
parede que se elevava para os escarpados. Danni olhou através
das sombras e da espessa névoa que se aferrava ao terreno,
ocultando seus pés.
Não pôde ver ninguém até que chegou ao seu
lado. E logo, com um pequeno estalo, limpando seus
ouvidos e uma surrealista avalanche de cor e
textura, a fonte das vozes surgiu a partir da falta de
definição a um enfoque impactante. De repente
Danni estava no interior de uma caverna de algum
tipo que reduzia sua altura sobre as restingas.
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Um piso de pedra o rodeava e do outro lado, viu às pessoas de pé
à luz de uma lanterna. A iluminação tênue convertia seus rostos
em máscaras, distorcendo suas características. Estavam em um
grupo; uma mulher com dois filhos. Um homem estava ajoelhado
no chão na borda do brilho da lanterna. Sustentava algo em seus
braços. Danni não podia ver o que era.
Quis aproximar-se. Queria ver seus rostos. Mas ficou onde
estava, imóvel junto ao estranho de olhos verdes, enquanto a
cena se desenrolava.
As crianças que choravam, se aferravam às pernas da
mulher, fazendo um grande esforço para ser parte dela. Um
menino e uma menina. Danni supôs que suas idades estavam
entre quatro ou cinco anos, mas não podia ter certeza. A mulher
estava falando de novo. Alguém que se ocultava envolto nas
sombras respondeu. A voz era profunda e masculina, mas Danni
não podia ver quem falava ou entender o que dizia.
O homem que Danni seguiu desde sua cozinha se
aproximou da mulher. Detendo-se para olhar para trás para
Danni, levantou uma parte da jaqueta da mulher e sua blusa,
deixando descoberto o vulto de uma gravidez e….
Contusões. Descolorações enormes cobriam suas
costelas e abdômen em uma mescla salpicada de
negro, azul, amarelo brilhante e verde doentio.
Antigas e recentes, as marcas estavam em capas
uma em cima da outra.
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A mulher se virou com um grito, seus olhos grandes e
assustados. Ela olhou durante um longo momento para o lugar
onde Danni estava sem fôlego. Danni sentiu a força do olhar da
mulher, enquanto se estabelecia em seu rosto.
Ela pode me ver….
Mas isso não era possível. Danni não estava realmente lá.
Nenhum deles estava. Isto era uma visão…. Uma alucinação…
Verdade?
Enquanto procurava a causa do seu desconforto, a mulher
continuava olhando diretamente para Danni. Viu um calafrio
atravessar seu corpo, tremendo até mesmo as mãos que
sustentavam seus filhos. Uma sensação de dejà vu a cativou, o
pressentimento de que esteve aqui antes era tão real como
impossível. Não conhecia esse lugar, essa mulher, essas
crianças…
As negações silenciosas se chocaram com a dúvida. Olhou
o menino de pé tão calado ao lado da sua mãe, então à menina
sujeitando sua outra mão. A cara da menina estava manchada de
lágrimas, seus olhos eram grandes e cinzas, com seu
cabelo de cor castanha dourada. Ela piscou para
Danni com a ampla consciência de conhecimento.
Parecia como se um punho gigante tivesse a
golpeado e arrancado Danni do seu corpo. A
menina não era uma estranha, mas tampouco era
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uma conhecida ou uma amiga. Como a própria visão, era
impossível.
Ela era Danni… Danni menina.
Estava olhando para si mesma…. Como foi há vinte anos.
Danni foi aquecida com sentimentos que não podia
processar e que não podia compreender neste momento, que não
tinha lugar, e fundamento no mundo que conhecia. Pouco a
pouco, sua atenção mudou para a mulher, agora vendo as feições
familiares, recordando como se sentia ao pôr seus braços ao redor
dela, sendo abraçada por ela.
A mulher era sua mãe.
A misteriosa voz masculina disse algo a ela, atraindo a
atenção da sua mãe bruscamente.
— Não — gritou Danni.
Ela correu para frente e tentou girar sua mãe para ela.
Tentou tocá-la, abraça-la, lhe pedir que a olhasse outra vez.
Mas qualquer que fosse a conexão que teve naquele
breve instante se foi. A menina começou a chorar
desconsoladamente e o homem ajoelhado se
levantou ao lado deles, instável sobre seus pés.
Através da penumbra, Danni viu seu rosto
banhado em lágrimas, inchado e vermelho,
devastado pela dor. Ela sentiu sua dor palpitante
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como ondas se rompendo aos seus pés.
Em algum lugar esquecido em um canto oculto da sua
mente, uma ideia começou a surgir. Não era um déjà vu: ela já
esteve ali antes. Mas embora ela tentasse enfocar a lembrança,
não conseguia, ela se foi.
Havia terror nos olhos da sua mãe agora, conforme ela
movia o olhar entre a voz imaterial e o homem ao seu lado,
enquanto ele levantava as mãos, as mantendo longe do seu corpo,
com suas mãos para fora; o sinal universal de rendição.
Mas as palavras hostis intercambiadas entre a mulher e
seu antagonista invisível estavam mais fortes ecoavam ao seu
redor. A tensão no ar se apertou como um laço de arame fino que
logo cortaria sua pele. Por que Danni não entendia o que eles
diziam?
De repente, outra explosão ressoou na caverna e os gritos
de Danni se uniram aos da sua mãe e das crianças. Uma arma
pensou. Isso era uma arma. Apesar de sua mente catalogar o
som, seu corpo reagiu à pontada de dor atravessando-a. Ela o
sentiu — sentiu-o — como se uma bala se alojasse em seu
coração. Olhou para baixo, esperando ver sangue.
Ver sua vida escapando, mas não havia nada, nada
para explicar a agonia desconcertante. Olhou ao
redor em estado de choque, em pânico, viu de novo
a enrugada forma no chão junto ao grupo de
pessoas assustadas. Só então entendeu o que era;
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o que o homem a sustentou quando ela entrou. Era um corpo.
Virou e olhou para o estranho que a levou até ali. Ele só a
observava, com o rosto impassível, sua presença nem a
consolava, nem a ameaçava. Enquanto ela o observava, sentiu-se
apanhada por seu olhar. Não podia afastar os olhos, não podia
desfazer o drama revelado. As vozes da sua mãe e as crianças se
apagaram, levando com eles a dor aguda. Estavam
desvanecendo, desaparecendo.
Danni quis aferrar-se a sua mãe como a menina que uma
vez foi. Mas não pôde romper o controle dos enigmáticos olhos
verdes, não podia fazer com que suas pernas suportassem o peso
da sua necessidade.
Uma vez mais uma mescla de redemoinhos cinza e
marrons gelaram o ar, fazendo Danni pensar em um Deus gigante
criando arte de areia em uma infinita garrafa de cristal. A luz
mudou de uma tristeza escura a uma penumbra vaga, e estavam
fora de novo. O vento se uniu à sensação fluindo de ar fresco e
frio. Só estavam os dois agora. A dor opressiva da bala se foi, mas
a dor em seu coração, pela perda de sua mãe. De novo, foi
abandonada por ela.
O homem se moveu, sem lhe dar tempo para
chorar. Ele tinha uma missão. Tinha esquecido que
ele estava ali por razões próprias.
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Retornaram ao vale. Danni o seguiu enquanto se afastava
uma figura alta e escura em um mundo pintado com sombras e
escuridão. Seu tempo quase chegava ao seu fim. Podia senti-lo no
ar crepitante. A visão mudaria de novo e terminaria.
Forçada a acompanhar seu passo, Danni seguiu o homem
a um monte de terra em meio a exuberante pradaria. Em silêncio,
ela esperou ao seu lado, uma vez mais consciente de que algo
grande projetava uma sombra sobre eles, mas incapaz de virar-se
e olhar o que era.
Detiveram-se junto a uma tumba pouco profunda, recémcavada e sem marcas. O aroma amargo da terra cultivada se
mesclava com o úmido ar flutuando do mar. Podia ouvir as ondas
se rompendo com fúria contra as rochas de abaixo.
O estranho tinha uma expressão de remorso inconsolável,
enquanto olhava o buraco aberto no verde oásis. Danni tragou
dolorosamente, com mais medo do que nunca havia sentido. A
tumba era um detestável símbolo nesta visão. Ou era real? O
terreno enlameado a seus pés parecia convocá-la. Enrolava-a
para que se aproximasse. Prometendo recompensas doces e
sedutoras.
Lentamente, Danni se inclinou adiante e
olhou no buraco. Havia dois corpos estendidos na
parte inferior como se tivessem sido atirados lá por
descuido. Um era um adolescente e uma parte
escura de sua mente lhe disse que era o corpo que
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tinha visto na caverna. Estava desajeitado e com o peito oco.
Suas pernas estavam torcidas debaixo dele em uma posição
pouco natural e seu rosto estava virado. Desabada a seu lado
havia uma mulher usando perneiras e uma enorme camiseta; um
traje que recordava os anos oitenta. Seu comprido cabelo
castanho dourado caía sobre os ombros e o peito do menino. A
metade de seu rosto estava oculta, mas a outra metade…
Danni retrocedeu, sua mente lutou contra o que seus
olhos tinham lhe mostravam. Uma vez mais, encontrava-se cara a
cara consigo mesma, só que desta vez não com a menina que foi,
mas com a mulher que era agora. O outro corpo do sepulcro era
de Danni.
Impossível, impossível, impossível…
O homem que estava ao seu lado olhou para tumba com
concentração por outro momento. Então ele olhou para o mar
longínquo e turbulento. Danni sentiu sua dor e sua ira se
misturando e crescendo até queimar como o açoite do vento. Ela
sentiu o poder que o consumia, conduzindo-o a um ponto tão
perigoso como a beira do penhasco.
Então, de repente voltou seus olhos
desesperados para Danni. Ele se esticou como se
percebesse pela primeira vez que poderia tocá-la.
Esperava que o contato fosse uma combinação de
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terror e expectativa. As visões não se podia tocar, não se podia
sentir…
Ele roçou-lhe a bochecha com o dorso dos dedos e o calor
foi elétrico contra a sua pele fria. Ela o olhou, surpreendida ao ver
seu próprio assombro refletido na prata e verde brilhante dos
seus olhos. Tocou-a outra vez, passando seus dedos pelo seu
queixo, acariciando seu rosto; com ambas as mãos agora.
Cativada, olhou-o fixamente, recuperando o fôlego quando seu
olhar se moveu para a sua boca.
Suas mãos se aproximaram da parede de seu peito
musculoso, sentindo sua respiração profunda, lidando com o
sentimento do seu coração pulsando debaixo da sua mão. Seu
medo se atou com a emoção da sensação e se converteu em uma
bola de fogo em seu ventre. Ela esperou que sua cabeça se
inclinasse para que seus lábios se aproximassem. Mas o ar estava
se movendo; podia senti-lo. Apesar de que sua boca estava
pairando sobre seus lábios, seu fôlego quente era um sussurro,
um segredo sedutor, que não podia ouvir, até que começou a se
desvanecer.
Ela tentou impedir que ele se fosse, tentou
conter o ar, enquanto assobiava afastando-se. Em
um instante, o homem, a tumba, o céu como uma lã
de aço… Tudo se converteu em uma névoa que
flutuava só na superfície. Debaixo dela, a cozinha
de Danni esperava para que voltasse para casa.
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Ela sentiu uma sensação de puxão enquanto era levada de
volta para onde começou. Apoiou-se no balcão, respirando
profundamente o ar quente. Sua caneca estava onde a deixou,
com seu café ainda quente, mesmo que parecesse que horas
haviam se passado. Ela não conseguia fazer suas pernas pararem
de tremer, ou reduzir os batimentos fortes do seu coração.
Afundou-se no chão frio de ladrilhos e se enroscou sobre si
mesma.
Não entendia o que significava a visão, quem era o homem
ou por que o tinha visto. Por que lhe mostrou a mãe que ela mal
se lembrava. Só sabia uma coisa. O desconhecido de olhos verdes
estava procurando por ela. E era só questão de tempo até que a
encontrasse.
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Capítulo 2
Sean Ballagh parou no banquinho em frente à casa da
mulher, tentando conter a intranquilidade que crescia dentro
dele. Olhou sobre o ombro, sentindo à espreita silenciosa de um
inimigo invisível que podia ser imaginário… ou podia ser
assustadoramente real. Não tinha como saber.
Nada se movia exceto a brisa sussurrante e as longas
sombras matutinas. No horizonte, os primeiros raios do sol
deixavam um rastro de neblina dourada em um infinito azul, com
estimulantes tons ametista e rubi em uma capa de nuvens
rendadas. O amanhecer era entristecedor, formoso além de
qualquer descrição. Mas não tranquilizava sua tensão ou aliviava
a inquietação. Por anos havia procurado à mulher que se
chamava Danni Jones e agora a encontrou e Sean temia que
fosse muito tarde.
Ocorreu-lhe que uma visita surpresa na
primeira hora da manhã talvez não fosse o melhor
plano de ação a seguir. Sabia que ela estava em
casa, estaria indo trabalhar a essa hora. Mas ele
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era um estranho e talvez não lhe abrisse a porta. Os americanos
eram estranhos com tais coisas, especialmente em uma grande
cidade como Phoenix, Arizona. Uma parte dele esperava que ela
não o deixasse entrar. Talvez o mandasse de volta para a Irlanda
sem escutar uma palavra da sua história. Mas isso requereria
uma sorte que Sean Ballagh nunca teve.
Ele pôs a mão no bolso onde tinha posto a pequena caixa
de joia que sua avó colocou em sua mão antes que ele deixasse
Ballyfionúir. Ela havia-lhe dito que o desse à garota quando a
encontrasse. — Ela não poderá negar isto — disse-lhe com um
olhar sábio. O objeto leve se sentia desproporcionalmente pesado.
Ele tomou um grande fôlego, sentindo suas dúvidas
lutando para emergirem. Não era errado o que sua avó queria que
ele fizesse. Mas não era certo tampouco.
— É um maldito bastardo, isso é o que é, — murmurou
para si mesmo, mas como as sombras matutinas, um sentido de
inevitabilidade o rodeou. Faria sua parte, um mensageiro
trazendo boas novas, mas na verdade, isso não era algo para
alegrar-se.
Danni Jones morava em uma acolhedora
cabana, que parecia fora do lugar naquela região
árida e deserta. Um pequeno trecho de grama se
amontoava até um caminho de tijolos que levava
até sua porta. Alinhados no espaço debaixo das
janelas da frente havia metades de barris de onde
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se derramavam selvagens manchas de laranja, azul, rosa e
amarelo.
Alimentadores de cor vermelha brilhante para os beijaflores se penduravam no beiral branco, no alto fora do alcance do
enorme gato amarelo que lhe observava do degrau da porta.
Quando se aproximou, o gato vaiou e correu,
desaparecendo em uma sebe ao lado da casa. Uma porta de ferro
com recortes intrincados de flores e pássaros cobria a entrada.
Portas de segurança sabia que se chamavam assim, mas tal coisa
era tão estrada como a seca de onde veio. O desenho
ornamentado deixava ampla e espaçosa as partes descobertas na
malha enquanto criava um sólido escudo entre a entrada e o
degrau da porta.
Com uma relutância que não queria sentir, tocou a
campainha. Quando ela ecoou pela casa, ouviu um cão
choramingando furiosamente e segundos depois, um focinho café
espiava entre as persianas e lhe mostrava os dentes.
Vários pés mais acima, outra persiana se levantou, lhe
deixando saber que alguém mais também estava
olhando. A persiana se fechou outra vez e um
momento depois, o focinho do cão se retirou.
A porta não se abriu, mas Sean sentiu que
ela estava parada do outro lado. Depois de um
momento a chamou.
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— Srta. Jones? Meu nome é Sean Ballagh. Trago notícias
de Cathán MacGrath de Ballyfionúir na Irlanda.
A mentira se sentia ruim em sua língua, mas ele a disse
com o que esperava fosse um sincero sorriso, no caso de que ela o
pudesse ver. De dentro da casa ouviu uma distante agitação e
depois silêncio. Ele esperou se sentindo incomodado, sentindo-se
como o gato de Cheshire com o falso sorriso grudado em seu
rosto. O deixou se desvanecer e depois desaparecer de vez.
Quando pensou que ela o ignoraria completamente, ouviua dizer: — deve estar atrás da pessoa errada. Nunca ouvi falar de
Cathán, quem é?
— É uma lástima — respondeu-lhe, baixando sua voz para
que ela não o ouvisse direito, esperando coagi-la a abrir a porta —
Ele é seu pai.
Longos minutos pareceram se arrastar e então ele ouviu o
clique da trava de segurança se abrindo. Sentia-se um vitorioso.
A porta se abriu e ele viu uma figura de pé do outro lado da
pesada tela nas sombras.
— O que disse? — Perguntou ela.
Ele deu um passo para frente, tentando ver
suas feições, mas o cão se lançou contra a porta
com um forte golpe que fez com que Sean saltasse
para trás. Ele olhou para a pequena besta com
horror enquanto ouvia os grunhidos. Ela se
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estendeu para baixo e agarrou o monstro pelo pescoço e o
empurrou para longe. Ele viu um rosto pálido, cabelo castanho
dourado comprido e um suéter azul antes que desaparecesse
novamente na escura entrada.
Foi suficiente. Ela era a mulher que ele estava
procurando. Como se tivesse dúvida disso.
— É uma lástima que não sabe o nome do seu próprio pai.
Uma pausa imperceptível e então.
— Eu não tenho pai. Não tenho família alguma.
— Ah, mas está equivocada.
Ele abriu o envelope creme que havia trazido consigo e
tirou uma fotografia. Olhou-a por um momento antes de
pressioná-la contra a tela. O cão grunhiu outra vez, mas a
curiosidade trouxe à mulher para mais perto.
O sol estava mais alto e a apanhou em um feixe de luz que
penetrou a tela e iluminou um delicado rosto com grandes olhos
cinza. Sean a olhou fixamente, atônito pelo sentimento que o
atravessou. Era familiar, não só porque a conheceu
quando eram crianças vivendo na Irlanda. Era mais
que isso. Ver seu adorável rosto, esses olhos com
alma, criava um reconhecimento que ia além da
mera familiaridade. Era cru e mesmo assim,
íntimo, e o confundia completamente.
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Em um braço sustentava o pequeno cão, o outro estava
pendurado ao seu lado, com os dedos se movendo nervosamente.
Ela levantou o olhar com cautela e o apanhou com a boca aberta
olhando-a fixamente. Ele se forçou a fechá-la.
Havia perplexidade em sua expressão, como se tivesse
sentido o mesmo reconhecimento que ele. Como se soubesse
quem ele era e o que realmente queria. Como se o conhecesse.
Dar-se conta disso nocauteou Sean, então ela voltou sua atenção
para fotografia que ele sustentava.
Ela olhou fixamente a fotografia como se estivesse em
transe então levantou seus dedos para tocá-la através da tela.
— De onde veio isso? — Murmurou ela.
— Ela veio de Ballyfionúir, Irlanda, de onde você é. Onde
eu vivo — Ele esperou um momento para dizer brandamente —
Esta é sua família.
Ela fez um som baixo e pressionou sua palma sobre a
imagem que era ao mesmo tempo uma carícia e uma negação. Ele
engoliu sua consciência e perguntou:
— Será que você poderia falar comigo, Danni
Jones? Se possível sem a porta entre nós?
Ele sentiu seus olhos cravando-se nele
através da tela. Havia algo frágil nela que não
esperava. Algo vulnerável, apesar da sua rígida
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postura e seu olhar estável. Não queria enganá-la e certamente
não queria arrastá-la ao inferno em que se converteria sua vida.
— Quem é você? — Perguntou ela.
— Sean Ballagh, como disse. Fui enviado da Irlanda para
te encontrar. Por sua família.
— Tem identificação?
Assentiu, pegou seu passaporte e o colocou onde havia
segurado a fotografia contra a porta.
A fotografia do passaporte era velha e granulada e ela a
estudou por um demorado momento, com seus olhos se movendo
entre ele e a fotografia comparando sua foto sóbria e carrancuda
e seu eu verdadeiro. De novo, o reconhecimento cintilou em seus
olhos ao olhá-lo. Ela só tinha cinco anos e ele era um adolescente
quando se viram pela última vez. Era improvável que se
recordasse de tudo, muito menos que reconhecesse o menino
desajeitado que foi, no homem em que se converteu, mesmo
assim, tinha a sensação que o reconheceu.
— Está muito jovem nesta foto — disse ela, com
cenho franzido.
— Muito — respondeu ele — Preciso trocar
por uma nova.
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Finalmente ela assentiu e abriu a porta. O cão se mexeu
em seus braços como um javali selvagem, mas Danni o segurou.
— Não, Bean — chamou sua atenção.
De perto, Sean pôde determinar que Bean não pudesse ser
de todo um cão. Em algum lugar de sua linhagem definitivamente
houve um texugo. O cão que se mexia e grunhia tinha um largo
nariz, orelhas bicudas e não tinha cauda.
Havia genes de Terrier em algum lugar e possivelmente de
Rottweiler também, embora essa ideia fosse incrível.
— Ela é muito protetora comigo — disse Danni, pondo
seus dedos ao redor do seu focinho para calar ao cão mutante —
Resgatei-a quando era um filhote e sou a única família que tem.
Ela não gosta muito de pessoas estranhas.
— Grande — disse ele sorrindo outra vez.
Tendo tomado a decisão de abrir a porta, ela se afastou
para o lado e o deixou entrar. Sean se forçou a entrar na sua
casa.
Seguindo-a para uma sala de estar com uma
parede com suportes cheios de livros, com um sofá e
uma cadeira que parecia confortável e uma pequena
televisão aconchegada no canto. Ela seguiu por
uma entrada arqueada e entrou em uma brilhante
cozinha com azulejos. Ela se deteve, parecendo
Brumas da Irlanda 1 Página25
momentaneamente insegura antes de recuperar sua compostura
e indicar a mesa e as cadeiras.
— Sente-se. Gostaria um pouco de chá?
Ele assentiu, ainda olhando em seus braços. Ela abaixou e
soltou Bean com uma severa ordem e foi pôr água para ferver. O
cão parou a seus pés, movendo-se cada vez que ela o fazia, o
tempo todo mantendo Sean sob vigilância. Se Sean tinha
intenção de prejudicar fisicamente Danni, o olhar hostil do cão o
teria feito reconsiderar. Ao terminar, ela se sentou do lado oposto
a ele e esticou a mão para a fotografia.
Sean estudou o rosto dela enquanto olhava fixamente a
foto, riscando primeiro a silhueta da imagem de sua mãe, depois
a de seu pai com um magro e tremente dedo. O que estava
pensando?
— Não posso acreditar que esta seja minha família —
murmurou.
Falou com uma hesitação que o fez pensar que ela
esperava que lhe arrebatasse a foto e começasse a rir.
— Eu juro, é.
Ele apontou para a garotinha de pé na frente
de sua mãe. — Essa é você — disse — E esse é seu
irmão.
Brumas da Irlanda 1 Página26
Seus olhos cinza brilhavam com uma estranha mistura de
emoções. Esperança e dor, ira e alegria. Uma pena que parecia
ser âncora para todos os outros sentimentos ao redor disso.
— Meu irmão. — Disse ela, com voz pastosa. Sacudiu a
cabeça — Todos estes anos…
— Estivemos procurando-a durante muito tempo. — Ele
limpou a garganta e olhou a foto — O nome de sua família é
MacGrath. — Disse-lhe — Nasceu na Irlanda. Em Ballyfionúir
para ser exatos.
— Bally…
— Bally— fiiiuun-uur. Está na Ilha de Fennore, ao sul da
parte principal da Irlanda.
Ele tirou outra coisa do envelope e o deixou na frente dela.
Era uma cópia de um anúncio do nascimento em um jornal.
Nomeava dois bebês: a uma menina, Dáirinn Edel e a um
menino, Rory Finnegan. Nascidos de Cathán e Fiona MacGrath
em primeiro de outubro de 1984.
— O nome da menina se pronuncia Daooor. E é seu
nome. — Disse Sean quando ela não perguntou.
— Não posso acreditar nisso — murmurou
ela outra vez.
— E mesmo assim, é verdade.
Brumas da Irlanda 1 Página27
Sua resposta fez com que ela levantasse os olhos
arregalados para ele, cheios de angústia e confusão. Ele imaginou
centenas de reações que esta visita incitaria. Variavam desde
ceticismo à alegria. Mas não antecipou a crua dor que via agora.
Enchia-o de vergonha.
— Sr. Ballagh…
— Chame-me de Sean. Somos parentes, de algum jeito…
Seus olhos se abriram mais e lhe deram um olhar deprimido.
— Somos familiares? Não é meu irmão ou é?
— Não — disse ele rapidamente, achando a ideia tão
aberrante como parecia a ela. Não parou para analisar por que.
— Nada desse estilo. Um parente distante. Muito distante
para contar.
— Que bom. — E então, dando-se conta do que disse,
ruborizou-se furiosamente.
Sean observou a mancha de cor que se expandia por sua
garganta, por suas suaves bochechas e a seu ouvido. Parecia
muito pequena em seu grande suéter azul, parecia
vulnerável. Dentro dele, algo profundamente
masculino e protetor despertou e respondeu. Não
esperou isso tampouco. Mas estava muito contente
de não ser seu irmão.
Brumas da Irlanda 1 Página28
Ela levantou a foto e a olhou de novo.
— Não tem sentido — disse — Se esta for minha família,
por que estive sozinha nos últimos vinte anos? Onde estiveram?
— Esperava que fosse capaz de dizer-me isso.
Ela fez um som como de risada, mas não houve humor
nela.
— Sinto te decepcionar. Tudo o que sei é que um dia
minha mãe deixou – me no pré-escolar e não voltou para buscarme. Ninguém veio reclamar. Nenhum pai. Nenhum irmão sentiu
minha falta. Ninguém.
— Sua mãe te deixou? — Repetiu ele, sem poder conter o
fio de incredulidade — Onde?
— No pré-escolar Cacto Wren — disse — Disso, lembrome.
— Quero dizer, aqui? Nos Estados Unidos?
Ela assentiu, franzindo a sedosa pele entre seus olhos.
— Por quê?
— Por quê? — Sean taticamente repetiu sua
pergunta enquanto a resposta que temia tanto
como queria desesperadamente acreditar,
ameaçava surgir à superfície. Porque isso
Brumas da Irlanda 1 Página29
significava que a mãe de Danni deixou a Irlanda. E para fazer
isso, devia estar viva.
Ele limpou a garganta e disse brandamente:
— Sua mãe desapareceu com você e seu irmão há vinte
anos. O que aconteceu com ela e as crianças todos estes anos foi
um grande mistério e uma tragédia para nosso povo. Até muito
recentemente, acreditávamos que estavam mortos. Todos vocês.
Ela o olhou fixamente, tentando ver o engano em suas
palavras. Sustentou seu olhar sem afastar-se para trás. Isso, ao
menos, era a verdade. Mas debaixo da resposta sincera que lhe
oferecia uma variada gama de emoções conflitivas queimava em
frenesi.
Um dia, minha mãe deixou-me no pré-escolar e não voltou
para buscar. Aqui, nos EUA. Não na Irlanda.
— Ninguém soube o que aconteceu conosco? — Perguntou
ela.
— Havia rumores, é obvio. Sempre há. As pessoas falam
em especial em Ballyfionúir. E sempre há algo a dizer
sobre a família MacGrath.
— Por quê?
— Bom, posso te contar histórias da sua
família e da minha, mas parece-me que seria
melhor deixar essas histórias para outra ocasião.
Brumas da Irlanda 1 Página30
Embora tenhamos um passado juntos os MacGraths e os
Ballaghs e quando há um passado, há uma conta a saldar. Isso é
certeza e há alguns que dizem que as contas nunca estão
saldadas para nenhuma das famílias.
— É um dos que diz tais coisas?
— Eu? Sou um mensageiro. Nada mais.
O olhar que ela lhe deu era cheio de incredulidade. Ela era
esperta o suficiente para saber que ele era mais que um simples
mensageiro.
— Ainda não consigo entender como minha mãe e duas
crianças puderam desaparecer sem que ninguém visse ou
soubesse para onde foram. Como ela conseguiu?
— Disseram que ela teve ajuda, algo sobre um amante que
a poderia ter. Que se matou e a seus filhos. E ainda que alguém
houvesse assassinado todos vocês. Alguns pensam que estão
dormindo no fundo do mar agora. Isso é o que queria saber?
— Bem, ninguém desaparece sem nenhuma razão.
— Não, suponho que não fazem.
Ela o olhou fixamente, pressentindo de
algum jeito que havia mais em sua resposta do que
suas simples palavras.
Brumas da Irlanda 1 Página31
— Alguma vez alguém tentou alguma coisa? — Pressionou
ela.
— Todos em Ballyfionúir estavam em pé de guerra, em
busca de sangue. Foi o objetivo mais fácil, algum pobre pentelho
que teve a má fortuna de estar no lugar errado no momento
errado. Fez-se a um lado antes que lhe tirassem golpes uma
confissão. Por fim, disse-lhes tudo.
— Mas você não crê que fosse culpado?
— O que importa o que eu acho? — Perguntou ele. —
Culpado ou Inocente, tudo é relativo, não? No mês passado diria
que ele era. Mas hoje… bem, aqui está você, obviamente viva.
Quem diria agora que ele é culpado de algo?
— Tem razão. — Disse ela parecendo preocupada.
— Quando foi a última vez que viu sua mãe, Danni? —
Perguntou ele, inclinando-se para diante — Quando te deixou?
A chaleira apitou surpreendendo a ambos. Danni se
levantou, movendo-se com graça ao servir a água fervendo sobre
o chá e acomodando as xícaras em uma bandeja. Ele
notou que ela usava uma delicada porcelana que
parecia antiga e frágil. O jogo de chá não combinava,
como se cada peça tivesse sido selecionada por seu
desenho único e não pensando no jogo completo.
Suspeitava que fosse igual ao seu cão, ela
resgatou as peças das lojas de pechinchas e
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mercadinhos, montando-as em uma nova família.
Ela retornou à mesa e o serviu em silêncio enquanto ele
esperava impacientemente que ela respondesse sua pergunta.
Quando ela viu pela última vez sua mãe, Fia MacGrath?
Com esforço, ele conteve a língua, sentando-se
placidamente enquanto ela servia o chá, fazendo a tarefa com um
elegante ritual. Tinha magros dedos com unhas curtas, sem
adornos, exceto por um anel de prata em seu dedo médio com o
símbolo entrelaçado do yin e o yang em seu centro. Seus pulsos
eram pequenos e femininos, sua pele marfim suave e cremosa.
Seu cabelo vinha até seus ombros em um véu grosso e brilhante
do que pareciam milhares de tons de dourado e âmbar,
avermelhado e caramelo. Como o amanhecer, desafiava uma
descrição.
Ela olhou para cima repentinamente e o apanhou
olhando-a. A seus pés, o cão grunhiu.
— Foi uma quarta-feira, 25 de outubro de 1989. Era
quatro ou cinco horas. — Disse respondendo sua pergunta ao se
sentar — Não sei a que hora certa. Quando minha
mãe não retornou, descobriram que os papéis que
ela preencheu para a creche eram falsos. O
endereço, nome, tudo. Assumiram que a data do
meu nascimento também estava incorreta. —
Brumas da Irlanda 1 Página33
Olhou o anúncio outra vez — Se isto for real, eu tinha cinco anos.
— Em 25 de Outubro — repetiu ele. Haveria algum
significado na data?
— Não sei por que escolheu esse dia — disse Danni, lendo
sua mente — Se houve alguma razão, vinte anos pensando nisso
não ficou mais claro para mim. Quando ela desapareceu da
Irlanda?
— Mais ou menos três semanas antes disso.
— Três semanas? O que ela fez por todo esse tempo?
Ele sacudiu a cabeça, sentindo a frustração dela, sua dor.
Queria lhe oferecer consolo, mas a hipocrisia disso era muito
mais do que podia dirigir.
— Sei menos que você. — Disse ele — Esperava que você
respondesse-me isso. Você ou seu irmão. — Murmurou, quase
para si mesmo.
Seus olhos brilharam.
— Não me lembrava de que tinha um irmão. —
Disse — Talvez eu costumasse falar a respeito dele
quando era pequena. Mas provavelmente todos
assumiram que tinha inventado ele. Depois de um
tempo, acredito que pensei que tinham razão.
Brumas da Irlanda 1 Página34
Maldito inferno. Onde estava Rory? O que tinha feito Fia
com o irmão de Danni? Ela fez a viagem para os E.U.A com as
duas crianças? Ou Rory não tinha saído da Irlanda vivo? Teriam
chegado a ele primeiro?
— Como você pode estar tão certo? — Ela perguntou de
repente — O que faz com que esteja tão seguro de que esta é
minha mãe? Que esta é minha família?
— Além da semelhança?
— Pode ser uma coincidência, nada mais.
Ela falou a sério, mas ele percebia que ela não acreditava
seriamente nisso. Podia ouvir em sua voz, na maneira em que seu
tom variava entre a fome e a dor. Havia muito mistério e
escuridão na história que ele contava, muito do mesmo na que
ela contava, era difícil estar alegre sobre as notícias da sua
família perdida, encontrada de repente. Mas ele podia ver a
saudade dentro dela, sabia instintivamente que ela esperou toda
sua vida por alguém que entrasse por sua porta e lhe dissesse
que não estava sozinha.
— Não é coincidência, Danni. — Disse ele,
forçando as palavras a passarem por sua culpa — É
verdade o que estou te dizendo. Por acaso não tem
uma pinta, aqui?
Ele pegou a mão esquerda dela na sua, a
virando enquanto brandamente empurrava a
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manga do seu suéter para cima para revelar a pálida que havia
debaixo. Debaixo da dobra do seu cotovelo, estava a tênue pinta
rosada parecida com uma rosa que ele procurava. Sua avó lhe
havia dito que estaria lá, mas alguma parte dele duvidou. Era um
parvo, certamente.
Danni abaixou sua cabeça para olhar fixamente a pinta e
o suave e limpo aroma de seus cabelos pareceu envolvê-los em
uma cálida e inesperada intimidade. Ele passou seu polegar pela
pequena marca, sua pele era suave como cetim. Ela estremeceu
ligeiramente, como se também houvesse sentido a eletricidade do
seu toque. Seu rosto estava perto do dele, suas cabeças
abaixadas juntas.
— É uma marca de família. — Murmurou ele, olhando
seus olhos. Ela o olhou hesitante, tão consciente quanto ele da
corrente que viajava a partir do pequeno ponto de contato.
Ele teve o desejo repentino de inclinar-se ainda mais, de
pressionar sua boca sobre o errático pulso que palpitava em sua
garganta. De deixar que suas mãos roçassem por debaixo do seu
suéter azul até as suaves curvas que ela ocultava. Por um
momento considerou fazer isso, a ideia começou um
fogo que queimou profundamente dentro dele. Não
podia se recordar da última vez que esteve tão
encantado por uma mulher. Ela ruborizou de novo;
sem dúvida os mesmos pensamentos estavam
aparentes no calor do olhar dela. Uma parte dele
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se alegrou. Tão errado e tão inconveniente quanto essa atração
era, mas queria que ela soubesse, necessitava que ela a sentisse
também.
Atordoada, ela libertou o braço e baixou a manga,
ocultando a flor rosa.
— Dez por cento de todos os bebês nascem com pintas. —
Disse friamente. Mas seu fôlego estava superficial ao final da
frase, traindo-a.
— Não como essa pinta.
Ele viu o jogo de emoções em seu rosto. Esperança,
incredulidade e uma angústia que rompia o coração. Ela tomou
um sorvo do seu chá, remexendo-se sob seu olhar.
— É isso verdade? Está sendo sincero?
— Estou.
Ela assentiu e depois perguntou.
— Então meu pai… Ele ainda está vivo?
— Aye2, — respondeu ele — Vive em
Ballyfionúir.
— E sabe que você encontrou-me?

2
Sim. Afirmação em irlandês.
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— Ainda não. Queria ter certeza primeiro.
— E tem agora?
— Absolutamente.
Ele se deteve por um momento, tentando tirar seus
pensamentos para longe do ligeiro aroma da sua pele e retornar
para o assunto em jogo. Estava ali por uma razão que não tinha
nada a ver com a forma em que o sol se derramava pela janela
deixando seu cabelo uma chama de milhares de cores ou sua
necessidade de tocá-la.
— Há alguma coisa que se recorde a respeito da sua
infância? — Perguntou ele brandamente — A respeito da Irlanda
ou da noite em que se foi de lá?
Ela sacudiu a cabeça.
— Nada antes que minha mamãe desaparecesse.
— Bem, deixe-me te contar um pouco então. Vem de uma
família muito antiga, Danni. E de um lugar cheio de tradições.
Estão no ar, na água. Vivendo aqui, não pode ver o alcance do
que isso suporta, mas há coisas que acontecem na
Ilha de Fennore que não acontecem em nenhum
outro lugar no mundo.
Um sorriso divertido inclinou os cantos da
sua boca.
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— Venho de uma família antiga?
Ele assentiu.
— Supõe-se que seus ancestrais, e os meus também,
foram antigos druidas. Pessoas imprudentes. Pessoas que
possuíam poderes extraordinários para os homens e mulheres
comuns.
O sorriso dela se expandiu um pouco. — Meus ancestrais
foram super-heróis?
Sorriu-lhe em resposta, mas sabia que não alcançou seus
olhos.
— Então, você nunca sentiu isso? Alguma vez soube de
algo antes de acontecer? Alguma vez sentiu que era especial?
Ela parou de sorrir e baixou o olhar para seu chá.
— Não. Nunca me senti especial. — Ficando de pé, levou
sua xícara a pia e a enxaguou. Suas costas estavam retas, seu
queixo levantado, mas ele quase podia sentir as velhas feridas
dentro dela se abrindo.
— Sua ilha soa como um lugar mágico. —
Disse ela ligeiramente, dando a volta com um
brilhante sorriso que o atravessou até os ossos.
Sabia o que lhe custava esse sorriso.
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— Deveria vir vê-la. — Disse ele.
Era a brecha que procurava, mas mesmo assim se sentia
relutante enquanto pegava dentro do envelope e pegava o último
objeto que tinha. Era um pacote grosso de papéis amarrados com
uma fita A primeira página era um itinerário com um logotipo de
um navio e um avião emergindo de um banco de nuvens impresso
no canto. Escrito na parte superior estava o nome de Danni. Sean
não queria comprar os bilhetes antes de conhecer Danni, mas
sua avó já os tinha comprado e insistiu que os levasse. Ela
insistiu em tudo. Até agora esteve correta.
Ele empurrou o pacote pela mesa e esperou que Danni o
pegasse. Ela levantou os papéis com curiosidade, olhando-os
fixamente com o cenho franzido por um momento antes que seus
olhos se expandissem com surpresa.
— São passagens? Com meu nome nelas? Passagens para
a Irlanda? E… São só de ida, Céus. Para sexta-feira. Para esta
sexta-feira.
— Achei que você gostaria de ir logo que fosse possível. —
Disse-lhe — E não estava certo de quando gostaria de
retornar. Pareceu mais fácil reservar a viagem de
volta depois. Não pretendemos te manter lá. Ao
menos, é obvio que isso seja o que você queira.
— O que eu quero… — disse ela pensando,
assombrada. Como uma menina procurando sua
Brumas da Irlanda 1 Página40
manta de segurança, agachou-se e agarrou o estranho cão,
segurando-o perto em seus protetores braços. A criatura a olhou
fixamente com adoração enquanto ela acariciava sua pelagem,
vendo-se ela mesma de algum jeito como um animal encurralado,
desesperada por encontrar uma saída. Não entendia sua resposta
mais do que entendeu as outras.
— Tem passaporte?
— Sim, mas…
— Mas o que? Não é o que desejava, Danni? Saber quem é
e de onde vem?
Aqueles enormes olhos se elevaram e se fixaram aos seus,
lhe dando uma perfeita olhada em sua alma. Era uma coisa
adorável, pura e esperançosa, e tão vulnerável. Ele se
amaldiçoou, mas não desviou seu olhar. Em seu bolso, o joalheiro
parecia retumbar, demandado que o tirasse e o entregasse agora.
Este era o momento, ele sabia. Mas isso se parecia muito como
uma traição e não podia fazê-lo.
Tragando sua vergonha, simplesmente disse:
— É a hora de voltar para casa Dáirinn
MacGrath. O que fica da sua família necessita-te.
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Capítulo 3
Danni fechou a porta da frente atrás de Sean e depois se
recostou contra ela, com atenção, tentando escutar o som de um
motor afastando-se mostrando que ele se foi, mas não ouviu
nada. Esperando encontrá-lo ainda de pé em seu alpendre
entreabriu as persianas e espiou para fora. Não o viu, mas sentiu
a necessidade de abrir a porta e olhar outra vez. Nada mais que
as folhas murmurando e o frenético cantar das aves a esperava
do lado de fora. Ficou desconcertada pela sensação da
permanência dele, fechou a porta outra vez e a trancou.
Ele foi real desta vez. Ela deixou sair um fôlego tremente.
Muito real.
E embora uma parte dela o tivesse esperado antecipado e
temido sua aparição com igual medida, não podia
acreditar.
Ao vivo, ele era até mais atrativo do que o
era na visão. Havia sentido a atração saindo dele,
inclusive enquanto os sinais de alerta disparavam
em sua cabeça. Inclusive enquanto duvidava da
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fantástica história que lhe contou. Havia algo que não soava
realmente verdadeiro a respeito de Sean Ballagh. Havia algo nas
entrelinhas em sua mensagem, que ela não podia compreender. A
sensação de que o que ele não havia dito poderia ser mais
importante do que o que havia dito.
Por um momento o sol se escureceu e ela pensou na visão
da caverna onde viu sua mãe discutindo com quem é que tivesse
estado de pé nas sombras. Essa visão era da noite em que tinham
desaparecido? Era por isso que havia sentido como se fosse uma
lembrança? E o túmulo, aquele buraco perto do mar verde? Seu
próprio corpo desaparecendo dentro dele junto ao do menino lhe
adoeceram? O que podia significar isso?
Afligida por seus próprios sentimentos atados a suas
dúvidas, retornou à cozinha, colocando a fotografia, o recorte de
jornal e as passagens de volta sobre a mesa. Eram quase nove
horas e já deveria ter ido trabalhar. Era sua vez de abrir a loja de
antiguidades que dirigia com Yvonne Hearne, sua mãe de
acolhida, confidente, amiga e chefe, todas em uma.
Rapidamente limpou a taça e o prato de Sean, colocando
na pia junto com o seu. Ele não tomou nada do seu
chá.
Provavelmente teria preferido café. Lembrarse-ia disso.
Brumas da Irlanda 1 Página43
Foi este pensamento, possivelmente mais que qualquer
outro, que a deteve. Lembraria porque o veria outra vez. Ela iria
para Irlanda com ele. Conhecer sua família…. Uma família da
qual não tinha lembranças.
Como podia se recordar como ela se sentia voar quando
era menina, quando o ar dava voltas e uma visão vinha, mas não
importava quão duro tentasse, não podia se recordar dos seus
pais, seu irmão ou a sua vida antes do Arizona? Nem sequer
conseguiu reconhecer sua própria mãe no início quando a viu na
visão nesta manhã. Danni tinha cinco anos quando foi deixada
no pré-escolar. Certamente era grande o suficiente para se
recordar de algo sobre sua vida anterior. Mas não o fazia. Não se
lembrava de nada disso.
Nos anos posteriores a que sua mãe a deixou e
desapareceu, teve uma intensa terapia e uma conselheira.
Durante os primeiros seis meses depois que foi abandonada,
Danni não falou nada. Atribuíram o fato ao trauma de suas
circunstâncias. Decidiram que ela deve ter sido abusada antes de
ser abandonada, presumivelmente era uma vítima de muito mais
que o abandono. Durante a passagem dos anos chegou a pensar
que estavam certos. O que mais teria feito uma
menina de cinco anos ficar calada por meio ano?
Nunca saberia nada a respeito de quem era.
E a página em branco de sua ignorância se
converteu em seu passado. Tinha aprendido a
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viver com ela. Mas a visão nas sombras que Sean ofereceu-lhe de
quem poderia ser rachou essa ilusão. Ela tinha uma história.
Uma vida antes do pré-escolar Cacto Wren.
Não seria uma desculpa o que tinha visto na visão, o
terror na caverna ou os corpos na tumba, mas tampouco apoiaria
suas decisões nisso, porque não sabia o que tudo isso significava.
A morte era algo metafórico, ou não? O precursor do
renascimento em cada mito que leu. E, além disso, o que Sean
havia dito era verdade. Encontrar sua família, saber quem era,
era o que desejou toda sua vida. Nada mais importava.
Chegou à loja de Antiguidades “Older tan Dirt” alguns
minutos mais tarde, contente por não ter clientes esperando para
entrar.
Rapidamente abriu as portas, desabilitou o alarme e abriu
todas as cortinas. A brilhante luz do sol se filtrou pelas janelas
com amparo UV. Era a temporada de “blue-hair”, à época do ano
quanto todos os idosos viajavam em bandos para o sul pelos
climas mais temperados do inverno e era a época mais ocupada
da loja. As vendas que fariam nos seguintes meses os
manteriam bem pelo comprido e ardente verão
quando os únicos clientes eram nativos que podiam
suportar as temperaturas mais elevadas.
Yvonne chegaria mais tarde e Danni estava
tão emocionada para dizer tudo como temendo
Brumas da Irlanda 1 Página45
fazê-lo, ao mesmo tempo. Quando Danni tinha dezesseis anos e
foi colocada na casa de Yvonne como menina de acolhida. Depois
de onze anos a cargo do estado, onze anos de ser colocada de
uma a outra família de acolhida, Danni chegou a Yvonne com a
expectativa de que logo se iria. Havia algo errado com Danni, algo
nela que a mantinha sempre longe de se encaixar. Ao menos isso
era o que aprendeu a acreditar quando uma família atrás de
outra a mandava de volta ao programa de acolhida. Não havia
razão para pensar que Yvonne Hearne não seria mais que só
outra em uma larga fila de decepções.
Mas Yvonne foi diferente a todos os outros. Ela criou seis
meninos, sobrevivido a três maridos e a dois de seus próprios
filhos e parecia saber o que Danni sentia antes que Danni o
fizesse. E por alguma razão, entenderam-se.
Com Yvonne, Danni aprendeu a respeito de confiança e
responsabilidade. Também aprendeu a fina arte de caçar
tesouros. Danni chegou a amar o negócio de antiguidades e a
provocação de encontrar peças perdidas de um jogo. Um
psicólogo diria que sua afinidade pelo perdido vinha de que Danni
sentia que era tal como ela, com partes pulverizadas de um tudo,
que tinham sido separadas, perdidas e estavam
sozinhas, abandonadas pelas famílias que já não as
apreciavam. Cada vez que recuperava a cadeira
ausente de um jogo de jantar ou resgatava o último
prato de um jogo de chá, ela sentia como se
restaurasse uma pequena parte de si mesmo. Era
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estúpido e um pouco louco, mas era o que era.
Yvonne estaria feliz por ela, mas também estaria
preocupada. Quem podia a culpar? Danni estava pensando em
voar meio mundo pela história que um homem que apareceu do
nada contou. Tocou o braço onde a pinta estava, pensando pela
milésima vez a respeito da forma em que seu polegar a tocou,
cintilando uma miríade de sensações que queimaram em suas
veias. O olhar em seus olhos quando a tinha observado… Ele
sabia sobre a pinta, trouxe uma foto da sua família e já tinha
comprado as passagens. Se não fosse sincero, não teria passado
pelo trabalho e o gasto de pagar as passagens, ou, sim?
Trabalhando rapidamente, Danni fez o balanço dos
registros do dia anterior e organizou tudo para o dia. Tentou
enfocar seus pensamentos no que estava fazendo, mas seguia
repassando em sua cabeça tudo o que Sean havia dito. Tinha um
pai que a procurou todos estes anos. Tinha pessoas que viviam
em alguma ilha da fantasia onde todos eram família, de uma
maneira ou outra. Era incrível e maravilhoso.
Enquanto revivia tudo o que Sean lhe havia dito, o mesmo
homem seguia arrastando-se dentro da sua cabeça e ela
se encontrou olhando para o vazio, pensando em
seus olhos, no profundo e rouco tom de sua voz….
No elusivo aroma dele; o sabão, a chuva e a calor,
tudo misturado em um cheiro intimamente
masculino e provocador. Inclusive enquanto lhe
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contava suas incríveis notícias, ela estava perdida nesse sensual
aroma.
Finalmente terminou suas tarefas para a abertura e
trouxe seu computador portátil do seu escritório para frente da
loja onde podia manter um olho nas coisas enquanto fazia um
pouco de investigação. Sentada no banco atrás do mostrador,
abriu a internet e uma janela do Google. Por um momento ficou
vendo a caixa de busca e depois escreveu nela Dáirinn MacGrath.
Zero coincidências apareceram. Ela tentou outra vez,
usando o nome da sua mãe, com um pouco, mas de êxito, mas
sua rápida exploração dos resultados não lhe mostrou nada mais
do que Sean já havia lhe dito. Não era surpreendente, em
realidade. Tinha desaparecido fazia vinte anos, antes que a
internet virasse a fonte de qualquer informação.
Tentando se decidir sobre o que usar em sua seguinte
busca, Danni teve uma sensação que a beliscou sussurrando por
sua espinha, assentando-se em sua nuca. Olhou para cima e
apanhou pela extremidade do olho um movimento na janela, e
quase saltou fora de seu corpo quando se virou. Sean estava
parado do outro lado do vidro, olhando-a. Por um
momento ela só pôde olhá-lo fixamente, arrebatada
pela crua beleza de suas feições e o olhar enfeitiçado
em seus olhos.
Vestia jeans desbotados e uma camisa
branca engomada sem pescoço que abraçava seus
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amplos ombros. Tinha três botões abertos na frente e chegava até
seus magros quadris. Não era musculoso como um levantador de
pesos.
Era mais gracioso que isso. De algum jeito lembrava a um
guerreiro de tempos antigos, alguém cuja vida dependia da sua
agilidade tanto como do seu poder. Pela centésima vez, pensou no
quase beijo da sua visão.
Pelo amor de Deus, era patética.
Ele sustentava algo, uma pequena caixa verde e a virava
em suas mãos enquanto a olhava. Ela pensava que ele nem
sequer era consciente de que o fazia. Deu-lhe um tremente
sorriso e lhe fez gestos para que entrasse, mas ele não se moveu e
não reconheceu sua saudação. No que estaria pensando? O que
pôs essa escura e pensativa expressão em seu rosto?
Ela desceu do banco e foi à porta. Mas quando saiu e
olhou onde ele estava parado, ele tinha ido.
Ela deu outro passo para fora, explorando a rua. Nenhum
carro ia pela curva, nenhum farol traseiro brilhava a distância. E
ninguém se afastava caminhando.
A compreensão lhe pegou duro. Tinha
imaginado tê-lo visto? Conjurado sua imagem com
seus pensamentos? Ou tinha sido tão irreal como o
Brumas da Irlanda 1 Página49
foi mais cedo em sua visão? Podia o ar ter trocado sem que ela
soubesse?
Impactada, retornou para dentro da loja, olhando sobre
seu ombro e pelas janelas ao sentar-se frente ao seu monitor. Ele
definitivamente não estava de pé lá fora, mas agora ela duvidava
se ele esteve lá na de verdade.
Embora ele fosse real quando foi à sua porta, reconfortouse com a ideia. Tinha o envelope que ele deixou como prova.
Tirou-o da sua bolsa e esvaziou o conteúdo sobre o mostrador.
Real, disse silenciosamente. Sentindo-se melhor, pegou o
itinerário que Sean tinha lhe dado e confirmou a ortografia,
escrevendo Ballyfionúir, Irlanda, em o buscador de internet em
seu computador. Uma mina de enlaces apareceu em sua tela.
Ela começou a selecionar e comprovou a lista,
encontrando informação turística a respeito da Irlanda em geral;
completada com fotos, hotéis e guias de cantinas típicas
britânicas, mas não muito de Ballyfionúir exclusivamente.
Um site na Web exibia um mapa que mostrava a serrada
costa sulista da Irlanda. Uma diminuta ilha jazia nos
subúrbios da costa como o ponto ao final de um
sinal de exclamação. Ilha de Fennore estava escrito
em cima. Uma flecha negra apontava a uma estrela
franja na borda mais oriental da ilha e identificava
a localização como Ballyfionúir. Ao pé do mapa
Brumas da Irlanda 1 Página50
havia alguns dados a respeito dela.
A Ilha de Fennore era uma mescla de exuberantes vales e
terreno rochoso, rodeada de um feroz mar, o qual era a fonte da
indústria principal da ilha. Uma abundância de peixes
prosperava nas enseadas resguardadas nas bordas sulinas da
ilha e o melhor o salmão da região podia ser encontrado lá.
As pessoas que viviam na Ilha Fennore se aferravam às
velhas tradições em tudo o que faziam; tanto que os intentos de
fazer uma ponte para cruzar o traiçoeiro mar entre a ilha e o
continente encontrou uma feroz oposição.
Não queriam estranhos cruzando para lá à vontade e não
lhes importava se significava que a facilidade de ir ao outro lado
seria negada também. Também recusavam permitir aos grandes
navios ou viajantes atracar no porto, apoiando-se somente em um
transporte pertencente a uma família para levá-los ao outro lado
quando a necessidade os forçava para fora da ilha. Danni teve a
clara impressão de que nada menos que uma crise seria
qualificada como necessária.
Isolada como estava, Ballyfionúir era
considerada por alguns como a última fortaleza da
Irlanda tradicional.
Havia uma pequena fotografia da proibida
ilha, fortificada com afiadas rochas e um íngreme
escarpado. Na distância os restos de uma torre
Brumas da Irlanda 1 Página51
derrubada e de paredes de pedra desintegradas estavam de pé na
penumbra de uma tormenta em florações. Ela o olhou fixamente,
pensando no frio vento que batia a jaqueta de couro de Sean
enquanto o seguia à caverna e tremeu.
O sino sobre a porta soou e duas mulheres entraram com
meninos nas costas. Danni deu um grunhido mental.
Os meninos e as antiguidades nunca eram boas
companhias. Fechando a tampa do seu computador e colocandoo sob o mostrador, Danni forçou um sorriso e foi atender; ou
interferir se fosse necessário. As mulheres estavam muito metidas
em sua conversa e recusaram seu oferecimento de ajuda, assim
Danni ficou atrás, tentando não parecer intrometida enquanto
permanecia alerta.
— Vinte libras que o menino com crostas nos joelhos
quebra algo antes de ir.
A profunda voz lhe falando em seu ouvido a fez dar um
surpreso grasnido. Ela se girou para encontrar Sean de pé atrás
dela, o suficientemente perto para tocá-lo.
— Quando entraste? — Disse ela com uma
mão em sua garganta.
— Enquanto estava ocupada espreitando a
suas clientes. — Respondeu ele com um sorriso.
Brumas da Irlanda 1 Página52
Seu sorriso a pegou de surpresa. Quando o viu de pé em
seu alpendre essa manhã, sorrindo com duas covinhas
sobrecarregadas em suas bochechas, quase não o reconheceu.
Nunca lhe tinha sorrido na visão e isso mudava completamente
suas feições. Mas Sean Ballagh era um homem difícil de não se
reconhecer, sem importar o que estivesse fazendo.
— Te vi antes. — Disse ela — Na janela. Por que não
entrou?
— Vi que estava ocupada — disse ele.
Ela esperava ter podido ocultar seu alívio. Não tinha
sonhado.
— Necessitava algo? — Perguntou ela.
— Pensei que possivelmente teria algumas perguntas —
disse — E vim te dizer quando te veria outra vez.
Ela assentiu, inclinando sua cabeça para trás para olhá-lo
nos olhos. Facilmente ele media mais de metro oitenta e cada
centímetro estava envolto com duros músculos definidos. Ela
podia ver os músculos dobrando-se quando se movia,
pressentindo o poder que rondava debaixo de suas
roupas casuais. Perguntou-se o que faria para
manter-se em tal formidável forma.
Brumas da Irlanda 1 Página53
Deu-se conta que ele a estava observando e ela estava o
olhando fixamente e sentiu seu rosto ruborizar com vergonha.
— Eu, hummm…. Pensei em algo que queria te perguntar,
como… Nunca disse como me encontrou.
Seu olhar parou em seu rosto por um momento mais
longo e ela sentiu esse estremecimento em seu interior. Que ele
pudesse fazer isso só com um olhar a assustava quase tanto
quanto as visões.
— Foi uma estranha coincidência, verdade seja dita. Vi-te
na televisão. As sobrancelhas de Danni se juntaram.
— O que? Nunca estive na TV.
— Foi no noticiário. Faz algum tempo. Estava no hospital.
Ela franziu o cenho, Danni apanhou seu lábio entre seus
dentes… E então recordou. Faz alguns meses, Yvonne perdeu seu
filho mais velho e o mais novo na guerra do Iraque. Um pouco
depois, dessa tragédia ela teve um ataque do coração que quase a
matou. Os meios de comunicação a tinham declarado o rosto da
tragédia Americana e tentaram entrevistá-la com suas
câmaras, microfones e intermináveis perguntas.
Danni ficou furiosa quando chegou ao
quarto do hospital de Yvonne um dia para
encontrar uma equipe de notícias local tentando
colocar suas câmaras, sem se importarem que
Brumas da Irlanda 1 Página54
estivessem intrometendo-se em uma ferida sensível e dolorosa.
Escandalizada, Danni protestou pela intrusão, o qual só
os tinha enviado a investigarem quem era ela. Descobriram sua
história e a incluíram um segmento sobre Danni, filha de
acolhida que foi salva por Yvonne Hearne, mãe e viúva. As
notícias tinham sido poucas essa semana e o artigo foi
selecionado por um canal nacional afiliado e transmitido em
Today Show. O telefone tocou incansavelmente durante dias
depois disso e o negócio na loja duplicou. Felizmente, até esse
momento as filhas de Yvonne tinham vindo de onde moravam em
Denver e Boston para ajudar.
— E isso foi o que te guiou para mim? — Disse a Sean.
Ele assentiu. Tinha sentido e mesmo assim, igual a Sean,
havia algo mais em sua explicação do que ele revelava.
— Conduziu esses repórteres muito bem. — Disse ele.
— Eu corri.
— E muito rápido. — Acrescentou ele.
O encanto, de suas covinhas, desconcertava-a.
Parecia suficientemente natural, mas cada instinto
que tinha lhe dizia que era uma tela do que estava
pensando. Ele pareceu dividido essa manhã na
mesa da sua cozinha e ela teve a sensação de que
ele não queria estar lá, embora nada em suas
Brumas da Irlanda 1 Página55
palavras confirmassem isso.
— Onde estava? — Perguntou ela — Quero dizer, quando
ela viu na TV.
— No Sulley’s em Ballyfionúir. Estava tomando uma
cerveja.
— A história de Yvonne foi ao ar na Irlanda? — Disse ela,
com incredulidade em seu tom.
— É uma desconfiada, ou, não? Está pensando que sou de
um país terceiro mundo? Obtemos nossos shows entubados como
você.
Entubados? Queria dizer por cabo?
— Quer que te mostre um recibo para provar onde estava?
— Perguntou ele, não entendendo seu cenho.
O rosto de Danni ficou vermelho outra vez.
— Não sou desconfiada. É só que segundo minha
experiência as coisas raramente são o que parecem ser.
— E o que é o que isto parece ser?
— Incrível, se quiser a verdade. Só apareci
na TV no dia que você estava em algum lugar
vendo-a.
Brumas da Irlanda 1 Página56
— Coisas incríveis acontecem todo dia — disse ele,
sacudindo sua cabeça. A amargura estava de volta — Assim é
como a metade das pessoas que conheço termina casada.
— Assim também é como trinta e oito por cento delas
terminam divorciadas — Contra-atacou ela.
— Bem, então só tenhamos sexo responsável e nos
esqueçamos do matrimônio.
As palavras foram soltas ligeiramente. Ele pretendia tirar
sarro e nada mais; podia dizer pelo olhar em seu rosto. Mas de
algum jeito a vibrante consciência entre eles fez à desdenhosa
brincadeira parecer uma sugestão que fez seu estômago apertarse.
Ele apanhou o olhar dela com o seu e ela sentiu que caía
no agitado mar de seus incomuns olhos. A sensação a fez sentirse enjoada e a assustou, tudo ao mesmo tempo.
— Sinto muito — disse ele, brandamente, com a baixa
vibração de sua rouca voz esfregando-se contra ela — Isso foi
imprudente. Desconcertou-me com todas as perguntas.
— Não esperava que tivesse perguntas? —
Perguntou.
— Não sei o que esperava. — Seus olhos se
obscureceram em um misterioso verde enquanto
procuravam seu rosto, demorando em sua boca
Brumas da Irlanda 1 Página57
com um toque que quase podia sentir. Quase saborear. Seu
elusivo aroma tentava seus sentidos e a coagia a inclinar-se mais
perto, a respirar mais profundo. Pelo amor de Deus, O que tinha
este homem que a fazia estar tão consciente dele?
— É adorável quando ruboriza — disse ele.
Seu escuro tom parecia implicar que ela era culpada por
isso, mas o olhar em seus olhos dizia que realmente não lhe
importava. No espaço de um batimento do coração, a fricção
faiscou entre eles se acendeu e começou a queimar qualquer
rastro de sentido comum que pudesse haver possuído. Ela não
podia romper o agarre do seu olhar. Não podia deter o fôlego
esmigalhado que tomava.
— Diga-me outra vez, como é que estamos aparentados —
disse ela, com sua voz embaraçosamente rouca e baixa.
Finalmente, Sean desviou os olhos.
— É muito distante para seguir o rastro — disse ele — E
verdade seja dita, não estou muito seguro de qual é nosso
parentesco. As linhas familiares não são sempre diretas, não é
assim? Mas em Ballyfionúir, todos são familiares de
uma maneira ou outra. Diz-se que o velho Collum
MacGrath foi um menino brincalhão e as garotas o
amavam muito. Provavelmente engravidou a
metade do povo.
Brumas da Irlanda 1 Página58
— Oh — disse ela.
— Ou você quis dizer que somos Kissing cousins3?
A pergunta levou seu olhar à boca dele e depois ao verde
prateado de seus olhos.
— Está tentando fazer- me sentir incômoda? — Perguntou
ela, tentando parecer brava, insultada, mas na verdade
parecendo rouca e com saudade.
— Talvez.
— Por quê?
— Você fala como se me conhecesse — disse ele — Tenho
a estranha sensação de que pode ler minha mente, embora saiba
que não é possível. Verdade?
— Não — respondeu ela, mas isso não era de tudo certo e
ambos sabiam.
— Suponho que não esperava que isto fosse tão pessoal.
Pensei que estaria feliz quando te contasse sobre seu pai e
simplesmente viria comigo.
Ele não esperava que seu encontro fosse tão
pessoal? A incongruência disso golpeou-a em
tantos níveis que não pôde começar a decifrar qual

3
Kissing cousins. Expressão inglesa que significa parente (cousin é primo) ou amigo tão próximo. Para saudá-lo com um beijo. Ao ser eles quase primos,
ele o utiliza para graceja-la. Trocadilho impossível em português.
Brumas da Irlanda 1 Página59
era a mais problemática. Com uma risada incrédula, ela sacudiu
a cabeça e começou a dizer algo, mas a sensação de comichão ou
estar sendo observada a deteve de novo. Olhou sobre seu ombro e
encontrou às duas clientes de pé no corredor, olhando-a
fixamente. Simultaneamente cruzaram por seus rostos a
expressão de “te pegamos” antes que olhassem rapidamente para
o outro lado. Junto a elas, seus filhos riam.
— Shhh — Uma das mulheres disse bruscamente,
puxando ao menino para mais perto de uma forma protetora.
No instante seguinte se foram precipitadamente pela
porta.
— Isso foi estranho — disse Danni, movendo-se para fazer
uma rápida inspeção de onde estavam. Só havia enormes móveis
lá. Nada o suficientemente pequeno para roubar, mas certamente
elas tinham atuado de forma estranha.
Sean se via igualmente confuso, mas não comentou nada.
O sino sobre a porta soou uma vez mais e uma mulher maior com
uma bolsa do tamanho de uma bolsa de viagem entrou. Era uma
cliente regular que tinha fascinação pelos jogos de chá.
Sorriu quando viu Danni e se moveu para ela.
— Está ocupada. Deveria ir — disse Sean. —
A que hora sai?
— Às cinco.
Brumas da Irlanda 1 Página60
Ele assentiu rapidamente e se dirigiu à porta. Ela o
chamou antes que chegasse a ela.
— Sean, te verei depois?
— Sim.
Ele foi ao mesmo tempo em que a porta se abria outra vez
para deixar entrar um casal tão concentrado em sua conversação
que quase se chocaram com ele. Danni ficou olhando fixamente
por um longo momento, sem precaver-se a princípio de que a
mulher maior com a grande bolsa se deteve junto a ela e estava
falando.
— Sinto muito. O que disse?
— Disse não, jantarei com meu filho e sua esposa esta
noite. — Disse a mulher de cabelo branco com um feliz sorriso.
— Muito bem… Bem isso será lindo para você — disse
Danni. — Está procurando algo em particular hoje? Acabamos de
receber um jogo antigo de taças e pires com cravos rosa da
Shelley. Gostaria de vê-los?
Esteve ocupada pela seguinte hora e então
finalmente chegou um descanso. Danni sabia que
deveria estar feliz pelo fluxo do negócio, mas hoje
desejava dirigir-se para o centro comercial em seu
lugar. Com um profundo fôlego, fez café e depois
retornou ao mostrador e a seu computador.
Brumas da Irlanda 1 Página61
A página sobre Ballyfionúir ainda estava selecionada, e
a leu uma vez mais antes de selecionar o botão de volta para sua
busca original. Continuou examinando os vínculos até que um na
metade da página apanhou sua atenção.
Ballyfionúir: o Vale do Fantasma Branco. A resumida
descrição chamou sua atenção por palavras como antigo, míticas
e legendárias. A página se abriu com a fotografia de um
panorama de um vale verde esmeralda delineado com rocha de
piçarra cinza, emoldurado por um espumante oceano e um
ameaçador céu.
Reconheceu-o, é obvio. Nesta manhã, estava de pé naquele
lugar na visão com Sean.
Ela olhou fixamente a foto. De fato, não duvidava que
esse lugar existisse, mas vê-lo confirmado pela realidade da
tecnologia, o fazia de alguma forma surrealista e o desassossego
se removeu no ar a seu redor.
Ela olhou para cima, explorando a quieta e silenciosa
loja. Na parte de trás um relógio de pêndulo fazia “tic”
ruidosamente. Junto a ele, outro fazia “toc” fora de
ritmo. O efeito era desconcertante.
Sentindo-se apreensiva e nervosa,
retornou sua atenção a seu computador, mas um
instante depois um som proveniente da parte
detrás da loja a fez levantar-se. Ela se moveu pelo
Brumas da Irlanda 1 Página62
corredor, passando os gabinetes de mogno e mesas
ornamentadas, os abajures de cristal e os objetos da coleção de
antes da Revolução Francesa. O som se ouviu outra vez, desta vez
mais forte. Passos?
— Yvonne? — Chamou, embora soubesse que não
poderia ser ela. A porta traseira tinha um alarme colocado de
incêndios que se acionava quando se abria. Só a desabilitavam
quando havia uma entrega e só podia ser tirado o alarme de
dentro. Yvonne teria que ter chegado pela porta da frente e
embora ela estivesse entretida com seu computador, Danni teria
ouvido o sino soar.
Outra vez, o estranho som de passos retornou. Desta
vez mais claro, mais forte. Não eram pisadas, mas… Era algo
mais feroz. Ondas, rompendo-se contra a praia. Agora parecia vir
de todos os lados ao redor dela.
Danni franziu o cenho, virando-se em um pequeno círculo,
olhando com crescente horror como tudo começava a desvanecerse; o grande baú, os altos roupeiros. As mesas e abajures,
cadeiras e antigos sofás; era como se estivessem esmaecendo,
tornando-se impossivelmente translúcidos. Danni
engoliu as cócegas de medo na parte de trás da sua
garganta, tentando entender que seus olhos lhe
estavam jogando truques, mas o ar se encheu com
pressão e soube o que aconteceria. Tal como sabia
que o que fosse que estava esperando além da loja
Brumas da Irlanda 1 Página63
não seria nada bom.
Podia sentir no peso de cada respiração.
Como se liberasse com seu reconhecimento, o quarto
ondeou e o ar tentou girar dando a volta. Danni brigou com ele
com tudo o que tinha. Podia ver as imagens movendo-se mais à
frente do quarto, mas tentou não olhar, temerosa agora de que
sua atenção daria substância a essas formas.
Afastou-se, correndo para o mostrador, olhando seus
pés e não a pulsante transparência seguindo-a a cada passo do
caminho. Alcançou o banco, agarrando-o para assegurar-se de
que era sólido quando uma rajada gélida se filtrou pelo piso,
trazendo com ela o aroma salino e úmido da névoa. Ela ouviu um
som de chapinho, como a chama de uma vela lutando contra uma
fibra de umidade. O brilhante sol se meteu atrás de uma nuvem,
embora Danni soubesse que o céu estava claro e azul. Em cima,
as luzes zumbiram, voltando-se cegas por um instante antes que
se apagassem. Um pequeno som escapou dos lábios de Danni ao
levantar lentamente sua cabeça.
O ar girou inundando-se com um repentino
vaio. Danni não podia se mover enquanto esperava
que a visão de Sean aparecesse junto a ela, turvada
pela antecipação que dançava sobre sua pele,
enquanto o medo carcomia sua espinha dorsal.
Mas ele não chegou. Só no mundo mutante,
Danni lutou por respirar. Onde ele estava? E
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quando começou a sentir-se a salvo ao seu lado?
A loja se desvaneceu completamente, deixando-a de pé
em um cemitério no exato lugar onde esteve parada com Sean
essa manhã. Só que desta vez estava por sua conta, abandonada
inclusive por sua mesma alucinação.
Ela olhou ao redor com os olhos muito abertos,
captando a dura e rochosa parede que caía para o oceano, a cama
de doce grama debaixo dos seus pés, o infinito horizonte. Era a
mesma dramática vista que viu na internet a alguns momentos.
O Vale do Fantasma Branco.
Na distância, viu um estranho monumento de algum
tipo. Três enormes rochas ocupavam um quarto do topo, como
soldados levando seus feridos sobre suas costas. Um pouco
dourado brilhava da sua superfície, mas estava muito longe para
ver o que era.
Um raio serpenteou do céu arroxeado e o ar ficou com o
aroma do sulfureto. A poderosa maré estrelando-se contra as
rochas fazia com que o chão debaixo de seus pés tremesse. A
chuva golpeava seu rosto com fortes gotas.
Ela olhou para baixo, piscando enquanto
as gotas caíam mais rápidas e o frio alcançava seus
ossos. A tumba estava alagada agora, a terra tinta
Brumas da Irlanda 1 Página65
de vermelho, um furioso emplastro no verde pasto. Emoções
encontradas brigaram dentro dela.
Estava contente de que a tumba já não estivesse aberta,
que já não revelasse os torcidos corpos no fundo, mas parte dela
queria deixar-se cair e cavar, cavar até que pudesse ver outra vez
seu próprio rosto e o do adolescente que jaziam debaixo.
Na distância, um rebanho de ovelhas balia e pastava,
movendo-se como nuvens, obedecendo a um patrão que ela não
podia ver. Então repentinamente um dos animais brancos se
levantou em suas patas traseiras e a olhou. Enquanto ela
observava, o ar ao redor dela brilhou com uma corrente chapeada
que rangeu e jogou faíscas. Danni tentou afastar-se, mas suas
pernas se sentiam como de madeira, cravadas ao esponjoso chão
debaixo de seus pés.
— Quero ir — disse ela em voz alta — Quero ir. Agora.
Mas não tinha um guia desta vez. Ninguém que lhe
concedesse seu desejo. A paisagem ante ela não se desvaneceu,
não se alterou. E qualquer que fosse o mundo que entrou se
mantinha firme. Ela apertou os olhos, silenciosamente
orando para escapar forçando-se a retornar para
casa.
Sentiu uma mudança no ar que era ao
mesmo tempo estranho e familiar. Lentamente
com terror, enquanto se afundava mais fundo na
Brumas da Irlanda 1 Página66
terra, ela abriu os olhos.
Uma mulher estava de pé ante ela. Vestida de branco
dos pés à cabeça, tinha o cabelo prateado sobre seu ombro que
lhe chegava até os joelhos. Balançava-se e torcia com o vento.
Com um sorriso frio tirou um pente prateado do seu etéreo
vestido branco e o passou por seu cabelo, enquanto observava
Danni com olhos pálidos e estreitos. Cada passe do pente
prateado fazia com que seu cabelo faiscasse como um espigão.
Ela se deteve então e lhe ofereceu o pente.
Danni o olhou fixamente, viu as gravuras concêntricas,
estranhas em sua coluna que jogavam com a visão e que
exacerbavam seu medo até que ameaçaram a tragar
completamente. A mulher estava sacudindo a cabeça,
murmurando um cântico.
— Quero ir para casa — Disse, mesmo enquanto sua mão
se elevava e o desejo de pegar o pente levava seus dedos mais
perto dele. Uma luminescência brilhou da mulher branca e o
pente pareceu tremer pelo poder dentro dele. Atraía Danni como a
um chamariz, convidando-a a tocá-lo.
Então de repente a mulher levantou seu
rosto ao céu hostil e lançou um lamento fúnebre,
sua voz uma arma que se estrelou com a maré em
uma rajada de caos agitado.
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Danni tampou os ouvidos com suas mãos e gritou para
bloquear o horrível som, mas a mulher branca chiou mais forte e
mais rouca. As ruminantes ovelhas se detiveram e voltaram para
o mordaz som. Inclusive o vento cessou por completo.
Danni caiu de joelhos em rendição. A lama da tumba
penetrou em suas calças e a sugou mais profundo, convertendose em areias movediças que queriam tragá-la, com o fim da sua
resistência, o chiado cessou e o silêncio ressonou forte em seus
ouvidos. Ela se deu conta com horror que suas pernas estavam
dentro da tumba.
Um par de sapatos entrou em seu campo de visão e
como se fossem um salva-vidas, Danni se enfocou neles,
levantando seus olhos deles até umas pernas magras e a uma
saia dessas que se enrolam ao redor. Ela se deteve, reconhecia o
desenho e o tecido, embora rechaçasse a possibilidade e então
estava olhando um rosto que conhecia muito bem porque
representava cada fantasia de sua infância.
— Mamãe? — Sussurrou Danni.
E era sua mãe, de pé, ali junto a ela, vestindo a
mesma saia e a mesma blusa que na fotografia que
Sean lhe tinha dado. Sem nenhum esforço, sua mãe
a tirou da lama que a sugava na tumba. Danni
sentiu o roçar de seus dedos, o calor de sua carne
que realmente não existia.
Brumas da Irlanda 1 Página68
Tomando sua mão, a mãe de Danni a afastou da tumba,
por uma brilhante porta verde que apareceu do nada e levava
para um quarto lotado com móveis e adornos. Danni olhou ao
redor, uma estranha e distante parte dela tomou nota da
surpreendente grade em uma mesa auxiliar pela que passou, com
as faíscas do cristal dos abajures fazendo poças de luz em um par
de envelhecidas cadeiras de pele. Enormes pinturas lotavam cada
polegada do espaço das paredes.
Ela se moveu para um baú de pinheiro junto a uma
janela. A centenas de anos, o antigo baú guardaria tesouros da
família. Danni temia ver o que continha agora.
Sua mãe usou uma chave que pendia de uma corrente
para abri-lo. Abriu a tampa e removeu um grande pacote envolto
em tecido. Parecia pesado, mas ela o pegou como se parecesse do
mais fino vidro. Colocou-o sobre a mesa auxiliar e começou a
remover brandamente o tecido. A boca de Danni estava seca, seu
coração palpitava com força. Não sabia o que havia no centro do
pacote, mas a cautelosa forma em que sua mãe o dirigia a
assustava. Danni estava sacudindo sua cabeça, querendo deter
sua mãe enquanto ela terminava e se afastava para o lado
rapidamente. Confusa, Danni olhou fixamente ao
objeto que tinha revelado.
Era um livro. Ela deixou sair um tremente
fôlego. Esperava algo pior, algo ameaçador.
Brumas da Irlanda 1 Página69
Sem saber o que sua mãe queria, Danni deu mais um
passo para perto. O livro era pomposo e irregular; não
exatamente quadrado nos cantos. Facilmente do tamanho de uma
almofada de uma cadeira. Sua negra capa era feita de pele,
biselada com espirais concêntricas, como o pente que a mulher
de branco lhe ofereceu. Ouro encravado como joias e filigrana de
prata se torciam e entrelaçavam ao redor das bordas. Um trio de
linhas conectava uma misteriosa fechadura fixada sobre
irregulares fios de grosso papel cor nata. Havia mais símbolos;
como letras, mas nenhum que jamais tivesse visto antes,
colocados em fila através da capa frontal. Ela estendeu a mão
para tocá-los, mas sua mãe agarrou sua mão e a deteve.
Lentamente sacudindo a cabeça.
Com suas mãos convertendo-se em punhos, Danni
deixou cair sua mão ao seu lado. Gradualmente se voltou
consciente do zumbido baixo tremendo no ar. Devorava a boca do
seu estômago e enervava seus já tensos nervos. Tinha calor e se
sentia pegajosa e não queria nada mais que afastar-se, porque de
repente já não queria tocar no livro. De repente queria ficar
afastada dele.
O zumbido se voltou monótono, agudo e
pulsou ao redor dela. Muito baixo para ser ouvido,
muito insistente para ser ignorado. Surgia do chão,
caia do teto, empurrava e pressionava as paredes
até que Danni pensou que a esmagaria como uma
lata de alumínio. Um calor começou a brilhar em
Brumas da Irlanda 1 Página70
sua mente, um ardente carvão que flamejava em resposta. Com
os olhos apertados fortemente, Danni tentou força-lo a afastar-se,
imaginando-se a si mesma como um punho, abrindo-se contra a
resistência, expandindo-se e estendendo-se até que criou um
espaço dentro dos limites e pôde respirar outra vez. Não soube
como e o que tinha feito, mas a pressão aliviou.
Ela abriu os olhos. Sua mãe estava de pé rigidamente a
sua esquerda, com o rosto branco e rígido, com sua cara fixa com
uma emoção que Danni não podia decifrar. Havia medo e
antecipação e ambas estavam dirigidas para Danni.
Como se fosse um sinal, elas voltaram sua atenção de
volta ao livro negro enquanto uma negra e gorda aranha estava
na mesa. Danni a fulminou com o olhar, querendo-a longe,
querendo vê-la jogada dentro de um ardente fogo e convertida em
cinzas. Em algum nível que não entendia, sabia que o livro era o
responsável pelo doentio sentimento em suas vísceras.
Sem nenhuma advertência, os três círculos entrelaçados
se desfizeram e a capa se abriu, mostrando páginas de grosso
papel em um arco rabiscado. Tanto Danni como sua mãe
ofegaram e cambalearam para trás.
E um escuro e fecundo fedor encheu o
quarto, encheu Danni. Ela tentou afastar-se dele,
tentou dar outro passo para trás, mas agora não
podia se mover. Seus olhos estavam fixos nas
páginas que batiam as asas, sua mente encantada
Brumas da Irlanda 1 Página71
pelo cremoso borrão de seu movimento. O que era este livro?
As páginas pararam, deixando o livro aberto pelo meio,
estendido como algo vulgar, como algo antinatural. Ela estava
sacudindo a cabeça enquanto a primeira gota vermelha se filtrava
pelo lombo até a polida superfície da mesa. Como mel, espessa e
pegajosa, chegou à borda e depois gotejou pelo lado, seguindo o
intrincado labirinto da grade antes de derramar-se no piso.
Uma vez mais, o ar se voltou muito pesado para
respirar. Arrancando seu horrorizado olhar da umidade que
jorrava, Danni deu um empurrão mental contra o peso que
suportava, ganhando só um pequeno espaço desta vez.
O atoleiro vermelho cresceu, borbulhando do lombo e
estendendo-se. Era sangue, pensou. A superfície da mesa estava
coberta e agora o líquido se derramava pela borda, mais e mais
rápido, jorrando até o piso em uma maré carmesim. Em um
momento estaria a seus pés e então a tocaria como os pegajosos
tentáculos de um pesadelo inevitável. Ela quis gritar. Precisava
gritar.
A pressão continuou crescendo ao redor dela,
dentro dela. Pressionava seus ouvidos, pesava em
seu coração, em seus vazios pulmões, em seus
pensamentos. Estava mais além do ponto de
Brumas da Irlanda 1 Página72
distinguir entre a realidade e a visão. Isto estava acontecendo e
não podia detê-lo. Desta vez, não havia saída.
A escuridão nublou sua visão, e ela soube que se não
respirasse logo ia desmaiar, ali mesmo, nesse momento. E se
sucumbia não haveria nada que detivesse o gotejar de cobrir seus
pés, suas pernas, de entrar em sua boca, em sua mente.
Danni tomou uma profunda e ofegante respiração.
Como um detonante, o som disparou pelo quarto. As
páginas do livro começaram a abanar-se outra vez, furiosamente
voltando para trás, para frente, criando um nocivo vento que lhe
levantou o cabelo e ardeu suas bochechas.
Danni fez a única coisa que pôde. Deixou livre o grito
preso dentro do seu medo e o soltou ao redor do quarto. Sentiu-o
rasgar, destroçar, fazendo em pedaços o muro invisível ao redor
do terrível livro e então se liberou.
O livro se fechou de repente com um bang que ressoou,
e os nós de espirais da fechadura pareceram apressar-se para
frente e unir-se, emparelhando-se com crua e sinistra alegria
antes de fechar-se com um metálico chiado.
Antes que pudesse tomar uma segunda
respiração, o livro se desvaneceu, depois a mesa e o
quarto. Ela estava parada na copiosa chuva com
sua mãe outra vez e o ar era puro e doce. Ela o
puxou a baforadas, olhando fixamente a sua mãe
Brumas da Irlanda 1 Página73
enquanto o choque ou o frio ou ambos derrubavam seu corpo.
— O que foi? Não entendo o que aconteceu. — Tentou de
dizer.
Mas suas palavras eram balbuciadas, tragadas pela
enormidade do seu medo. Um olhar de dor retorceu as feições de
sua mãe e ela começou a dissolver-se.
— Não — Danni gritou.
Mas em um instante ela se foi.
Danni olhou fixamente a estranha terra e de repente
uma labareda de emoção converteu o terror em frustração e
irritação.
— Agora o que? — Gritou às ovelhas e às nuvens — O
que se supõe que devo fazer agora?
E então uma palavra tomou forma na cabeça de Danni,
como um broto empurrado da negra terra, convertendo-se em um
verde caule e depois em uma florescente flor de entendimento. Foi
seguido por outra e depois por mais.
Fennore. O Livro de Fennore.
— O que é? — Disse Danni com uma
exalação — O que é, o que quer que eu faça? Nem
Brumas da Irlanda 1 Página74
se quer sei onde estou. Ouve-me? Onde diabos estou?
Ninguém respondeu sua mãe não reapareceu, mas
outra tremente imagem apareceu de uma escura parte em sua
mente. Ondeando antes de enfocar-se de repente.
Em casa.
Este terrível lugar era seu lar.
Brumas da Irlanda 1 Página75
Capítulo 4
O Livro de Fennore, Danni aprendeu através das
supostamente intermináveis páginas da Web que tinha lido entre
clientes, era um antigo texto que se acreditava era anterior ao
Livro do Kells; o iluminado manuscrito escrito em algum
momento do século VIII. O Livro do Kells era famoso por suas
ilustrações engenhosas e pela obra de arte impressionante
entrelaçada no texto. Contava a história do cristianismo,
combinando os evangelhos com os retratos, as mesas canônicas e
os símbolos complexos. Mas enquanto o livro estava dedicado ao
cristianismo e era um tesouro histórico da Irlanda, o Livro de
Fennore tratava um lado mais escuro da cultura irlandesa; a
parte que entrava na superstição e o nascimento de seus
antepassados pagãos. Seu salto à fama se produziu em forma da
sinistra lenda e tradição condenatória.
E o Livro do Kells era real e estava exposto
em Dublin. O Livro de Fennore era só um mito.
Ou, ao menos, as numerosas páginas que
tinha lido assim o afirmavam.
Brumas da Irlanda 1 Página76
Danni tentou consolar-se nesse consenso. O Livro de
Fennore não existia. Igual ao homem do saco, ou o monstro do
Lago Ness, não era real. Entretanto, ainda podia cheirá-lo, sentilo ainda no ar. Ainda via o sangue filtrar-se pelas páginas e sentia
essa vibração escura e malévola abrir caminho através de seu
corpo.
Tudo o que tinha visto em uma visão. Não podia
imaginar o que seria realmente estar em sua presença. Não
queria sequer pensar nisso. Mas havia uma razão pela que sua
mãe lhe mostrou o Livro de Fennore e Danni tinha medo de que
tivesse sido uma advertência do que estava por vir. Pelo que
poderia se ver obrigada a confrontar.
Esfregou os olhos. Se isso não a fazia soar como uma
lunática, não sabia que o faria. Fennore, leu, vinha da palavra
gaélica fantasma branco. Precaveu-se de que Fionúir, como em
Ballyfionúir, era catalogado como um derivado. O fantasma
branco. Seria ela a mulher que apareceu para Danni? Sem
dúvida, isso parecia.
Alguns peritos especulavam que o fantasma branco foi
uma sacerdotisa pagã antes do nascimento de Cristo. O
Livro de Fennore, segundo eles, era seu guia para o
mundo da magia negra. Outros pensavam que o
livro era propaganda criada pelo último dos
sacerdotes druidas para inculcar o medo em seu
minguante rebanho de crentes.
Brumas da Irlanda 1 Página77
Acredita-se que nossos antepassados eram antigos
druidas, a voz de Sean sussurrou em sua cabeça.
Tudo era uma conjetura, é obvio, porque não havia
provas tangíveis de que o Livro de Fennore fosse nada mais que
uma lenda amplamente difundida. Entretanto, a controvérsia
sobre quem tinha escrito o livro fazia estragos. Danni não podia
deixar de ver a ironia em uma discussão sobre quem pôde ter
escrito o livro de que todos estavam de acordo que não existia.
A disparidade se reduzia quando se tratava do conteúdo
e o propósito do livro. Todas as partes concordavam que o Livro
de Fennore foi criado para ser uma ferramenta temível capaz de
aproveitar o poder do universo. O que isso significava seguia
sendo desconhecido. Do mesmo modo, como todo esse poder
poderia ser utilizado era também um mistério.
O que parecia claro para todos era que o Livro de
Fennore não devia ser usado levianamente. Todo esse poder não
era de graça. Como com a maioria dos mitos religiosos, os dons
que o Livro de Fennore outorgava levavam indevidamente à
tragédia e à morte, o que é pior, alguém tão parvo para usá-lo
para seu benefício pessoal poderia em última
instância dar rédea solta no mundo a um mal de
dimensões inimagináveis. Não podia ser confiável, o
Livro de Fennore não obedece a nenhuma lei do
homem; valesse a pena ou não.
Brumas da Irlanda 1 Página78
— Genial, — murmurou Danni — E por que minha mãe
tinha todo o mal do universo oculto em um cofre antigo?
Necessitaria um historiador para dar sentido a tudo o
que leu e Danni estava muito longe disso. Mas parecia que por
cada perito refutando o livro e seus poderes, havia outro que
tinha provas de que ele existiu em algum momento, inclusive se
já não existia. No reino infinito da crença, o Livro de Fennore
tinha uma grande quantidade de seguidores. Havia inclusive uma
foto dele, desenhado em uma revista por um monge que tinha
vivido fazia setecentos anos.
Toda a pele do corpo de Danni pareceu esticar-se
enquanto ficava olhando o desenho. Tinha a correta forma
assimétrica, a picada escura da pele, o vigamento de prata e ouro
e o brilho das joias. Entretanto, tinha fracassado na hora de
duplicar o nó que o fechava fortemente. Não era de sentir
saudades, tinha sido complexo e estranhamente fluido.
Mas para algo que se supunha que não era real, o
monge e ela o imaginou da mesma maneira.
Danni estremeceu, perguntando se o monge
haveria sentido o zumbido, que ainda parecia vibrar
em seus ossos… ou teria visto o líquido espesso e
viscoso escapando de suas páginas. Alguém teria
Brumas da Irlanda 1 Página79
mostrado o livro ao monge como sua mãe o mostrou a ela? Se for
assim, quem teria sido? E por quê?
Cobriu o rosto com as mãos. Doía-lhe a cabeça. A mente
lhe doía. Mas sentia como se estivesse chegando a algo e que se
continuasse com isso, descobriria o que era.
Suspirando, abriu o seguinte enlace que sua busca
descobriu. Este a levou a um artigo dos arquivos de Irish Teme,
intitulado “A Sangrenta Ilha de Fennore”. A data do artigo era
outubro de 1999. Leu a primeira linha duas vezes, deixando-se
afundar nela antes de continuar.
O décimo aniversário dos assassinatos e do suicídio que
sacudiram à diminuta aldeia pesqueira do Ballyfionúir transcorreu
com pouca cerimônia e sem resposta.
Resposta. Não parecia haver nada disso em seu mundo.
Era algo que Danni desejou e temeu toda sua vida.
Embora as autoridades insistam que a investigação do
desaparecimento e provavelmente assassinato de Fia McGrath e
seus filhos continue até que os encontrem ou recuperem seus
corpos, admitem que a possibilidade de que a jovem
mãe e seus filhos estejam vivos é escassa ou
inexistente. O triplo assassinato dos MacGrath
seguido pelo aparente suicídio de seus atacantes
alcançou términos sensacionalistas quando dois
corpos adicionais foram encontrados mais tarde em
Brumas da Irlanda 1 Página80
uma tumba sem nome, com o que o número de mortos se elevou a
seis. Uma das vítimas foi identificada positivamente como o filho
do presumido assassino, Niall Ballagh.
Aturdida, Danni fez uma pausa e leu de novo. Niall
Ballagh era o possível assassino? Niall Ballagh? Relacionado com
Sean Ballagh?
Os rumores de que o livro mítico de Fennore foi
encontrado na ilha e foi o catalisador da violência que ocorreu essa
noite se somaram ao mistério que rodeia os macabros e brutais
assassinatos e tinha dado início a uma busca internacional das
vítimas, que nunca foram encontradas. Cathán McGrath, marido e
pai de três das vítimas, é o único sobrevivente conhecido. O
testemunho de MacGrath fez uma descrição de Niall Ballagh como
um homem retorcido e ciumento na matança, o qual teria
assassinado à mulher de MacGrath e a seus filhos e ferido
gravemente Cathán McGrath.
Usando a descrição de MacGrath sobre os
acontecimentos que aconteceram, os investigadores tentaram sem
êxito descobrir o catalisador para as ações de Ballagh, mas uma
lesão na cabeça ocorrida no ataque que turvou a maior
parte das lembranças de MacGrath e fez sua memória
pouco confiável. MacGrath nunca foi capaz de
oferecer uma luz sobre a posterior morte do filho de
Ballagh ou da mulher não identificada encontrada
enterrada com ele.
Brumas da Irlanda 1 Página81
Quando lhe perguntaram pelos rumores sobre o Livro de
Fennore e seu possível descobrimento na ilha, Cathán MacGrath
negou todas as especulações e acusou os meios de comunicação de
um ridículo sensacionalismo. O Inspetor Chefe Byrne respondeu do
mesmo modo: “Quando tantas pessoas inocentes são
assassinadas, o público procura uma explicação que tenha sentido.
Por desgraça, há coisas que nunca podem explicar-se”. A evidência
descoberta pela Garda4 apoiava a versão de Cathán MacGrath do
que aconteceu naquela noite, mas sem os corpos das vítimas,
muitas delas não são conclusivas.
Danni franziu o cenho, olhando as palavras, mas vendo
em sua mente a visão dessa manhã. O moço que ela tinha visto
na tumba era o filho do Niall Ballagh? Quem mais poderia ser?
Mas se era o mesmo menino, então, como, por que, a visão a
colocou na tumba com ele? Tinha morrido faz vinte anos, quando
ela era só uma menina. Franziu o cenho, tentando recordar com
maior claridade exatamente o que tinha visto. Mas como um
sonho, desvaneceu-se em partes e peças imprecisas.
E o que havia a respeito dos rumores de que o Livro de
Fennore foi encontrado? Seria por isso que sua mãe o mostrou?
Danni se moveu para baixo a reportagem, com a
esperança de que houvesse mais no artigo, mas em
lugar de textos encontrou fotos.

4
Garda, é como se chama a polícia na Irlanda.
Brumas da Irlanda 1 Página82
A primeira era uma em branco e negro granulada. O
texto dizia: “Niall Ballagh, único suspeito dos Assassinatos
Fennore”. Ela vacilou por um momento antes de encontrar-se
com os olhos do homem acusado de assassinar a todos os
membros da sua família, exceto a seu pai, adiando só mais um
momento ver o homem que se acreditava tinha cometido o
assassinato da própria Danni. Pouco a pouco, levantou a vista e
olhou o rosto, sabendo que pelo menos duas das vítimas tinham
estado vivas no momento em que ele havia se suicidado.
Não deveria se surpreender de reconhecê-lo. Era o homem
que viu na caverna com sua mãe. Niall Ballagh não foi uma
ameaça quando o viu então. De fato, foi o oposto. Recordou como
estendia as mãos, com as palmas para cima, tentando acalmar a
qualquer pessoa que estivesse nas sombras. Danni pensou nisso.
O artigo dizia que a lesão de seu pai tinha feito sua memória
pouco confiável. O que teria visto realmente essa noite? O que
teria imaginado; ou pensado que tinha visto? Danni nem sequer
recordava que ele tivesse estado na caverna absolutamente. Tinha
que ter chegado mais tarde, então. Talvez a visão tivesse
terminado justo antes que Niall Ballagh se voltasse louco.
Os olhos de Niall Ballagh lhe devolveram o
olhar na imagem sépia, com uma sombra de
desespero. Igual a Sean, era um homem alto e
maciço com largos ombros, braços grossos e mãos
grandes. Estava de pé na cobertura de um navio,
vestido com um impermeável e botas de borracha.
Brumas da Irlanda 1 Página83
Ela se aproximou mais da tela, tentando discernir seus traços nos
muitos tons de marfim e cinza. Seu olhar era direto e penetrante,
com sua mandíbula tensa. Sem sombra de um sorriso ou de
humor nos claros olhos.
Enquanto ela o olhava fixamente, encheu-se de uma
grande quantidade de emoções contraditórias. A parte dela que
cresceu em lares de acolhida, sem conhecer nunca uma casa que
pudesse chamar lar pensava que a morte por suas próprias mãos
foi muito boa para Niall Ballagh. Mas havia outra parte dela, uma
que recordava a devastadora angústia em seu rosto enquanto
estava de pé junto ao cadáver do seu filho, e essa parte não podia
evitar sentir compaixão.
Se o assassino de seu filho o fez sentir a raiva que o pai
de Danni foi testemunha? Possivelmente a família de Danni
tropeçou em um confronto e converteram-se em vítimas inocentes
da violência que não correspondia a eles. Tentou reconstruir os
possíveis cenários dentro da sua mente.
Niall Ballagh poderia ter perdido as estribeiras e matado o
irmão de Danni e ferido seu pai; mas Danni e sua mãe tinham
escapado, sem saber, possivelmente, que seu pai
ainda estava vivo. E talvez a dor de seu pai e a culpa
por não os haver protegido o recheaou mais tarde as
peças que sua memória não podia.
Mas, se aconteceu dessa maneira, por
que Danni e sua mãe não tinham retornado para
Brumas da Irlanda 1 Página84
casa depois que souberam que Niall havia se suicidado? Por que
fugiram para os Estados Unidos? E por que sua mãe a
abandonou ali?
Perguntas. Sempre perguntas sem respostas.
Esfregou a pele de seus braços e se dirigiu para a
seguinte imagem. Esta era de sua família. Levavam a mesma
roupa que na fotografia que Sean lhe deu, mas a câmara os tinha
captado despreparados, cada um deles perdidos em seus próprios
pensamentos. Sem os sorrisos falsos, pareciam de alguma forma
trágico.
A mãe de Danni estava de pé com os ombros
encurvados, olhando fixamente algo longínquo e inalcançável. A
brisa jogou com uma mecha de cabelo sobre seu rosto e lhe
levantou a prega da saia. A seu lado, o pai de Danni estava
sombrio e distante com as mãos embainhadas nos bolsos, com o
queixo assinalando o ensurdecedor oceano. Intercalados no meio,
Danni e seu irmão estavam agarrados pela mão, cada um estoico,
enquanto esperavam em silêncio. Havia resignação na expressão
de Danni; uma aceitação muda e desolada que lhe fez perguntar
se teria sabido o que viria depois.
“Cathán McGrath, na foto com sua esposa,
Fia e seus dois filhos, vítimas dos assassinatos
Fennore”, era tudo o que dizia debaixo da imagem.
Mas a fotografia mesma já havia dito muito mais.
Brumas da Irlanda 1 Página85
Ficou olhando a cara de seu pai um pouco mais, mas foi
a última foto, uma que mostrava a um menino adolescente
apoiado em uma enegrecida rocha, o que fez que uma parede de
gelo descendesse com força em torno do intestino de Danni. O
adolescente da foto era ao mesmo tempo desafiante e
desesperado, frente a um vendaval que gretava suas bochechas e
dava a seus olhos um brilho resplandecente. Era alto, enxuto,
não desenvolvido ainda com suas grandes mãos e pés crescidos.
Com seu selvagem cabelo de cor castanha escura e os ombros
cansados para frente, parecia estender-se pelas linhas entre a
juventude e a maturidade. Entretanto, uma sombra do homem
em que se converteria lhe devolveu o olhar.
Dividida entre o desconcerto e a raiva, olhou para esses
insolentes olhos. Que jogo estaria Sean Ballagh jogando com ela?
Que mentiras lhe teria contado?
Pouco a pouco dirigiu o olhar para o baixo da foto,
sentindo como se estivesse caindo em um poço sem fim enquanto
lia as palavras impressas lá.
— Não — sussurrou, sacudindo a cabeça enquanto a
compreensão e a incredulidade lutavam dentro dela. O
que dizia não podia ser certo.
E, entretanto… Danni pensou nessa
manhã, em como ele apareceu em sua porta sem
prévio aviso. Nunca tinha visto um carro ou
escutado um motor, inclusive quando ele se foi…
Brumas da Irlanda 1 Página86
E em sua foto do passaporte parecia tão jovem; quase tão jovem
como se via ali. Quando o tinha visto de pé do outro lado da
janela…
Com a sensação de que foi conjurado desde seus
pensamentos… E as olhadas estranhas das duas mulheres e de
seus filhos quando ela estava falando com ele na loja. Não eram
eles que estavam atuando de forma estranha, era Danni, falando
consigo mesma… E quando a senhora que gostava dos jogos de
chá lhe havia dito que tinha planos para o jantar, estava
respondendo à pergunta que Danni fez a Sean, te verei mais
tarde?
Não, era impossível, inclusive para Danni, cuja vida se
converteu de repente em um pouco fantástica. Não sentiu. Exceto
em um pequeno canto escuro do coração de Danni onde tinha um
horrível perfeito sentido.
Ela leu o pé da fotografia, desta vez em voz alta,
esperando que o som de sua voz lhe desse um novo significado a
suas palavras.
— Sean Michael Ballagh, fotografia tomada dias
antes de seu assassinato. Seu corpo e o de uma
mulher não identificada foram os únicos restos
encontrados.
Brumas da Irlanda 1 Página87
Capítulo 5
O sino pendurado sobre a porta soou, trazendo Danni
de novo à loja de antiguidades e à prudência em instante. Yvonne
entrou, com o celular na orelha. Era uma mulher pequena com o
cabelo encaracolado curto e de figura curvilínea, cujo sorriso
poderia iluminar a habitação ou trazer as nuvens de tormenta
com sua ira. Estava sorrindo agora enquanto dizia adeus e
fechava o telefone.
— Vitrines Biedermeier de madeira de abedul. Duas
grandes. — Anunciou com orgulho.
Desorientada, tremendo, Danni não se moveu de seu
banco atrás do mostrador. Sua mente seguia saltando em torno
do que acabava de ler. Sean Ballagh estava morto. Seu Sean. O
homem que a visitou duas vezes… Levando passagens de
avião. Lançou-se para sua bolsa para ver se o
envelope havia desaparecido de repente. Distraída
de tudo menos de sua própria excitação, Yvonne
não parou de falar de Biedermeier. Estava à busca
de um dos armários alemães desde que um cliente
Brumas da Irlanda 1 Página88
contou maravilhas ao ver um em Sedona.
— Está em estado quase impecável. Um arranhão
abaixo e uma gaveta quebrada. Ambos podem ser arrumados. A
mulher que está o vendendo está brava com seu ex-marido e me
teria vendido por menos, mas não queria que nenhum tribunal
impugnasse a venda mais adiante. Ouviu-me? Dois dos grandes
por um Biedermeier.
Yvonne deixou cair sua bolsa na gaveta debaixo do
mostrador e cruzou a loja para arrumar uma das persianas.
Dando-se conta de que Danni ainda não havia falado
nada Yvonne finalmente se virou e jogou uma olhada mais de
perto. Um instante mais tarde, estava ao lado de Danni.
— O que aconteceu? — Perguntou — Aconteceu algo?
Danni abriu a boca para falar, mas por onde começaria?
Como poderia contar a Yvonne tudo o que aconteceu? Não havia
maneira de explicá-lo sem falar de suas visões e embora quisesse
falar delas, querendo contar tudo a Yvonne, não se atrevia a fazêlo. Não era que não confiasse nela… Era algo mais profundo. Algo
tão enraizado como o instinto de sobrevivência.
Havia uma razão pela qual passou tantos
anos sendo excluída por diferentes famílias de
acolhida. Sean tinha perguntado se alguma vez se
sentiu especial. Quando era mais jovem, soube
que era especial, mas aprendeu que por quão
Brumas da Irlanda 1 Página89
mais esse especial, não significava nada bom. Significava
estranho. Inaceitável.
Recordou como se sentiu a primeira vez que
casualmente disse a seu irmão adotivo que não fizesse mais colas
em ciências, porque “viu” que o pegavam. Ele a olhou como se
fosse um bicho estranho, riu-se dela e contínuo de todos os
modos. Quando o pegaram a culpou. Acusou-a de mentir à
professora e seus pais adotivos acreditaram.
Aprendeu outras lições; todas dolorosas, todas
marcadas a fogo em sua memória, antes de finalmente
compreender que sempre e quando tivesse as visões, seria um
nada. Assim renunciou. Não sabia como, mas de algum jeito se
fechou esta parte dela e a manteve sob chave em um lugar tão
escuro, tão profundo que se esqueceu de que existia; até que a
chamada com que despertou essa manhã tinha soprado nas
dobradiças e abriu- lhe tudo de novo. Agora não queria nada mais
que encontrar a maneira de restabelecer o bloqueio.
Sua parte lógica sabia que Yvonne não usaria as visões
contra ela. Mas a lógica não tinha nada a ver com a forma em que
se sentia só de pensar na incredulidade que
certamente encheria os olhos de Yvonne, se Danni
lhe dissesse a verdade. Ouça Yvonne, adivinha o
que? O homem que vi em uma visão se apresentou
hoje para dizer-me que tenho uma família. Bom né?
Exceto que acredito que seu pai matou meu irmão;
Brumas da Irlanda 1 Página90
oh e acredito que o menino está morto realmente. Yvonne pensaria
que lhe faltava um parafuso e estaria certa.
— Não me sinto muito bem hoje, — disse — Importaria se
eu fosse para casa?
— É obvio que não. Espero que não esteja ficando
gripada.
— Eu também.
— Precisa que eu te leve?
— Não, estarei bem. Falarei contigo amanhã. Felicidades
pelo Biedermeier. — Inclusive com sua preocupação,
Yvonne não pôde evitar o sorriso em seu rosto.
— Com certeza venderei antes que chegue a loja.
Em qualquer outro dia, Danni não teria conseguido
fugir com essa tática, mas hoje estava muito agradecida de que a
geralmente ardilosa Yvonne não visse além do que Danni queria
que visse. Agarrando a bolsa e o computador, Danni lhe disse
adeus e se dirigiu para casa.
Brumas da Irlanda 1 Página91
Capítulo 6
Sean não sabia para onde ir depois de abandonar a
pequena loja de antiguidades de Danni, por isso passeou por ali,
esperando que a atividade afrouxasse o forte nó de profunda
tensão em seu estômago. Tinha se estabelecido e enroscado desde
a primeira vez que colocou os olhos nela. Doía-lhe e o consolava.
Quanto tempo se passou desde que havia sentido outra
coisa que pena e vergonha pelo que seu pai havia trazido para
todos eles naquela noite fazia tanto tempo? Quanto tempo fazia
que não sentia mais que as lascas rotas de vida decompondo-se
sob sua pele? Mais do que podia se recordar.
Mas quando ela abriu a porta principal nesta manhã,
quando o olhou com seus enormes olhos cinza… Ele havia
sentido algo revolver-se dentro dele. Sentia-o em cada
poro, em cada nervo, em cada parte do seu ser. E
queria mais.
Estava confuso quando sua avó insistiu
em que viesse buscar e levar Dáirinn McGrath
para casa. Entendia que a sobrevivência de Danni
Brumas da Irlanda 1 Página92
punha em dúvida a culpa de seu pai e a trazer de volta poderia
limpar o nome da família. Mas havia outra razão pela que Nana o
tinha enviado — uma que não podia ver nem entender
absolutamente, tão desconcertante quanto Nana era.
Quaisquer que fossem suas razões, entretanto, não
pareciam importar mais. Tinham sido eclipsadas por seus
próprios desejos e necessidades. Estava aqui por Danni. Nada
mais e nada menos.
Encontrou-se de pé em frente à sua casa outra vez e não
estava absolutamente surpreso de que seus pés como qualquer
outra parte dele, tivessem decidido ir ali. Embora o louco
cachorro de Danni ladrava com fúria do outro lado da porta, Sean
se acomodou na cadeira do alpendre. A brisa da tarde dançava
através dos arbustos e da erva, trazendo consigo a fragrância das
rosas que floresciam em um jardim vizinho. Algumas casas mais
abaixo, alguém ligou um cortador de grama e logo o aroma forte
de erva cortada se uniu à mistura. Se não fosse pelo cão louco,
seria tranquilo, inclusive relaxante. Inclinou sua cabeça para trás
contra a parede, tentando bloquear os molestos latidos.
Necessitava um pouco de calma. Necessitava um pouco de
perspectiva.
Mas tudo no que podia pensar era no
pálido resplendor da sua pele, no aroma de seu
cabelo, na forma delicada de suas orelhas. Tudo o
que queria era aproximar-se dela, inalá-la como
Brumas da Irlanda 1 Página93
um bom vinho. Lembrou-se de como ela olhou para ele com uma
desconcertante antecipação. Como se tivesse lhe esperando.
Como se tivesse antecipado sua chegada.
Ele balançou a cabeça, confuso com a clareza da
sensação.
Viu um movimento à sua direita e olhou a tempo de ver
o gato amarelo espreitando dos arbustos. Quando se deu conta de
que o viu, a enorme criatura saiu fugindo pela grama e subiu à
árvore como se o Sabujo dos Baskervilles5 lhe perseguisse.
Estariam todos os animais de Danni loucos? Ao menos o cão
parecia haver-se dado por vencido. A cachorra deu um rouco
latido final e logo se fez silêncio.
Não sabia quanto tempo passou sentado ali submerso
na tranquilidade do lugar, antes de ouvir um carro girar pela rua.
Um momento depois ela entrou no caminho de entrada. Ele
permaneceu sentado no alpendre, sem saber o que fazer agora
que ela estava ali, seguro de que não deveria estar ali, mas
convencido de que não poderia haver ficado longe.
O dia esquentou e ela havia tirado o suéter azul,
deixando só uma fina camiseta branca e calças
negras. Seu cabelo estava trançado e recolhido, ele
viu com alegria como ela estava ruborizada e

5
No original The Hound of the Baskervilles, em castelhano traduzido como O Sabujo dos Baskervilles, terceira novela do Sir Arthur Conan
Doyle cujo protagonista é o inconfundível Sherlock Holmes. Na novela se atribui a morte do Sir Charles Baskerville a uma maldição iniciada
pelo Hugo do Baskerville que mata a um sabujo infernal como castigo por sua maldade. O sabujo fantasma é uma besta negra, de mandíbula
grande, dente muito afiados e que joga fogo pela boca.
Brumas da Irlanda 1 Página94
desalinhada. Formosa. Como um vivo e terrestre esbanjamento de
flores iguais às que floresciam ao redor. Tão inalcançável e
misteriosa como as fadas que viviam debaixo das montanhas de
sua terra natal. Quis perder-se nela. Bastante estranho, sentia
que ao fazê-lo, em realidade poderia encontrar as peças
desaparecidas do homem que queria ser.
Avançou vários passos pelo caminho antes que
repentinamente sua costa ficasse rígida e endireitasse os ombros.
Não o tinha visto ainda, mas era evidente que havia sentido seu
silencioso escrutínio. Pouco a pouco levantou o olhar para ele e a
expressão de seu rosto, a cautela em sua expressão… feriu-o até
os ossos.
Ela já sabia a respeito de seu pai; que era o responsável
pelos assassinatos MacGrath.
Estava ali no endurecimento de seus lábios e no ângulo
de seu queixo. Na frieza que penetrava no brilhante cinza de seus
olhos, convertendo-os em um céu de tormenta a ponto de estalar.
Viu esse olhar antes, todos os dias dos últimos vinte anos para
ser exato. Quando as pessoas de Ballyfionúir tinham se dignado a
olhar para ele, — sua gente — o faziam com a mesma
suspeita e temor que Danni mostrava agora.
Acostumou-se a isso. Convenceu-se de que já não
lhe incomodava.
Brumas da Irlanda 1 Página95
Mas no rosto de Danni, esse olhar foi como lascas de
vidro em seu estômago.
— Olá. — Disse ele.
— O que está fazendo aqui? — Perguntou. Sua voz era
monótona, mas seus olhos… Ah, seus olhos. Eram brilhantes,
com emoções que ela não permitia que chegassem à superfície.
Raios deveriam ter sido disparados deles. Possivelmente ainda o
fariam.
— Queria falar contigo. — Disse, respirando
profundamente, enquanto ela passava ao seu lado para a porta.
Ela olhou para trás.
— Para se explicar?
Negou com a cabeça, afogando-se pela condenação em
seu rosto. Era o mínimo que merecia. Foi ali para lhe mentir.
Nem sequer podia dizer que não iria fazer isso. Faria o que fosse
necessário.
— Não há muitas maneiras de explicar que todo mundo
pensa que seu pai é um assassino. — Disse — No
geral evito por completo.
Pretendia soar sarcástico. Frio e impávido
pela vergonha que vivia e respirava todos os dias.
Mas de algum jeito ela o apanhou com esses
Brumas da Irlanda 1 Página96
ferozes olhos e agora o tinha de joelhos.
— Sinto muito. — Disse ele.
Agora houve confusão no rosto dela e ira, frágil e afiada.
— Você sente. — Repetiu ela— Sobre o seu pai.
Ele assentiu.
— Isso é tudo?
Ele não sabia o que mais queria ela, mas era óbvio que
esperava algo mais. Alguma confissão que não estava preparado
para fazer. Alguma vez entenderia como funcionava a mente de
uma mulher?
Com um som depreciativo, ela se afastou para abrir a
porta. Ele olhou suas costas, notando a rígida, mas elegante linha
da sua coluna, as suaves curvas por debaixo de suas calças e as
magras pernas torneadas que escondiam.
A maior parte do seu cabelo se soltou da trança e se
formava redemoinhos contra seus ombros. Os tênues marrons e
dourados junto com os ardentes vermelhos
apanhavam o sol e brilhavam como um tesouro
indescritível. Quis tocá-lo, ver se seu tato era tão
suave como se via. Queria passar sua boca contra o
sal de sua pele, inalar seu calor, saboreá-la.
Brumas da Irlanda 1 Página97
Seguiu-a para dentro da casa quando ela não fechou a
porta na sua cara, pensando que, com segurança, alimentaria à
cadela roedora com ele. Recolheu o vira lata e brandamente tirou
a coisa grunhindo pela parte traseira da porta. Sem olhá-lo,
moveu-se para a cozinha, abriu a geladeira e tirou duas garrafas
de água, deixando uma ao seu lado antes de afastar-se. Ele teria
preferido uma cerveja, mas simplesmente esteve agradecido de
que não lhe atirasse a garrafa. Ela se sentou no balcão da
cozinha, abriu sua água, e bebeu a metade em um comprido
trago, lhe observando todo o tempo.
Nessa manhã também lhe tinha olhado. Ele havia
sentido a intensidade, o relutante interesse do seu olhar. Sem
dizer uma palavra, ela ativou os interruptores que nem sequer
sabia que tinha. Ela baixou a água, ele apanhou seu olhar,
sustentando-o por um momento, sem tentar ocultar o calor
ardente dentro do seu interior.
Foi um erro, talvez. Um louco, por certo. Mas estava
entre eles. Uma fricção. Uma consciência. Viu a faísca na pele
dela, viu sua brusca respiração. E logo sua exalação,
entreabrindo os olhos como ela o fazia. Ela ainda estava
esperando, ainda esperava algo dele, que não havia
compreendido.
Podia lhe contar a feia história da sua
família, lhe falar a respeito da ira e da vergonha
que sentia cada vez que pensava em seu pai, mas
Brumas da Irlanda 1 Página98
não tinha coração para ir lá. Ainda não, não até que tivesse que
fazê-lo.
Sabendo que não era o modo adequado para começar,
mas escolhendo-o de todos os modos, disse:
— Minha avó, vê coisas.
A declaração pouco clara não trouxe nenhuma reação.
Danni tomou um sorvo de água, sem responder. Mas estava
escutando.
— Somos supersticiosos, nós os irlandeses. A metade do
povo lhe tem medo. A outra metade pensa que tem magia. Que
pode mudar o que vê.
— E pode?
Sua pergunta o sobressaltou. É obvio que não podia. Ele
negou com a cabeça.
— O que vê?
As palavras estavam ausentes de rancor, mas tinham
algo mais, algo que lhe arrepiou os cabelos da nuca. O
surpreendiam. Não, o preocupavam.
— Ela te viu. — Respondeu em voz baixa.
A cozinha estava na penumbra, as
janelas sombreadas do exterior pelas árvores
Brumas da Irlanda 1 Página99
centenárias. Mas parecia que Danni tinha empalidecido.
— Tem te visto desde que era pequena.
— Como você me vê? — Perguntou Danni. Ele encolheu
os ombros.
— Não posso saber isso, verdade? É ela quem vê.
— Mas ela sabia que estava viva?
Ele assentiu.
— Por que não disse a alguém?
Antes que pudesse dizer: Quem acreditaria? Danni
desviou seu rosto e soube que ela havia pensando a mesma coisa
por sua conta sem precisar de nenhum tipo de explicação da
parte dele. Nunca falou do presente de sua avó antes, mas
antecipou perguntas que Danni não estava fazendo. Era como se
soubesse exatamente ao que se referia.
Afastando essa ideia, disse:
— Bom, ela disse às pessoas que acreditava que você
estava viva. Mas que nunca soube onde estava ou
como sobreviveu. E ninguém acreditou que dissesse a
verdade. OH, alguns acreditaram, seguro, mas se
passaram anos sem que lhe encontrassem.
— Você acreditou?
Brumas da Irlanda 1 Página100
— Aye. Sim.
O rosto de Danni era como uma máscara de porcelana,
bela e imóvel, sem revelar nada de seus pensamentos. Mas teve a
surpreendente impressão que por trás dessa máscara as emoções
faziam estragos, as emoções não nasciam da confusão, mas sim
da compreensão. Ela o entendia. Por estranho e desconcertante
que fosse, ela o compreendia.
— Sabe do que estou falando, não é Danni? — Ela lhe
lançou um olhar severo.
— Não tenho nem ideia.
Mas era mentira, tão seguro quanto ele disse a si mesmo.
— Diga-me uma coisa. Ela pode ver a ti, também?
A pergunta foi sem importância, entretanto, era tão
óbvia que a princípio não soube o que responder. Que coisa
queria dizer, também via sua avó?
— Por que não me veria? Não é cega. Só está velha.
Danni considerou isso com a mesma
longínqua acuidade. Ele não podia compreender o
que estava passando dentro da sua cabeça.
Brumas da Irlanda 1 Página101
— Não está bebendo sua água. — Apontou ela,
assinalando a garrafa sem tocar junto a ele.
Uma vez mais, ele ouviu algo em sua voz que o
desconcertou. Era tão importante para ela que saciasse sua sede?
Sentia-se como uma marionete errante que irremediavelmente
tinha enredado suas cordas. Entretanto, ainda tentava se mexer.
Franzindo o cenho, olhou a garrafa de água, mas não a levantou.
— Não tenho sede. — Disse.
— Não? — Respondeu ela — É obvio que não.
Antes que pudesse adivinhar que diabos queria dizer
com isso, ela continuou pulando para outro tema, mantendo-o
desequilibrado.
— Meu pai nem sequer sabe que está aqui para me
buscar, verdade?
— Não. Nem sequer sabe que vim. — Nem sequer sabe
que existo, acrescentou em silêncio, pensando na fria despedida
nos olhos Cathán MacGrath cada vez que ignorava Sean. Esse
mesmo frio espreitava os olhos de sua filha agora.
Danni elevou a garrafa e a esvaziou antes
de pô-la de lado. Essa faiscante tensão pareceu
estremecer através da habitação enquanto ela o
olhava.
Brumas da Irlanda 1 Página102
— O que quer de mim, Sean?
Isso ele podia responder com verdade suficiente. Mas o
que queria agora nesse momento era quente e carnal, profundo e
permanente. Ela não veria com bons olhos o que ele dissesse.
— Quero te levar para casa. É o lugar aonde pertence.
— Se isso for tudo, então por que as mentiras?
— Por que as mentiras? — Repetiu com incredulidade —
Deveria ter dito a verdade? Teria aberto sua porta se tivesse
começado com isso?
— Começado com isso? Não ouvi nenhuma palavra
ainda. O que aconteceu realmente a minha família?
Ele fez um som que combinou tanto a dor como a ironia.
— Juro-te, que nisso fui honesto. Ninguém conhece a
verdade sobre isso, exceto os que a viveram. Teria melhores
probabilidades de perguntar isso a você mesma.
— Mas você esteve lá, verdade? — Ele franziu o cenho e
sacudiu a cabeça.
— Em Ballyfionúir, aye. Mas não estava com
meu pai aquela noite.
— Onde estava então?
Brumas da Irlanda 1 Página103
A pergunta era aguda, como uma régua golpeando uma
mesa. Exigia-lhe atenção e resposta. Ele franziu o cenho para
ela, sentindo que a resposta tinha mais importância que a
simples pergunta formulada.
— Em casa, suponho. Faz muito tempo. Por que me
pergunta isso?
Ela o olhou fixamente, com frustração evidente. Não
sabia o que ela esperava dele ou por que tinha feito semelhante
suposição sobre onde estava, porque lhe parecia que ela tinha,
pelo que podia ler em seus olhos.
— Disse-me que lhe tinham culpado pelos assassinatos
alguém que estava no lugar errado no momento errado. Essas
foram suas palavras.
Ele assentiu.
– É a verdade. Meu pai foi esse.
– Sente saudades?
— Do meu pai? Não e com segurança não quero fazê-lo.
— Inclusive agora que sabe que estou viva?
Ele negou sem poder fazer nada. Não
queria lhe dizer que nada faria seu pai voltar a ser
inocente aos olhos de Sean. Niall Ballagh poderia
não ter matado Danni e a sua mãe, mas destruiu
a família de Danni, tinha-a feito em pedaços,
Brumas da Irlanda 1 Página104
dizimado irreparavelmente. E não só sua família foi devastada.
Antes que tivesse causado estragos nos MacGraths, ele destroçou
a confiança de sua própria pequena família. Niall sempre seria
um monstro para Sean.
Sean afastou o olhar do rosto de Danni.
— Não posso saber o que significa realmente você estar
viva, verdade? Onde está seu irmão? Não perdoarei tão facilmente
o que fez.
— Crê que assassinou meu irmão? Tentou nos matar a
minha mãe e a mim? Crê que fosse capaz disso?
— Sinto muito, mas sim.
— Jesus, — sussurrou ela — Jesus.
— Não me dá prazer dizê-lo. Mas você me perguntou isso.
— E está me dizendo a verdade?
— Juro-lhe isso.
— Utilizou essas palavras esta manhã.
— Aye, utilizei sim. Perguntou-me se
Cathán MacGrath era realmente seu pai. Continua
sendo certo.
— Perguntei se era real.
Brumas da Irlanda 1 Página105
— Tão real como qualquer homem possa ser, Dáirinn
McGrath.
Ela o olhou fixamente e a dor crua que viu o fez querer
cruzar a habitação, abraçá-la como queria fazer desde a primeira
visão de seu formoso rosto.
— Mas não me disse quem realmente é você, verdade
Sean? Por que é você quem veio para me levar para casa?
— E por que não deveria ser eu?
— Porque você acredita que seu pai tentou acabar com
minha família, por isso. Não vê o quão louco é isso?
— Que melhor razão precisaria para querer te levar de
volta? Ninguém duvidou por um minuto que ele era responsável
pelo que o tinham acusado. De assassinato. Entretanto, aqui
está.
— Está dando voltas, Sean. — Disse, saltando da
bancada e caminhando para ficar de pé diante dele — Acaba de
dizer que eu estar viva, não prova nada, mas é um fato que ele
não foi suficientemente eficaz para nos matar a todos nós.
— Poderia ser. Ou talvez dissesse a
verdade todos estes anos atrás. Não tenho maneira
de saber, verdade? Mas você, Danni, você esteve lá.
Viu tudo e o tem fechado nessa sua formosa
cabeça.
Brumas da Irlanda 1 Página106
— Tinha cinco anos. Até que entrou pela porta, nem
sequer recordava que tive um irmão.
— Tenho fé que irá vê-lo de novo, mesmo que o tenha
esquecido.
— Acredita que voltar para a Irlanda me fará recordar?
— Sem dúvida vale a pena o esforço.
Ela pensou nisso, ele esperava que possivelmente a
tivesse distraído, mas no momento seguinte, ela retornou o
assunto sobre ele de novo.
— Que idade tinha quando isso aconteceu?
— Quatorze. — Respondeu ele, recordando o doloroso
ano, o sentimento de não pertencer ao mundo dos meninos, mas
ainda não ter um lugar na ordem dos homens.
Seu corpo havia crescido e podia ver a dignidade
esperando por ele, fora do seu alcance. Por muito que tentou
acelerá-lo, não chegou mais rápido. E então seu pai acabou com
tudo em uma noite sangrenta, deixando Sean sem ser um menino
nem um homem, mas sim como um adolescente que
levava o peso da responsabilidade de um adulto
sobre seus ombros muito magros. De repente, a
escola e o futuro não foram tão importantes como
colher turfa ou o pescado capturado no mar para
sua subsistência.
Brumas da Irlanda 1 Página107
Ele negou com a cabeça.
— Vejo que quer fazer disto algo meu. — Disse a Danni
— Mas não pode. Sempre foi a respeito de ti.
Suas sobrancelhas se elevaram com isso.
— Boa intenção, mas não. De onde estou, vejo isso
como um jogo retorcido e eu só sou um peão que você pensa que
pode mover ao redor do tabuleiro. Bem, tenho notícias para você,
Sean Ballagh. Não irei a nenhuma parte contigo até que responda
a minhas perguntas. Por que está aqui?
Sua pergunta moveu o chão debaixo dele, empurrandoo cada vez mais perto de um final que não tinha visto antes, que
não suspeitou que espreitava na distância.
Por que estava aqui? Por que ele estava aqui?
Por ela, a resposta veio de forma tão simples. Veio só por
ela.
Tinha perfeito sentido e, entretanto, o porquê disso lhe
escapava. Ficou ali, olhando os estrondosos olhos cinza e a única
explicação se envolveu ao redor do seu coração,
atando-se com tanta força que não podia separá-la
ou analisa-la.
Brumas da Irlanda 1 Página108
Tinha vindo por ela por que… Por que…. Ela pertencialhe. Essa por si só era a razão pela que tinha vindo para levá-la
para casa.
A simplicidade disso rodou sobre ele como uma grande
onda. Sentia-se enfeitiçado, desconcertado, perseguido. A
necessidade possessiva dela conjurava uma sombra em sua
mente que não o deixava ver mais à frente, embora soubesse que
devia. O que lhe esperava do outro lado? O que revoava dentro e
fora das curvas de sua memória?
Elevou os olhos para os de Danni e algo da sua
confusão deve ter-se mostrado através deles. Sentiu um
abrandamento nela, uma espécie de cabo. E como um homem
que se afoga, aferrou-se.
— Vim por você. — Murmurou, movendo-se para frente
com o poder da declaração.
Apoiou-se na bancada em três rápidos passos. A
surpresa abriu muito seus olhos, enquanto um pouco mais
profundo o reconhecimento os escureceu. O momento foi
inevitável, ele o viu em seu rosto e esquentando seu
sangue, enchendo-a de fogo.
Pouco a pouco, deliberadamente, ele
apoiou as mãos a cada lado dela e baixou a cabeça
para a sua. Uma fração de fôlego os separou, mas
o ritmo íntimo de seu pulso pulsando corria em
Brumas da Irlanda 1 Página109
sua garganta, nos batimentos do seu coração em seu peito,
fazendo-se um.
— Vim por você. — Disse contra sua boca.
E então a beijou. A sensação de seus lábios, o calor de
seu fôlego, enquanto era expulso apressadamente passou por ele
como uma carga elétrica. Afundou-se nela, esperando que a água
fosse rasa e o ato doloroso. Mas se isto era dor, esperava morrer
por ela.
As mãos dela se aproximaram de seu peito e soube que
tinha a intenção de afastá-lo, mas isso sem dúvida o mataria. Fez
a única coisa que pôde pensar para detê-la. Subiu seus dedos a
quente e sedosa pele do seu rosto, aprofundando o beijo,
deixando que sua língua jogasse com seus suaves e tenros lábios
e se rendesse até que se abriu para ele. Um calafrio os percorreu
a ambos enquanto o doce frio de sua língua tocava a necessidade
de calor da dele. Ela tinha sabor de hortelã, cálida e embriaguez.
Ele estava embriagado com o efeito. Não poderia ter detido seu
gemido de alívio, de satisfação, embora o tivesse tentado.
Centrou-se em Danni, querendo que ela
sentisse o que ele sentia, necessitando que ela
quisesse o que ele queria. Inclinou seu peso contra
ela, sujeitando seu corpo entre os armários e ele,
para que soubesse o muito que a desejava. As
mãos em seu peito se apertaram, agarrando com
os punhos sua camisa enquanto ela se esticava
Brumas da Irlanda 1 Página110
contra ele, não lhe afastando, mas lhe pedindo que se
aproximasse. Ele se sentiu tonto com a consciência de sua
suavidade derretendo-se, com a entrega de seu corpo. Deslizou as
mãos por sua garganta e depois para sua boca, beijando-a,
saboreando-a, com o doce sal de sua pele como um afrodisíaco
que só tinha imaginado. Seus ombros eram pequenos e de ossos
finos sob suas mãos. Sentiu a pressão de seus seios contra seu
peito. Queria mais. Queria tocar cada centímetro possível.
Envolveu seus braços ao redor dela de novo e a
levantou, acomodando-a na bancada para poder mover-se entre
seus joelhos e se ajustar ainda mais perto. A nova altura pôs no
mesmo nível o rosto dela com o seu e lhe deu acesso à curva do
seu pescoço, ao oco de sua garganta e ao fluxo tentador de seus
seios.
Ela murmurou seu nome em voz baixa e rouca.
— Isto não é real. — Sussurrou.
— O inferno que não. — Disse ele movendo-se de novo
para sua boca para lhe demonstrar que era tão real como o
sangue correndo por suas veias.
Era como sustentar uma chama, tê-la em
seus braços. Queimava, retorcia-se, chamuscava
seus nervos e abrasava seu controle. Queria lhe
tirar a roupa do corpo e tomá-la diretamente ali
sobre o chão da cozinha, mas parecia que cada
Brumas da Irlanda 1 Página111
centímetro de pele sedosa que tocava o distraía de seu objetivo.
Colocou as mãos sob sua camisa e a arrastou para cima, através
da suavidade de sua carne quente para tomar seus seios,
esfregando seus polegares pelos mamilos. Um pequeno som
escapou de seus lábios, fazendo seu sangue mais quente e mais
rápido.
Mas logo se imobilizou.
— Sean. — Disse — Pare.
A mescla de desejo, dor e confusão em seu tom de voz
fez mais que a ordem simples. Também refletia de perto o
complexo labirinto de sentimentos dentro de Sean, paixões
furiosamente selvagens de uma enganosa passagem a outro.
Havia uma maneira de encontrar o que queria, mas estava
escurecido pelos batimentos de seu coração e por sua
entristecedora necessidade.
— Não posso me deter. — Disse com simplicidade, mas
obrigou seu corpo a fazer o que sua mente não podia e se afastou,
lentamente.
Não entendia o ponto de inflexão que o levou ali,
mas sabia que não havia volta. De algum jeito ela se
converteu na salvação que estava desesperado por
alcançar.
Seu olhar fixo se sentia como um foco,
deixando em descoberto o que estava dentro dele.
Brumas da Irlanda 1 Página112
Afastou-se, furioso consigo mesmo. Quando havia se tornado tão
patético? Aprendeu a sobreviver em um mundo que lhe deu as
costas quando tinha quatorze anos. Não era nenhum menino
vulnerável desejando ser mais amado. Não era débil, como seu
pai. Era um homem que marcava seu próprio caminho, sozinho.
Moveu-se à porta trilho, onde ficou olhando o jardim e o
pátio. A cadela estava do outro lado do vidro. Levantou a cabeça e
lhe grunhiu. Podia ver Danni superposta sobre a superfície, com
sua pele pálida contra sua camiseta e as calças que moldavam
cada curva intrigante de seu corpo.
— Eu gostaria você fosse agora. — Disse com voz
monótona e fria quando ele desejava seu calor.
No impreciso reflexo viu a confusão e a determinação e
só avivava sua ira e dor. Mas não podia fazer nada mais do que
lhe pedia.
Sem dizer uma palavra, se foi.
Brumas da Irlanda 1 Página113
Capítulo 7
Depois que Sean foi embora, Danni não sabia o que
fazer consigo mesma. Tinha uma lista de mais de um quilômetro
de comprimento de coisas para fazer, mas pensar como se todo
seu mundo não estivesse tremendo lhe provocou dor de
estômago. Uma ducha não fez nada para dissipar o milhão de
perguntas em sua cabeça. Tampouco ajudou a esfriar seu sangue
ou aliviar sua frustração. Recitar as razões porque não deveria
estar tão quente por Sean Ballagh só a faziam se sentir uma
parva.
Porque ela estava. Era como se ele tivesse se arrastado
sob sua pele e continuasse lá, inclusive agora, acariciando com
seus longos dedos a curva de sua coluna, pressionando seus
lábios no lugar sensível detrás da sua orelha, brincando com ela
com o simples golpe de sua língua. Emitiu um
gemido mental. Como pode fazer tudo isso se estava
morto?
A última pergunta a deteve quando
entrou em seu carro, com a lista na mão. Talvez
Brumas da Irlanda 1 Página114
tivesse se equivocado nisso. Talvez o artigo do jornal se
equivocou. Isso tinha mais sentido que a outra alternativa? Ela
não só o viu, mas o sentiu. Podia senti-lo inclusive agora. Se ele
estivesse morto, poderia ser capaz de ver seu fantasma, mas não
o sentir…. Não é?
Golpeou a cabeça contra o volante três vezes. Estava
pensando no que um fantasma podia ou não podia fazer. Se isso
não fosse loucura, não sabia o que o era.
Desde que ela tinha visto Sean de pé em sua cozinha,
nada fazia sentido. Necessitava desesperadamente falar com
alguém, mas a quem recorreria com um problema tão estranho e
sobrenatural? Não era algo que pudesse contar a sua melhor
amiga. Não era algo que pudesse discutir com Yvonne enquanto
tomavam café.
Decidiu que compraria o que era imprescindível — ovos,
leite, café. Todo o resto teria que esperar. Havia um Safeway6 na
esquina do centro comercial, ela entrou, dando voltas durante um
tempo antes de encontrar um canto sossegado. O intenso céu
refletia uma luz suave e uma cálida brisa agitava as elevadas
palmeiras, acalmando seus nervos. Concentrou-se no
calor sobre sua pele enquanto caminhava.
Não se deu conta de que uma jovem que
estava de pé na calçada a observava até que esteve
a poucos metros dela. Tinha o cabelo de um loiro

6
Safeway é a marca de uma cadeia de supermercados
Brumas da Irlanda 1 Página115
esbranquiçado preso em uma trança e olhos de cor azul pálida
com longos cílios. Sua bronzeada pele morena a marcava como
uma devota do sol. Em vinte anos, provavelmente perceberia
como sua pele envelheceu, mas agora era jovem, bronzeada e
saudável. Usava um top de seda sem mangas da mesma cor que
seus olhos e calças de caxemira estampada.
Olhava para Danni com atenção, sem fazer nenhuma
tentativa para parecer casual. Danni vacilou, pensando em
alterar seu rumo para a loja, mas a mulher se moveu
rapidamente para frente e lhe sorriu.
– Estava te esperando. — Disse.
Danni olhou sobre seu ombro.
— A mim?
Ela assentiu com entusiasmo. — Não se lembra?
— Acredito que deve estar me confundindo com pessoa. —
Disse Danni — Nunca nos conhecemos.
A jovem encolheu os ombros e estendeu a mão em um
gesto de “vem por aqui”, lhe indicando a entrada de
uma loja que se chamava A Caixa de Pandora. As
portas duplas de cristal estavam pintadas com uma
árvore dourada no centro. Os ramos sem folhas
desenhados em espiral através dos painéis,
recordando a Danni os adornos no pente de prata
Brumas da Irlanda 1 Página116
que a mulher branca lhe estendia.
— Vou à loja de alimentos. — Disse Danni, com uma
sacudida da cabeça. Assinalou o Safeway mais acima na calçada
— Sinto muito.
— Você veio até mim. — Murmurou a mulher — Pediu que
te ajudasse.
Danni tragou saliva, mas sua garganta estava seca. A
forma em que a mulher tinha vocalizado a declaração levantou
uma bandeira de precaução. Você veio até mim…. Não era isso
exatamente o que pensava de Sean aparecendo em sua cozinha?
Ele veio até ela…
— Por favor, me deixe te ajudar.
Desconcertada, mas inegavelmente curiosa, Danni
seguiu à loira para a loja onde o aroma de incenso pesava no ar.
Uma suave música soava em segundo plano e campainhas com
forma de flauta repicavam nos cantos. A loja estava aberta e
ventilada, com livros em uma das paredes e janelas nas outras.
Uma cômoda sala de estar se agrupava ao redor de uma elevada
estante e dispersos expositores de cristal e
queimadores de incenso; feitiços e cartas de tarô
estavam no meio. Cinco ou seis gatinhos negros
brincavam de correr em torno de uma mulher com
um vestido pálido de cor púrpura na caixa
registradora. Um pôster apoiado no mostrador
Brumas da Irlanda 1 Página117
dizia “Nos ajude a encontrar nossos gatinhos”. Havia mais
debaixo descrevendo os perigos em que se encontravam os gatos
negros pelos cultos e outras desprezíveis seitas.
Várias mesas de tamanho coquetel estavam colocadas em
intervalos, cada uma com duas cadeiras. Um homem magro e
polido com um pulôver de cor cinza e calças combinando, estava
sentado em frente a uma mulher com sobrepeso que o escutava
com ávido interesse. Em outra mesa, uma mulher maior muito
maquiada que parecia que pudesse estar fazendo provas para o
papel de Glinda7. A bruxa boa estava sentada sozinha. Ela olhou
enquanto Danni seguia a loira a uma mesa vazia na parte de trás.
Um pano de cor azul pálida cobria a superfície e uma vela
pequena em um suporte com forma de rosa piscava através de
uma matriz de cristais artisticamente disposta a um lado. Um
baralho de cartas de tarô jazia em um arco através do centro.
— Sente-se — disse a loira — Sou Alice.
— É uma adivinha? — Perguntou Danni, envergonhada
pelo tom crítico que albergou sua pergunta.
Entretanto, não pôde evita-lo. Olhou ao seu
redor, pensando que essas pessoas não podiam ser
legítimas.
— Sou uma guia, — disse ela — Sabia que
há um espírito contigo?

7 Glinda, the Good Witch é a bruxa boa do livro O Magico de Oz
Brumas da Irlanda 1 Página118
Alice olhou a um ponto à direita de Danni e todos os
pelos dos braços de Danni se arrepiaram quando ela olhou por
cima de seu ombro.
— Quer dizer agora mesmo?
Alice assentiu e seus olhos se fecharam durante um breve
momento.
— Ele esteve te procurando durante muito tempo.
Sean.
— Fez mais que te encontrar, entretanto. Sabe quem é?
— Sim. — Disse Danni brandamente, sentindo-se tola e
assustada ao mesmo tempo.
Alice abriu os olhos.
— Não acredito que saiba. Não é alguém que conheça.
Ainda não. — Não esperou uma resposta. Pegou o maço de cartas
e as baralhou antes de colocá-la em frente à Danni.
— Por favor, corte. — Disse.
Danni fez o que lhe dizia, ainda se sentindo
totalmente estranha por estar lá. Alice lhe deu um
doce sorriso.
Brumas da Irlanda 1 Página119
— Não estava esperando alguém com quem possa falar? —
Perguntou.
Danni encolheu os ombros, mas era, é obvio, a verdade.
Alice começou a colocar com cuidado as cartas, detendo-se para
estudar cada uma delas antes de depositá-las. Depois de um
momento, tocou uma no centro com suas unhas de cor azul
brilhante. A carta mostrava uma pessoa caminhando sobre um
terreno de colinas e baixos pantanais. No céu a lua eclipsava o
sol. Copas bordeavam a parte inferior da carta.
— Está em uma encruzilhada, — disse Alice — Não a vê
porque esteve cega durante muito tempo, atada como uma
múmia por sua incapacidade para reconhecer o que é real. Mas
deve se libertar e encontrar um propósito mais profundo. Sabe o
que quero dizer?
Danni negou com a cabeça.
— Sinto que tem… Fechada uma parte importante de si
mesma. Mas é algo que necessita e sem isso, simplesmente estará
dando tombos por sua vida. Está cega e não sabe como se
libertar. Inclusive agora, acredita que quer continuar
assim.
Danni fez um pequeno som de incredulidade.
— Por que quero continuar cega?
Brumas da Irlanda 1 Página120
— Porque pode ser que você não goste do que será
obrigada a ver se decidir abrir os olhos e estar completa de novo.
— Disse Alice com monótona certeza. Apesar do cepticismo de
Danni, um calafrio passou por sua coluna.
Alice virou outra carta, era uma torre. O fogo se
derramava das pequenas janelas e pessoas saltavam para
escapar, ou saltavam para sua morte, era difícil dizê-lo, embora a
queda não parecesse uma boa opção de maneira nenhuma.
Danni deixou escapar um suspiro divertido, mas em
realidade, o que a enchia, não era o bom humor.
— Então, o que é isso? A carta da morte?
Alice inclinou a cabeça, considerando a pergunta com
mais solenidade do que Danni queria.
— De certo modo, possivelmente. Mas não
necessariamente a morte do corpo. A morte e o renascimento são
partes de nosso mundo cotidiano. Se não os aceitar, só se vive na
superfície. Talvez a velha você tenha que morrer para que a nova
você sobreviva.
— Isso é muito para mim. — Mas estava
pensando da tumba e seu corpo no fundo.
— Se você o diz. — Respondeu Alice com
suavidade.
Brumas da Irlanda 1 Página
121
Alice tirou a seguinte carta do baralho e Danni pensou
que essa parecia ainda pior que a anterior. Uma figura alta de cor
cinza estava de pé com uma solitária lanterna na mão em um
mundo escuro. Nervosa, olhou a reação da Alice.
— Há alguém que está te buscando. Essa pessoa é
importante para ti. — Disse, fazendo uma pausa para morder o
lábio — É um homem. Acredito que é a razão pela qual está cega
agora. Precisa saber o que ele é e para fazer isso, deve perguntar.
— Perguntar a quem?
Alice negou com a cabeça.
— Não posso lhe dizer isso, entretanto, deve procurar
para encontrá-lo, chamar se desejas entrar. A promessa se
encontra em seu próprio coração.
— Bom isso é tão claro como barro.
— Há perigos no que buscas. Na superfície, parece ser
tudo o que acredita que deseja. Mas há falsidade nas pessoas que
encontrará. Estou vendo… — fechou os olhos — Estou vendo
uma máscara que oculta o interior verdadeiro de uma
pessoa. Isso significa algo para ti?
— Não acredito — Danni se moveu, sem
gostar da sensação de compreensão vindo do seu
subconsciente.
Brumas da Irlanda 1 Página122
— Mas está procurando alguém?
Danni umedeceu os lábios, pouco disposta a lhe dar
alguma pista, alguma prova a está estranha mulher.
— Não está todo mundo procurando alguém?
O sorriso de Alice dizia que sabia o que Danni estava
pensando. Girou outra carta; desta vez era um homem
pendurado de barriga para baixo em um T gigante.
— Vejo uma ruptura na confiança, desta vez dentro de
ti. Esqueceste-se de quem é. — Separou o baralho em suas mãos
e pediu a Danni que tirasse uma. Danni se sentiu vazia enquanto
o fazia. Alice estudou a carta durante um longo momento antes
de colocá-la na parte superior de outra — Esta representa o
conflito, a luta. De fato, tenho a sensação de que é algo maior.
Uma batalha de algum tipo.
— Uma batalha. — Repetiu Danni, com uma sensação
de queda no estômago enquanto Alice tirou outra carta do maço
— Escuta, não sei por que estava me esperando ou se isto for só a
forma que utiliza para atrair clientes, mas tenho muito que fazer
hoje. Diga o que te devo e….
— Sempre fugiu delas? — Perguntou Alice,
imperturbável.
— Delas, de quem?
Brumas da Irlanda 1 Página123
— De suas batalhas. É por isso que quer estar cega?
Está aqui, agora, já não terá que lutar. Mas esta carta… —
golpeou a última carta com sua unha de cor azul. A carta
mostrava um homem jazendo sobre seu estômago com dez
espadas saindo de suas costas — Isto representa a perda de tudo
o que valorizamos. Isto significa que a fuga, irá te destruir.
Danni empurrou sua cadeira para trás e se levantou.
— O espírito que te segue… quer isso. Sua aura está
mudando, inclusive agora. O posso ver. O faz feliz. Ele quer que
fuja.
Danni procurou desesperadamente por toda a loja, sem
querer escutar o que Alice poderia dizer a seguir. Sem querer
pensar no regozijado espírito sobre seu ombro.
— Quanto? Quanto te devo? — Alice se levantou também.
— Tem o poder de mudar tudo. — Disse em voz baixa, e
piscou fechando os olhos de novo.
Seu rosto estava sereno, mas parecia que uma boa
estática flutuava ao seu redor. Se Danni esticasse a mão
e a tocasse, a faísca disso se romperia contra sua
pele.
A boca de Danni estava seca, com seu
estômago tenso enquanto dava um passo para
trás.
Brumas da Irlanda 1 Página124
— Obrigada por seu tempo. — Disse, procurando notas na
sua carteira na bolsa.
— Tire as vendas, Dáirinn. — Sussurrou Alice — Enfrente
o que teme.
— Como me chamou?
Alice abriu os olhos e a olhou sem responder. Por um
momento pareceu estender como um vazio eterno, as duas
mulheres se olharam. Mas o que Danni viu foram as páginas
imprecisas do Livro e o vermelho escuro que se filtrava por entre
elas. Se isso era ao que tinha que fazer frente, Danni não
acreditava que pudesse fazê-lo.
— Vai tudo bem por aí? — Perguntou uma mulher com
um brilhante vestido de cor lilás. Danni a viu atrás da caixa
registradora quando entrou — Alice está bem?
Alice piscou e logo saiu de seu transe. Sorriu
amavelmente.
— Sim, estou bem.
Vacilante, a mulher voltou a olhar para
Danni, que ainda sustentava sua carteira em um
férreo aperto.
— Quanto te devo? — Insistiu Danni
obstinadamente, desejando pagar para eliminar
qualquer dívida entre elas e conseguir sair dali tão
Brumas da Irlanda 1 Página125
rápido como pudesse. Alice mexeu e afrouxou algo
profundamente dentro dela e Danni tinha medo de que tivesse se
libertado agora. E quem sabia o que podia aparecer?
— Alice cobra quarenta por uma leitura, — disse a
mulher com voz cautelosa. Ela estava olhando por cima do ombro
direito de Danni, como Alice o tinha feito. Genial. Todo mundo
nesse lugar podia ver o espírito invisível?
Danni tirou o dinheiro de sua carteira e o pôs sobre a
mesa. Sem dizer uma palavra, se virou e se afastou com pressa
da loja, consciente dos olhos que a seguiam. Ela saiu à luz do sol
com um sentimento de querer escapar. Mas o aroma adocicado
da loja se aferrou a sua pele.
Concentrada em chegar a seu carro e conseguir afastarse da Caixa de Pandora, Danni não viu o homem que a observava
do outro lado do estacionamento. Mas o sentiu e levantou o olhar
do chão e se obrigou a olhar ao seu redor. Analisou às pessoas no
caminho, nem sequer registrando o rosto conhecido até que o
tinha passado. Deu a volta, procurando o rosto de novo. Durante
um momento, pensou que tinha visto seu pai; ou ao menos um
homem que se parecia muito a ele na fotografia. Mas
isso era impossível…
Quase tinha se convencido de que o tinha
imaginado quando apareceu de novo. Por um
instante, seus olhos se encontraram no
abarrotado estacionamento e Danni ficou quieta
Brumas da Irlanda 1 Página126
pela surpresa. Pouco a pouco, sorriu e Danni se surpreendeu pela
forma em que transformou seu rosto. Simplesmente não se
parecia com o da imagem, via-se como se acabasse de sair dela.
Tinha que ser seu pai. Por razões que não podia começar a
adivinhar, seu pai estava aqui no Arizona e Sean não queria que
ela soubesse.
Correu para ele, com o coração cheio de esperança
enquanto se aproximava. Mas antes que pudesse o alcançar, ele
se virou e entrou em uma das lojas do centro comercial. Ela o
seguiu até a concorrida loja, olhando acima e abaixo pelos
corredores, mas de algum jeito o tinha perdido e agora ele se foi.
Brumas da Irlanda 1 Página127
Capítulo 8
Estava quase anoitecendo quando Sean finalmente viu
Danni entrar no parque. Mudou a roupa de trabalho por suaves
calças de veludo cinza e uma jaqueta combinando que parecia
cômoda e cálida, embora para ele não fizesse frio esta tarde. Ela
morreria de frio se estivesse na Irlanda, pensou.
Ficou sentado no banco do parque enquanto ela e seu
cão louco se aproximavam dele, só a observando caminhar. O
tecido moldava sua estrutura magra e acentuava suas curvas
bem proporcionadas. Pela centésima vez nesse dia, quis tocá-la.
Ela parecia tensa e ele não pôde evitar a sensação de
triunfo que o enchia. Passou o resto do dia frustrado e tenso. Não
teria suportado se ela estivesse passeando feliz com seu pequeno
vira-lata sem nenhuma preocupação.
Estava a uns seis metros de distância
antes que se visse ele. Reduziu a velocidade e a
tensão se converteu em receio. Mas não em
Brumas da Irlanda 1 Página128
surpresa, o notou. Uma vez mais, ela esteve o esperando.
Quando se levantou, o cachorro foi até ele, grunhindo e
rugindo, uma besta muito feroz para o pequeno e compacto
corpo. Esperava que a cadela se acostumasse a ele, mas a este
passo seria um ancião primeiro. Danni manteve um aperto na
correia de Bean, detendo-a antes que pudesse afundar seus
dentes no tornozelo de Sean.
— Bean seja boa, — O cão se esticou no final da correia,
fazendo caso omisso de suas ordens. A Sean ela disse:
— O que quer?
Não havia nenhuma sugestão no tom plano da pergunta,
mas mesmo assim, ele imaginou uma grande quantidade de
imagens muito gráficas representando exatamente o que
desejava. Como se tivesse lido seu pensamento, ela ruborizou e
olhou para outro lado.
— Sinto muito como me comportei antes, — disse,
contradizendo sua própria imaginação selvagem — Queria te
pedir desculpas.
Ela o olhou por um momento e se alegrou
de poder olhá-la outra vez sem medo de que visse o
que estava em sua mente. Ele sentia, mas só
porque tinha terminado antes que ele estivesse
preparado.
Brumas da Irlanda 1 Página129
— Não se preocupe por isso — murmurou ela.
A cor cinza clara de sua jaqueta ressaltou as manchas
de seus olhos e os fez ainda mais surpreendentes, mais
misteriosos. Ele ficou olhando profundamente dentro deles.
— Está aqui sozinho, Sean? — Perguntou-lhe de repente.
Confundido, ele olhou por cima do seu ombro,
perguntando-se a que se referia.
— Vim aqui sozinho, — disse.
— Não veio com meu pai?
Quase riu, mas conseguiu controlar o impulso.
— Não, não o fiz. Por que pergunta?
— O vi hoje. Quando fui à loja.
— A seu pai? — Repetiu ele, incapaz de ocultar sua
surpresa — Está segura?
— Sim. Não. Parecia-se com ele. Poderia ter sido seu irmão
gêmeo. Seu clone.
Sean negou com a cabeça, com um mau
pressentimento golpeando forte. Isto não era bom.
Nem sequer sabia por que, mas não era bom.
— Não pode estar aqui.
Brumas da Irlanda 1 Página130
— E por que não?
Não tinha uma resposta, mas estava quase certo de que
não podia ter visto Cathán McGrath. Ele não sabia de Danni,
Sean estava seguro disso.
— Não sei quem viu Danni, mas juraria que não era seu
pai. É um homem ocupado, e raramente deixa Ballyfionúir nestes
dias.
Ela deixou escapar um profundo suspiro.
— O homem que vi, também me viu. Se for meu pai,
teria falado comigo, não teria só se afastado.
Ele assentiu em confirmação. Mas lhe incomodava a
ideia de que Cathán estivesse ali.
Sem dizer uma palavra, ela começou a andar por onde
tinha vindo e ele caminhou junto a ela, pensando que seu silêncio
se sentia como um vazio que parecia que não podia preencher.
Queria pôr os braços ao redor dela e abraçá-la, mas não confiava
em poder deter-se só nisso. Duvidava que ela confiasse nele
também.
— Quem é o fantasma branco? —
Perguntou Danni em voz baixa. Sua voz saiu débil,
mas sua pergunta o deixou paralisado.
— O que disse?
Brumas da Irlanda 1 Página131
— Ballyfionúir.Significa vale do fantasma branco,
verdade?
— De uma maneira geral, suponho, — respondeu ele
com cuidado — Pensamos nele mais como um espírito. Como
uma bondade.
— Oh. — Ela girou os olhos em sua direção — Assim
não é um fantasma de verdade?
— Estou certo de que há vários, — disse, mantendo seu
nível de voz, observando o jogo de emoções em seu rosto —
Ballyfionúir tem pelo menos mil e quinhentos anos de
antiguidade.
— Mas alguma vez ouviu falar dela? Do fantasma
Branco. Sabe quem é?
— Ela?
Danni vacilou, olhando para cachorra. Ela sacudiu a
cabeça.
— Não importa.
Ele quis que esquecesse. Queria fingir que
ela nunca tinha trazido o tema, mas uma estranha
inquietação se instalou no ar entre eles e soube que
não poderia. Chegaram à porta principal e ele
vacilou no alpendre, inseguro se era bem-vindo;
ou melhor, dizendo, seguro de que não era. Mas
Brumas da Irlanda 1 Página132
ela o surpreendeu ao convidá-lo a entrar.
Seguiu-a até a pequena cozinha, onde ela se sentou à
mesa e retirou a correia de Bean. Quando ela terminou de fazê-lo,
uma vez mais, ele quis abraçá-la, consolá-la.
Acariciou a cadela atrás da orelha e logo pegou uma
garrafa de vinho da prateleira superior da geladeira. Sem lhe
perguntar se queria, alcançou duas taças de vinho de cristal.
Enquanto as enchia, Sean viu um frasco na bancada com as
palavras Ruff Ruff pintadas de um lado. Ele olhou dentro. Eram
bolachas para cão. Pegou uma e pondo em risco sua vida e sua
integridade física, ficou de joelhos para oferecer a Bean.
Com uma expressão de surpresa e gratidão pouco
entusiasta, Bean deixou os pés de Danni para alcançar o
presente. Pegou entre suas patas com maneiras de uma dama,
mas a devorou como um lobo faminto. Ele juraria que lhe tinha
sorrido com um abrupto movimento de seu gordo rabo.
Assombrado, Sean se sentou junto a Danni e
finalmente, fez a pergunta que estava segurando.
— E por que perguntou pelo fantasma branco,
Danni?
Brumas da Irlanda 1 Página133
Danni umedeceu os lábios antes de responder. Um
gesto enérgico que tilintava contra os já sobrecarregados nervos
dele. Ela ia lhe mentir.
— Sonhei com ela, — murmurou.
Ele não disse o que estava pensando. Em vez disso,
perguntou-lhe:
— Ontem de noite?
Ela assentiu.
— Foi um sonho estranho. Não sei por que me veio à
cabeça.
Ela fingiu um repentino interesse em sua taça e
começou a girar o pé da taça entre seu indicador e polegar.
Parecia preocupada, temerosa do que ele diria ou faria a seguir. E
uma suspeita surgiu em seus pensamentos enquanto a olhava.
Uma certeza que ele não queria reconhecer.
Ela não sonhou. Ela a viu. E isso não pressagiava nada
de bom, para nenhum deles.
— Minha avó, viu o fantasma branco — disse
em voz baixa.
E tudo chegou aos preciosos olhos cinza.
Ele cravou o olhar neles, sentindo como se
Brumas da Irlanda 1 Página134
estivesse caindo na névoa de nuvens e de tormentas iminentes.
— O viu? — Exalou Danni. Quando ele assentiu,
perguntou-lhe — Tem um pente de prata, quando sua avó
a vê?
— Um pente? — Apesar de perguntar, uma lembrança
escura apareceu em seu subconsciente. O que sua Nana dizia?
Que havia um mito… Uma superstição… Algo a respeito de um
pente. Franziu o cenho enquanto a lembrança clareava.
— Ela apareceu para mim, — começou Danni, mas se
deteve e franziu o cenho — Quero dizer, no sonho, tentou me dar
o pente. Dava medo, a forma em que me estendeu isso. Era
como…. Como algo ao que eu não pudesse resistir.
— Não o pegou, verdade? — Perguntou Sean mais
bruscamente do que tinha previsto.
Danni franziu o cenho.
— Bom, foi aí que ela começou a gritar; fazendo esse
som horrível que machucava escutar.
— Mas, pegou o pente? — Exigiu ele uma
vez mais, com uma parte dele se sentindo ridículo
pelo medo que acompanhava a pergunta.
Ela negou com a cabeça, observando-o
com seus olhos redondos e cinzas. Toda sua alma
parecia estar neles. Sean forçou um sorriso que
Brumas da Irlanda 1 Página135
não enganou a nenhum dos dois. Sentia-se incômodo com sua
própria preocupação e com o alívio que chegou com sua negação.
Entretanto, os irlandeses eram um grupo supersticioso e as
coisas com que uma pessoa foi criada eram difíceis de ignorar.
Tolas ou não, a ideia de que ela pegasse o pente tinha levado
pressentimentos intensos à boca de seu estômago.
— É bom que não o tenha pegado — disse, esperando
que sua voz soasse mais informal do que sentia — Estou certo
que tudo é uma lenda. Contos que, durante centenas de anos, as
mães usaram para aterrorizar seus filhos para obedecessem. Mas
é bom que não o tenha pegado.
Observou-lhe, com os olhos ainda arregalados, com um
calafrio de apreensão perto da superfície. Suas mãos brincavam
com a taça de vinho, girando em vagos círculos sem que ela
parecesse dar-se conta.
— O que teria acontecido se o tivesse pego? — Perguntou.
Sean se esticou para imobilizar seus dedos. Eram como
gelo e sem pensar, os envolveu em um aperto quente. Ouviu-a
respirar brandamente e tirou seus pensamentos mais
profundos para quão atrativa era Danni McGrath.
Ele limpou a garganta, desejando poder
retirar as mãos, mas tinha se comprometido agora
e seus dedos pareciam estar trabalhando por sua
Brumas da Irlanda 1 Página136
conta, esfregando sua pele sedosa, levando calor a seus dedos
gelados.
— Minha avó diria que é uma banshee — disse ao fim.
— Uma o que?
— Uma fada, suponho, só que não do tipo com que
Disney sonharia. — Olhou em seus olhos, tentando fazer as
palavras mais suaves do que podiam ser. — Segundo a história,
dizem que só aparece para dizer a alguém que ou está morta ou
que vai morrer.
Ela piscou uma vez, duas vezes. Ele podia ver o esforço
que ele fazia para processar o que havia lhe dito e sentiu um
ligeiro tremor movendo-se através dela. Seus dedos capturados se
curvaram em um pequeno punho. Ele os levou a sua boca e
soprou calor no refúgio que tinha feito com suas mãos. Observoulhe com essa embriagadora combinação de confiança e receio.
— As banshees choram aos mortos, — disse ele.
— Chorar — repetiu ela e sua voz pareceu sair de muito
longe — Sim, isso é o que era. Não posso sequer
começar a descrever o som. Foi muito estridente e…. E
como o cristal; um milhão de taças de cristal
rompendo-se de uma vez.
Brumas da Irlanda 1 Página137
Ele assentiu, sabendo exatamente quão nítido o som da
pena podia ser. Passou um longo momento e logo lhe perguntou:
— O que acontece com o pente de prata? O que é isso?
— Sabe algo a respeito dos irlandeses, Danni?
— Supõe-se que deve se vestir de verde no dia de São
Patrício e nunca deixar que um duende se vá se quiser sua
panela de ouro.
— Bom, há um pouco mais para nós que isso.
— Imaginei que podia haver.
Sua voz ficou rouca nessas palavras e ela olhou para o
outro lado. Sean se perguntou o que estava pensando.
— Pensa em duendes e não é certo que pensamos que
todos os americanos montam cavalo e disparam uns contra os
outros nos salões? É obvio os irlandeses não são nada sem as
superstições. Entretanto, os duendes dos que minha avó te
falaria seriam uns filhos de puta um pouco cruéis. Não estou
dizendo que a maioria das pessoas ainda cria na tradição, mas há
alguns que são como minha canção de ninar. Meu
argumento é que se Cinderela tivesse sido um conto
irlandês, a Fada Madrinha não lhe teria feito o bem
para ela. Um espírito teria a levado a uma cova
escura onde a teria mantido até que a maré
subisse e ela se afogasse.
Brumas da Irlanda 1 Página138
— E o que diz ela do fantasma branco?
Sean lhe esfregou a mão enquanto considerava sua
resposta. Sua avó a viu duas vezes e ambas às vezes haviam
trazido o desastre. Sean nunca acreditou no espírito, mas tinha
um razoável respeito pelo medo que sua avó tinha dele.
— Quando era menino — começou Sean com cuidado —
minha avó acostumava dizer que devia tomar cuidado com as
fadas. “Nunca seja um menino muito bom, Sean” dizia-me.
A testa de Danni se elevou pela lembrança de sua avó e
o mais breve dos sorrisos se desenhou em seu rosto.
— Por quê?
— Bom, vejamos, ela pensava que se era muito bom, as
fadas viriam e me levariam. Não tive coragem de lhe contar que
nunca era tão bom. Mas o que estou tentando te explicar é que as
fadas da Irlanda fazem coisas como ocultar o pote de dinheiro de
uma mãe com seis filhos famintos só para poder lhe tomar o
melhor deles e fazê-lo seu enquanto ela está pedindo por comida.
— Isso é horrível.
— Aye, bom, a história da Irlanda não foi
sempre doce e encantadora.
— Mas, o que tem isso que ver com o
pente?
Brumas da Irlanda 1 Página139
— Não sabe que não se deve pressionar um irlandês que
conta um conto, mulher?
Outro sorriso, desta vez quase chegou a seus olhos.
— Eles pensam que o pente seria algo como um chamariz.
Danni ficou muito quieta e ele se deteve, observando-a.
Ela tirou a mão de seu agarre e começou a mover a taça outra
vez. Suas seguintes palavras acenderam a lenha sob seu
pressentimento, que cresceu até converter-se em algo maior, mais
ameaçador.
— Atraiu-me — disse — Quis tocá-lo. Queria muito tocá-lo
— Seus lábios se esticaram seu rosto empalideceu. — Continua
— disse-lhe.
— Não é nada em realidade. A verdade disto é que a
história foi provavelmente roubada da mitologia das sereias: a
sereia, que provoca aos marinheiros com seus formosos cabelos
brilhantes e com seus brilhantes pentes e logo o captura e o leva
para o fundo do mar gelado. Simplesmente não deve tomá-lo se
lhe oferece isso uma vez mais.
— Não o farei — disse Danni em voz baixa e a
gravidade de seu tom disse. Que acreditava que
podia acontecer.
— Que mais havia nesse sonho? —
Perguntou-lhe.
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Danni olhou sua taça e não respondeu. Ele sabia que
havia mais no momento em que ela começou a falar. Ela começou
de uma maneira entrecortada e agitada, que implicava que estava
editando conforme o contava. Agora, sua curiosidade estava no
máximo. Danni estava assustada. Podia sentir sua ansiosa tensão
e provocava uma primitiva atitude protetora nele que o agarrou
como um gancho.
Danni respirou fundo e disse:
— Vi minha mãe.
— A sua mãe, verdade?
— No sonho — adicionou ela — Tirou-me da tumba.
— E de quem poderia ser a tumba?
— A que vi de pé ao seu lado — disse Danni brandamente.
Sean tragou saliva, não gostava do seu tom de voz. As
palavras que dizia ainda menos.
— Esse foi outro sonho que teve.
Ela assentiu.
— Sempre fui uma sonhadora vívida.
Deixou passar, querendo saber que mais
tinha visto.
Brumas da Irlanda 1 Página141
— Essa tumba, está em um vale e vi um escarpado.
Estava coberto de rochas que parecia que descia diretamente ao
mar. Era muito hostil. Muito bonito.
Muito Ballyfionúir.
— Na distância, há uma coisa estranha de pedra…. Não
estou segura de como descrevê-la, mas parecia como uma porta e
há algo nela que reflete o sol. Como ouro.
Ela inclinou a cabeça e olhou seu rosto. Ele sentia como
se tivesse estado submerso em uma piscina do Ártico. De repente
estava muito frio.
— Sabe de onde estou falando?
Ele sabia. Sabia bem. Era um lugar que o atraía, um
lugar no que se encontrava frequentemente, às vezes não
recordava como tinha chegado ali.
— O que é? A coisa de pedra que vi?
— É um dólmen. São antigos e tão comuns como os
castelos na Irlanda.
— Mas, o que é?
— Depende do mito em que acredita. Mas
o mais provável é que marque uma câmara
funerária. A portas mais à frente.
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Ela empalideceu e assentiu.
— Há uma em Ballyfionúir?
— Sim.
— Tive a sensação, o sentimento, de que havia algo
atrás de mim quando estava olhando-a, mas já sabe como são os
sonhos. Não podia olhar para trás, assim não sei. Acredito que,
talvez seja uma casa ou… Não sei algo maior, mas não posso
dizer o que.
— São ruínas — disse ele em voz baixa, sentindo o cabelo
de sua nuca arrepiar-se — Antes costumava ser um castelo e sua
fortaleza, encarapitado em um escarpado com vistas ao mar. Foi
construído faz séculos e se manteve em pé todo este tempo.
Minha avó recorda histórias de quando estava inteiro. Seus
antepassados viveram lá antes que uma das paredes caísse para
o oceano. Levou a cozinha e o filho mais velho ao mesmo tempo
com ele.
— Oh…
A palavra exalada estremeceu entre eles. Ele
tinha a sensação de algo transcendental, de algo
flutuando por cima deles. Parecia que a casa se
atenuava, a iluminação mudou, ficando mais
suave, embora não podia explicar. As paredes da
sua cozinha piscavam, não havia outra maneira
de descrevê-lo. Era como ver um filme em casa
Brumas da Irlanda 1 Página143
projetada sobre a pintura e os armários. Distorcida,
desconjurada, mas inegavelmente ali.
— Agora são só ruínas? — Disse Danni, com sua voz
como uma brisa fresca que soprava através dele.
Ele assentiu.
— Há uma casa de frente a ele agora. Nunca pensei que
parecesse natural, a casa de pé nas sombras das ruínas do
castelo. Mas não me pergunte quando a construíram.
Danni o olhou fixamente, com seus olhos cinza vendo
profundamente dentro dos dele. O puxão dela era tangível, a
necessidade dela tão grande que não pôde deter sua mão que,
finalmente, encheu o vazio entre eles. A seda de sua bochecha se
sentia quente contra a ponta de seus dedos. Acariciou da linha de
sua mandíbula para sua garganta, tentando não ver nada mais
que a ela. Tentando perder-se nos mares tempestuosos de seus
olhos. Entretanto, as paredes pareciam aparecer e desaparecer,
burlando seu intento de ignorá-las.
O que o estava causando isso? Ela via também? Mas
não perguntou. Perguntar teria feito a insistente
preocupação de seu estômago muito real ou muito
ridícula. Não estava seguro de qual.
— Te comprei algo — disse ele sem dar-se
conta de que tinha a intenção de falar disso, de
dar-lhe isso, até que ouviu suas próprias
Brumas da Irlanda 1 Página144
palavras. Mas na turbulenta mescla de sua confusão, sentiu a
pressão construir-se. Um anseio que obrigou sua mão da mesma
maneira em que tinha feito desde o começo.
Pensou que, não pela primeira vez, de algum jeito tinha
se convertido em um peão de sua própria vida. Em uma sombra
do homem que deveria ser, movendo-se mecanicamente para um
objetivo que não entendia.
As paredes que o rodeavam tomaram uma translucidez
estranha e durante um momento esteve olhando a vista que
Danni acabava de descrever. Só por um instante, sentiu o contato
da brisa do mar, o salgado das ondas. E logo seus dedos se
fecharam sobre a caixa verde que havia trazido da Irlanda e as
paredes voltaram para onde deveriam estar. Formal e limitado,
encerrando-o em decisões que não eram suas.
Brumas da Irlanda 1 Página145
Capítulo 9
Danni sentiu a mudança no ar ao redor deles. Era
pesado e grosso, como se tivesse sedimentos. Pensou em um
vulcão em erupção, jogando cinzas tão densas que ocultavam o
céu. A pressão do ar era estranha e áspera pelas estranhas peças
que revoavam da visão que, entretanto, ainda não podia ver
nitidamente. Sabendo que não tinha sentido lutar contra isso,
concentrou-se só no homem ao seu lado.
Do seu bolso, Sean tirou uma pequena caixa verde. Era
o que segurava de manhã, quando a observou da janela da loja.
Estava gravada com círculos dourados e espirais que se uniam a
um símbolo que nunca tinha visto antes… e, entretanto, havia
algo familiar nele. Levou um minuto para ser lembrar que tinha
visto figuras similares nas páginas do Livro de Fennore. Um frio
se filtrou desde seu couro cabeludo até seus pés,
enquanto considerava isso.
Com um olhar melancólico em seu rosto,
Sean empurrou a caixinha para ela. De novo ela
Brumas da Irlanda 1 Página146
foi golpeada com uma mescla de mensagens. Ele a entregava,
mas não voluntariamente.
Seus dedos tremeram um pouco quando pegou a caixa e
abriu a tampa. No interior, sobre uma cama de algodão branco,
estava um colar com uma fina cadeia de prata e ouro entrelaçado.
Um pendente do tamanho de uma moeda antiga pendurava nela.
A mescla de prata e ouro fazia um intrincado zig zag ao redor de
espirais concêntricas girando juntas sem começo nem fim. Uma
vez mais, teve a sensação de familiaridade e reconhecimento. Em
sua mente, viu a fechadura do livro, girando em uma espiral sem
fim. O pendente era o mesmo.
Uma constelação de joias brilhava em meio aos fios de
ouro e prata. Uma esmeralda estava no centro da peça, com
diamantes brilhantes, opalas luminosas e rubis de cor vermelha
sangue rodeando-o. Mas não havia maldade emanando do colar
como do livro, só uma energia discordante, estranha. As paredes
da cozinha continuavam se expandindo ao seu redor como
pulmões sugando ar em profundas respirações. O sentiu
estremecer em antecipação enquanto ela olhava o colar. Eles
estavam esperando, mas ela não sabia por que ou para que. Ela
lutou contra o impulso de olhá-lo, lutou contra as
sombras movendo-se do outro lado da membrana.
Ela tocou o nó central do pendente com a
ponta de seu dedo, e uma aguda cãibra pareceu
correr por seu braço. A assustando e acalmando
Brumas da Irlanda 1 Página147
ao mesmo tempo.
— O que é isto? — Sussurrou.
— É um amuleto — respondeu com sua voz de barítono,
por isso as palavras pareciam muito mais do que eram — Para
atrair sorte e te manter a salvo.
— A salvo? A salvo do que?
Ele a olhou em silêncio e ela sentiu que ele estava a
examinando e filtrando uma grande variedade de respostas.
Parecia que ele sentia que havia muitas coisas das quais
precisava manter-se a salvo. Tantas coisas que deveria temer.
Será que ele tinha conhecimento do Livro de Fennore? Ele alguma
vez o teria visto?
As paredes saltaram e se empurraram no ar grosso. Em
espera… esperando.
— Só pega — disse ele, olhando para o outro lado. — É
uma relíquia da família. É tua agora.
— Minha? — Disse e a parede segurou seu grito de prazer.
— Sim. Coloque-o pertence a você.
— Mas de onde vem? Como…?
— Então quer o devolver?
Brumas da Irlanda 1 Página148
— Não — disse rapidamente. — Não.
As sussurrantes paredes se aproximaram enquanto
Sean levantava brandamente a fina cadeia, situando-se atrás
dela, e fechando ao redor do seu pescoço. Seus dedos estavam
quentes sobre a pele sensível da sua nuca e a carícia foi tão
íntima quanto um beijo.
As paredes pulsaram com uma necessidade escura que a
aterrorizou.
Quando Sean retornou ao seu assento, suas
sobrancelhas estavam elevadas, com os olhos com uma estranha
cor verde dourada, como uma piscina agitada de inquietação. Ele
olhou além dela como se algo atrás dela o tivesse distraído. Ela
tinha a inquietante sensação de que ele podia ver, que podia
ouvir a irritante insistência à medida que as paredes se
estreitavam e se expandiam. Mas isso era impossível. Nunca
tinha irradiado uma visão a outra pessoa.
— Não sei quando foi feito — disse Sean sobre o colar —
Não estou seguro de que alguma vez tenha sido datado. Mas é
velho. Muito antigo.
Sentia-se pesado ao redor do seu pescoço,
muito mais pesado do que seu aspecto levava a
acreditar. Levantou-o com os dedos trementes,
meio que esperando que a peça preciosa
desaparecesse como uma ilusão. Entretanto, no
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momento em que o tocou outro estremecedor relâmpago correu
por ela. Imagens vieram com ele em uma rajada de impressões
revoltas que lhe roubou o fôlego. Não teve tempo de dar sentido a
nada disso enquanto destroçava seus sentidos.
— Está bem? — Perguntou-lhe Sean, tomando sua mão,
trazendo-a de volta.
As paredes gorjearam, e sentiu que iam a sugar para
dentro de sua turbulenta massa. Sentia-se doente com o puxão
que lhe davam.
— Danni, o que está acontecendo? O que foi?
A voz de Sean vinha de uma grande distância. Ela a
sentiu tanto como ouvia. Tentou lhe responder, mas só obteve um
som incoerente que intensificou seu pânico crescente. A manhã
em que Sean tinha aparecido em sua cozinha, à visão ficou
rondando, simplesmente esperando levá-la em seu abraço
aterrador. E agora isto, esta sensação de que perfuraria por suas
paredes e ultrapassariam a vida tal como ela a conhecia. Sean
estava de pé, puxando ela para pô-la de pé. Ela era consciente
dele, da massa sólida, de sua altura e sua largura, da
sedução nesses olhos nem muito verdes nem muito
cinzas. Ela queria que fosse real. De repente, com
força, ela quis que fosse algo mais que um doente
giro do destino. Ela queria apoiar-se nele, ter seus
Brumas da Irlanda 1 Página150
braços ao redor dela, consolando-a, aferrando-se a ela.
Não é justo, pensou ela. Não era justo que tivesse
chegado a sua vida desta forma. Mais uma pessoa que desejava,
mas que não podia ter. Porque apesar de que era um
desconhecido, desejava saber mais dele. Para sentir-se conectada
a ele. Desejou que pudesse ser diferente. Porque sempre parecia
que tudo o que queria oscilava fora do seu alcance?
Um som ecoou em sua mente — uma avalanche
palpitante, um gemido angustiado. O trem do destino escalando
uma inclinação proibida. Fez-se mais ruidoso, mais forte. O ar se
voltou espesso e enjoativo, sorvendo sua prudência, enquanto a
realidade se consolidava.
— Danni?
Ela não podia ouvi-lo falar, mas viu o movimento de
seus lábios, com os olhos cheios de preocupação. Ele a tomou em
seus braços, olhando ao seu redor com uma expressão que
refletia o medo no interior dela. Ela não sabia o que estava
acontecendo, mas parecia que acontecia aos dois. Bean começou
a latir desesperadamente. Rodeou os pés de Danni e
saltou para descansar suas patas em suas pernas.
Ela sentia, mas não podia fazer com que seu corpo
respondesse e lhe oferecesse consolo.
E então lhe pareceu que o chão se abriu
sob seus pés. Não havia opção de obedecer ou
Brumas da Irlanda 1 Página151
desafiar em relação à queda. Estava simplesmente caindo na
escuridão, no ar e no som além dela. Aferrou-se a Sean, tanto
tranquilizada como horrorizada por ele estar ainda com ela. Ela
não podia levar alguém para uma visão, não podia levar ninguém
com ela pelo ar formando redemoinhos.
Entretanto, Sean não era como todos os que tinha
conhecido antes, verdade?
Seu próprio pânico a seguiu na queda, mais profundo
em uma escuridão que se filtrava e se propagava. Aceitou que isto
não era uma visão. Não podia entender a razão pela qual era
diferente, mas sentia isso e sabia que tinha razão. E, entretanto,
ela caia, girando incontrolavelmente enquanto se afundava na
impenetrável escuridão. Já não podia sentir mais Sean e teve
vontade de chorar pela perda.
Então alguém pegou na sua mão tremendo. Deu-lhe
apoio quente e forte, a mão que sustentava a sua, era grande e
áspera. Ele a estreitou entre seus braços, abraçando-a com força,
enquanto caíam. Não podia vê-lo, mas podia sentir sua largura e
isso a tranquilizava. Sean.
Ela não estava sozinha. Não entendia, mas
não estava sozinha.
A queda ficou um pouco mais
desagradável, mais agressiva do que a gravidade.
Tirando o ar de seus pulmões, tirando seus
Brumas da Irlanda 1 Página152
sapatos, jogando-os enquanto a despia e a deixava nua em pele.
O vento se movia, lhe esfolando a pele, queimando-a inclusive
quando um calafrio passava por seus ossos. Ela apertou os olhos,
ocultando seu rosto contra o peito nu de Sean, ouvindo o latir de
Bean em algum lugar na confusão. Não podia respirar e sua
cabeça se sentia leve. Ela se sentia leve.
Não houve desaceleração. Nem parada. Nem medo.
Simplesmente não havia — de repente — nada
absolutamente.

Brumas da Irlanda 1 Página153

Capítulo 10
Não era um sonho; não era uma visão. Era uma mistura
de ambos, que a mantinha cativa. Danni deu a volta e se curvou
debaixo das suaves colchas, sem saber onde estava nem como
chegou até ali. Entretanto estava quente e contente.
Tentou abrir os olhos, mas suas pálpebras estavam
muito pesadas e a sensação de comodidade era muito sutil para
perturbá-la. Seu travesseiro cheirava a lavanda e os lençóis eram
suaves contra seu corpo nu. Estava nua. A compreensão acendeu a
primeira piscada minúscula de apreensão. Nunca dormia nua.
Na cama junto a ela, algo — alguém — moveu-se. Sentiu
a pele quente acariciando-a enquanto virava e se encaixava atrás
dela. Era grande. Podia sentir seu peso, a longitude do corpo
pressionado contra o seu. Um braço rodeou sua cintura e a
jogou com mais força contra ele. Sua mão se estendeu
sobre seu estômago e logo se moveu lentamente para
cima.
Sean. Não se questionou como sabia.
Brumas da Irlanda 1 Página154
Uma vez mais tentou abrir os olhos, tentou levantar-se,
mas não adiantou nada. Era uma visão, então? Algo que só estava
em sua mente?
Sua mão acariciou seu seio, o polegar movendo-se em
círculos lentos e lânguidos sobre seu mamilo. Ele pareceu se
entusiasmar no momento, lento e sensualmente, como um gato
gigante estirando com força os músculos de seu corpo. Ela sentiu a
viagem de consciência através dele e ele fez um som que provocou
suas terminações nervosas e fez com que sentisse sua pele
hipersensível.
Pouco a pouco, lentamente, começou a beijar suas costas
e seus ombros, retirando seu cabelo para o lado para chegar ao
seu pescoço. Suas mãos alisavam possesivamente pelo seu quadril
para a inclinação de sua coluna, acima para sua nuca e em torno
da curva de sua garganta. Ela sentiu seu inchado calor com força
contra sua parte inferior e ela se apertou contra ele, lasciva,
ansiosa.
Ele se moveu, girando-a sobre suas costas, brandamente,
sujeitando-a com seu peso. Seu contato se tornou exigente. Apertou
sua boca contra a dela, dura e suave, como seda
quente unindo-se em uma força inquebrável. Ela quis
envolver seu corpo em seus beijos, levá-los para
debaixo de sua roupa para durante as horas do dia
quando tudo isso fosse só uma lembrança; uma
fantasia que na realidade não aconteceu. Suas
Brumas da Irlanda 1 Página155
mãos a percorriam como se fosse sua para ter e manter, com as
pontas de seus dedos chegando ao osso de seu quadril, com seus
lábios seguindo cada toque íntimo.
— Toque-me, — disse ele em sua boca enquanto
acariciava seu ventre plano, movendo-se mais abaixo até
atormentá-la com o golpe sedutor de seus dedos. Débil e
complacente, ela fez o que lhe dizia.
Ela o acariciou com os olhos ainda fechados, com suas
inibições de algum jeito fechadas como seus olhos. Uma
sombreada parte de sua mente sabia que não era correto, não
podia estar acontecendo. Mas o resto não se importou enquanto ele
mergulhou as mãos em círculos, esfregou-se e jogou com ela, todo o
tempo drogando-a com lentos e profundos beijos.
Quando pensou que poderia gritar pela crescente tensão
em seu interior, ele se moveu, abrindo suas coxas com a pressão
de seus quadris. Seu corpo estava duro e musculoso,
gloriosamente definido. Ela sentiu o que não podia ver, explorando
os abdominais por cima de seu estômago, o escuro vulto de seu
peito, o duro conjunto de seus braços.
Ela se abriu para ele, confiando nele por
completo enquanto ele se empurrava em seu interior e
se mantinha ali. Ele a enchia com cada centímetro de
si mesmo, sem deixar espaço a dúvidas ou temores,
sem lugar para a identidade. Ela já não sabia onde
terminava ele e onde começava ela. Já não se
Brumas da Irlanda 1 Página156
importava. A solidão, algo que tinha sido parte dela sempre, deixou
de existir.
Então ele começou a mover-se, devagar, sensuais golpes
que levaram a fricção e o calor a aumentarem a emoção até que
não podia se conter. Ela estava fazendo sons, sons desiguais e
eróticos que não sabia que podia fazer.
Sussurrou-lhe ao ouvido, palavras em um fôlego,
palavras sujas que a puseram mais quente, mais selvagem. Sim,
disse ela, sim faria o que ele quisesse. E o faria. Em sua cegueira,
estava disposta a renunciar ao controle que sempre lutou tão duro
por manter. Era um recipiente, pedindo aos gritos para ser cheia
com o que ele queria lhe dar.
Sua língua roçou seus lábios, imitando o encaixe
deliberado de seu corpo. Ela envolveu seus braços fortes, não
contente com o simples peso dele. Queria que a esmagasse até que
fosse parte dele. Seus tornozelos se dobraram em suas costas e ela
o encontrou penetração atrás penetração. As portas que protegiam
seu vazio, desapareceram, dando lugar ao calor e a necessidade
que ele criava. Como a luz do sol através das janelas abertas,
Sean perseguiu de novo seus medos, seu isolamento e
iluminou os cantos mais escuros.
Mesmo assim, ela estava cega,
dependendo de seus intensificados sentidos para
guiá-la. Dependendo de Sean e seu malvado toque,
de suas exigências, de seu ritmo. Ele agarrou seu
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lóbulo da orelha com os dentes e brandamente os mordeu antes de
sussurrar uma ordem que desatou a excitação reprimida em seu
interior. Ela gozou com uma força que sacudiu seu corpo,
empurrando seus quadris para cima para encontrar-se com os
seus. Seus dedos se aferraram aos duros músculos de seus
ombros enquanto ele se apoiava nela e a penetrava. E, então,
gozou junto com uma poderosa penetração e um gemido que a
encheu de triunfo e a enviou a borda de novo.
Ela o manteve sujeito fortemente enquanto seu corpo
rígido relaxava contra o dela. Ele desabou, virando-se ainda com
ela para que continuassem conectados, ainda unidos pela dureza
em seu interior. Incrivelmente ela estava se movendo de novo,
excitando-lhe antes inclusive de que ele tivesse terminado.
— Não quero despertar — disse ele em seu ouvido enquanto
a beijava uma vez mais.
Nem ela tampouco. Nunca.

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Capítulo 11
— Sean, entrarei com minha vara se me fizer te chamar
mais uma vez. Juro-lhe isso, homem ou não, te acertarei no
traseiro com ela.
A voz aguda penetrou no casulo escuro que segurava
Danni. Ela franziu o cenho e tentou bloqueá-lo. Uma parte dela
sabia que a reconhecer seria um desastre; uma parte dela nunca
queria reconhecer nada outra vez, exceto o reconfortante vazio de
sua adormecida memória. Enterrou-se mais profundamente nas
mantas, encantada pela sensação de frouxidão em seus
membros, pelo satisfeito peso de seu corpo.
— Acredita que é da realeza. Bem, assim será então —
advertiu a voz — Irei procurar minha vara.
As palavras sérias estavam enfatizadas
pelos enérgicos passos golpeando o corredor.
O final do corredor?
Os olhos Danni se abriram de repente e
despertou em um instante. Tinha alguém
Brumas da Irlanda 1 Página159
caminhando pelo corredor? Quem? Quem estava em sua casa?
Por trás dela, uma voz profunda disse:
— Não preste atenção nela. Sempre está ameaçando me
acertar com uma vara.
Danni se sentou reta, de repente, consciente de muitas
coisas ao mesmo tempo. Do quarto onde dormiu com o qual não
estava familiarizada. Pequenas e nuas, as paredes estavam
pintadas de um branco mate que foi quebrado somente por um
enorme crucifixo pendurando sobre a cama. Uma janela na
parede do fundo tinha pálidas cortinas de cor cinza que
mostravam o brilho de um amanhecer e de um céu nublado
através dos espaços no centro.
Um baú de áspera madeira com gavetas com um
espelho que pendurado sobre ele estava na sua frente. Em cima
uma pequena fotografia emoldurada estava no alto de uma toalha
de mesa. E lá estava Jesus de novo, desta vez com um halo e seu
comprido cabelo solto de cor castanha dourada. A cama em que
jazia estava no centro da terceira parede. Era estreita, com quatro
postes e um edredom de plumas que se sentia pesado e quente.
Bean estava deitado a seus pés, olhando-a com olhos
alertas que contradiziam a calma do cão.
E junto a Danni, parecendo anos mais
jovem que em seu sonho, estava Sean Ballagh.
Brumas da Irlanda 1 Página160
Ela saltou fora da cama, dando-se conta enquanto o ar
frio golpeava sua pele que não usava nada; estava nua. Um grito
escapou de seus lábios conforme arrancava o edredom da cama,
fazendo girar o pequeno cão a seus pés em uma bola de pelo com
latidos, enquanto o libertava por completo. Sean saltou com os
sons e a repentina ação e ficou instantaneamente de pé, olhando
para ela do outro lado da cama. Ele tampouco usava nada.
Enquanto olhava comissionado para seu cabelo revolto,
seus olhos verdes sonolentos, seu corpo escultural, nu e formoso;
as lembranças a alagaram. O sonho… A visão…
— Meu Deus, isso foi real?
As expressões se alterando em seu rosto lhe disseram
que ele seguia a mesma linha de pensamento que ela para o
mesmo incrível final. Olharam-se um ao outro aturdidos por um
momento antes que uma vez mais, passos soassem no corredor.
Um instante depois a porta se abriu de repente. Sean alcançou o
lençol e o pôs ao redor da cintura enquanto olhava à pequena
mulher que estava de pé na soleira.
Tinha a pele da cor dos ossos descoloridos e os
olhos como chamejante fogo de cor negra. Seus
estreitos ombros estavam rígidos e quadrados por
cima dos braços cruzados e a linha de suas costas
estavam reta como um pau.
Brumas da Irlanda 1 Página161
Parecia ter entre quarenta e cinco e sessenta e cinco anos,
mas Danni não poderia haver dito a que idade se aproximava
mais. Sua postura era de alguma forma majestosa, mas as rugas
que emolduravam seus olhos e sua boca falavam de um cansaço
mundano e de cargas trágicas. Como prometido, tinha um
austero ramo magro na mão.
— E, é obvio ver os dois atuando como casados lhes dá
permissão de dormir durante todo o dia. É em Buckingham
Palace onde vocês pensam que vivo? — Ela lançou um olhar para
Danni e então, virou-se para fulminar Sean com o olhar. —
Agora coloquem uma roupa para que possam comer. Seu tio não
ficará te esperando enquanto perde tempo com sua mulher. Ele
lhe abandonará a sua sorte.
Duas coisas se registraram na mente de Danni ao
mesmo tempo. A primeira foi à expressão de Sean. Olhava ao
diminuto raio de mulher com a boca aberta, sem responder nem
se mover. Se não tivesse sido tão irônico, Danni diria que parecia
como se tivesse visto um fantasma. A segunda foi à mulher em si.
Devolvendo o olhar dele. Ela estava vendo ele.
— Você por acaso acredita que estou falando
somente para escutar o som da minha voz? —
Perguntou ela.
Seus olhos negros se voltaram para
Danni. Olhou-a dos pés à cabeça, detendo-se em
Brumas da Irlanda 1 Página162
todos os detalhes. Com vergonha, Danni apertou ainda mais a
manta ao seu redor.
— E, é obvio, você tem a aparência de um dos nossos —
Ela soou mais acusadora que elogiando, mas não deu a Danni a
oportunidade de saber qual era sua intenção. Bean saltou da
cama e incrivelmente, meneou a pequena e redonda cauda aos
pés da mulher.
— Um cão? — Exclamou ela com desdém — É isso o
que está coisa está tentando ser? E com fome no meu ver. Outra
boca para alimentar. Acredita que sou uma maldita americana
com comida abarrotando os armários?
Mas se inclinou e acariciou a Bean atrás da orelha.
Bean inclinou a cabeça para lhe dar um melhor acesso.
Endireitando-se, a mulher sacudiu a vara em direção a
Sean.
— Não vai me apresentar a sua noiva, então? Onde está
suas maneiras, Sean? Foi educado melhor que isso.
A boca de Sean se fechou com um estalo.
Levantando o queixo, a mulher deu a
Danni um repentino e radiante sorriso que
transformou seu enrugado rosto.
Brumas da Irlanda 1 Página163
— Sou a tia avó deste idiota, Colleen Ballagh. E você
seria?
— Danni — disse ela, com a boca seca — Danni Jones.
— Danni Ballagh agora, pelo que sei. Está marcada,
assim como o resto de nós, verdade?
Tampouco houve nenhuma explicação nesse
comentário, mas seus olhos se suavizaram durante um momento
e Danni viu algo do esplendor perdido neles.
Não muitos anos atrás, essa mulher tinha sido uma
beleza.
— Vistam-se. Suas coisas ainda não chegaram, mas
pelo som de sua viagem, imagino que os malditos Protestantes,
há esta hora, estão lançando-as na turfa ao norte. É bom que a
caridade do Sagrado Coração viva em Ballyfionúir. O Padre
Lawlor forneceu algumas coisas para tirá-los do apuro. As
encontrarão na cômoda. — Ela moveu fortemente a cabeça em
direção à cômoda de gavetas e espelho e então lançou um rápido
olhar ao cão — Você vem comigo e verei o que tenho para te dar
de comer.
Bean obedeceu sem latir, saindo conforme
Colleen Ballagh fechava a porta com uma força que
sacudiu a imagem de Jesus sobre a cômoda. Nem
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Sean nem Danni falaram enquanto ela caminhava pelo corredor.
No silêncio estremecedor, Danni tentou formular uma
pergunta coerente no nó de confusão em sua cabeça. Mas a única
coisa que conseguiu foi engasgar-se.
— Que demônios?
Ficou olhando para Sean, exigindo que lhe desse uma
resposta que pudesse compreender, uma explicação que
ordenasse este caos. Ele não moveu um músculo desde que a
porta se abriu e parecia como se tivessem o trespassado com um
ferro quente. Enquanto o observava, qualquer esperança de que
lhe explicasse essa loucura desapareceu. Parecia ao mesmo
tempo ferido e desconcertado. O segundo o compreendeu, mas o
primeiro era tão desconcertante como a situação.
— Essa era minha avó — murmurou por fim.
— Sua tia avó — lhe corrigiu Danni.
— Não, é minha avó.
Deixando de lado por um momento todo o resto, Danni
apertou fortemente o edredom e se moveu ao redor da
cama.
— Por que disse que era sua tia avó, se é
sua avó?
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— Não posso saber isso, não é? — Disse bruscamente —
Não sei como é que estamos aqui. É como um sonho. Como…
Olhou-a e Danni soube que estava pensando na noite,
em tocá-la, em lhe fazer o amor. Mas esse foi um sonho: o sonho
de Danni… Verdade?
— Viu o seu cão? — Disse Sean — Nem sequer lhe
grunhiu.
Seu olhar de traição foi quase divertido, mas o drama
que se desenvolvia minava qualquer graça da situação. A voz de
Colleen se elevou outra vez, exigindo que fossem para a cozinha
antes que se visse obrigada a fazer uso da temida vara.
— Desta vez não está brincando — disse Sean.
Aturdida, Danni se moveu para a janela e abriu a
cortina. Do lado de fora o mínimo vestígio de um sol aquoso que
ainda não tinha rompido no horizonte. A lua seguia brilhando
intensamente, iluminando um mosaico de prados, cercados por
muros de pedra e adornados por um sinuoso caminho que
conduzia para cima e fora do vale. Ela pôde ver a queda abrupta e
escarpada para o oceano que rodeava a ilha como
uma fortaleza natural. Ela esticou o pescoço e olhou
em volta para onde o mar se reunia com o horizonte
em uma mancha sedosa de cor cinza esverdeada.
Sean se aproximou por trás dela. Ela sentiu seu
calor enquanto ele se inclinava para olhar pela
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janela. Uma parte débil dela quis reclinar-se para trás contra ele,
para deixar que a sustentasse e tranquilizasse. Mas, o que seria
mais louco não sabia — querer consolo de um fantasma ou
pensar que tocá-lo traria algo tão tenro como conforto.
— Onde estamos? — Sussurrou ela, sabendo a
resposta, mas precisando escutá-la assim mesmo.
— Em Ballyfionúir.
Era impossível, é obvio. Muito impossível para sequer
considerá-lo.
— Por que ela me chamou de sua noiva?
Sean lhe dirigiu um olhar cheio de raiva incrédula.
— Por que te chama de qualquer coisa? Por que estamos
aqui? Como estamos aqui?
— Não estamos — disse Danni com mais confiança do
que sentia — Isto é só um sonho. Estou imaginando isso.
— Eu já lhe digo se você está.
Ele se dirigiu para cômoda e abriu uma
gaveta. Dentro havia duas pilhas ordenadas de
roupa. Tirou uma camiseta branca de flanela
abotoada e uma calça cinza. Na gaveta ao lado
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encontrou meias três-quartos e um pacote de boxers ainda no
plástico. Jogou tudo sobre a cama.
Ainda muito aturdida para mover-se, ela o viu abrir o
plástico e tirar as boxers antes de deixar cair o lençol. Suas
costas flexionavam enquanto se inclinava e as punha. Era um
homem muito grande, sem gorduras e com capas de músculos
dos ombros largos até as pernas largas. Tudo maciço, forte e
masculino. Ela recordou como se sentia ao ter todo esse poder,
todos esses duros músculos contra suas próprias suaves curvas,
e a lembrança fez que suas vísceras se sentissem quentes e
líquidas. Não pôde afastar os olhos enquanto ele vestia uma
camiseta branca por sua cabeça e a descia por seu peito.
Estava fechando as calças quando olhou para trás e a
pegou olhando-o fixamente. Durante um momento, algo se moveu
em seus olhos, algo possessivo, faminto e ardente. Algo que a
atraiu mais que aos brancos fantasmas de sua visão. Ela pensou
no sonho que a tinha seduzido à noite, nas palavras que lhe tinha
sussurrado ao ouvido, em sua boca movendo-se sobre cada
centímetro de sua pele, lhe dizendo que a desejava, lhe
sussurrando o que faria com ela. Liberando-a das inibições que
sempre teve. A lembrança fez com que todo seu corpo
ruborizasse.
Rapidamente ela passou junto a ele para
a cômoda. Na gaveta de acima, duas escovas de
dente novas estavam junto a um pacote de
Brumas da Irlanda 1 Página168
calcinhas e um simples prendedor branco. Debaixo encontrou um
par de calças de poliéster de cor azul clara e um volumoso suéter
de trigo de cor bege. Estaria lançando uma moda nova, pensou
com ironia. Manteve a manta ao redor dela enquanto colocava a
calcinha, deixando-o cair conforme colocou o pulôver. Este
chegou até a metade de sua coxa e as calças eram tão ajustadas
que teve que conter o fôlego para conseguir fechá-la. Ajustava-se
como lycra e se alegrou de que o suéter ocultasse a forma em que
marcavam seus quadris e coxas.
Enquanto se vestia, seus pensamentos cobriram toda a
gama de possibilidades quanto ao que tinha acontecido. O que
ainda estava acontecendo.
Não sabia se era um sonho, como o que teve com Sean
ontem à noite. Acordada, seu corpo carecia da sensação de
lânguida satisfação que tinha no sonho profundo. O aroma
revelador em sua pele não persistia, nem a dor em seus
músculos, nem dor íntima. Tinha que ter sido um sonho; um
muito vívido e memorável sonho que ela não podia esquecer.
Cada vez que olhava para Sean, pensava em sua boca sobre sua
pele, em suas mãos descendo por seu corpo, tocando-a como
ninguém nunca havia feito antes. Nervosa, olhou
para Sean através da cama estreita. E leu em sua
expressão a mesma desorientada e ansiedade que
ela mesma sentia.
Brumas da Irlanda 1 Página169
— Lembra-se de algo, Sean? De como chegamos até aqui?
Ele negou com a cabeça.
— Estávamos na sua cozinha e logo parecia como se
estivéssemos caindo.
Ela assentiu.
— Antes que me desse o colar…
Lembrando-se o pegou. Ainda estava pendurado no seu
pescoço, mas não havia desconforto, nem sensação de ardência
quando o tocava.
— Ela fez com que parecesse que nossa bagagem é que
estava perdida — murmurou Danni — Não me lembro de ter feito
as malas. Não me recordo de nada, exceto… deteve-se.
Entretanto, parecia que ele escutava seus pensamentos de
todos os modos. Ela não recordava nada, exceto seu corpo quente
contra o seu, movendo-se, fazendo com que quisesse gritar: mais
rápido, mais duro, mais lento, mais tempo…. Seus olhos
seguiram o rastro que suas mãos tinham deixado e tão impossível
como era, soube que ele o recordava, também. Se foi
um sonho tinha-no compartilhado.
— Estou tão confuso por isso como você,
Danni — disse ele, com sua profunda voz baixa e
rouca — Entretanto tão impossível como é, aqui
estamos. Vamos antes que ela nos arraste pelas
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orelhas. Talvez tudo faça algum sentido com o tempo.
Nenhum deles acreditava, mas em silencio pegou uma
das escovas de dente e o seguiu para fora do quarto. O salão era
estreito e pintado no mesmo branco mate que a habitação. Havia
três portas que levavam para fora dele. A primeira conduzia a um
pequeno quarto com uma cama, uma cadeira de balanço, e um
armário. A outra era um quarto quase idêntico. A última era um
banheiro. Sean esperou que ela o utilizasse primeiro. Maravilhada
pelos tubos antigos, lavou as mãos e o rosto, escovou o cabelo e
os dentes. Antes de finalmente reunir coragem para olhar-se no
espelho. A mesma Danni que tinha visto ontem a esperava no
reflexo. Mas havia algo diferente nela agora. Algo selvagem em
seus olhos, na cor que tingia suas bochechas.
Isto não é real, articulou a sua imagem.
Como o inferno que sim o é, gritaram-lhe de volta seus
olhos.
Esperou na porta por Sean e logo o seguiu pelo
corredor. Um delicioso aroma flutuava e a tentava pelo curto
lance de escadas. O que fosse que havia para o café da
manhã cheirava divinamente.
No primeiro piso da casa havia uma sala
de estar com uma lareira, um sofá e duas cadeiras.
Havia uma pequena televisão com orelhas de
coelho no canto. Parecia ter, pelo menos, vinte
Brumas da Irlanda 1 Página171
anos, era uma antiguidade com uma tela redonda e dois botões
para trocar os canais e ajustar a imagem. Um relógio de pé no
outro canto com um ponteiro marcando meia hora e Danni se
surpreendeu ao ver que eram só quatro e meia. Que demônios se
esperava que fizessem tão cedo pela manhã?
Meia parede com trilhos de madeira dividia a sala da
sala de jantar, abarrotada com uma larga e maltratada mesa, oito
cadeiras e uma cristaleira. Sean não lhe deu tempo para que
examinasse o conjunto, mas era evidente que eram antigos e
venerados. A madeira reluzia com um profundo brilho gentil e a
vitrine mostrava uma variedade de cristal e porcelana
Uma porta conduzia a uma cozinha de bom tamanho
feita em linóleo e com papel de paredes com flores amareladas.
Uma estante coberta somente por uma cortina de gaze cor
lavanda ocupava a parede do fundo. Através do diáfano tecido,
Danni viu uma série de produtos enlatados entre as filas de
conservas em pote, frutas e verduras. Algo que parecia
suspeitosamente com patas de porco flutuando em um fluido
marrom rosado.
Colleen estava de pé na cozinha, fritando
batatas que cheiravam a gordura e completamente
maravilhosas. Bean estava sentada a seus pés com
um vigilante olhar de adoração. Em minutos
Colleen pegava um pedaço de batata da frigideira e
colocava em uma toalha de papel esperava esfriar
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antes que a jogasse para Bean, que a apanhava como um cão em
um espetáculo de circo.
Sean se moveu para o bule em um segundo plano e
serviu duas xícaras de chá. Acrescentou leite em uma e várias
colheradas de açúcar na outra.
— Pode parar aí — repreendeu-lhe Colleen, esticando-se
para golpear seus dedos com a colher de madeira quando ele
tentou jogar outra colherada de açúcar — Você acredita que sou a
maldita rainha da Inglaterra?
A cabeça de Sean se ergueu e olhou para sua tia avó —
avó, ela corrigiu-se. Danni tinha a sensação de que se tratava de
um ritual, algo que aconteceu entre eles antes; Sean servindo
açúcar em sua xícara e Colleen lhe repreendendo com a colher,
de algum jeito essa familiaridade eram somente entre eles, mas
não para ser vista.
Seus olhos tinham uma expressão de afeto tão bela que
o coração de Danni se contraiu. As duras linhas do seu rosto dele
se suavizaram em um débil sorriso, suas covinhas não eram mais
que uma dica na barba de vários dias em suas
bochechas. Ele se inclinou e beijou a têmpora de sua
avó.
— Não é uma maldita rainha, Nana. É
uma formosa estrela de Hollywood.
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Para surpresa de Danni, Colleen ruborizou como uma
jovenzinha.
— É bom para meus olhos te ver, Sean — disse ela em voz
baixa.
Sean entregou a Danni o chá com leite. Com gratidão
ela o sustentou entre suas mãos e aspirou o aroma.
— Como soube como eu gosto do meu chá? —
Perguntou ela, tomando um sorvo.
Sua boca levantou de um lado e seu olhar percorreu
lentamente seu rosto e seus ombros, fazendo-a sentir um quente
formigamento onde ele olhava e um rubor quente por todo seu
corpo. O Sean com quem despertou a desarmava ainda mais do
que havia aparecido em sua porta. Sentia-se receosa e indefesa,
nervosa e necessitada em sua presença. Olhou com determinação
sua xícara, negando-se a responder à demanda que ela sentia em
seus olhos.
— Que classe de marido ele seria se não soubesse como
sua esposa gosta do chá? — Perguntou Colleen, enchendo dois
pratos com batatas salpicadas com pimenta, grossas
salsichas quadradas e de ovos mexidos. Junto aos
ovos havia um círculo de algo que parecia uma
salsicha, mas não era uma que Danni já tivesse
comido. Colleen pôs o prato no centro da mesa,
preenchendo o restante com pedaços de pão frito.
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As artérias de Danni se enrijeceram só de olhar o festim, mas seu
estômago grunhiu com impaciência.
Colleen estava ao lado deles, esperando com
impaciência que pegassem seus garfos. Danni pegou um bocado
de ovos e sorriu em apreciação enquanto mastigava. Colleen
sorriu e esperou que Sean fizesse o mesmo.
Sean pegou seu garfo e ficou olhando para o monte de
comida em seu prato. Ele comeu um bocado de batatas e depois
ficou imóvel, enquanto seus olhos se fechavam por um momento.
Pouco a pouco as mastigou e engoliu. O olhar em seu rosto fez
com que Danni se perguntasse o que Colleen tinha posto nas
batatas. Deu uma mordida e as encontrou deliciosas, mas nada
que justificasse o êxtase que tinha lido na expressão de Sean
enquanto engolia seu café da manhã, saboreando cada bocado
rapidamente. Como se estivesse esfomeado.
Não. Como se fizesse anos desde que ele realmente
saboreou alguma comida…
— O que é isto? — Perguntou Danni, afastando os olhos
do olhar de prazer quase sexual no rosto de Sean e
apontando para as salsichas redondas em seu prato.
— Não as conhece? — Perguntou Colleen,
surpreendida — São salsichas brancas — Ante o
olhar em branco de Danni, ela explicou — São de
porco, com pão, especiarias, aveia e cebola.
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Prefere chouriço? Sean não gosta tanto como das salsichas, mas
tenho ambas.
— Oh, não, isto está muito bom. Só me perguntava o que
é isso.
Colleen a olhou por um momento, como se procurasse
por decepção. Logo, satisfeita, voltou para sua frigideira. A seus
pés, Bean deu um pequeno grunhido de desculpa.
— É obvio que sei que está aí, pequena besta. Mas,
espera sua vez como uma dama — disse Colleen.
A porta dos fundos se abriu e um homem e um
adolescente entraram com uma brisa úmida e uma almiscarada
luz da alvorada. Pensando que a manhã não podia ser mais
estranha, Danni sentiu que todo o ar abandonava seus pulmões
quando o casal olhou para ela e Sean.
O homem era alto, tão alto como Sean e estava
completamente em forma. Usava o cabelo militarmente curto e o
corte dava às mechas grisalhas de sua têmpora um aspecto
cinzento. Seus olhos eram mais verdes azulados que os de Sean,
mas ambos os rostos tinham a mesma força e as
mesmas feições quadradas. Era o homem que ela
tinha visto na foto no artigo que tinha lido. O
homem acusado de matar sua família.
O pai de Sean.
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O impacto de vê-lo quase igualou o que a tinha
despertado. Este homem havia se suicidado por volta de vinte
anos atrás. Seria outro fantasma? Seriam todos eles espíritos
nesta realidade modificada? Se fosse assim, o que aconteceu com
Danni?
Antes que pudesse começar a pensar sobre isso, a
raciocinar, o rapaz junto a ele lhe chamou a atenção e o
assombro estremeceu por todo seu corpo. Querendo lhe dar as
costas, desejando fugir, Danni ficou olhando-o.
Junto à massa sólida de seu pai, o jovem parecia um
broto de salgueiro alto com os primeiros ramos de crescimento.
Era estreito e magro, tenso como uma corda grossa, mas um
menino ainda pela amplitude de seus ombros e a suave penugem
em seu queixo. Os olhos, entretanto…. Os olhos a olhavam com
uma combinação de ressentimento, com um brilho de
curiosidade, e apreciação masculina…. Esses eram os olhos de
Sean.
O lento tic tac do relógio rangeu contra seus nervos
tensos. E pensamentos irromperam em sua mente como
explosões. Era Sean como o tinha visto na foto do
artigo que tinha lido. Sean, quando menino. Sean,
há vinte anos.
Brumas da Irlanda 1 Página177
— Deêm bom dia a Sean e a sua esposa, Danni — disse
Colleen a Niall e a seu filho adolescente.
Continuando com seu desconcertante ardil a respeito da
relação de uns com os outros, Colleen se virou para o Sean adulto
e disse:
— Este moço seria seu primo terceiro por parte de pai,
chamado Sean Michael por seu tataravô, igual a você. Embora ele
responda pelo nome de Michael. Uma bênção, ou seria uma
confusão com dois Seans correndo por aí. — Revirou o cabelo do
menino para seu óbvio incômodo e então olhou para o pai de
Sean — E este bom homem é seu primo segundo, Niall.
Danni se sentiu mal, enquanto a cena se desenrolava
diante dela. No reino da impossibilidade, este último giro a punha
no limite. O jovem Sean — Michael, como lhe chamavam e seu
pai estava de pé em frente a eles posando exatamente como
tinham feito há vinte anos. Ao mesmo tempo, o Sean adulto
estava sentado ao lado dela. E nenhum deles possivelmente era
real.
Exceto, que antes de despertar aqui, as
pessoas olhavam através de Sean, sem vê-lo
realmente. De repente, estas pessoas — estas
pessoas que não podiam existir — olhavam
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diretamente para ele. E não com medo, receio ou confusão. Na
verdade, olhavam com curiosidade. Com amizade.
Sean se levantou pálido e solene igual ao fantasma que
ela sabia que ele era. O que ele estava pensando, ela não sabia,
mas ele se manteve instável e em silêncio enquanto enfrentava
seu pai e, incrivelmente, à versão jovem de si mesmo.
Niall disse:
— Claro, mamãe esteve falando a respeito de sua
chegada durante semanas. Pensaria que era São Pedro por todo
seu esforço. Michael esteve o ansioso para te conhecer, isso é
uma certeza. — Niall deu a Michael um golpe brincalhão no braço
enquanto falava.
O moço lhe lançou um olhar venenoso e empurrou sua
mão com uma palmada.
— Veio da América, verdade? — Disse Michael, falando
com Sean, mas olhando para Danni como se fosse algo que tinha
sonhado para seu prazer visual.
Ela se sentiu torpe e exposta sob aqueles
olhos que eram tão iguais aos de Sean. Não só eram
parecidos com os de Sean, sussurrou para si
mesma. São os mesmos. Em vinte anos, esses olhos
converteriam seus ossos em gelatina. Franziu o
cenho ante a ideia incorporada nesse pensamento
escorregadio. Em vinte anos…. Em vinte anos…
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Respirou fundo. Não podia ser…. mas de algum jeito retorcido
tinha sentido. Louco, mas…. Será que possivelmente despertou
em um tempo diferente assim como em um lugar diferente?
Poderia ter aberto os olhos vinte anos atrás em seu próprio
passado?
— Sim, chegamos dos Estados Unidos — respondeu
Sean, ainda de pé, parecendo como se tivesse sido esculpido em
pedra.
— É uma ianque, certo? — Desta vez ele se dirigiu a
Danni.
— Suponho. Quero dizer, sim — respondeu Danni.
Todos estavam olhando-a e esperando com expressões
espectadoras. Sentindo-se como uma idiota, murmurou — Vivo
no Arizona.
— Vivia, quer dizer — disse Niall alegremente — Agora
está aqui, certo?
— Conhece alguns índios? — Perguntou Michael.
— Ah, sim, há uns poucos Nativos Americanos que
vivem no Arizona.
Ela alcançou a mão de Sean, desejando
apertar-lhe fortemente. Querendo lhe perguntar o
que estava acontecendo. Por que todos atuavam
como se fosse perfeitamente normal que Danni e
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Sean estivessem ali e por cima de tudo, estivessem casados?
Como podia essas pessoas terem previsto sua aparição? Como
podiam estar aqui?
Ela deteve a si mesma, antes de ir mais longe. Só a
loucura a esperava por esse caminho. Michael se sentou à sua
direita, com o olhar fixo. Colleen se aproximou arrastando os pés
com mais pratos de comida.
— Não os perturbe agora. Estão tentando comer seu café
da manhã.
De repente, comer parecia como uma tarefa impossível,
mas Danni obedientemente levantou o garfo de novo. Sean se
afundou no assento a sua esquerda. Ele não podia deixar de
olhar fixamente para seu pai e sua avó, mas não olhou para
Michael absolutamente. Não podia culpá-lo, nem sequer podia
imaginar o que deveria estar passando por sua cabeça, em sua
mente.
Michael pegou o garfo e começou a colocar comida em sua
boca.
— Olha, come como se estivesse esfomeado. É
vergonhoso, eu estou — disse Colleen, com uma
bofetada rápida na nuca do menino — Pensa que o
cão comerá seu café da manhã se não o devorar?
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— Que cão? — Perguntou ele com a boca cheia de batatas.
— Que está sentado no chão, cego idiota — disse Niall.
Embora as palavras saíssem em um tom zombador e
um sorriso suave, a cabeça do Michael se elevou e olhou para seu
pai. Um profundo rubor de irritação manchou seu rosto.
— A minúscula besta chegou com a noiva do seu primo
— disse Colleen, lançando uma rodela de batata fria para Bean.
Bean saltou e o apanhou no ar. Quando tinha aprendido a
fazer isso? Michael franziu o cenho e voltou a olhar para Danni.
— Por que comprou um cão tão feio? — Perguntou.
Sua expressão era perfeitamente idêntica à que seu
homólogo adulto tinha usado há algum tempo, Danni estava
muito desconcertada para falar.
— Não acredito que seja feio — conseguiu dizer por fim.
— Aye, não é assim como é? — Concordou Colleen,
assentindo sobre a frigideira — Não se trata de os ossos serem
lindos, mas sim da carne sobre os ombros.
Com expressões igualmente
desconcertadas, todas as cabeças se viraram para
ver o pequeno corpo de Bean.
Brumas da Irlanda 1 Página182
— É uma verdade — interveio Niall — É verdade.
— Está brincando comigo? — Disse Michael, com o
cenho franzido — Os cães não têm ombros.
Niall sorriu, mas seguiu atacando seu café da manhã,
só fazendo uma pausa entre os bocados para tomar um sorvo de
chá. Depois de engolir o último pedaço de salsicha, limpou a boca
com o guardanapo, virou-se e deixou que seu olhar passasse de
Danni a Sean e vice-versa.
— Parece com os irlandeses, Danni — disse ele — Tem
família aqui?
Danni lançou um olhar incerto a Sean, sem estar
segura de como responder a essa pergunta. A honestidade não
parecia uma resposta correta dada a situação. Sean estava
sentado rígido e em silencio a seu lado, sem lhe oferecer ajuda. A
sua direita, Michael terminou seus ovos e a olhou com cautela
nos olhos. Estar sentada entre os dois deu a Danni uma débil
sensação de vertigem.
— Talvez no Norte? — Perguntou Niall, ainda movendo
seus olhos entre eles, agora com um pouco mais de
curiosidade.
— Quem não tem família na Irlanda? —
Respondeu finalmente Sean.
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Niall riu e se inclinou para dar uma piscada a Danni.
— Somos muito férteis, isso é o que te direi. Instinto de
conservação é como o chamam. Se não nos quiserem pelo que
somos, o que outra opção temos mais que engendrar a nós
mesmos?
Danni esboçou um sorriso débil.
— Ah, é encantadora e eu sou um homem ciumento —
disse ele, sorrindo enquanto ficava de pé — Então, primo, está
preparado?
Enquanto Sean olhava com uma surpresa suave,
bateram na porta principal.
Era como estar no centro de um tornado, pensou Danni.
Tudo girava ao redor deles tão rápido que não tinha
possibilidades de entender antes que desaparecesse. Queria
levantar-se e gritar “Pare tudo”, mas é obvio não podia, não o
faria.
Colleen limpou as mãos no avental enquanto cruzava
para abrir a porta principal. Danni pôde ouvir o cálido
sorriso em sua voz quando saudou seu visitante.
— Bom dia, senhora Colleen — uma
cantante voz infantil lhe respondeu.
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— E como está esta manhã, minha minúscula senhorita?
— Sinto-me muito bem e obrigado por perguntar,
senhora Colleen. Minha mãe me enviou para perguntar ao Senhor
Ballagh se acha que haverá salmão hoje.
— Se Deus quiser, haverá — gritou Niall da cozinha.
— Isso é bom, porque nossa cozinheira tem uma nova
receita e gostaria de prepará-la para esta noite.
— O terá — disse Niall, ficando de pé para levar o prato
para a bancada.
— Obrigada.
A voz da garota era jovem e doce e atraiu Danni como
uma melodia esquiva. Enquanto Sean permanecia em pé nervoso
ao seu lado; Danni virou-se para a porta.
— Minha mamãe diz que tem companhia dos Estados
Unidos. É verdade? — Perguntou a garota.
Colleen e a jovenzinha estavam de perfil, olhando uma
para a outra com uma formalidade que Danni teria
achado estranho se não tivesse suspeitado que fosse
um jogo que as duas jogavam. A garota usava uma
camiseta grande com flores estampadas de cor rosa
brilhante e calças de cor azul pálida que
terminavam com brancas sapatilhas esporte de
talhe alto. O cabelo caía sobre os ombros em um
Brumas da Irlanda 1 Página185
estilo leve que podia ser considerado como bom na moda atual,
com o cabelo suave e liso.
Danni se aproximou um passo mais, franzindo o cenho,
perguntando-se por que a garota lhe parecia tão familiar.
— Bom, sim — Estava dizendo Colleen no mesmo tom
formal que tinha empregado para saudar a garota — Temos
convidados da América. Quer conhecê-los?
— Oh, muito, obrigada.
Colleen lhe estendeu a mão e a jovem tomou. Danni as
observou aproximar-se, sentindo cada passo que as aproximava
como um tambor em sua cabeça. Cambaleou para trás,
derrubando a cadeira, consciente disso só quando Sean se moveu
para arrumá-la. Mas não se virou. Não podia tirar os olhos do
rosto da garota. Como se fosse à distância, sentiu um braço
enrolar-se em sua cintura e puxar ela contra seu sólido calor.
— Tranquila — ele sussurrou-lhe ao ouvido.
Mas ela não podia ficar calma. Enquanto se embebia na
brilhante cor marrom dourada, olhos de cor cinza
claro, as sardas ao longo do nariz da garota, um
sentimento maior que assombro imobilizou sua
mandíbula e seus joelhos ao mesmo tempo. Igual a
uma estátua, ficou congelada enquanto a garota se
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detinha em frente a ela e sorria com dilaceradora inocência.
— Sean, Danni, este pequeno tesouro é a senhorita
Dáirinn MacGrath. Dáirinn, este é meu sobrinho neto e sua nova
esposa.
— Da América? — Perguntou ela.
— Certamente — respondeu Colleen.
Danni não podia falar. Não podia pensar. Uma coisa
tinha sido ver Sean refletido no menino, mas isto…. Não o
esperava. Não podia compreendê-lo. Como podia estar aqui de pé,
enfrentando a si mesma, pelo amor de Deus? O sorriso de
Dáirinn vacilou e ela estremeceu até os pés, obviamente
incômoda com o olhar angustiado de Danni. Mas o que podia
fazer Danni? O que podia dizer?
— É um prazer te conhecer — disse Sean, esticando-se
para estreitar a mão da garota.
Dáirinn deu um suspiro de alívio e seu sorriso brilhou de
novo.
— Prazer em conhecê-lo, também.
Disse Dáirinn com uma pequena reverência.
Danni teve uma repentina e vívida
lembrança sobre praticar a inflexão diante de um
espelho adornado no quarto de sua mãe. Tinha
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feito seu irmão inclinar-se ante ela enquanto ensaiava uma e
outra e outra vez…
Do lado de fora veio um breve som de buzina.
— Tenho que ir — disse Dáirinn, mas seu olhar fixou
perplexo sobre o rosto de Danni um momento mais antes que
fizesse uma pequena onda e se virasse para a porta.
— Diga a sua mamãe que lhe guardarei o melhor da
minha captura — disse Niall antes que ela saísse.
Igual a um cãozinho em uma correia, Danni foi atrás,
em silêncio detendo-se no alpendre para vê-la ir-se. Havia um
carro parado em frente da casa com uma mulher sentada no
assento do condutor. Olhou pelo para-brisa, ao fundo. Havia um
menino no assento traseiro, com o nariz pego à janela. Seu
irmão…
Dáirinn abriu a porta do carro e a mulher do assento do
condutor saltou; surpreendida pelo som. Dáirinn lhe disse algo ao
subir no carro e a mulher voltou à cabeça para olhar às pessoas
no alpendre com tal intensidade, que Danni se perguntou quais
seriam seus pensamentos. Seus olhos pareceram
prender-se em Niall e se mantiveram lá durante um
longo momento antes de mover-se para estudar
Danni e Colleen. Então, como se tivesse se dado
conta de que todos estavam olhando-a também,
estendeu um sorriso no rosto e o estranho olhar
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se desvaneceu. À medida que o carro começava a afastar-se da
casa, apareceu pela janela aberta e se despediu.
Como tola Danni levantou a mão em resposta e olhou
com incredulidade enquanto sua mãe partia.
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Capítulo 12
Por várias razões Danni não encontrou uma maneira
para fazer perguntas sobre elas, ela assumiu que Sean ajudaria
no navio pesqueiro de Niall e Michael, enquanto ela esperava que
fosse trabalhar com Colleen na casa MacGrath. Parecia que o
acerto tinha sido feito há semanas, quando Colleen tinha recebido
as primeiras notícias de que Danni e Sean retornariam a
Ballyfionúir. Como ou de quem tinha vindo à notícia da iminente
chegada deles, não sabia. De novo, Danni achou impossível
perguntar sem revelar as razões de sua ignorância. Não era isso
uma maravilha?
— Poderia me explicar porque estou aqui, porque a última
coisa que me lembro de é que estava de pé na minha cozinha
desejando seu neto morto… — ela pensou.
Ela observou Sean terminar seu chá e
preparar-se para partir com pânico queimando em
seu estômago. Como isso estava acontecendo?
Como ela poderia em um momento estar em seu
próprio lar a salvo e agora estar aqui em um
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tempo e lugar estranhos onde o rosto de Sean era o único que lhe
era familiar?
Como poderia ele inclusive considerar deixá-la e ir e
fazer quem sabe Deus o que, no barco do seu pai?
Acaso ele não podia ver o absurdo disso? Qual foi a
forma em que chegaram aqui, não era seu tempo, nem seu lugar
e a única coisa que deveriam estar fazendo era tentar averiguar
como retornar. Mas enquanto meditava sobre a situação, Sean se
levantou para seguir seu pai e a seu eu mais jovem para fora. De
verdade tinha a intenção de desempenhar seu papel.
Sua garganta se apertou quando a porta soou ao fecharse, ela se levantou e apressou-se para a porta, abrindo-a com um
empurrão e saindo ao alpendre. Ouviu Colleen sair atrás dela e
Danni teve uma imagem mental instantânea da mulher maior
agarrando-a e lutando com ela na terra. Danni se afastou para
um lado antes de lhe dar a oportunidade.
Uma parte de Danni reconhecia a histeria que se
elevava dentro dela, entendia que era a experiência de ser deixada
para trás a que a provocava. Abandonada. Largada
entre estranhos em um lugar estranho, tal e como
quando era menina.
Mas a fria lógica não fazia nada para
dissipar o medo ou aliviar a tensão apertando seu
peito tão forte que não podia respirar.
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— Sean, espera — Odiou quão fraca e assustada sua voz
soava.
Você não tem mais cinco anos, Danni. E Sean deveria ser
a última pessoa com quem contar para salvá-la. Endireitado seus
ombros levantou o queixo…. Silenciosamente brigando com ela
mesma pela forma em que tremia.
Sean se virou ao som da sua voz. Por um momento,
simplesmente a olhou fixamente e seu medo se elevou mais um
pouquinho. Ele não a entendia…. Como poderia? Era uma parva
por pensar que alguém poderia compreender como este cenário
refletia seus mais escuros pesadelos, seus piores medos.
Provavelmente estava contente em sair… provavelmente estaria
correndo para deixá-la para trás se fosse possível.
Mas em vez disso, ele retornou por onde tinha ido, até
ela, pegou a mão dela no forte calor da sua e a puxou alguns
metros de distância onde o canto da casa os escondesse de sua
pequena audiência.
Estando muito perto das lágrimas, Danni mordeu forte
os lábios e olhou para seus pés. Já não tinha cinco
anos, já não tinha cinco anos, já não tinha cinco
anos…
Ele levantou seu queixo, forçando-a a olhar
nos seus olhos de mar profundo.
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— Você vai simplesmente sair assim? — Perguntou ela,
sua voz traiu seu nervosismo.
— O que você quer que eu faça? — Disse ele
brandamente — Até descobrirmos o que está acontecendo, só
podemos seguir com a corrente. Seja o que for isto, não é um
sonho.
— Eu sei, mas…
Não podia dizer. Não podia arriscar-se a romper em
pranto enquanto tentava encontrar as palavras que descreveriam
apropriadamente seu medo.
— Mas o que, Danni? O que foi?
— Só pensei que deveríamos ficar juntos, no caso… —
No caso de qualquer um de nós repentinamente for levado de
volta à realidade. No caso de que não fosse ela. No caso de que
fosse.
Sean parecia poder ouvir seus pensamentos não
expressos. Brandamente, tomou seu rosto e pressionou seus
lábios na sua têmpora.
— Não tenha medo — murmurou ele, com
sua profunda voz suave contra sua pele.
— Não tenho medo. É só que não tem
sentido ficarmos separados…
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— Tem sim. Mas se nos agarrarmos como crianças com
medo em uma tormenta, não acha que haverá perguntas?
Perguntas que não temos como responder.
— E isso é o que?
— Que tal se não pudermos encontrar o caminho de
volta? Que tal se ficarmos presos aqui por algum tempo? O que
faremos quando todos pensarem que estamos loucos? Vi o que
acontece com os malucos. Não é bonito.
Os olhos de Danni se arregalaram. Queria lhe perguntar
o que ele queria dizer com isso. Os torturavam ou os prendiam
em asilos como o Dickens?
— Mas que tal se….
— Não se preocupe sobre eu não voltar, Danni. Não te
deixarei aqui.
Que ele tivesse tão precisamente acertado qual era a
fonte do seu medo, a desconcertou e a desfez ao mesmo tempo.
Sentia-se transparente e ridícula por estar parada tremendo pelo
pensamento de ficar sozinha.
— Falo sério. Não te deixarei. — Ele
esperou que ela reconhecesse essa simples
declaração.
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Ela deu um pequeno assentimento pouco convincente.
— Fica com a Nana e faz o que ela te dizer para fazer…
parece que você vai lavar pisos todo o dia. Você pode fazê-lo. São
só alguns minutos para que o mundo se corrija, não é assim? E
talvez descubra algo que possa nos ajudar a dar sentido a todo
este desastre enquanto está aqui.
Era verdade, tudo o que ele dizia. Mas não a fazia se sentir
melhor.
— Voltarei antes do jantar e então o arrumaremos isso.
Voltarei por você. Eu juro.
Ele não estava tentando abandoná-la nesse estranho
lugar e deixá-la para que sobrevivesse sozinha, brigou consigo
mesma severamente. Voltará. Jurou.
— Ouviu-me? — Perguntou ele.
Ela assentiu outra vez.
— Confia em mim?
Ela assentiu uma vez mais, dando-se conta de
que falava a sério. Confiava nele, tão louco como
fosse isso, Sean a recompensou por isso com um
sorriso com covinhas que lhe atingiu o coração. Era
provocador e sério ao mesmo tempo, tão complexo
e místico como o homem por trás dele e as
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emoções giravam por dentro dela.
— Danni — disse ele brandamente — Tem alguma ideia
de por que estiveram nos esperando?
— Não. Pensei que talvez você soubesse.
Ele sacudiu a cabeça.
— Não entendo nada. É como se ela tivesse tudo
planejado, não é? Dizendo que é minha tia avó, me apresentando
como um primo…
— Eu sei. Tudo que posso pensar é que devemos estar
aqui por uma razão.
— E que razão séria?
— Há vinte anos, Sean. Não entende isso? E se for
exatamente vinte anos, então em alguns dias minha mãe
desaparecerá comigo e com meu irmão, seu pai se matará e….
E alguém jogará seu jovem corpo em uma tumba sem
marcação com meu….
Ela ficou quieta, pensando nisso com uma
dor no peito. Se a visão tinha sido real, então Danni, a
adulta Danni, estaria enterrada em alguma tumba
com o Michael. — Venha, primo? — Niall o chamou
educadamente.
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— Um minuto, por favor — respondeu ele. Para Danni
disse — Preciso ir. Ficará bem?
— Sim. — Mas era uma mentira e não havia forma de
que pudesse ocultá-lo. Queria pendurar-se nele e rogar para que
não a deixasse. Endureceu-se para não o fazer.
Brandamente ele inclinou o queixo dela para poder ver
seus olhos.
— O que está acontecendo com você agora — Colleen
chamou a sua atenção — Lhe dê um beijo, Sean e vá. Ela não irá
além da casa MacGrath enquanto você não está.
Danni conteve o fôlego enquanto ele baixava a cabeça para
fazer o que lhe diziam. Seus lábios roçaram os dela com um
impacto de sensações que viajaram por sua pele com um
estremecimento. Quando o beijo antes tinha sido excitante e
quente, agora… seu toque foi elétrico. Estimulou-a e limpou sua
mente de tudo menos de responder o beijo.
O beijo começou como um suave consolo, mas as mãos
dela estavam no peito dele, com seus dedos enredando-se em sua
camisa para sustentá-la enquanto a boca dela se
abria para a dele e o beijava com urgência.
Implorando para que não parasse, para
que não fosse embora. Para que não a deixasse.
Ele soltou um som profundo, um gemido de
relutância enquanto se afastava, e apesar dos
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medos dela, sentiu a chama da vitória quando viu a fome em seus
olhos.
— Terminaremos isto depois — prometeu-lhe
brandamente — Não demorará muito tempo para que esteja com
você outra vez.
Havia tanto a dizer e tanto sem dizer, nessa simples
frase que ela só pôde assentir em resposta.
Mas qual Sean retornaria para ela? O fantasma ou o
homem? E onde ela estaria quando ele caminhasse por sua porta
uma vez mais? De volta em sua solitária e pequena casa? Ou aqui
neste mundo que não compreendia?
Com o pânico escurecendo seus sentimentos, observou
como ele seguia seu pai e Michael pelo atalho que serpenteava
próximo ao mar. Enquanto ele ia, outros homens saíram das
casas ao redor banhadas ao azar com grafites de amarelo
brilhante e rosa cinzento na luz cinza do amanhecer. Niall
apresentou seu primo e as boas vindas foram ouvidas enquanto
os outros o saudavam com risadas e brincadeiras.
Enquanto Sean os saudava, viu-o olhar para
trás, para ela, embora estivesse muito longe para vêlo, sabia que havia surpresa em seus olhos. Estava
surpreso pela amizade tanto quanto pela confusão
em que estavam. O que ele tinha pensado todos
esses anos quando outros o olhavam sem vê-lo?
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De algum jeito tinha bloqueado isso, achando que era normal ser
ignorado? Mas agora que se deparava com o verdadeiro
comportamento normal, podia ver a diferença.
— Vamos. Vamos agora — Colleen a chamou — Verá o
menino outra vez quando voltar do trabalho. Esperam-te na casa
grande e você não vai querer chegar tarde.
Virando-se, Colleen olhou para Bean que esperava
diligentemente atrás da porta. O que acontecia entre o cão de
Danni e a avó de Sean?
— Não vai saltar em meus móveis — disse ela
brandamente e Bean imediatamente fez gestos de entendimento
ao enroscar-se sobre o tapete gasto na porta.
Surpreendida, Danni não pôde mais que obedecer
também quando Colleen a guiou para longe.
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Capítulo 13
Caminhando, Colleen tagarelava a respeito de
Ballyfionúir, dos Ballaghs e dos MacGraths. Em uma manhã que
não tinha sido menos que impactante, ouvir Colleen falar das
histórias da família de Danni, da herança que nunca imaginou,
levou Danni a um novo nível de assombro. Pertencia a uma
família velha, a uma antiga família, se podia acreditar em Colleen.
E todos tinham vivido na Ilha de Fennore enquanto Danni estava
do outro lado do mundo sem saber que existia.
Escutar ajudava a acalmar seu medo e a parte dela que
doía que queria se virar e correr pelo caminho que tinha tomado
Sean.
Mas debaixo do bate papo, Danni pressentia que
Colleen estava atuando. Apresentando a figura de
uma avó quando de fato tinha uma intenção oculta.
Estava guiando Danni para algo, algo mais que a
um trabalho na casa MacGrath. Desassossegada,
Danni a seguiu, consciente de que cada passo
poderia ser o que a afundaria mais profundo na
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escuridão. Consciente de que nesse tempo e espaço, o ponto de
não retorno era literal. Havia um tic tac no relógio em sua cabeça,
um com conta regressiva até a tumba que tinha visto em sua
visão.
— Vejamos, Fia MacGrath é uma forasteira — Colleen
disse a Danni com uma triste sacudida de cabeça — Do Condado
do Cork, dizem, Deus a benza. O caso foi que causou tal
escândalo quando Cathán a trouxe para casa e declarou que era
sua esposa. Muitas garotas e suas mães choraram em seu
travesseiro nessa noite. “A beleza não faz com que a panela ferva”
é o que se diziam uma a outra. Mas Fia é uma mulher de bom
coração e nenhuma delas pode negar a sorte que ela trouxe.
Cathán está vivendo como um rei nestes dias? Muito em
breve farão soar as trombetas quando ele passar pelo caminho.
— É rico, então?
— Ou faz um bom trabalho tentando. Embora, não foi
dessa forma que as coisas eram antes de Fia. Depois que ele
passou desta para melhor houve um montão de dias cinza.
— Ele?
— Bom, Brion MacGrath é obvio. O pai do
Cathán. Manteve a ilha à tona somente por sua
vontade. Sem ele, não teríamos vencido os impostos
e as tormentas teriam golpeado mais forte.
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E acaso o pobre Cathán sempre estava no campo
quando a sorte vinha pela estrada?
Colleen assentiu em acordo consigo mesma. Danni não
estava muito segura do que estava de acordo, assim ficou calada.
— E o pobre filho de Mary Ou’Leary, foi ao mar e não
lhe encontraram por uma semana. A maré o levou para Kinsale.
Parecia uma salsicha podre explodindo para fora de sua pele
depois de sete dias e noites no oceano.
Danni fez uma careta pela imagem mental.
— Isso é terrível.
— Ah, claro que é. Foi assombroso que tivesse ficado
algo dele quando o encontraram. Foi assombroso. Estava
contente de ter algo para pôr no ataúde para que o Pai Lawlor o
benzesse.
Danni se alegrou que Colleen não parecesse esperar uma
resposta a isso.
— Mas é bom que você e seu marido tenham chegado
agora, com Cathán vivendo como um rei e trabalho
surgindo como raios caindo do céu. Não se encontra
trabalho com tanta facilidade em Ballyfionúir como
é na América, ou ao menos não o era antes que
Cathán trouxesse sua esposa para casa nesta ilha.
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Enquanto Colleen falava, chegaram a um grupo de
casas alinhadas pelo áspero caminho de terra e os vizinhos
saíram para encontrá-las, algumas vezes esperando em suas
portas sua chegada. Era como se um sino tivesse tocado
anunciando a hora das visitas, pensou Danni sobressaltada pelos
rostos amistosos e o incessante bate papo. Se ela e Colleen
parassem para um chá cada vez que lhes ofereciam, teriam ficado
cheias de água e teriam chegado horas mais tarde a seu destino.
— Não é maravilhoso ter visitas da América? — Disselhe uma roliça e sardenta mulher. Tinha um bebê no quadril e
outro agarrado à mão — América é um lugar maravilhoso,
embora as ruas sejam de dar medo pelo que ouvi. Mas não é esse
Presidente Reagan um homem bonito, Deus o benza. Sabia que a
sobrinha do Tom Quinn se mudou para Detroit faz alguns anos?
Conhece Detroit? Está perto do seu o Arizona, Danni?
Danny sorriu educadamente, sem estar segura de que
as perguntas fossem de fato para ser respondidas.
— Infelizmente um Ford Branco matou a garota no
estacionamento de um Mac Donald’s, pobre garota. Já comeu um
Mac Donald’s Danni?
— Sim — respondo solenemente — E se um
Ford não lhe mata, a gordura o fará.
— Oh — disse a mulher, segurando mais
perto seu bebê.
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Por fim Colleen e ela se afastaram das casas. Danni não
pôde resistir jogar um olhar por cima do ombro. Como
suspeitavam, os vizinhos se reuniram para falar entre eles a
respeito da estranha do Arizona.
— Não há muita excitação por aqui, não é? — Perguntou
Danni.
— Você se surpreenderia — respondeu Colleen.
Rodearam a base de uma colina e uma nova vista
captou a atenção de Danni e a fez deter-se. As ruínas…
Tinha sido um castelo quando estava inteiro e habitado.
Não da maneira da faiscante imaginação de Cinderela, mas sim
como algo escuro e sólido, feito para suportar os ritos de sangue
que vinham de manter o território e governar às pessoas. De
outro tempo, de outro mundo, sua existência parecia tão pouco
provável, como a presença de Danni a sua sombra.
Olhando fixamente as paredes de pedra gastas
levantando-se como uma ilusão com um terreno de fundo plano
no topo de um enorme montículo, Danni estremeceu. Na visão,
ela estava de pé no vale com os restos amontoados
atrás, encarapitada tão precariamente perto do
inclinado abismo que um forte vento poderia
empurrá-los para o zangado e revolto mar.
Cinza e desmoronando, as muralhas
eram débeis sentinelas para os elementos do
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tempo. Pedaços de paredes e fragmentos de cantos estavam
dentro dos restos do quebrado castelo. Ásperas e deslavadas
pedras foram encaixadas como peças de um quebra cabeça em
uma redonda torre até um buraco onde uma vez havia um teto.
Danni podia ouvir o vento assobiar pelas esculpidas aberturas e
as partes em colapso que só davam uma insinuação da forma e
tamanho original da estrutura. O som a gelava até o osso.
O caminho por onde ela e Colleen foram se dividia, com
uma parte do caminho indo para as descartadas ruínas e à
lembrança do que devia ter sido um enorme portão; o outro
rodeava a colina e dava a volta. Ela se virou, pondo à fortaleza
atrás dela e observando o vale embaixo, que tinha visto tão
vividamente nas suas visões. Lá na distância onde os rebanhos
de ovelhas pastavam às afiadas rochas do desfiladeiro marítimo e
o tapete esmeralda que continha tudo junto. Mais à frente e à
direita de onde o caminho se dividia, viu a casa, uma formosa
criação Vitoriana que parecia uma anomalia com o decadente
castelo como vizinho.
Ela examinou o horizonte outra vez, procurando a
última peça da confusa visão. Então o viu. Ali, menor pela
distância, estava o conjunto de três enormes pedras, se
equilibrando em uma quarta como uma gigante casa
de naipes.
Desejando poder parar, imaginou os
passos que tinha dado na visão, revivendo o
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ansioso medo agora ao medir o intervalo entre o dólmen antigo e
o fosso sem marca onde tinha visto seu próprio corpo jazendo
junto ao do menino, que agora sabia era Michael. Seus olhos
foram atraídos inexoravelmente ao ponto exato onde ela e o Sean
adulto pararam. Até a tumba… Uma tumba que ainda tinha que
ser escavada.
Mais adiante, Colleen se deteve e se voltou para olhá-la.
— Tudo está bem agora, menina — disse ela — Tudo
estará bem agora.
Sua voz afastou o olhar de Danni do horrível lugar.
Olhou fixamente para Colleen, ouvindo o eco dessas palavras
murmuradas em sua mente.
“Tudo estará bem agora.”
— O que quer dizer? — Perguntou Danni, apressando-se
para alcançá-la.
Colleen começou a caminhar outra vez, o passo rápido.
Danni repetiu a pergunta, recusando-se que ela a ignorasse.
— Oh, é só que está tão desassossegada.
Seguro que sente saudades do seu marido como
uma jovem noiva deveria.
Soava sincera o suficientemente, mas
todos os anos da sua infância quando tinha sido
colocada de casa em casa sem saber o que
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esperar, lhe tinham ensinado a ler às pessoas. E sabia sem
dúvida nenhuma que havia mais por trás do comentário de
Colleen que o pensamento de que Danni sentia saudades do “seu
marido”.
Uma inquietante suspeita encheu Danni ao caminhar
junto a Colleen.
— Sabe quem eu sou, Colleen?
Danni perguntou brandamente. A pergunta deixou rígida
as costas da mulher, mas não se deteve. Depois de falar sem
parar até agora, Colleen estava de repente silenciosa. Danni
observou seu rosto, notando como sua boca se apertava e suas
sobrancelhas se enrugavam.
— Sabe? Sabe quem eu sou?
— Oh, Aye — Colleen respondeu com falsa alegria — É
Danni Ballagh da América e é bem-vinda nesta ilha.
Danni se esticou e agarrou o braço de Colleen, detendo
seus rápidos passos. Colleen tentou não a olhar, mas Danni não
a deixou ir, não se moveria até que a mulher maior lhe
olhasse. Silenciosamente estudaram uma à outra.
A idade cobrou um pedágio em Colleen. Os
anos deixaram um rastro que fazia um mapa em
seu rosto, encolhendo seus pequenos ombros. Mas
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também tinha posto ferro em suas costas. Ela exalou e deu um
assentimento desassossego.
A personificação da doce avozinha se foi com um
suspiro penitente. Em seu lugar estava de pé uma mulher que
tinha suportado e sobrevivido a uma vida que Danni só podia
imaginar.
— Aye, eu sei — Colleen disse por fim — Mas você,
menina, certeza que não tem ideia de quem poderia ser.
Danni pressentia que tinham alcançado o ponto para
qual Colleen esteve a direcionando, embora de repente se
assustou, afastar-se só atrasaria o inevitável. Sentindo que a
verdade da singela oração de Colleen se assentava em suas
vísceras, Danni perguntou:
— Sabe por que estou aqui? Trouxe-me aqui?
— Eu? — Colleen sacudiu sua cabeça — Acredita que
sou uma conjuradora que possa ondear sua varinha e fazer algo
acontecer?
— Você é?
Colleen sorriu, mas sacudiu sua cabeça.
— Embora, é uma pergunta justa. É uma
pergunta que nossa gente tem feito antes.
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— Nossa gente?
— As pessoas de Ballyfionúir. É outra ilha a que pensa
que veio?
— Poderia ser mais enigmática?
Colleen franziu o cenho.
— Eu não gosto desse tom que está usando, senhorita.
Envergonhada, Danni deixou cair seu olhar para seus
pés e tomou uma respiração profunda.
— Só quero uma resposta direta, Colleen. Isso é tudo.
— Isso é tudo, não é assim? Bem, não há respostas
diretas. De qualquer maneira aqui não. Não no que te concerne.
Ballyfionúir não é só uma aldeia. Isto. — Disse, gesticulando
amplamente com seus braços — Esta é a Ilha de Fennore. Sabe o
que isso significa?
Danni sacudiu a cabeça.
— Bom, lhe contarei. A terra debaixo de nossos pés está
alagada de tradições. Enquanto o resto da Irlanda
fala das colinas das fadas, mas aqui a magia está no
ar que respiramos. Na terra e nos céus, no mar e
nas estrelas. É real e é uma parte de nós. Só um
tonto o negaria.
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Danni se incomodou com esta pequena mulher
brincando com ela. Tinha pedido uma resposta direta e Colleen
estava lhe dando magia. Pensava que Danni era idiota? Que
acreditaria em semelhante e grandiosa merda? Mas quando a
irritação crescia dentro dela, Danni pôde ouvir a profunda e
áspera voz de Sean lhe dizendo que a magia não era um assunto
de risada em Ballyfionúir e soube que Colleen falava a sério. Que
acreditava no que dizia.
Colleen inclinou a cabeça para um lado e deixou sair
um bufo de risada nervosa. — É dura, não? Aqui está de pé e
mesmo assim não acredita. Isso é o que faz a uma pessoa viver na
América? Fes duvidar do que está na frente de seus olhos?
Talvez assim fosse. Ela tinha descartado a declaração de
Sean da mesma maneira que quis desprezar a de Colleen. Tinha
pensado que estava louco. Não, corrigiu-se, tinha achado que
estava morto. Isso convertia quem em louco?
Danni tragou e disse.
— Assim você nos trouxe aqui.
— Não — respondeu Colleen e começou a
caminhar outra vez.
— Mas… — Danni balbuciou — mas Sean
me disse que vê coisas.
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— Ele falou? — Disse ela, com os olhos negros
relampejando — Não sabia que ele contava contos antes.
— Como você sabe, posso falar sobre isso, Colleen? Ele
é…. — Danni se conteve antes de dizer, um fantasma. Porque
ainda não era. Mas em algumas noites isso aconteceria. Embora
não havia maneira de saber o que Colleen sabia a respeito de
Sean. A respeito das coisas que ainda não tinham acontecido.
Danni tinha que ser cuidadosa com o que soltava — Vê coisas
Colleen?
— Aye. Acaso todos não o fazem? Ou acredita que sou
cega?
— Você me viu? Antes que chegasse aqui?
A pergunta era muito direta para se esquivar e ambas
sabiam. Danni esperou tensa sua resposta, mas os lábios de
Colleen se fecharam com teimosia.
— Como chegamos aqui? — Insistiu Danni.
— É um fardo, saber o que vai acontecer. — Disse ela
tão brandamente que Danni teve que inclinar-se para
ouvi-la — Saber o que, mas nunca o por que. Nunca
como aconteceu.
Com desassossego, Danni assentiu.
— Nunca nada.
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— Aye — disse Colleen, com simpatia — Nunca nada.
Por acaso não é o pior de tudo? Como um ciclone, assim é a
visão. Embora você veja, selecione e escolha o que será ignorado e
o que receberá. — Colleen se deteve e enfrentou o vale — Faz
anos que te vi pela primeira vez — murmurou — Aí mesmo,
estava junto a meu Sean.
Danni não teve que olhar para saber que apontava à
tumba.
— Por que… — Danni começou duvidosa — Quero dizer,
quando me viu, O que queria?
Colleen balançou sua cabeça e a olhou fixamente com
curiosidade. — O que queria? É assim como é para ti, quando vê?
— Acredito. Não tive… Não tive visões por muito tempo.
Não recordo como eram antes. Até que vi Sean em minha cozinha,
não as recordava em tudo. Mas soube o que eram logo que o vi. E
soube que ele estava lá por uma razão.
— E o que meu Sean estaria esperando de você?
— Não sei.
— Não sabe?
A pergunta tinha uma armadilha, mas
Danni não caiu. Depois de um momento, Colleen
suspirou e olhou para o outro lado.
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— Não posso dizer o que você queria na visão. Poderia ser
que só queria que eu soubesse. Que te reconhecesse quando
finalmente chegasse. — Deteve-se, dando uma olhada em Danni e
então continuou — Não é a resposta que busca, mas é tudo o que
posso dizer. Vi sua vinda e te esperei, estive te aguardando com
esperança. Agora está aqui.
— Esperança do que? — Perguntou Danni.
— De que você arrumasse as coisas, é obvio.
— O que…. Porque pensaria que poderia arrumar as
coisas?
O sorriso de Colleen de novo foi como o de uma
avozinha, só que agora a fachada se esfumou. Havia amor e
ternura em seu olhar. Esticou-se e bateu no braço de Danni. — O
tempo responderá isso, coração.
Colleen retornou ao caminho, falando enquanto o fazia.
Danni se apressou a segui-la.
— Só tinha dezesseis anos quando cheguei a
Ballyfionúir, — disse Colleen — Era uma época
diferente então. Nesses dias, a casa acabava de ser
construída e a família era muito poderosa, muito
rica… Antes dos tempos difíceis, entende-me?
Pertence-lhe toda a ilha, sabia? Um dom, a terra
onde vivemos.
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Ela assentiu para si por um momento e logo seguiu.
— Minha mãe, tinha o dom, mas acredito que nunca
aceitou bem e no final a enlouqueceu.
— Sua mãe tinha? — Disse Danni surpreendida.
— Oh, aye. O Dom não é estranho na Ilha de Fennore.
Nunca entenderei por que minha mãe foi viver em Dublin, entre
gente que era diferente. Aqui todos somos família, de uma forma
ou outra. E o dom é hereditário. Sabia?
— Não, não sabia.
— Ah, agora já sabe. — Colleen ficou completamente
satisfeita por esta revelação. Danni se perguntou se sua própria
expressão era tão transparente, se Colleen poderia ver a quão
perdida se sentia.
— O dom enviou minha mãe a sua morte e me deixou
sem um centavo, vivendo nas ruas. Sabia que ela tinha família
aqui assim vim a Ballyfionúir esperando que me aceitassem. Meu
tio me deu um lar e um trabalho na casa grande. Era um bom
trabalho e me sentia afortunada de tê-lo. Nas ruas as
ofertas de trabalho não eram tão honoráveis, se
entender o que digo.
Danni assentiu. Podia imaginar a posição
em que a jovem e formosa Colleen se encontrou.
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Devia ter sido um impacto de jovem. O tipo de garota que um
homem desejava possuir…
— Quando cheguei pela primeira vez, ainda havia
pessoas que viviam aqui que se lembravam dos dias em que um
MacGrath tinha sido Lorde de Ballyfionúir.
— Lorde? Isso é como um rei?
— Suponho que de alguma forma, mas mais como a
cabeça da família. O território MacGrath. A gente de MacGrath.
Brion MacGrath era da antiga, e as pessoas o amavam. Ninguém
nesta ilha sofria fome nem se esquivava de suas
responsabilidades. Cuidávamos desta ilha e ela cuidava de nós.
Entende como era?
— Codependência — disse Danni.
— Co…. o que? — Perguntou ela franzindo o cenho —
Não importa. Vejo que entende o que digo. Vivia aqui há alguns
meses quando conheci Brion MacGrath. Lembro-me como se
fosse ontem. Foi em sua casa, no andar de acima trocando os
lençóis, pensando que estava sozinha enquanto trabalhava e
cantava quando de repente ele estava parado do outro
lado da cama vestido só com uma toalha e cheirando a
banho recém-tomado. Sorriu-me e me disse que
tinha a voz de um rouxinol. Nunca tinha visto um
homem sem roupa. Minha mãe era viúva e a
mulher mais restrita que conheci. Não se deixava
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levar por tolices.
Colleen tomou uma pausa e seguiu com o assunto como
quem se joga um parecido a águas geladas.
— Tentei tirá-lo do quarto, mas Brion me disse que
seguisse com meus assuntos. Que não incomodaria, disse ele, e
foi para o closet, deixando a porta tão aberta como as portas do
céu. Eu não olhei, mas sabia pelos sons que ele se estava
vestindo, na minha frente. Terminei com a cama e me aprecei
para sair. Depois me deram bronca por meu pobre desempenho.
Danni tentou interrompê-la então, querendo perguntar
a Colleen por que estava lhe lançando essa história. O que isso
tinha a ver com Danni e Sean e como tinham chegado ali?
Mas pressentindo as intenções de Danni, Colleen disse,
— Tenho um objetivo, menina. Deixa chegar a ele a minha
própria maneira. — Danni assentiu e Colleen continuou — Depois
disso, Brion MacGrath, estava onde quer que eu esteja. A
princípio pensei que era o azar o que o punha em meu caminho.
Mas logo cheguei a vê-lo pelo que era. Mesmo assim, não me dei
conta do que significava até que me encontrou um dia
nos pastos, pelo dólmen. Era meu lugar especial
para me sentar e pensar. Foi onde tive o dom a
primeira vez.
— Não via coisas quando era uma menina?
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— Não — disse ela, vendo-se surpreendida pela
pergunta — Não quando era menina — Uma mistura entre medo
supersticioso e curiosidade brilhou em seus olhos ao olhar para
Danni — Nunca ouvi de alguém que tivesse o dom quando
menina. Exceto você.
Danni sentiu calafrios por seus braços.
— O que viu quando estava sentada lá? — Perguntou,
assentindo para o dólmen.
— Foi Brion, vindo para mim. Eu estava inchada com
um bebê e ele me declarava seu amor. Dizendo que tinha rompido
com sua esposa e que me tomaria como sua amante em
Ballyfionúir.
A boca de Danni estava seca e seus nervos ao vermelho
vivo. Se isso fosse verdade… Se algo disso era verdade… então
Colleen estava falando do seu avô.
—Divorciar-se-ia da sua esposa?
— Não, moça. Não havia divórcio na Irlanda nesses dias.
Esse era um pecado contra Deus e o governo ao mesmo
tempo.
— Então como…
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— Foi minha pergunta. Como? E depois eu vi, neste
meu sonho, o que ele pretendia fazer. Pretendia matá-la.
— Espera — disse Danni, sustentando em alto sua mão
— Não se divorciaria dela porque seria um pecado, mas sim a
mataria?
— Sim. Mas quem diria que tinha sido ele? Quem se
atreveria a apontar com um dedo o homem que os permitia pôr
comida na mesa? Seria como cortar a própria mão.
Danni sacudiu a cabeça, sem ser capaz de compreender
a vida com tal lealdade e dependência.
— Brion era amado neste povo e ninguém o enfrentaria.
Tudo isso eu vi. Então olhe e aprecie, lá estava o homem, o
homem real, vertendo sua sombra sobre mim. Quis correr, mas
não pude me mover. “Sabe que te terei” disse. E soube.
— Não tentou detê-lo?
— Não está me ouvindo menina? Sim, tentei detê-lo.
Não queria fazer parte nisso. Embora lhe jure isso, o homem
tinha algo de dom, porque parecia ler meu
pensamento. Beijou-me até que meus jovens dedos
se dobraram em meus sapatos. Um beijo que era tão
pecaminoso como o homem que ele era. E depois
me deixou sozinha para pensar a respeito disso.
Não teria sido mulher se tivesse sido capaz de
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esquecer tal beijo. Meu primeiro beijo foi e de um homem que
sabia como dá-lo.
— Por que está me contando isto, Colleen? — Danni lhe
perguntou por fim, vendo o óbvio desconforto no rosto da mulher
maior. Não gostava de relatar essa história, mas por alguma
razão, sentia-se compelida a fazê-lo.
— Perguntou-me se sabia quem era. Sei. Escuta para que
você também saiba. — Ela se deteve, tomando uma profunda
pausa e depois continuando — Ele disse que me teria só para ele
e me teve, embora o mantivesse a distância por mais tempo que a
maioria das mulheres teriam feito. Era formoso, Brion MacGrath,
e era gentil. Comecei a pensar que me amava. Ainda o penso. Mas
era uma coisa terrível, porque eu tinha visto o que ele não sabia…
tinha visto onde levaria este amor. Quando me dei conta que
estava grávida, foi um horror para mim enfrentar isso. Enganeime em pensar que não aconteceria da maneira em que o tinha
visto. Mas lá estava eu com um filho bastardo em mim e sem
nenhum lugar para onde ir, a não ser de volta às sujas ruas.
— O que fez?
— Foi sua esposa quem me ofereceu a
salvação.
— Sua esposa?
— Aye. Ela me chamou em seu quarto e
soube exatamente por que. Sabia que ou ela
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tinha-nos visto ou tinha ouvido os serventes fofocarem. Estava
envergonhada até a alma por estar de pé em frente dela. Disse
que eu era uma das muitas mulheres que já teve e que seria, uma
de muitas que viriam depois no que se referia a seu marido. Disse
que ele perderia o interesse e que me colocaria de lado e seria
despedida. Tinha visto isso antes e o veria outra vez. E então me
ofereceu uma escolha, uma terrível escolha. — A voz de Colleen
falhou por um momento — Disse-me que por anos tinha tentado
conceber e não tinha sido benta. Necessitava um menino para
manter seu marido com ela. Sabia o que lhe custava me dizer
isto, embora falasse como se fosse feita de pedra, toda orgulho e
desdém. Disse-me que conhecia um homem em Limerick, de onde
ela mesma era. A esposa deste homem tinha morrido ao dar à luz.
Necessitava de uma mulher para cuidar do seu bebê e de sua
casa. Se eu tivesse o filho de Brion, ela me veria casada com este
homem antes que minha condição se mostrasse. Ela pretenderia
estar grávida enquanto eu também estava e quando meu tempo
chegasse, eu mandaria a chamar e diríamos que meu bebê tinha
nascido morto. Embora ela o levasse para casa como dela e diria
que ela o tinha tido sozinha.
— O que? Isso nunca funcionaria — disse
Danni — E quanto ao doutor? E quanto o corpo do
recém-nascido? Como explicaria que não havia um
corpo? E quanto ao homem com que se casaria?
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Certamente ele saberia? Sem mencionar o marido dela, como
achava que poderia fingir estar grávida dele?
— Ela planejou tudo até o mais mínimo detalhe. Para
meu novo marido e a mim, nos dariam uma casa com terra
suficiente para trabalhar. Algumas ovelhas. Uma vaca. Um bote,
já que meu próximo novo marido era pescador. Uma vida de
respeitabilidade. Construiria-nos um passado com meios para
explicar tudo o que tínhamos. Se eu fizesse o que pedia, poderia
ter algum tipo de futuro. Se não o fizesse, expor-me-ia como a
uma adultera e diria às autoridades que estava roubando da
família. Minha tia e meu tio que me tinham acolhido estariam em
desgraça comigo. Podia ver muito claro tudo o que vinha por esse
caminho. Se ela tinha êxito, eu seria encarcerada e levariam meu
filho. Se ela falhava, Brion a assassinaria e eu levaria a mancha
de seu sangue em meu coração para o resto de minha vida e
todos em Ballyfionúir saberiam.
Já tinha vivido nas ruas uma vez em minha juventude e
não podia enfrentar retornar para lá. Não era uma decisão para
que uma moça tomasse, mas podia ver que não tinha outra
opção. Já levava o filho de Brion e não tinha nada que lhe
oferecer. Concordei com seus planos.
Os olhos de Danni se abriram ao esperar
suas seguintes palavras.
— E assim me casei com um homem de
alma gentil e com um bebê recém-nascido, que
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também tinha feito um pacto com o diabo, porque ele tampouco
tinha outra opção. Naqueles dias não se recuava uma casa e
propriedade por princípios. Michael me tomou como sua esposa,
mas sabia que eu tinha feito um trato e me encontrava em
desgraça. E pelo lado da senhora Brion, ela fez seu papel
belamente. Floresceu com seu bebê e o povo a animou. Eu afastei
Brion e ela o recolheu como a um buque com suas promessas de
um bebê. Mas não obteve tudo o que queria, porque ele nunca
deixou de me amar.
Colleen sacudiu a cabeça com tristeza.
— Eu era pequena e era capaz de ocultar meu bebê até
que já estava muito avançada enquanto que ela exagerava sua
condição assim quando alcancei meus nove meses muitos
pensavam que só tinha cinco ou seis e ela estava prestes a dar à
luz a qualquer dia. Ela foi minha parteira e acredito que em seu
coração esperava que eu morresse dando à luz. Ela, e Michael
também. Mas dei à luz a um bebe gritalhão como se o tivesse feito
cem vezes antes. Pus esse pequeno vulto de humanidade só uma
vez em meu peito e então ela o levou, me deixando com as dores
por meu leite e o filho de outra mulher para encher o lugar em
meu coração que meu próprio bebê tinha deixado. Se
tivesse sido uma mulher mais forte teria me matado.
Danni deixou de caminhar enquanto
essas palavras se dissolviam e caíam sobre ela. Ela
lutava com a realidade da história de Colleen, sem
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ser capaz de pô-la em perspectiva. Sem ser capaz de processar o
que Colleen estava dizendo.
Colleen continuou.
— É o pior tipo de tortura, vê-la desfilar junto a Brion com
meu bebê em seu carrinho. Mas o bendito Jesus tem uma
inteligência desassossegada e um cruel sentido da ironia. Embora
se visse como a família feliz, Brion nunca pôde se ajustar ao
milagroso nascimento e estava convencido de que Marga lhe tinha
sido infiel. Que eu nunca tivesse concebido com ele só o
convenceu mais de que não podia ser capaz de ser pai.
— Mas o bebê era dele — disse Danni — e teu.
Colleen assentiu, olhando-a. E de repente Danni
compreendeu o que sua mente se recusou a entender antes.
— Espera um minuto. Está dizendo…?
— Aye moça. Seu pai era meu bebê.
— Mas isso te faria…
Colleen assentiu.
— Sim o faria.
— Mas quanto a Niall?
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— O bebê de Michael e sua esposa morta, embora
também seja o filho do meu coração.
Danni não pôde deter o tremente suspiro de alívio.
Assim que ele não era seu tio então. Não havia relação de sangue
entre ela e Sean.
— Assim agora sabe quem é e de onde vem — disse
Colleen brandamente — É uma menina da linha das famílias dos
Ballagh e dos MacGrath cujas histórias chegam até um tempo
antes da memória.
Danni franziu o cenho, sobressaltada por tudo o que
tinha aprendido, mas aborrecida pelo que até pressentia faltava
na história de Colleen.
— Por que pensou que era importante me dizer isto? Há
mais nisto que só saber quem eram meus avós, ou não?
— Aye, é verdade. Perguntou como chegou aqui. Para
responder isso, deve saber que a linha do seu sangue está cheia
de pessoas que viram o futuro, pessoas que mudaram seu próprio
destino.
— E como têm feito isso? — Demandou
Danni.
— Não posso lhe dizer isso, menina. Se
soubesse como se faz, teria o feito para mim.
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— Trouxe-me aqui porque pensou que poderia mudar…
— Disse-lhe isso — disse Colleen bruscamente — Não
fui eu que te trouxe. Mas aqui está de qualquer jeito. É sua
decisão entender o como e o por que. Só você sabe o que fazer a
seguir.
— Faz soar como se eu devesse ter todas as respostas.
Despertei esta manhã e estava vinte anos no passado. Como
diabos vou, ou seja, o que fazer com isso?
— Algo dentro de você já sabe, Dáirinn MacGrath.
Sugiro que tente descobrir que parte de você o faz e comece a
escutar o que tem a te dizer. Há lugares piores onde despertar
que em seu passado.
Brumas da Irlanda 1 Página225
Capítulo 14
A casa MacGrath parecia estar um caos quando Colleen
guiou Danni através das grades. Os homens trabalhavam no
terreno, plantando flores nos canteiros, tirando as ervas
daninhas, podando árvores, regando a grama que se estendia
como um tapete entre os pastos silvestres. Outros estavam
lavando as muitas janelas, limpando e pondo uma nova camada
de pintura amarela nas paredes exteriores.
Colleen a levou pela porta de trás, de repente Danni se
afligiu com a dolorosa solidão. Não queria passar para o interior;
não queria entrar na casa onde tinha passado seus primeiros
cinco anos e confrontar o fato de que não tinha nenhuma
lembrança disso. Não podia fazê-lo; não sozinha. Desejou que
Sean estivesse aqui com ela, tão ridículo como soava inclusive
para si mesma. Entretanto, ele sustentaria sua mão.
Compartilharia seu calor, sua fortaleza.
Mas não estava aqui e Danni não tinha
mais remédio que seguir Colleen.
Brumas da Irlanda 1 Página226
A porta dos fundos se abriu diante uma cozinha
brilhante e alegre com paredes de cor azul pálida e bancadas de
cerâmicas. A alvenaria à direita emoldurava um velho forno de
carvão e fazia com que a enorme cozinha parecesse agradável e
acolhedora. Diante dela, havia uma larga mesa de pinheiro com
bancos colocados debaixo dela e cadeiras em cada um de seus
extremos estavam vazias, mas que emitiam um brilho suave.
Atrás delas havia uma arca de pinheiro com uma fechadura
redonda centrada na parte dianteira.
Danni desviou o olhar e logo, rapidamente, o
reconhecimento a golpeou. O baú não era uma peça tão incomum
e entretanto, sabia que tinha visto antes esta peça em particular;
na visão quando sua mãe tinha mostrado a Danni o Livro de
Fennore.
Mas esta não era o mesmo quarto em que o tinha visto.
Danni tragou saliva com dificuldade, sem dar-se conta
de que estava se preparando para esse terrível zumbido, esse
fecundo aroma e essa exsudação de sangue.
— Está sentindo-se mau, filha? — Perguntou
Colleen, tocando o braço de Danni e a trazendo de
volta à ensolarada cozinha.
— Estou bem — respondeu Danni,
afastando o olhar do baú.
Brumas da Irlanda 1 Página227
Uma janela sobre a pia dava aos jardins e às
impressionantes ruínas. Um molho de especiarias pendurava
suspenso a seu redor, e uma prateleira suspensa por cadeias
desde o teto contendo sortidas chaleiras de cobre e frigideiras em
cima dela. A cozinha cheirava a canela, a algum outro aroma doce
e impreciso que não reconheceu; entretanto, no mais profundo
dentro dela se avivou uma lembrança e a fez sentir-se ao mesmo
tempo reconfortada e dolorida.
Duas mulheres estavam de pé com um montão de
massa entre elas. Conversavam e riam enquanto as enrolavam
em bolas do tamanho de Pelotas do ping-pong e as preenchiam
com uma escura mescla pegajosa que Danni não pôde adivinhar
o que era. Outra mulher entrou por uma porta giratória que
provavelmente conduzia a área de jantar. Levava uma bandeja
com taças de cristal a pia para lavá-las.
Enquanto Colleen e Danni rondavam no interior, uma
robusta mulher de cabelo negro e nítidos olhos azuis se
aproximou. Danni conteve o fôlego, enquanto outro pequeno
reconhecimento a mordia em sua memória e associava à mulher
com saborosos obséquios e quentes abraços.
Colleen lhe sorriu e lhe disse
— Bom dia Bronagh. Esta é Danni
Ballagh, fez toda a viagem da América para te
Brumas da Irlanda 1 Página228
ajudar neste inesquecível dia. Será uma bênção. Danni está boa
mulher é Bronagh Dougherty.
— Danni? Esse é um nome estranho para uma mulher?
Assim é como te chamou seu pai?
— Não sei — respondeu Danni honestamente.
— Bom, não importa. — Ela voltou sua atenção para
Colleen — Chegou tarde. Não estou com ânimo para chamar isso
de bênção.
— Oh não, sentimos por isso. Mas a pobre garota não
chegou até as primeiras horas da manhã e sem ter dormido, teria
sido de pouca ajuda para você. Não chegará tarde outra vez.
A tensa boca do Bronagh relaxou e uma careta em seus
lábios, disse à Danni que poderia estar sorrindo, mas que lhe
doía fazê-lo.
— Então bem, deixarei passar desta vez. Tomou o café da
manhã?
Danni abriu a boca para falar, mas Colleen a interrompeu.
— Sim. Bom, por quem me toma, por
alguém que não dará a uma garota comida quente
para o café da manhã? — Requereu.
— Não pretendia te ofender, mas os
americanos são peculiares. Como vou saber se
Brumas da Irlanda 1 Página229
comeu o suficiente para suavizar seu estado de ânimo? Poderia
ser que ainda esteja desejando uma comida decente.
— E o que poderia saber das peculiaridades dos
malditos apetites americanos? — Desafiou-a Colleen.
— Está pensando que é a única que conhece os
americanos? — Bronagh soprou com arrogância. Com dois passos
se situou junto uma estante ao lado do forno que estava cheio de
livros de cozinha. — Meu próprio irmão esteve recentemente no
formoso estado de Nebraska e não me trouxe estes dois
encantadores livros de receitas americanas?
Com muito ruído levantou um livro de cozinha vermelho
e branco da Betty Crocker8 em uma mão e na outra um titulado
“As melhores receitas da Omaha” com “panelas da sorte para
qualquer ocasião”. Danni escondeu um sorriso, perguntando-se,
se Bronagh teria aberto esse em particular.
Rapidamente interrompeu antes que Colleen pudesse
cuspir as palavras que pareciam prontas em sua língua.
— Obrigada, senhora Dougherty, mas Colleen me
preparou um delicioso café da manhã esta manhã.
Não poderia comer um bocado mais.

8
Betty Cocker é uma reconhecida marca de mantimentos nos Estados Unidos que se dedica vender pacotes para
confeitaria preparada como brownies, bolachas
Brumas da Irlanda 1 Página230
O doloroso sorriso de Bronagh se esticou. Colleen deu a
Danni uma carinhosa palmada no braço.
— Bem então, suponho que não há nada a fazer exceto
te pôr para trabalhar. É das que cozinha?
De fato, Danni adorava cozinhar. Quando viva com
Yvonne, Danni preparava todas as comidas. Mas uma vez que se
mudou a seu novo lar, cozinhar tinha perdido seu atrativo. Bean
e ela as tinham por hábito comer comida rápida ou com pratos
singelos na maioria das noites. De vez em quando desenterrava
seus próprios livros de receitas e surpreendido Yvonne com uma
comida caseira. Quando retornasse para casa, Danni se prometeu
em silêncio, que planejaria algo especial. Se retornasse para
casa…
Danni piscou, encontrando tanto Colleen como Bronagh
olhando-a em expectativa. Inclusive as mulheres das mesas altas
se detiveram para escutar.
Danni limpou garganta.
— Não sou Rachael Ray9, mas posso me defender.
Todas se olharam ante isso e Danni se
amaldiçoou. É obvio que não sabiam quem era
Rachael Ray. Haveria sequer nascido já?

9
Rachael Ray é uma apresentadora de televisão e escritora americana de numerosos livros de cozinha
Brumas da Irlanda 1 Página231
— Bem, tenho que ir. Deixarei a nossa Danni a seus
cuidados — disse Colleen a Bronagh.
Vai? Por que tinha pensado Danni que Colleen
trabalharia aqui também? Ela mordeu com força o interior do
lábio, rebaixando o pânico que tinha conseguido sossegar depois
da partida de Sean.
Colleen a acariciou de novo e se foi em um momento.
Entretanto, Bronagh não lhe deu a oportunidade de desfrutar de
suas preocupações. Pôs Danni para trabalhar na preparação de
arenques assados depois de repassar laboriosamente a receita
com ela não uma vez, mas três vezes. Parecia que, ultimamente,
os jantares na casa MacGrath não eram informais e amanhã
haveria um jantar especial em honra ao quinto aniversário dos
gêmeos.
Danni tragou saliva com dificuldade, mas tentou manter
a compostura enquanto pensava nisso. Além dos pescados,
Bronagh disse a Danni com orgulho, que haveria salada fresca
com tomates e agriões, sopa de fruto do mar, colcannon10 com
couve frisada e cebolinha — pelo que Danni tinha deduzido pela
receita era um prato irlandês com em purê de batatas —
aspargos cozidos com manteiga, tortas de alho com
bacon e pudim negro. Bronagh o complementaria
com bolos de ruibarbo de sobremesa.

10 Colcannon é um prato tradicional irlandês que consta de purê de batata, couve, manteiga, sal e pimenta
Brumas da Irlanda 1 Página232
Ruibarbo… Esse era o outro aroma na cozinha…
Enquanto trabalhava, Danni se obcecou com tudo o que
Colleen lhe havia dito. Colleen era sua avó. Sua avó fraterna.
Colleen não lhe tinha respondido quando tinha perguntado se
sabia por que Danni e Sean estavam ali. Talvez porque não
soubesse. Entretanto, suas últimas palavras ainda zumbiam na
cabeça de Danni. Por que achava que Danni sabia a resposta
para este enigma em que tropeçou?
Há piores lugares para despertar que seu passado…
Perdida em seus pensamentos, Danni não se deu conta
de que a porta da cozinha foi aberta até que Bronagh, disse:
— Bom dia senhora MacGrath. E como posso ajudá-la?
O olhar de Danni se levantou rapidamente. Ali, com um
sorriso em sua direção, estava a mãe de Danni.
— Oh, não se incomode por mim, Bronagh — disse Fia
MacGrath com um tímido sorriso — Só queria ver como estão às
coisas por aqui.
Danni olhou como Fia se movia de um lugar a
outro, olhando as criações em curso, saboreando a
mistura de ruibarbo para os bolos e exclamando
que Bronagh se superou. Bronagh sorriu com
orgulho. De perto, Fia era maravilhosa de uma
forma etérea. Movia-se com graça e elegância,
Brumas da Irlanda 1 Página233
como se nunca tivesse conhecido uma razão para apressar-se ou
uma razão para preocupar-se. Suas feições eram delicadas: um
nariz pequeno, sobrancelhas perfeitamente arqueadas, olhos
largos e pestanas largas. Usava pouca maquiagem, só batom cor
coral que acentuava sua generosa boca e uma ligeira camada de
blush nas pálidas bochechas. Suas roupas estavam engomadas e
quando se foi, Danni captou o aroma de uma sofisticada colônia,
leve, mas exótica. Que suscitou uma avalanche de lembranças —
uma sensação de alegria, de felicidade. Imaginou a si mesma
como menina, respirando esse maravilhoso aroma.
— Tem tudo sob controle, então? — Perguntou depois
de ter terminado seu exame da cozinha.
— Ah, aye, como um relógio.
— Então me perguntava — Fia falou, de repente,
parecendo muito jovem e insegura — Poderia me emprestar uma
de suas garotas durante uma hora ou assim?
A boca de Bronagh se esticou, mas disse de forma muito
agradável: — Claro e são suas garotas, verdade? Pode pegar uma
ou a todas.
— Não quero causar problemas se….
— Não há com que se preocupar. Leve
Danni, não é de muita ajuda para mim de todos os
modos. É Americana.
Brumas da Irlanda 1 Página234
Ferida, Danni olhou Bronagh, mas não havia malícia no
rosto da corpulenta mulher e Danni percebeu que só estava
tentando agradar a sua mãe. Fia não só parecia jovem; não podia
ter mais de vinte e dois ou vinte e três anos. Poucos anos mais
jovem do que Danni era agora.
Fia sorriu.
— Obrigada, Bronagh.
Nervosa diante da ideia de estar a sós com sua mãe —
sendo mais velha que sua mãe — Danni lavou e secou as mãos
antes de seguir Fia para fora da cozinha. Obviamente, Fia se
sentia igualmente incômoda a sós com Danni, embora por razões
diferentes. Danni não acreditava que estivesse acostumada a
dirigir aos serventes ou a pedir a alguém que fizesse sua vontade.
Não deixava de olhar por cima do ombro, para assegurar-se de
que Danni ainda estava a seguindo. Cada vez que o fazia, davalhe uma pequena risada entrecortada que revelava quão
incômoda se sentia. A roupa sofisticada que ela usava parecia ser
só um ardil, a armadura de uma batalha aonde ela não tinha
armas para lutar. Um incômodo silêncio as seguiu a um saguão
com paredes cinza e retratos enormes. Um grande
móvel dominava uma das paredes e Danni não pôde
evitar parar para admirá-lo.
Fia esperou, olhando-a com curiosidade.
Brumas da Irlanda 1 Página235
— Sinto muito — disse Danni — É só que tenho olho para
as antiguidades.
— Sério? E é essa uma?
— Bom, sim. Trata-se de um banco11. Utilizava-se para
sentar-se nos grandes salões. E vê como se abre? — O
demonstrou levantando a banqueta — O interior se utilizava
como cama de convidados.
Fia sorriu.
— Mas é muito pequena.
É certo, embora o móvel medisse seu bom metro e meio
de comprimento, teria sido uma cama pequena e estreita.
— Naquele tempo, seu anfitrião não teria pensado nisso
de colocá-la em uma cama com outras cinco ou seis pessoas, por
isso encolher os joelhos enquanto dorme não era realmente tão
incômodo.
— Como sabe disso?
Danni encolheu os ombros.
— Mi… Mãe é aficionada em história.
Fia olhou intrigada enquanto começou a
caminhar de novo.

11 Um settle é um banco antogo de madeira com baú debaixo para guardar coisas e com um alto respaldo.
Brumas da Irlanda 1 Página236
— A minha mãe também gostava de antiguidades;
sempre e quando fossem caras. Fomos muito pobres quando eu
era jovem, antes de… — Saiu-lhe um risinho nervoso — Antes
que minha avó morresse e herdássemos. Depois disso, ela não
teria nada velho na casa a menos que valesse seu peso em ouro.
Nem sequer as mantas foram transmitidas de geração em
geração. Ainda me ponho triste quando penso nela as atirando no
lixo.
A ideia mesma feriu o estômago de Danni, mas guardou
silêncio enquanto seguia a sua mãe a uma escada com acesso a
um corredor comprido.
— Depois que mamãe morreu, trouxe algumas de suas
peças para cá. — O baú que está na cozinha era dela? —
Perguntou Danni.
— O que?
— O baú, na cozinha.
— Oh, sim.
Fia abriu uma porta para o final do corredor e
guiou Danni para um cômodo enorme, com paredes
pintadas de cor vermelha escura, complementadas
com cadeiras brunidas de cor dourada com um
respaldo que chegava a tudo em seu entorno à
altura do peito. Uma maravilhosa cama com meio
dossel de tamanho extragrande com uma colcha
Brumas da Irlanda 1 Página237
de brilhante cetim deveria ter dominado o quarto, mas era muito
grande para isso. Nem o reluzente armário de mogno junto à
janela, nem o mármore elegante da chaminé, cujo tamanho se
estendia pelo menos dois metros e médio ou as vitrines as gêmeas
uma em frente da outras situadas nos cantos podiam sequer
aproximar-se de enchê-lo. Inclusive com o sofá de capa
adamascada e as duas cadeiras combinando junto ao fogo, havia
suficiente espaço livre para gerar eco. Embora deliciosa, o quarto
era entristecedor. Sua mãe parecia uma menina brincando de ser
adulta.
— É como um museu, verdade? — Disse Fia com um
sorriso envergonhado — O último projeto de Cathán; meu marido.
Fez derrubar a parede do berçário e deixou tudo um quarto só.
Não sei por que necessitamos de tanto espaço, mas parece que
gosta.
— É formoso.
Ela encolheu os ombros e assinalou as cadeiras e o
divã. Uma cesta estava no chão entre elas.
— Estou fazendo fantasias para os gêmeos —
disse — foram convidados para uma festa de
fantasias nos próximos dias. Dáirinn quer ser uma
gatinha e Rory quer um cavalo.
As palavras tocaram uma fibra sensível em
algum lugar de Danni e uma lembrança estalou
Brumas da Irlanda 1 Página238
em sua mente. Viu a si mesma correndo em seus cinco anos de
idade nesta mesma sala, gritando de alegria com sua fantasia de
gatinha de raias laranja e negras. Tinha miado como louca,
enquanto Rory relinchava e soprava a seu lado.
— Está bem? — Perguntou-lhe Fia.
— Sim — respondeu Danni, embora estivesse longe de ser
verdade.
Seu estômago deu um puxão e fez um nó e seu interior
se sentia aquoso.
— Por favor, sente-se enquanto te mostro os trajes —
Fia se inclinou e tirou o primeiro da cesta — Só necessito ajuda
com os retoques finais. Nunca conseguirei os ter prontos a tempo
para a festa por minha conta.
— Não sou muito boa com uma agulha — confessou
Danni. Fia sorriu.
— Pode segurar um? — Danni assentiu — Então, o fará
bem.
Ela assinalou uma das cadeiras e entregou a
Danni uma caixa de metal cheia de lentejoulas de
cor rosa e branco.
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— Dáirinn quer que seu gato use um tutu — disse,
ainda sorrindo — Preciso acrescentar algumas lentejoulas no
cinto.
Fia pegou a fantasia para mostrar-lhe e Danni sentiu
outra onda de lembranças quando o viu. Fia tinha feito o corpo a
partir de um tecido suave de cor branca com franjas costuradas à
mão de cor laranja no mesmo sentido ao redor uma saia de gaze
de cor rosa tinha um cinto na cintura e Danni se viu alagada com
lembranças do que tinha sentido ao girar como uma bailarina
enquanto golpeava o ar com suas garras de gatinho miando a
todo pulmão.
Sem dar-se conta da agitação que tinha causado, Fia
colocou linha em uma agulha e mostrou a Danni como colocar as
lentejoulas no cinto.
Depois pegou a fantasia de cavalo negro e branco que
tinha feito para Rory. Outro brilho, outra explosão de lembranças
de Danni e de seu irmão correndo pelo corredor, rindo de alegria.
Fia tinha acrescentado mechas sintéticas à crina e à cauda do
disfarce e agora estava trabalhando no comprido focinho e as
patas. Das mechas de pelagem laranja que chegavam até
as orelhas do gatinho até a juba negra do cavalo, Fia
não tinha esquecido nem um detalhe em nenhum
dos trajes.
Brumas da Irlanda 1 Página240
— São incríveis — disse Danni. Fia sorriu com prazer.
— Obrigada. Estive trabalhando neles durante semanas.
Surpreenderia se quão difícil é costurar um cavalo.
— Não acredito que me surpreendesse absolutamente.
Tenho que lhe advertir que costurar um botão é uma provocação
para mim.
— Não se preocupe esses não têm por que estar retos, e
minha pequena Dáirinn não se daria conta de uma falha embora
lhe mordesse no nariz.
O amor nessas poucas palavras quase arrancou um
soluço de Danni. De fato, lutou por manter a compostura. Não
serviria de nada que Fia pensasse que era instável.
Sentaram-se uma ao lado da outra durante um
momento, sem falar. Danni tinha mil perguntas, mas eram muito
pessoais para deixá-las escapar e, portanto, se sentou, muda e
miserável, enquanto acrescentava as lantejoulas ao tutu.
— Michael me disse que acaba de chegar dos Estados
Unidos ontem à noite. É um longo caminho a
percorrer. Deve estar esgotada — disse Fia.
— Sinto um pouco a diferença de horário,
nada que um Starbucks não possa curar.
Fia inclinou a cabeça e franziu o cenho.
Brumas da Irlanda 1 Página241
— Um quê?
— Não importa — disse Danni com rapidez, pouco
segura se as cafeterias já existiam.
Os olhos de Fia tinham curiosidade, mas deixou passar.
— Em que parte dos Estados Unidos vivia? — Perguntou
de volta.
— No Arizona. Esteve alguma vez nos Estados Unidos?
— Não. Nunca estive em nenhuma parte exceto aqui.
Embora minha irmã se mudasse para Califórnia.
— Sério? Onde?
Foi à vez de Fia parecer que se colocou em uma
confusão. Um risinho incômodo brotou dela e negou com a
cabeça
— Oh, não posso recordar o lugar exato. Não nos falamos
muito.
“Estou mentindo” estava virtualmente escrito em seu
rosto, pensou Danni. Por que sentiria a necessidade de
contar uma mentira piedosa ou algo assim? Danni
queria pressioná-la, mas todo o corpo de Fia ficou
imóvel como se estivesse cheirando perigo no ar.
Brumas da Irlanda 1 Página242
Voltando a olhar as lentejoulas, Danni disse casualmente:
— Califórnia é formosa. Estive lá um par de vezes. Já
sabe, na Disneylândia e Hollywood. Sempre quis ir a São
Francisco, mas nunca o fiz.
— Sempre quis viajar, também. Mas então conheci o
Cathán e aqui estou.
Havia uma tristeza em suas palavras.
— Deve ter sido muito jovem quando se casou —
murmurou Danni.
— Tinha dezessete anos. Faz cem anos, parece-me às
vezes — suspirou, tirou um ponto e logo adicionou outro — E
você e seu marido Sean, como se conheceram? — Perguntou ela.
Pega de surpresa, Danni desviou rapidamente o olhar.
— Simplesmente nos encontramos casualmente um dia.
— Ele é muito bonito.
Com a boca seca, Danni assentiu. Acaso não sabia.
— E você? Como conheceu seu marido?
— Como você disse, nos encontramos
casualmente um dia. Ele diz que me olhou uma vez
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e soube que estava apaixonado. Depois não houve nada que o
detivesse até que fui dele.
Ela sorriu, mas suas palavras soavam muito animadas.
Uma história feliz sem felicidade.
— Deve ter te cortejado até te fazer perder a cabeça —
murmurou Danni, com a pequena menina que havia nela
esperando que fosse o certo, que sua mamãe e seu papai se
apaixonaram loucamente e tivessem vivido felizes para sempre.
— Sim, o fez — disse Fia, mas um escuro rubor se
apoderou do seu rosto — Estava grávida dos gêmeos antes que
nos casássemos. Estou segura de que já o ouviste. Foi um grande
escândalo em Ballyfionúir.
— Oh — disse Danni — Não, não tinha… Refiro-me…
— Não importa. Amo meus filhos — disse ela com
ferocidade, quase com raiva. Como se esperasse que Danni o
negasse — Faria qualquer coisa por eles.
Houve subtexto em sua última afirmação, mas Danni
não pôde decifrá-lo. Observou sua mãe, viu o jogo das
emoções em seu rosto. Tentando entender o que
acontecia sua mente.
— Como é seu marido? — Perguntou
Danni e agora foi ela que soou triste. Fale-me do
meu pai…
Brumas da Irlanda 1 Página244
— Oh, Cathán é muito… decidido. Lembro-me de ter
pensado isso a primeira vez que o conheci. Deus, que
homem tão decidido. Nunca faz nada pela metade. Não
acredito que saiba como fazê-lo — A risada nervosa saiu
outra vez — Quando estava me cortejando, senti que era
uma meta, um objetivo. Quero dizer no bom sentido, é
obvio. Ele me queria… Amava-me. Ele me ama, quero
dizer.
Havia algo infantil em sua mãe. Algo adorável e vulnerável,
e Danni quis estender a mão e abraçá-la. Parecia tão insegura de
si mesma e de seu lugar no mundo.
— Ele deve estar orgulhoso de tê-la como esposa —
disse Danni — Tem uma família encantadora.
Fia assentiu com veemência. — Tenho-a, verdade?
— Antes de vir, fiz algumas investigações sobre
Ballyfionúir. Tenho lido que é o nome de um espírito. Do
fantasma branco.
— Sério? Não sabia isso — Fia franziu o cenho, movendose incômoda.
Danni esperava que sua mãe não tivesse a
necessidade de contar muitas mentiras em sua
vida, porque era realmente péssima as contando.
Brumas da Irlanda 1 Página245
— Busquei-o na Web e havia um montão de informação.
Fia deu a Danni esse olhar vazio de novo. Danni pensou
em retratar-se. A Web; maldita seja, tinha que dar mais atenção
ao que dizia. Danni se apressou antes que Fia pudesse lhe
perguntar a que se referia com isso da Web.
— Também tirei algumas coisas interessantes a respeito
de um velho livro. O Livro de Fennore acredito que se chama.
— Oh — disse Fia com outra de suas risadas trementes
e nervosas — É tudo um mito, não?
— Não é real?
— Um livro que pode mudar o mundo? — O risinho
nervoso saiu em uma rajada — Não acredito.
— Não, eu tampouco. Mas me pergunto onde terá
começado o mito.
— O que quer dizer? — Perguntou Fia, empalidecendo.
— Só que muita gente pensa que é real. Havia uma foto
dele.
— Uma foto diz?
Danni assentiu, notando a angústia no rosto
de Fia.
Brumas da Irlanda 1 Página246
— Parecia que era feito de couro; mas não acredito que
o estivesse. Muito negro, muito brilhante, muito liso. E havia
pedras nele. E adornos de prata nas bordas.
Fia se espetou com a agulha e soltou uma maldição.
— Jesus. Olhe isso, estou sangrando — disse, chupando o
dedo entre os lábios.
Nesse momento a porta do dormitório se abriu e um
homem alto, arrumado e angustiado entrou. Tinha brilhantes
olhos azuis, uma forte mandíbula quadrada e um amplo sorriso.
Vestia roupa esportiva coberta com terra e manchas de erva, e
cheirava a suor. Mesmo assim, o homem era atrativo como
nenhuma estrela de cinema que Danni tivesse visto nunca.
Com sua abrupta entrada, os olhos de Fia se abriram e
se levantou de um salto, com seu risinho ansioso escapando de
novo. O homem parecia igualmente surpreso e se deteve,
olhando do rosto culpado de Fia à cara de assombro de Danni.
Ficando reta, Danni se deu conta de que seus olhos azuis não
brilhavam tanto como ressaltavam. Ela os olhou, em um
momento tão surrealista que era incômodo. Deveria ter
sabido que esse encontro chegaria, mas Danni não
estava preparada para estar de pé cara a cara com o
homem que era seu pai.
Brumas da Irlanda 1 Página247
Capítulo 15
O silêncio pareceu estender-se e esticar-se nas bordas
do tempo e fazendo-os rodar com dificuldade, até que os três
ficaram apanhados nele. Danni sabia que esse era o mesmo
homem que tinha visto no estacionamento em frente à caixa de
Pandora, apesar de que era impossível.
— Cathán, não sabia que tinha retornado — disse Fia
finalmente.
Limpou a garganta e se sentou de novo. Seu sorriso se
desvaneceu e houve um ligeiro tremor na mão que sustentava a
agulha. Estava ali todo o tempo? Danni não estava segura.
— Acabo de chegar — disse Cathán McGrath com um
amplo sorriso que mostrou seus dentes grandes, um
pouco torcidos.
Era ainda mais atrativo em pessoa do que
tinha sido nas fotos. As fotografias não tinham
capturado as mechas banhadas pelo sol em seu
cabelo que brilhava em uma cor dourada, uma cor
Brumas da Irlanda 1 Página248
loira avermelhada ou as largas pestanas da mesma cor. Uma
olhada no Arizona tinha sido muito breve para formar uma
impressão completa.
Ele se moveu com graça, com confiança, enquanto
cruzava até chegar ao lado de Fia. Seus olhos vagaram em cima
de seus delicados rasgos como um lobo faminto. Era um olhar
que mesclava amor, luxúria e posse de tal maneira que derreteria
a maioria das mulheres. Danni se embebeu ante a visão dele
enquanto se inclinava para beijar a bochecha de sua esposa. Este
era seu pai. O homem que se pôs de pé sorridente nas fotos, que
estaria com dor em pouco mais de quarenta e oito horas pela
perda de todos os que lhe eram queridos.
—Éh — riu Fia, agitando uma mão diante de seu nariz
— Cheira como um porco.
Ele sorriu imperturbável.
— Eu sou o senhor do Hurling12 — proclamou-o com
orgulho.
Ao sentir seu olhar fixo, seus olhos se dirigiram a
Danni. Ruborizando-se, ela fechou a boca e tentou
fingir que não tinha sido surpreendida, mas
obviamente a tinha pego em fragrante. Por um
momento, só a estudou, com expressão pensativa.
Danni conteve a respiração, perguntando-se o que

12 Jogo Irlandês parecido ao hóquei
Brumas da Irlanda 1 Página249
veria nela. Uma parte dela pedia reconhecimento. A dor de estar
aqui com seus pais, mas ainda estando sozinha — como uma
desconhecida era muito profundo para suportá-lo.
— Quem é esta? — Perguntou ele.
É obvio, não a tinha reconhecido, não mais que sua
mãe. Ela não podia havê-lo visto no Arizona, sem importar quanto
esse homem e ele se pareciam um com o outro. Quanto a
qualquer reconhecimento familiar, teria que estar louca para dar
o salto de ajudante de cozinha à filha viajante no tempo.
— É Danni Ballagh — respondeu Fia — Está me
ajudando com os disfarces. Danni, este tipo pouco respeitável é
meu marido, Cathán McGrath.
— Ballagh? — Perguntou ele e estreitou os brilhantes
olhos — Um parente?
— Não minha, mas sim de Niall — disse Fia, confundindo
Danni.
— É assim? — Perguntou-lhe Cathán. — Está relacionada
com Niall, então?
— Sim. Sean, meu ma… Marido é seu primo
segundo acredito eu.
Cathán franziu o cenho.
Brumas da Irlanda 1 Página250
— Quem é seu pai?
Danni não tinha ideia e seu repentino cenho a confundia
ainda mais.
— Não interrogue à garota, Cathán — disse Fia,
salvando Danni — É uma grande ajuda. Acaba de chegar dos
Estados Unidos.
Cathán voltou o olhar triste para sua esposa.
— Não o diga como se tivesse vindo do maldito céu.
— Não o fiz — protestou ela.
Seu suspiro sustentou uma série de sentimentos:
tristeza, dor, decepção, esperança. Ele olhou para baixo um
momento, e depois levantou o rosto outra vez. O sorriso estava lá
de novo, cheio de desgosto por suas palavras.
— Não, é só que tenho inveja, suponho. O que pode
oferecer um moço irlandês pobre a uma bela moça que deseja ir
aos Estados Unidos?
A risada forçada de Fia estava começando a
parecer como unhas em uma lousa. Danni se
perguntou se seria a única que teria se dado conta.
— Por quê? Seu coração é obvio, meu
amor — murmurou Fia, olhando para baixo.
Brumas da Irlanda 1 Página251
Havia um pouco de necessidade na maneira em que
Cathán olhou para Fia, rogando que fosse verdade. Quando Sean
tinha contado a Danni a história de sua mãe desaparecendo,
havia-lhe dito que alguns tinham suspeitado da discórdia marital
entre seus pais. Era evidente que seu pai adorava a sua mãe, mas
qual era o clima estranho que captava em Fia?
— Estão quase terminando, então? — Perguntou
Cathán — Quero-te para mim um pouco antes que os meninos
estejam em casa de novo.
Envergonhada, Danni começou a dobrar o traje e se
retirou rapidamente, mas Fia a deteve.
— Sinto muito, Cathán, mas tenho que terminar isto
antes da festa. Não tenho tempo agora mesmo.
— Não? — Disse ele e houve uma nota nostálgica em sua
voz.
Danni quis arrebatar o traje de cavalo das mãos a Fia e
insistir em que se fosse com ele, lhes dar esses poucos momentos
que tão obviamente desejavam. Havia uma sombra de tristeza nos
olhos azuis de Cathán e outra coisa. Algo que Danni
não entendia.
— E olhe a hora — continuou Fia — Irei
pegar as crianças, às três e meia de todos os
modos.
Brumas da Irlanda 1 Página252
Ele deixou escapar um profundo suspiro e encolheu os
ombros.
— Isso é tudo, então. Não fica nada para mim, exceto a
ducha para afastar o aroma de porco, suponho.
— Estou temendo que vá necessitar do sabão de água
sanitária. Pode ser necessário que elimine uma camada de pele.
— E eu estaria disposto a lhe dar isso se viesse e me
lavasse as partes inalcançáveis — respondeu ele.
— Cathán — exclamou Fia assombrada, jogando um
olhar envergonhado a Danni. A risada de Cathán não continha
uma desculpa, enquanto seguia para fora do quarto.
Brumas da Irlanda 1 Página253
Capítulo 16
Pela tarde, Danni estava na cozinha esfregando o que
pareciam ser milhares panelas e frigideiras. O dia tinha passado
sem que se dessa conta. Parecia um cacho de cabelo que se
formava redemoinhos sobre si mesmo, estendendo-se nos
momentos em que uma hora passava de forma lenta como se
fosse um dia inteiro. Parecia ter passado semanas desde que
despertou nua na cama com Sean, com sua pele como cetim
quente em suas costas. A lembrança de seus beijos, o poder de
suas relações sexuais estava tão afresco em sua mente como o
frio da manhã no ar.
Abriu a torneira sobre a pia para enxaguar
profundamente a panela que acabava de lavar. O som da água
contra o aço inoxidável lhe recordou a chuva torrencial contra as
janelas.
Não haveria duchas hoje, mas enquanto
enxaguava o sabão do aço, o tamborilar oco chegou
com um aroma de frio e úmido. Movendo a panela
ainda em suas mãos, fechou a chave da água e
Brumas da Irlanda 1 Página254
olhou pela janela sobre a pia. A luz do sol se derramava
intensamente sobre o jardim e mais à frente do vale.
Não chovia, mas ainda se escutavam as gotas gotejar
pela janela e o teto. Franzindo o cenho, olhou ao seu redor. Não
era a chuva, a água não estava correndo, assim o que estava
provocando o som?
Apesar de formular a pergunta, ela o sentia… O ar.
Estava mudando, engrossando-se, pressionando para fora. Teve
só um instante para recuperar o fôlego antes que como a
baforada de vapor assobiando, se movesse.
Sem prévio aviso se encontrou fora na escuridão da noite.
Estava de pé em uma rua de paralelepípedos entre as casas
senhoriais atrás de portas ornamentais. Enormes caminhos se
curvavam para as grandes levas dianteiras. As luzes do alpendre
brilhavam como faróis na escuridão. Um céu de ferro fundido
dominava baixo e pesado. Nenhuma estrela brilhava, nem um
raio rompia as agitadas capas das nuvens.
Danni ainda sustentava a panela que tinha estado
lavando, e a olhou estupidamente, tão desconcertada por
sua presença aqui como por estar por sua conta. Não
tinha havido tempo para preparar-se; não havia
maneira de saber para o que deveria ter se
preparado.
Brumas da Irlanda 1 Página255
Uma luz se acendeu na casa diante dela. Derramando
uma luz amarela para onde estava ela.
Sem tomar uma decisão consciente, seguiu-a. A chuva
torrencial caía sobre os paralelepípedos traiçoeiros e embaçava
sua visão. Escorregou e deslizou pelo caminho de entrada,
agarrando a panela com uma mão e agitando a outra para manter
o equilíbrio. Chegou à casa e abriu passo entre os arbustos para
uma janela, onde vidros lhe deram um ponto de vista impreciso.
A habitação era grande, mas estava lotada de móveis
pesados. Parecia que cada centímetro da parede tinha uma mesa
ou um móvel empurrado para cima contra ela ou uma enorme
pintura que pendurava no vazio. Não um, a não serem dois sofás
situados em frente um do outro com uma pesada mesa de café no
meio.
Havia caros pratos com doces e figuras caras nas
superfícies, algumas ainda em caixas e bolsas de compras
pulverizadas pelo chão. Como se os ocupantes acabassem de
retornar das compras.
Só levou um momento para dar-se conta de
onde estava. Sua mãe a tinha levado ali quando lhe
tinha mostrado o Livro de Fennore na visão. Danni
se aproximou e olhou pela janela o cofre de pinheiro
apoiado contra a parede.
Brumas da Irlanda 1 Página256
Nesse momento, três mulheres entraram na habitação.
A primeira era mais velha e corpulenta, com muita maquiagem e
joalheria. Penduravam de suas orelhas, ao redor de sua garganta,
e brilhavam em cada dedo. As outras duas eram jovens e magras,
vestidas com calças jeans e suéteres.
A garota mais velha parecia ter dezenove anos,
possivelmente vinte. Usava uma maquiagem macabra com linhas
escuras cercando os olhos e lápis labial de cor rosa na boca. A
garota mais jovem poderia ter tido dezessete anos. Era tenra e
curvilínea, uma loira dourada com pele pálida. Não levava
maquiagem; não o necessitava. Havia algo tranquilo em sua
beleza, uma serenidade que parecia brilhar de dentro.
Ela levantou os olhos e Danni tragou com dificuldade.
Era Fia. Sua mãe; sua mãe aos dezessete anos…
Os muitos abajures da sala davam ao rosto da anciã
uma iluminação brilhante, lhe proporcionando a sua frente
proeminente e a seus olhos afundados um aspecto sinistro
enquanto percorria a habitação, assinalando as coisas que via
com um anseio possessivo. As garotas a olhavam com receio.
Sentiam-se incômodas. Danni podia senti-lo. A
tranquilidade absoluta na habitação era antinatural e
só servia para magnificar a inquietante atmosfera.
Danni estava dentro agora, apesar de que
não tinha nenhuma lembrança de mover-se, de
ter atravessado a soleira para entrar na
Brumas da Irlanda 1 Página257
habitação. Simplesmente se encontrava no canto, gotejando no
chão atrás do grupo de mulheres.
— É a hora — disse a anciã a ninguém em particular.
— Mamãe, não — disse Fia — Esta noite não.
A mãe de Fia não fez conta. Aproximou-se do cofre,
abriu-o com uma chave que levava ao redor do pescoço e tirou
algo. Danni abraçou a si mesma, sabendo o que era inclusive
antes de ver o tecido envolto.
O Livro de Fennore.
Danni esperou a vibração, a enfermidade que se jogaria do
mal uma vez que o tecido fosse tirado. A mãe de Fia não hesitou
em pegar a terrível coisa. Deixou-o nu e o contemplou com um
frio sorriso. O negro de sua capa pareceu brilhar uma vez que
absorvia qualquer luz que o tocasse. Mas não se moveu não se
abriu como o tinha feito antes na visão de Danni.
— Edel — disse a mãe, estalando os dedos para garota
maior.
— Sim, mamãe.
A relutância com a que a garota se
aproximou fez com que o nó no estômago de Danni
se esticasse. Edel arrastou os pés ao lado de sua
mãe e se virou. Danni olhou seu rosto, notando a
cor marrom chocolate escuro de seu cabelo. Seus
Brumas da Irlanda 1 Página258
olhos eram da mesma cor deliciosa. Brilhavam intensamente a
tênue luz.
Contra sua vontade, seus pés se arrastaram mais perto.
Havia algo estranho em seus olhos, algo… Edel a olhou então,
como se tivesse visto Danni mover-se. Durante um longo
momento, seus olhares se encontraram.
Danni tentou retroceder, mas não podia mover-se agora.
Nem um centímetro. Nem um só músculo. Só podia continuar
olhando para tão frio, tão insondável que parecia afundar-se na
eternidade. Inspirou uma profunda baforada de ar e o deixou
escapar. Sua respiração se tornou névoa geada ante ela.
Esses olhos, não eram humanos.
— Venha agora — Insistiu a mãe.
— Não trocarei de opinião, não importa o tempo que
percamos.
Os inquietantes olhos gélidos se moveram e Danni
desabou com alívio.
— Não funcionará maldita seja — grunhiu
Edel a sua mãe.
— Não com essa atitude áspera.
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Edel abriu os dentes e os juntou com um golpe seco.
Sua mãe saltou um passo atrás.
— Tem medo mamãe? Medo do que me converti? Deve o
ter. Fia tem, verdade, irmã?
— Dá vontade de te jogar na rua e deixar que mendigue
— disse a mãe bruscamente.
— Maldito Cristo e quem fará sua vontade, então? Fia?
Olha-a, está assustada.
Ambas se voltaram para olhar Fia, ela seguia quieta
como uma pedra enquanto estava sentada na borda do seu
assento. Parecia pequena e perdida, com seus grandes olhos
tragando seu rosto. Sacudiu a cabeça, movendo os lábios em
silêncio. Seu corpo completo tremia.
Edel fez um som de desgosto.
— Irá porque eu digo que irá — Advertiu a mãe, erguendose quão alta era.
— Irei porque tenho vontade de sair deste chiqueiro
fedorento. Não voltarei com os lucros, mamãe. Não
voltarei absolutamente.
O olhar de horror no rosto da mãe fez com
que Danni desejasse dar a volta e correr. Agarrou a
panela que tinha sobre o peito, como escudo.
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Edel deu um passo para frente deliberadamente,
olhando sua mãe nos olhos como tinha feito com o Danni.
Fascinando-a com a intenção letal em suas profundidades. Pouco
a pouco Edel levantou a mão, estendendo-a por cima da negra
capa do Livro. Um sorriso apareceu em seus lábios, uma careta
horrível de terrível prazer.
— Tenho vontade de ir a algum lugar novo, verdade?
Algum lugar onde nunca chova, onde haja sol todo o maldito
tempo.
Califórnia… Fia havia dito que tinha uma irmã que vivia
em Califórnia…
— Não há semelhante lugar — espetou a mãe — Agora
faz o que digo e não retorne sem o dinheiro. Com tudo desta vez.
Se fizer isso não terá que ir outra vez.
O olhar no rosto de Edel fez Fia tragar e Danni tropeçar
de novo. Fechou os olhos com força, desejando não ver o que
acontecia depois. Não querendo saber por que os olhos de Edel
eram os de um monstro. Danni sentiu o zumbido antes de ouvir.
Baixo e terrível se levantou como uma explosão sônica,
sacudindo os cristais das janelas, sacudindo-a até os
ossos.
— Não — sussurrou Danni, com seus
olhos abrindo-se de repente de novo, tendo que
olhar sem importar quanto o temesse.
Brumas da Irlanda 1 Página261
A mão de Edel se abateu sobre a capa e o Livro começou
a sacudir-se contra a mesa. Gerando estrondos e tremendo, como
se preparasse para saltar para reunir-se com sua carne.
— Não — gritou Danni desta vez.
O som de sua voz pareceu ressonar a seu redor. A
cabeça de Edel se voltou e seu olhar percorreu a habitação.
Tinha-a ouvido.
— Não — disse Danni outra vez, embora agora não
estivesse segura se tratava de uma petição ou de uma negação.
O rosto de Edel se esticou franzindo o cenho enquanto
olhava de canto a canto.
— Há alguém aqui — disse.
A mãe se virou e se moveu pela habitação.
— Vá ver na cozinha — ordenou a Fia.
Fia se apressou a fazer o que lhe haviam dito. Um
momento mais tarde estava de volta.
— Não há ninguém. Olhei o piso de acima
também.
Edel seguiu revoando seu olhar pela
habitação. Danni sentiu que passava por ela e
seguia adiante sem pausa. Então, de repente,
Brumas da Irlanda 1 Página262
Edel se deteve e olhou a janela. Como marionetes, Danni, a mãe,
e Fia todas se voltaram e olharam também.
Havia um homem de pé do outro lado. A chuva, a
escuridão, o assombro, tudo mascarava seu rosto, por isso este
parecia um simples círculo pálido com manchas escuras por suas
feições. Ele deu um passo atrás, desaparecendo antes que
pudessem concentrar-se. A mãe correu à janela então à porta
onde ela estava, abriu-a de repente e saiu ao alpendre.
Enfurecida, soltou sucessivamente uma série de maldições
vulgares e violentas.
— Foi-se — disse quando retornou.
Mas, quem era?
— Quem era? — Fia ecoou o pensamento de Danni com
voz trêmula.
— O maldito diabo — disse Edel —Vem pelo resto da
minha alma.
Os olhos de Fia ficaram maiores ainda e emitiu um som de
medo.
— Olhe e aprende irmã pequena. Sua alma
será a seguinte.
O zumbido tinha parado, mas agora voltou
a estalar como a estrofe de uma abertura. Cresceu
em tamanho e volume, convertendo-se em uma
Brumas da Irlanda 1 Página263
harmonia de zumbidos que destroçou a vontade de Danni,
agitando seus pensamentos e atormentando seus sentidos.
Agarrou a panela com tanta força que os dedos doeram. A
necessidade de correr, de esconder-se, em escapar voltou
entristecedora, mas ainda assim ficou de pé. Ainda assim, olhou.
Edel se voltou para o Livro. Fechando os olhos como se
rezasse, baixou a mão à lavrada capa negra. Por um momento
não aconteceu nada e logo o couro começou a borbulhar como
azeite e seus dedos começaram a afundar-se nele. Danni estava
tremendo tanto que seus dentes começaram a tocar castanholas.
Mas a mão de Edel desapareceu até o pulso no negrume
do Livro. Pouco a pouco ela abriu os olhos outra vez e as íris de
profunda cor chocolate se tornaram sombras da meia-noite igual
à capa de couro. Brilhavam e centelhavam como obsidiana polida.
Edel jogou para trás a cabeça e gritou, como uma banshee. Como
o vento do inferno.
Danni soltou a panela, sabia que ressonaria no chão
enquanto levava as mãos aos ouvidos e fechava seus olhos com
força, tentando bloquear o horrível som, a espantosa visão da
mão de Edel inundada na sujeira do Livro. Mas seus
gritos impregnavam o ar, as paredes, o momento.
Um grito interminável que ouviria pelo resto da sua
vida.
E então, de repente, fez-se o silêncio.
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Com medo de olhar, com medo de não o fazer, Danni
abriu os olhos. Edel tinha ido. O Livro uma vez mais era um mero
objeto, imóvel sobre a mesa.
Fia e sua mãe se mexeram em seus lugares. Nenhuma
falou. Tampouco procuraram à garota desaparecida. Só
esperaram. Esperaram, como um relógio dourado sobre manto
marcava os segundos.
— Retornará? — Perguntou Fia.
A mãe não respondeu. Só ficou onde estava observando
o ponteiro do relógio se mover pelos grandes números negros do
relógio.
Passou um minuto. Logo outro e outro. As trementes
mãos de Fia foram a sua boca e a cobriu. Dez minutos e ainda a
mãe não se moveu. Vinte e trinta.
— Não vai voltar verdade? — Sussurrou Fia.
Movendo-se como um robô, a mãe foi ao Livro,
cobrindo-o com o tecido. Cuidadosamente, Danni se precaveu e
não o tocou. Logo o levou a baú, guardou-o e fechou a
tampa.
Quando se voltou para Fia uma vez mais,
seu rosto era duro e rígido. Olhou à filha que ficava
durante um longo e inquietante momento.
Brumas da Irlanda 1 Página265
— Mamãe? — Disse Fia e Danni sentiu medo enquanto
os dedos frios e ossudos agarravam sua garganta.
— Amanhã irá trazer a pequena cadela de volta — disse a
mãe.
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Capítulo 17
O navio de Niall, o Guillermot, esperou-os no cais como
tinha feitos em outras manhãs, na vida de Sean. O navio era tão
parte de sua infância como sua família. Seu lar.
Era uma pequena embarcação, aparelhado com paus e
linhas múltiplos de pesca de arrasto. Desgastado pelo tempo, mas
em condições de navegar ainda assim, não parecia grande coisa, e
para o pescador médio, provavelmente era. Mas o pai de Sean
nunca tinha sido um pescador médio. Se a pesca pudesse ser
considerada uma arte, seu pai teria sido um venerado professor.
No momento em que subiu a bordo,
Niall soube exatamente para onde dirigir a quilha do
navio, tinha um maldito farol na cabeça que raramente deixava
de afinar suas capturas, o que não era uma tarefa
fácil nas águas ao redor da Ilha de Fennore.
Durante séculos, a corrente imprevisível, a
ressaca traiçoeira e as águas revoltas que eram
normais haviam comido os marinheiros incautos e
tinham cuspido os restos. Muito tempo depois que
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a ilha da Irlanda tinha sido descoberta, a ilha de Fennore tinha
permanecido intacta para o homem.
Nem sequer os vikings tinham podido chegar a suas
costas. A lenda dizia que os marinheiros que finalmente tinham
feito tinham um sexto sentido sem o qual eles, também, teriam
morrido no intento. Sean acreditava e entendia que seu pai
possuía inclusive um sétimo sentido quando se referia ao mar
perigoso. Antes que a mãe de Sean e seu irmão tivessem morrido,
antes do desaparecimento de Fia MacGrath e de seus filhos, que
tinha acontecido cinco anos mais tarde, Niall já era um homem
admirado em Ballyfionúir. Uma espécie de celebridade entre os
pescadores. A mãe de Sean tinha achado ridículo.
— Famoso por emprestar do mar — Tinha grunhido
sempre que alguém lhe queria fazer algum comentário sobre isso.
O tempo e a distância pareciam ter afiado as
lembranças de Sean sobre seu pai, mas sim também tinham
maturado. Estar com Niall de novo era como encontrar-se com
um parente distante. Ele estava familiarizado e, entretanto, era
um forasteiro. Durante todos os anos do suicídio de Niall, Sean
tinha se convencido de que odiava seu pai. Mas agora,
estando de pé ao lado de Niall, Sean não podia fingir
que isso ainda era verdade. Podia ver através dos
olhos de Niall, não com olhos corrompidos pelo
julgamento em preto e branco da juventude, e o
que encontrou era que seu pai era só um homem.
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Um homem que tentava fazer todo o possível para criar um filho
que nunca perdoaria seus enganos.
No momento em que Niall tinha entrado pela porta da
cozinha, o nó de sentimentos dentro de Sean tinha começado a
desmoronar-se, convertendo-se em um desejo. Em uma sensação
dolorosa de perda.
Durante vinte anos Sean tinha acreditado que nunca
veria seu pai outra vez… Como poderia? O homem estava morto.
Mas aqui estava Niall, movendo-se a bordo do
Guillermot, como o tinha feito em quase todas as lembranças que
Sean tinha dele. Era impossível para Sean não ver isto como uma
segunda possibilidade. Uma possibilidade de conciliar todos seus
sentimentos amargos pela alegria que sentia agora quando olhava
esse povo gigantesco e aprazível com a terra sob seus pés e as
águas do oceano rompendo.
Toda a raiva e ódio que Sean tinha encerrado dentro de
si mesmo durante tantos anos, toda a raiva que tinha dirigido à
memória de seu pai… Já era o momento de reconsiderá-los.
Comparar ao homem com as lembranças. Sean culpava seu
pai pela morte de sua mãe e de seu irmão pequeno,
apesar de que a Garda Siochana havia dito que
tinham sido acidentais e tinham eximido Niall de
qualquer responsabilidade. Sean tinha visto o que
ocorreu, entretanto. Estava na periferia da
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violência e tinha visto seu pior pesadelo convertendo-se em uma
terrível realidade.
Sua mãe estava bêbada na tarde em que morreu, mas
não era nada novo. Pelo geral Sean e seu irmão vinham para casa
depois da escola para encontrá-la deprimida ao lado de um
cinzeiro que estava transbordado e de uma garrafa vazia da
Connemara. Mas essa tarde ela estava acordada e chorando,
destrambelhada atacando o pai de Sean, falando como uma louca
como tão frequentemente fazia. Niall tentou acalmá-la, mas ela
não aceitou.
Ela tinha se aproximado de Niall com uma faca de
açougueiro na mão, para feri-lo se não o matasse. Mas o irmão
pequeno de Sean tinha tentado detê-la e a faca o encontrou
primeiro.
O que aconteceu depois foi impreciso e dolorosamente
revolto para Sean. E ainda partes disso se repetiam com uma
lentidão insuportável… O brilho da luz na folha da faca… os
chiados mordazes de fúria de sua mãe… o aroma nauseabundo e
doce do sangue quando se estendeu através do piso da cozinha…
Tinha sido um acidente, nascido da
legítima defesa, era o que a Garda tinha
determinado. Mas tudo foi dito e feito, a mãe de
Sean e seu irmão pequeno estavam mortos no chão
da cozinha e as mãos de seu pai estavam
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manchadas de sangue.
Durante os anos posteriores à violência desse dia, Sean
tinha visto esses momentos infernais em sua cabeça, girando-os e
volteando-os para que o resultado fosse diferente. Em lugar de
estar de pé congelado de medo, acovardado, na imaginação de
Sean heroicamente se empurrava no meio do conflito, onde ele
salvava tanto a sua mãe como a seu irmão. Às vezes era seu pai
quem morria em troca. Frequentemente era Sean. Ele tinha
estado cheio de ódio por si mesmo por não os haver protegido, por
ter sido muito covarde, por ter estado muito aturdido para fazer
outra coisa que contemplar com horror como morriam. Sua culpa
e pena se deformaram e se tornaram toda dor dentro dele,
deixando-o para se autodestruir lentamente, sonhando com a
morte como uma absolvição. E Sean se asseguraria de que Niall
sentisse cada momento amargo de sua angústia.
E logo, cinco anos mais tarde, Niall tinha tirado sua
própria vida na caverna debaixo das ruínas, onde a mãe de Danni
tinha desaparecido com seus filhos. Tinha elegido a morte, antes
que enfrentar às autoridades sobre os assassinatos que Danni
tinha demonstrado que não tinha cometido. Seria porque Sean
lhe tinha drenado a vontade de viver com seu
desprezo, com suas acusações e com seu ódio? Niall
simplesmente tinha sucumbido à tentação de
acabar com tudo em lugar de enfrentar seu único
filho vivo e olhar seus implacáveis olhos?
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Sean esperava que não fosse assim, mas temia que sim.
Ainda recordava a manhã depois que Fia e os meninos
desapareceram, quando as autoridades tinham vindo ver sua avó.
Ele tinha despertado pelas vozes na parte de baixo e entrado na
cozinha quando eles tinham falado sobre o descobrimento de
Niall morto na caverna.
Sean nunca esqueceria a crua agonia dos soluços de
Nana, nem a forma em que o inspetor olhou diretamente para ele,
quando lhe explicou o que tinha feito Niall.
Tinha sido nesse dia que tinha deixado de responder por
Michael e tinha se convertido em Sean. Não tinha pensado nisso
muito profundamente após, mas agora via isso como um
desprendimento simbólico do seu antigo eu e um intento de
deixar para trás atormentado acontecimento e converter-se em
uma pessoa diferente, em um homem novo a partir desse ponto.
Não tinha feito algo mais que trocar sua identidade, entretanto. O
moço prejudicado tinha seguido crescendo dentro dele.
Sean sentiu que estava rasgado em dois agora, igual a
Michael — ele mesmo saltando a bordo com a graça fluída da
prática. Michael começava a atirar dos cabos e se
dispunha a soltar as amarras, mas Sean podia sentir
as emoções ardentes e amargas no interior do moço.
As olhadas ásperas de Michael a seu pai
acrescentavam um bocado à manhã e a aceitação
muda de Niall do ressentimento de seu filho
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danificava o spray fresco e salgado do mar. Sean podia ver a dor
nos olhos do seu pai, o desespero desconcertado que estava à
espreita atrás dele quando o Guillermot ficou em marcha.
— Esteve alguma vez em um troller13 antes, primo? —
Perguntou-lhe Niall, quando se separou do cais.
— Uma ou duas vezes.
— Sério? Esperava que não fosse um menino de cidade.
Mamãe não podia dizer muito sobre você além de que viria.
Sean tinha se perguntado que Nana haveria dito a Niall
sobre eles. Pelo visto, tão pouco como tinha sido possível.
— Trabalhei em um navio que zarpou de Cobh —
Mentiu Sean.
— De Cobh? Muito bem. Então não terei que te levar
pela mão. Tenho um bom pressentimento para nós hoje.
Riscaremos um laço para o norte e os agarraremos despreparados
— O sorriso de Niall não alcançou seus olhos, mas ainda assim,
transformou seu rosto e lhe fez parecer mais jovem. Sean sentiu
um nó de emoção em seu peito pelo que viu. Houve um
tempo quando o sorriso de Niall foi o sol pelo qual
Sean e seu irmão se moviam. Não tinha se dado
conta de quando a perda disso tinha nublado seu
mundo.

13 Pescar por detrás de uma linha de ceva desde detrás de um navio que se move lentamente
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— Tentaste nas baías ocidentais à tarde? — Perguntou
casualmente Sean, olhando ao longe.
— Não, que eu recorde. Outros pescaram um ano atrás
mais ou menos. Adverti-lhes sobre isso, mas os parvos não me
escutaram. Encontram sítios onde há abundância e pescam até
que esgotam todo o pescado que há ali. Não têm imaginação para
procurar em outras partes e dar às pobres bestas com escamas
uma possibilidade de reproduzir-se. Por que pergunta?
— Só por curiosidade — Disse Sean.
— Não há sentimentos, não é?
Sean fez uma pausa, recordando as numerosas vezes
em que seu pai lhe tinha perguntado o mesmo. Niall sentia o
pescado, seguia seus instintos onde lhe levavam. Quando foi mais
jovem, Sean tinha desenvolvido um sentido para isso também.
Poderia sentir quando se moviam sob as ondas entrecortadas,
uma força brilhante que lhe chamava. Mas depois de perder tanto
a sua mãe como a seu irmão pequeno, tinha deixado de escutar
essa sensação e nunca a tinha compartilhado com seu pai de
novo.
— Poderia ser uma sensação. — Respondeu
Sean agora — Pode ser que voltaram para as baías.
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Niall entreabriu os olhos. — Em efeito pode ser isso.
Pode ser que devemos comprovar isso.
Outro sorriso intermitente e Niall ajustou sua direção e
seguiu a curva da ilha para o Oeste.
Sorrindo, Sean se afastou, só para parar quando
apanhou Michael olhando-o com um brilho ardiloso e inquietante
nos olhos. Ele se deu conta de que seu eu mais jovem havia
sentido a chamada do grupo de pescado em aumento e o banco
da baía também.
Silenciosamente Sean começou a preparar as linhas e a
ceva dos anzóis. Havia um truque que Sean tinha aperfeiçoado
anos atrás. O salmão tinha três sentidos: vista, olfato e o que era
conhecido como resposta em linha lateral. Para que o salmão
visse a ceva tinha que estar do lado correto, porque sua visão era
pobre e as águas frequentemente escuras. Eles tinham um
sentido do olfato agudo e podiam pegar a lufada da ceva, mas de
novo, se estavam a doze metros de profundidade e o salmão a
quinze, tinham que estar atrás dele para que apanhasse o aroma.
O sentido mais importante vinha de projeções
similares a diminutos cabelos nas costas e lados do
salmão. A ponta de cada um deles podia captar as
vibrações na água e isso era com o que a ceva
jogava. Se a ceva só pendurava do anzol, não servia
de nada. Tinha que ser talhado de uma maneira
especial e montado de uma maneira que se
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movesse e girasse, rodasse e se meneasse, enganando os salmões,
pensando que era um pescado ferido em espera de ser servido
para o jantar. Isso os atraía como um ímã.
Michael o olhou trabalhar durante um momento antes
de aproximar-se.
— Onde aprendeu isto? — Exigiu.
Sean elevou a vista e encolheu os ombros. Não podia
recordar quem tinha lhe ensinado. Tinha assumido que tinha
sido Niall, mas pela expressão de Michael, acreditava que não
poderia ser assim. Michael tirou um pouco de ceva da geladeira e
tentou imitar o que Sean tinha enganchado.
— Quase — Disse-lhe Sean, lhe mostrando como
retorcê-lo no final. — Retorce-se como um peixinho ferido, assim.
Niall reduziu o motor e baixou a velocidade de arrasto
quando alcançaram as baías. Sean e Michael jogaram as linhas
uma por uma. Ele viu seu pai olhando sobre seu ombro enquanto
o faziam, com um cenho franzido de curiosidade em seu rosto.
— Passa algo? — Perguntou Sean.
— Nada importante — respondeu Niall —
Não parece que esteve fazendo isto toda sua fodida
vida?
Brumas da Irlanda 1 Página276
Sean se salvou de responder devido a sua intuição ter
sido correta e os salmões estavam por toda parte.
A jornada passou em uma nebulosa de peixes chapeados
lisos e linhas cevadas que se estendiam para fora do casco. Era
um trabalho calmo, mas o suficientemente exigente para manter
seus pensamentos ocupados, para evitar falar extensamente de
quem infernos era ele e como poderia ter acontecido. Quando
Niall virou o Guillermot para casa, Sean estava esgotado, seu
rosto estava queimado e seu corpo dolorido. Utilizou os músculos
que se esqueceu de que tinha e lhe doía em lugares que esperava
não voltar a recordar. Mas sua cabeça estava clara, mais clara do
que podia se recordar.
— Devo admitir que esperava que fosse mais uma
moléstia que uma ajuda, mas é como se tivesse nascido para isso
— Disse-lhe Niall quando compartilhou um recipiente térmico de
chá que Colleen tinha preparado. Michael se sentou em um
montão de redes, pensando. Sua antipatia latente era como um
aroma rançoso que emprestava no ar.
Niall continuou, satisfeito com o peso em seu porão e o
arrastar atual da embarcação.
— Seguro, raramente é o que eu capturo a
cada dia. Mas só posso fazer o que Deus me tem
feito capaz de fazer. — Niall soltou uma gargalhada
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— Uma coisa boa para que um fodido pescador saiba né?
— Isso — respondeu Sean. Mas parecia que seu eu mais
jovem, queria lhe sacudir, querendo lhe dizer que não gastasse
esses momentos preciosos com seu pai, porque seriam os
últimos. Se Danni estava certa, só uns dias separavam esta
manhã de quando os Gardas entrariam na cozinha. Ele terminou
sua taça de chá e deixou Niall no leme para vagar e sentar-se ao
lado do Michael.
— Foi um bom dia — disse Sean — É um bom pescador.
O moço lhe lançou um olhar ressentido.
— Odeio pescar. Odeio o mar.
Sean olhou fixamente as águas verdes brilhantes e só
pôde pensar em como amava isso. Agora. Com a perspectiva de
anos e experiências lhe mostrando como a vida podia ser de
formosa e singela no mar. Mas também recordou a raiva forte que
tinha sustentado em seu peito quando era jovem, o sentimento de
que as águas que rodeavam a ilha de Fennore eram uma prisão.
— Seu pai tem o barco em bom estado e
organizado. — Sean tentou de novo, sabendo que era
inútil, mas de algum jeito obrigado a tentar pelo
menos a tentar trocar as marés que atirariam essa
vida pela amurada.
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— É uma fodida ruína — disse Michael — Isto um dia
terminará no fundo do oceano e estarei de pé na borda
aplaudindo muito.
Sean levantou suas sobrancelhas.
— O que fará então, se não pescar?
— O que seja. Não sou um pentelho como meu pai.
Posso fazer mais que pôr uma ceva em um anzol e arpoar um
pescado.
— Como o quê? — Pressionou Sean, com verdadeira
curiosidade. Não tinha nenhuma lembrança de ter sonhado
nunca ser…. algo. Franziu o cenho a isso, perguntando-se por
que, perguntando-se como é que nunca se deu conta disso antes.
— Por que te importaria uma merda o que tenho que
fazer? — Ele encolheu os ombros.
— Não me dei conta de que era um segredo.
Michael lançou um olhar suspicaz, mas respondeu.
— Poderia construir coisas. Sou bom com
minhas mãos.
– É? Que tipo de coisas construiria?
– Talvez um castelo — disse Michael,
olhando para baixo.
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— Um castelo? Será o rei dele?
Os olhos do moço se estreitaram.
— Quero dizer que poderia deixá-los como estavam.
— Fala de restaurá-los? De reconstruí-los?
— Um dia quero fazer isso. As ruínas.
Sean girou e olhou o quebra-mar que sobressaía a
distância como uma ilusão… Como uma lembrança sombria. As
ruínas derrubadas sombrias encarapitadas no alto do montículo e
à luz.
— Mamãe — Michael comentou, detendo-se, respirou
fundo — Mamãe costumava falar de como eram… Antes.
Sean ficou de frente para o moço de novo, instável tanto
por seu tom como pelas palavras que disse.
— Antes?
Michael assentiu e durante um momento, Sean se
encontrou olhando fixamente seus próprios olhos, caindo no poço
de suas próprias esperanças e sonhos, recordando e
recordando… Sua mãe tinha falado do castelo,
pintando-o com seu tom de voz cativante. Quando
era jovem, suas palavras lhe tinham guiado pela
casa da guarda, ao pátio, ao grande salão e acima
das amenas. Ela tinha conhecido tantos detalhes,
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das velas de manteiga de porco, às tapeçarias empapadas de
fumaça, e os canos gordurentos trespassados nas fogueiras.
Tinha-lhes falado como se ela tivesse estado lá, passando pela
ponte levadiça, despertando os sons e às vistas da vida no
castelo.
— Onde está sua mãe? — Perguntou Sean casualmente,
sabendo que era um parvo por ir lá. Fazer a pergunta era como
cortar a crosta de uma ferida aberta. Mas precisava ouvir o que
Michael ia dizer. Tinha que recordar por que tinha estado tão
convencido que os Gardas estavam equivocados e que seu pai
poderia ter evitado sua morte se realmente o tivesse querido.
— Morta — disse Michael, lançando um olhar para Niall.
— Sinto muito.
— Não o faça. Ele não o faz, a menos que deitar-se com
Fia MacGrath seja a maneira de chorá-la.
Sean tentou não reagir, mas não pôde evitá-lo. Olhando
fixamente seu próprio rosto, sentiu a quebra de onda da súbita
raiva do moço e com ela vieram outras lembranças. Sua mãe
tinha odiado Fia MacGrath desde o primeiro dia em
que Cathán havia a trazido para sua casa. Estava
convencida que Niall estava apaixonado por ela,
embora ele o negasse.
Sean não podia recordar nenhuma vez
ter visto seu pai na presença de Fia, não sabia por
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que estava tão segura sua mãe de que havia algo entre eles. Mas
aqui estava Michael dizendo que era verdade.
— Quanto tempo faz que sua mãe morreu? —
Perguntou ele, embora já soubesse a resposta.
— Cinco anos.
— Quer ainda que seu pai siga chorando por ela? Não
quer que viva sua vida?
— Por que deveria ter uma vida para viver? Ele matou a
minha mãe e a meu irmão, a ambos.
Sean o olhou de esguelha.
— Como é que então não está preso?
— Os sangrentos Gardas chamaram de acidente.
— Mas você acredita em outra coisa?
— Eu o vi, foda. Eu…
Mas tudo o que ele fosse dizer foi cortado quando Niall
gritou para que voltassem para a vida. A borda estava
diante e Niall estava reduzindo os motores. Logo o
Guillermot foi para o cais. Sean e Michael se
moveram para assegurar o navio enquanto Niall
limpava a adega e levava sua captura ao mercado.
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A tarefa de Michael era esfregar o barco e deixar tudo
preparado para o dia seguinte e se fixou nisso com determinação,
com eficácia fechando a porta para uma conversação. Sean
entendeu. Era muito doloroso. Tinha sido um parvo por forçá-lo.
Quando Niall voltou, tinham terminado com suas
tarefas.
— Isso, então — exclamou Niall quando subiu a bordo —
confere as linhas uma vez mais e iremos.
Em uníssono, tanto Sean como Michael se moveram
para obedecer. Quando comprovaram que tudo estava bem,
fizeram um gesto para Niall com o polegar para cima. Este os
olhou fixamente, de um para o outro, com seus olhos movendo-se
entre ambos de novo e então se alargaram com um algo muito
próximo ao medo.
— Jesus Cristo — murmurou e se voltou bruscamente.
— Que merda de problema tem? — Murmurou Michael.
Sean só pôde mover a cabeça e também perguntar-se isso.
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Capítulo 18
— Deixaram-te, Danni? — Perguntou uma voz
masculina, tirando-a da sua visão e devolvendo-a de novo à
cozinha MacGrath. Ela deu um grito de surpresa, soltando a
panela de aço inoxidável de suas escorregadias mãos.
A pia. A água suja ainda estava quente, as borbulhas de
sabão ainda eram suaves e esponjosas. A panela caiu na pia,
salpicando água por seus lados.
Desorientada, girou para encontrar Cathán MacGrath
de pé na entrada, olhando-a com expressão humorística. Mas em
sua mente, ainda podia escutar o eco dos gritos de Edel, ainda via
seus olhos enegrecidos e o medo na cara de Fia.
— Sinto muito, não tinha a intenção de me
mover sigilosamente — disse Cathán, inclinando a
cabeça com curiosidade.
— Acredito que estava sonhando
acordada. — Conseguiu dizer Danni, mas sua
boca estava seca, sua garganta apertada. Secou a
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água que tinha no mostrador e logo suas mãos com um pano —
Não sou tão nervosa no geral.
— Oh, bom, novo lugar e tudo isso. Precisa se sentar?
Está um pouco pálida.
— Não, estou bem. Obrigada, entretanto.
Cathán sorriu de novo, passando a apoiar-se no
mostrador ao lado dela. Seus olhos brilhavam e tinha aberta
amizade em seu formoso rosto, mas também havia um pouco de
sombras, como se estivesse apresentando uma fachada. Ela
pensou em sua mãe e no anel oco que havia na história feliz que
tinha contado na sua reunião.
— Posso lhe ajudar em algo? — Perguntou ela.
Ele negou com a cabeça, ainda a olhando. — Onde estão
os outros?
— Bronagh foi ao mercado. Acredito que Brenda e
Maureen estão polindo a prata no salão.
Seu sorriso tomou uma forma diabólica e durante um
momento pensou que devia ter confundido aquela
desolação que tinha visto à espreita em seus olhos.
Ele se endireitou e cruzou para a geladeira.
— Sou um merda afortunado — disse,
colocando a cabeça dentro e revirando — Perdi o
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almoço, mas prefiro passar fome a morrer combatendo com
Bronagh por um bocado.
Danni ficou olhando suas costas encurvada,
surpreendida. Seu pai tinha medo da cozinheira? Nunca o teria
acreditado.
— Acredito que vi umas chuletas de cordeiro na parte de
atrás — disse ela.
— Sim! — Com um sorriso triunfante ele tirou o contêiner
— É um anjo, Danni.
— Não as cozinhei. — Começou ela torpemente, mas ele
sorriu e negou enquanto pegava um bocado.
— Não importa. Levou-me a elas. Embora por favor,
grite uma advertência se vir Hitler chegando.
Ela assentiu, olhando fixamente seu pai, querendo
beber suas características. Este era seu pai, um homem que
tinha tido muita vontade de encontrar por toda sua vida. E agora
estava aqui, começando uma conversa casual com ela.
De algum jeito o cenário era quase tão difícil de
acreditar como ter viajado através do tempo.
Ela se obrigou a voltar a lavar os pratos
enquanto ele comia. Sentia-se enredada. Estava
cansada, suja, e provavelmente tão perfeita como
estava seu pai depois de sua partida de Hurling,
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ou o que fosse. Seu rabo de cavalo pendurava frouxo e murcho
por suas costas e sua pele sentia-se coberta de farinha e azeite,
suor e aromas de cozinha. Queria tomar uma ducha. Uma longa.
— Parece-me tão familiar, Danni — disse ele, fazendo
com que ela o olhasse por cima do ombro. — Há alguma
possibilidade de que tenhamos nos encontrado antes?
Um risinho lhe escapou, lhe recordando a sua mãe no
hábito de rir dissimuladamente quando estava nervosa.
— Duvido-o, mas ouvi que pareço familiar mais de uma
vez hoje — disse, sorrindo embora seu coração saltasse em seu
peito — O consenso geral é que tenho que ter antepassados por
aqui.
— Essa seria uma grande coincidência, não é assim? —
Com o cenho franzido continuou — Encontrar um marido nos
Estados Unidos que é do mesmo lugar de onde sua gente procede.
Sim incrível, pensou ela. Mas disse:
— Nem tanto. Todo mundo afirma ter algum irlandês
entre eles.
— Realmente tem seu ponto nisso. — Ele
tinha despachado à primeira chuleta de cordeiro e
começava a segunda — Parece que tem fez amizade
com minha mulher em um curto período de
tempo.
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Seu tom era ainda ocasional, apenas curioso.
Entretanto, seus nervos se estiraram muito nas últimas vinte e
quatro horas. Sentiu-se na defensiva quando disse:
— Ela é muito agradável.
— É sim. Muito agradável, temo. Que as pessoas se
aproveitem dela.
Danni levantou os olhos para ver se tinha querido lhe
dar uma advertência de algum tipo. Acreditava que ia aproveitarse dela? Mas ele seguia centrado na comida e nem sequer a
olhava. Dizendo-se que estava ficando paranoica, Danni começou
a secar a louça da cozinha e a guardá-las em seu lugar.
— Estava me perguntando se tinham se conhecido
antes que viesse para cá — Continuou Cathán — Ela geralmente
muito mais reservada com as pessoas à primeira vez que as
conhece.
— Ah — disse Danni, de repente se perguntando se sua
mãe havia sentido um parentesco com ela a algum nível
subconsciente. Sentia-se agradada por essa ideia, sem importar
quão descabelada fosse — Não, nunca nos vimos
antes.
— É obvio que não… — Ele fez uma
pausa, parecendo considerar suas seguintes
palavras com cuidado, o olhar escuro estava de
volta em seus olhos e Danni se preocupou com a
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tensão em sua têmpora e na linha de sua boca. — Vai soar como
algo estranho que te pergunte isto, dadas às circunstâncias,
mas…. Ela parece… bem, para você?
— Desculpe?
Ele encolheu os ombros e uma cor vermelha subiu a sua
pele clara.
— Não tenho por costume interrogar os criados sobre o
bem-estar da minha esposa, juro-o. É simplesmente, que ela, —
Amaldiçoou em voz baixa — Ri e sorri contigo. Passou uma
eternidade desde que a vi rir e….. Está tão miserável e não sei por
que. Estou esgotando minhas ideias sobre o que fazer a respeito.
Danni o observou, movida pela angústia que viu em
seus olhos. Devia sentir-se desesperado por estar perguntando a
ela, uma ajudante de cozinha que acabou de conhecer.
— Ela me pareceu que estava bem, senhor MacGrath —
murmurou Danni — Mais que bem.
— Feliz? — Perguntou esperançoso.
A vacilação de Danni respondeu por ela. Ele
exalou e limpou as mãos em uma toalha de papel
que rompeu de um cilindro. Acabando, elevou a
vista, e a dor que ela tinha visto estava uma vez
mais escondido atrás de sua máscara tranquila.
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— Quanto tempo está casada com Ballagh? —
Perguntou ele de repente, pegando-a com a guarda baixa uma vez
mais. — Não muito.
— Uma semana? Um mês? Um ano?
— Umas semanas.
— Foi amor à primeira vista?
— Algo assim.
— Ah — disse ele em tom conhecedor.
— Ah, o que?
— Só foi uma resposta a sua resposta — disse ele —
Algo como amor à primeira vista não é exatamente verdadeiro.
Verdade? Teve que casar-te?
Danni franziu o cenho.
— Ter que…? Não, é obvio que não.
Ele levantou as mãos ante seu tom agudo.
— Não tinha intenção de ofender-te. Sinto
muito, não tenho tato. Fia sempre me dá bronca por
isso. Acredito que os circuitos do meu cérebro e
minha boca se danificaram durante meu
nascimento. Sempre é incorreto o que digo.
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— Não se preocupe por isso — resmungou ela.
— Mas agora está zangada comigo e estávamos nos dando
bem.
Ela deu uma olhada para a porta que levava a sala,
perguntando-se quando voltariam as moças.
Mas a porta permaneceu fechada. A cozinha isolada.
— Parece um pouco preocupada — o notou — Está
nervosa?
Ela conseguiu deter aquele risinho molesto que quis
fazer erupção antes que alcançasse seus lábios. Mas de repente,
ele deixou-a nervosa. Esperava que deixasse de lhe fazer
perguntas.
Ele terminou suas chuletas de cordeiro, voltou a colocar
os restos na geladeira, e lavou as mãos. Ela secou e guardou em
seu lugar a última panela e se virou para encontrá-lo parado de
pé diretamente atrás dela, encurralando-a em um canto. Durante
um momento ele a olhou, sondando seus olhos azuis. Então
assinalou o colar que Sean lhe tinha dado ontem à
noite.
— É formoso — disse — Parece muito antigo.
Seus dedos se aproximaram para acariciálo em sua garganta.
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— Obrigada.
— Onde o conseguiu?
Ela quis escapar dele, mas se movesse só se
aproximaria mais. Não era como se a tivesse imobilizado, mas se
sentia incômoda. Tinha entrado em seu espaço pessoal e agora
parecia decidido a permanecer ali.
— Foi um presente? — Perguntou-lhe.
— Sim — respondeu ela e logo se empurrou para diante
de todos os modos, lhe obrigando a retroceder.
— Do seu marido?
Ela franziu o cenho.
— Por que quer sabê-lo?
Seu sorriso foi inocente, seus olhos azuis amplos.
— Sou um colecionador de todo tipo de coisas. Amador, é
óbvio, embora seja fascinado pela história — Ante seu olhar em
branco, disse-lhe — Espirais celtas. O símbolo do seu colar, o que
sabe delas?
Ela sacudiu a cabeça, relaxando um
pouco. Não estava segura do que a tinha posto tão
nervosa. Possivelmente sua própria paranoia. Sua
própria aversão a lugares fechados. Ele só estava
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sendo amável e ela atuava como uma mulher que tinha algo a
esconder. Surpresa, surpresa.
— Ninguém sabe realmente o que querem dizer —
prosseguiu ele — Alguns pensam que os símbolos têm a ver com
as constelações, outros pensam que têm a ver com o equilíbrio e a
harmonia. — Assinalou o modelo em espiral.
— Esta, é o triplo espiral e se acredita que é a espiral da
vida. Danni olhou o intrincado desenho com uma nova
curiosidade.
— Mas olhe — continuou ele. — Isso é só uma ideia. Há
outros que dizem que representa à deusa tripla. O três é um
número sagrado.
— Você o que acredita que é?
Cathán tocou o pendente com seu dedo e rapidamente
se afastou.
– Sinto muito, posso? — Ela deu assentiu e olhou
quando ele o levantou de novo de onde descansava contra sua
pele
— Não há maneira de provar nenhuma teoria
nem a outra. Grande parte da nossa história foi
contada assim só podemos conjeturá-lo. As espirais
são antigas pelo que poderia ser o círculo da vida,
morte e renascimento. É um símbolo místico,
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entretanto. Parece que deveria ser algo além da vida e a morte.
Para mim, de todos os modos. Isto também poderia representar a
verdade eterna.
— Verdade eterna? Interessante. Como sabe tanto sobre
eles? — Perguntou ela, elevando a vista. Ele estava de pé muito
perto outra vez, e ela tentou manter a calma a respeito. Ele
parecia completamente centrado no colar e provavelmente nem
sequer era consciente de que estava a encurralando.
— Sou um camundongo de biblioteca, assim como um
amante da história — disse. Outro rubor subiu devagar seu rosto
e seu sorriso teve algo de tímido o que ela achou íntimo. Teve
uma súbita imagem mental dele quando menino, lendo sob os
lençóis muito depois da hora de deitar-se. — Sou…. Como
chamam na América os estudiosos? Um Nerd.
Ela se pôs a rir. Seu pai era tudo menos um Nerd.
Complexo, sim, confuso sim. Em um instante preocupado pelo
bem-estar emocional de sua esposa e no seguinte enfocado
completamente em um colar que uma nova criada usava. Mas
estava longe de ser o estereótipo de um Nerd.
— É uma obsessão pessoal, suponho —
disse ele — Desde que era um menino. Suponho que
é o mistério disso. Estes símbolos estão em todas as
partes e ainda assim ninguém decifrou o código. O
que querem dizer? Por que a espiral é para a
direita, ou para a esquerda, como está? É
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significativo, sabe. Muitos acreditam que as espirais que se
enroscam desta maneira se conectam a feitiços pagãos. Estavam
acostumados a manipular a ordem natural das coisas.
— Feitiço? Como na magia?
Ele levantou as sobrancelhas e sorriu abertamente.
— Aye. Poderia levar um potente feitiço em seu encantador
pescoço, Danni. Tome cuidado com o que faz com ele.
Ele riu e finalmente se afastou. Danni lhe devolveu o
sorriso, mas suas palavras a deixaram instável. Sean tinha o
chamado também de um feitiço, mas ela não tinha pensado muito
nisso, não da forma que seu pai o tinha expressado. Um feitiço…
Estava tocando o colar quando as paredes se moveram e
o chão sob seus pés desapareceu.
Coincidência? Não era sua estadia aqui com Sean a
prova de que a magia estava funcionando?
Houve um golpe na porta de trás e ela se sobressaltou.
Agradecida pela distração se apressou, a abriu para encontrar
Sean do outro lado. Só sua presença, alta e forte…
fascinante, se fosse honesta, roubava-lhe o fôlego.
Era um pouco mais que um estranho para ela agora
e olhe o que fazia a seu equilíbrio.
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Consciente atento olhar que seu pai deu a Sean deu um
sorriso tenso se afastou para que pudesse entrar.
— Estava a ponto de terminar — disse ela, se afastando
para trás para limpar a pia e dobrar o pano. Bronagh esperava
que a cozinha estivesse brilhante ao final no dia e Danni não
queria aborrecê-la.
— Esperarei no alpendre — disse Sean — Não quero
sujar o chão. — Então notou Cathán que se inclinava
casualmente contra o mostrador e franziu o cenho.
— Sean, este é o Sr. MacGrath — disse Danni. A seu pai
disse — Este é meu m….marido, Sean.
Cathán deu a Sean um aceno, mas não se moveu mais
perto. Em seus olhos, havia um pouco de cautela e reserva. Uma
sensação de que estava perdendo algum detalhe mais na imagem
e eu sabia disso.
— Danni me disse que é o primo segundo de Niall — disse
Cathán.
— Assim é — respondeu Sean.
— Quem é seu pai?
Sean piscou, levantando seu queixo para
poder olhar os olhos de Cathán.
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— Por que lhe importa quem é meu pai?
— Só me pergunto por que nunca ouvi falar de você.
— Bom, nunca ouvi falar de você tampouco.
Isso fez subir as sobrancelhas de Cathán com surpresa.
— De verdade? Onde cresceu?
— Em Killarney.
— E o que te trouxe para Ballyfionúir?
— Trabalho.
— Não havia nenhum para você em Killarney?
— Estou seguro de que há. Mas minha — Colleen —
está envelhecendo. É toda a família que resta, assim queria estar
perto.
— O que acontece com Niall?
— O que acontece com ele?
— É da família, também, não é certo?
Sean encolheu os ombros, tomando a mão
de Danni quando ela chegou ao seu lado. Seu tato
era quente, seu agarre grande a abrangia.
Estabilizava-a, fazia-la dar-se conta da quão
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desfocada se sentia. Surpreendida, lhe lançou um sorriso de
agradecimento.
O intercâmbio não escapou ao seu pai. Seguiu
estudando-os durante um momento mais e logo disse, como
aceitasse.
— Bom, há muito trabalho por aqui. Ao menos no
momento.
— Estou pronta — disse Danni repentinamente — Foi
agradável que falasse comigo Sr. MacGrath.
Tomou o braço de Sean e o conduziu para fora da casa.
Mas antes que tivessem dado um passo, Cathán disse
brandamente:
— Ainda não me disse quem é seu pai, Sean Ballagh. É
por vergonha, verdade?
Sean se deteve e o confrontou de novo. Não poderia
haver nenhuma má interpretação na intenção do comentário de
Cathán, embora Danni não pode entender o que tinha o feito
tratar Sean assim. Cathán tinha a intenção de insultá- lo e
pelo olhar no rosto de Sean, teve êxito.
— Agora, por que pensa isso? — Perguntou
Sean com força.
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O lento sorriso que se estendeu pelo rosto de Cathán foi
fria.
— Só uma sensação — disse ele rápido — Não quis te
ofender, é obvio.
O rosto de Cathán cobriu-se de cor, mas antes que
pudesse soltar sua desculpa, Sean tinha fechado a porta atrás
deles.
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Capítulo 19
— Por que se importa quem diabos é meu pai? —
Resmungou Sean enquanto se afastavam. — O que disse a você?
Preciso voltar e lhe ensinar alguns modos?
— Não — disse Danni rápido, captando a ira brilhando
nos olhos de Sean — Foi muito educado e agradável.
Sean fez um som depreciativo. Parecia cansado e sujo, e
seu rosto estava aceso pelo vento e o sol embora houvesse uma
camada de nuvens a maior parte do dia. Ela se perguntou por
que. Tinha sido um espírito até a manhã de ontem e sua pele não
tinha visto o sol após…
Isso sobressaltou sua mente, pensando nisso, deles
realmente estando aqui, há vinte anos. Encontrando a si
mesmos em um tempo paralelo antes que suas vidas
mudassem para sempre. Era o tema dos filmes e das
novelas de ficção científica.
—Tenho que acreditar que ele não disse
nada a respeito de mim, então?
Brumas da Irlanda 1 Página300
— Queria saber a quanto tempo estamos casados.
— Por quê?
— Não sei. Mas antes, quando Fia disse meu
sobrenome, ele perguntou o nome do meu pai também acredito
que é somente… Curiosidade suponho. Parecia estranho. Havia
maus sentimentos entre sua família e a sua… e a minha?
Sean a olhou pela extremidade de seus olhos.
— Poderia ser.
— Mas você disse que meu pai te enviou para me buscar.
— Nunca o fiz.
— Certamente sugeriu isso e sabe que isso foi o que
pensei. Isto é tão bom como uma mentira — Quando Sean não
respondeu, só continuou caminhando olhando rigidamente para o
chão, Danni lhe perguntou em voz baixa: — Algo do que me disse
era verdade?
Ele se deteve no meio do caminho e enfrentou-a,
tomando seus ombros, rudemente, entre suas grandes
mãos.
— Fui por você — disse, mas seu tom deixou
claro que não estava contente com isso. — Tudo
isso foi verdade.
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Ela tragou com força, sentindo a cólera e a mistura de
traição em sua confusa voz. Uma parte dela pensava que não
podia esperar que Sean dissesse toda a verdade sobre por que ele
foi à sua casa essa manhã. As possibilidades eram que ele
tampouco o sabia.
Mas não podia fazer frente a suas mentiras, não de
Sean. Estavam juntos nisto e precisava saber se podia confiar
nele. Depender dele.
Ele é um fantasma, Danni. E ele estar aqui é impossível…
Ela negou. Impossível tinha se convertido em normal
ultimamente.
— Eu fui por você — repetiu ele, desta vez com menos ira.
O agarre que tinha sobre seus ombros aliviou e seus
dedos se moveram em uma suave carícia. Seria fácil deixar-se
levar, apoiar-se no calor sólido de seu largo peito, deixar que seus
braços se envolvessem ao seu redor. Entretanto, Danni sabia
melhor que ninguém que dificilmente fácil queria dizer bom.
Ela se afastou de suas mãos e começou a
caminhar de novo.
— Bom, a próxima vez que procurar por
alguém, o faz de outra maneira — replicou por cima
do seu ombro.
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Ele murmurou uma resposta que ela não tinha que
escutar para entender. Estava zangado outra vez. Bem, ela
também. Impulsionada por sua ira, seguiu caminhando.
Depois de um momento, sentiu-o caminhar ao seu lado.
— Sinto muito — disse ele — Deveria ter sido mais
honesto a respeito do por que queria que voltasse para casa. Os
anos depois de que sua mãe desapareceu contigo e seu irmão não
foram… agradáveis. À maioria das pessoas adoravam Fia e
odiavam meu pai pelo que pensavam que ele tinha feito. Já que
ele não estava aqui para lhes fazer frente, converti-me em seu
suplente.
— Mas não fez nada. E era só um menino.
— Um menino mal-educado com uma perspectiva
zangada da vida. Não era difícil me odiar, também.
Danni o olhou com a extremidade do olho, sabendo que
essa devia ter sido a forma em que tinha interpretado sua
existência em Ballyfionúir depois de sua morte.
Os amigos e vizinhos lhe tinham dado as
costas, não porque o odiassem, mas sim porque não
podiam vê-lo. E os poucos que se deram conta de
sua presença, temiam-lhe. Que existência tão triste
e solitária deve ter sido para ele. Ele não sabia que
era um espírito; só sabia que era um pária.
Brumas da Irlanda 1 Página303
Não era a primeira vez que ela se perguntava o que diria a
ele, o que faria se ela renunciasse a seus próprios segredos e lhe
dissesse a verdade. Acreditaria se lhe dizia que era um fantasma,
ou ao menos tinha sido um fantasma quando apareceu na porta
da sua casa? É obvio que não. Mas o que realmente acreditava? O
que aconteceria se dissesse e ele acreditasse que estava morto? O
que aconteceria se tudo o que precisava era reconhecer o fato
para fazer a transição do espírito e seguir em frente? Ela seguiria
estando aqui com ela, ou simplesmente se desvaneceria como
uma gota de água no oceano? Não havia maneira de saber e ela
era muito covarde para correr o risco.
Arriscar-se que ele a abandonasse aqui, sozinha.
Ela tomou uma respiração profunda e lentamente
deixou escapar.
— Foi um dia longo — disse.
— Aye, foi — Ele concordou, aceitando sua oferta de paz
com um tenso sorriso.
— Descobriu algo? Alguma pista sobre como chegamos
até aqui? — Perguntou ela.
Ele negou.
— Passei o dia com meu pai, que morreu faz
vinte anos. Inteirei-me de que era um rapaz
estúpido.
Brumas da Irlanda 1 Página304
Esperou que ele dissesse algo mais sobre isso, mas não
o fez. Seguiu caminhando, com as mãos nos bolsos agora, com
seus olhos de volta à terra sob seus pés.
— E você? — Perguntou ele, sem levantar os olhos —
Averiguou algo?
— Talvez — disse ela — O que sabe sobre o Livro de
Fennore?
Isso sim chamou sua atenção. Finalmente, levantou os
olhos, surpreso.
— Não mais do que qualquer um sabe dele.
— Muito esclarecedor — disse ela, sentindo frustração
de novo — Poderia ser um pouco mais específico?
Ele deixou escapar um suspiro exasperado.
— É uma lenda. Ninguém o viu, mas isso não impede às
pessoas de acreditarem nele. Diria que são as mesmas pessoas
que acreditam nos duendes.
— E, provavelmente, nas viagens no tempo,
também? — Disse ela com doçura.
Ele fez encolheu os ombros em admissão.
— Tem um ponto. Por que falar dele? O que
sabe disso?
Brumas da Irlanda 1 Página305
— Supõe-se que tem poderes. Poderes mágicos — disse
ela.
— O mesmo ocorre com as fadas, se for fantasia o que está
procurando.
— Eu não gosto do sarcasmo, Sean. Algo nos trouxe
aqui e não foi precisamente um 747. Somos um paradoxo vivente
neste momento. Entende isso? Tomou café da manhã consigo
mesmo, recorda-o. Se tiver uma explicação razoável para que isso
acontecesse, sou todo ouvido.
Ele não disse nada.
— Somente pense — murmurou ela.
— O que é o que está pensando sobre o Livro de
Fennore? — Perguntou-lhe ele.
Ela pensou em assinalar brincando seu próprio “não mais
que qualquer outra pessoa”, mas refreou-se. Não queria brigar,
estava muito cansada de fazê-lo. Mas seu temperamento não
parecia entender isso.
— Bem, acredito que desta vez é real. — Ela
esperou que o negasse, mas não o fez.
Em seu lugar, fez um gesto brusco e
rancoroso, disse:
Brumas da Irlanda 1 Página306
— Quando era menino, ouvi que tinha sido encontrado.
— Aqui?
Ele assentiu.
— Houve rumores sobre a noite em que você desapareceu.
— Li isso na Internet. Você acredita?
— Não é algo que alguma vez quis acreditar. Se for real,
é uma coisa terrível, o livro. Pior que qualquer mal que tenha
nascido. Crescemos temendo a quem quer que o utilize.
Danni tragou e olhou para o outro lado.
— Quando o mencionei a mi…. A Fia ela atuou…
estranho. Nem tanto assustada como… incômoda. Não sei como
explicá-lo. Mas pensei que, se não era um mito, se realmente
existia, este seria o lugar para isso, verdade? Aqui é onde a lenda
o põe, em Ballyfionúir. E se estava aqui antes, então…
— Então, o que?
— Pois bem, talvez tenha algo a ver com nós estarmos
aqui agora. Sei que soa louco, mas isto é louco, Sean
não vamos encontrar uma explicação racional para o
fato de que acabamos de viver um dia que
aconteceu há vinte anos.
Brumas da Irlanda 1 Página307
— Muito bem, se o que diz é certo e estamos aqui pelo
Livro de Fennore. Então o que? Está pensando que poderíamos
encontrá-lo?
Lançou lhe um olhar, em busca de qualquer sinal de
brincadeira em seus olhos. Ele levantou as mãos.
— Juro-lhe isso, é uma pergunta honesta, é tudo. Deseja
encontrá-lo e usá-lo, esse é o caminho para fazê-lo?
— Talvez.
— Isso não seria prudente — disse ele.
— Sobretudo quando temos tantas outras opções.
— Inclusive se não tivermos outras opções.
Seu tom era tão sério que ela lhe jogou uma olhada e
tropeçou. Ele a agarrou pelo braço, lhe impedindo de cair.
Quando ela tentou afastar-se, ele seguiu com sua mão
sobre ela, sustentando-a quieta.
— Porque cada história contada sobre o Livro de Fennore
há uma lição de fatalidade que a rodeia. Por cada voz
que diz que é só um mito, existe o temor de que é
real. Que sim acredito que existe? Sim. Assusta-me
dizê-lo? Mais do que imagina. Pode entender isso,
Danni?
Brumas da Irlanda 1 Página308
Ela assentiu.
— Isto não pode ser usado.
Ela sabia, também. Tinha-o visto, Não? O negro
filtrando-se nos olhos de Edel, convertendo-os em poços
brilhantes. O que fosse que lhe tinha acontecido quando havia
usado o livro, não tinha sido bom. Não estava bem. E certamente
não era natural.
— O que acontece se já foi utilizado, Sean? E se nos
trouxe aqui?
Ele não respondeu, mas seu rosto empalideceu e apertou
com mais força seu braço.
— Isso não é algo bom, Sean. Mas se está pensando que
deveríamos nos sentar e esperar para ver se têm a intenção de
nos enviar de volta, então tenho que te dizer que não estou
encantada com esse plano.
— Não se pode usá-lo — repetiu ele, com estoicismo.
Respirou fundo, lhe soltando o braço. O ar frio se precipitou
aonde antes havia calor e a sua pele se arrepiou.
— Poderíamos discutir sobre isso durante
todo o dia — disse ele. — Mas não importa, quando
nenhum sabe onde está de todos os modos. A única
maneira que temos de encontrá-lo é se o livro quer
nos encontrar. Isso é o que dizem as lendas. Ele
Brumas da Irlanda 1 Página309
escolhe você, não ao reverso. Pode procurar tanto quanto quiser,
mas da minha parte, preferiria ser um paradoxo vivente que uma
ferramenta para o Livro de Fennore.
O tom duro e frio a fez tremer. Ela esfregou os braços e
assentiu.
Tomando isso como um acordo, Sean começou a
caminhar de novo. Devagar, Danni o seguiu.
— Meu p…. Niall me disse que há uma casa de campo
que Nana alugou para nós — disse ele, reduzindo seu passo ao
dela.
— Como acredita que ela sabia que íamos vir? —
Perguntou Danni.
— A mulher é um mistério. Sempre foi. É melhor
perguntar por que o sol existe.
— Meu colar — disse Danni — Onde o conseguiu?
Ele deu-lhe outro olhar de soslaio. — Por quê?
— Meu… Pai disse que era velho.
— Disse-te que era uma relíquia familiar.
Isso geralmente significa velho.
Brumas da Irlanda 1 Página310
— Disse que era um feitiço. Para me manter a salvo. A
salvo do que, Sean? Para isso não tive resposta.
E não teve uma resposta agora. Olhando para frente,
ele seguiu caminhando.
— Está bem, que tal está. Se, tratava-se de uma relíquia
da família que significava muito para mim, por que sua avó o
tinha?
— Não tenho ideia.
Ela o observou, em busca de um sinal de outra mentira,
mas ele era um grande ator, ou realmente não sabia.
— Sabe o que é este feitiço?
Ele deu uma olhada onde descansava sobre seu peito e
logo desviou o olhar.
— A Espiral da Vida — disse ele.
Talvez fosse o tom suave de sua voz profunda e rouca,
ou talvez fosse a brisa fria, mas as palavras lhe pegaram com
uma força física. Seu pai havia dito vida, morte e
renascimento e ela havia achado interessante.
Entretanto, caminhando ao lado de Sean, a Espiral
da Vida tomava um novo significado.
Tragou.
Brumas da Irlanda 1 Página311
— Colleen sabia que viríamos — disse, voltando para
tema.
— Aye.Sim.
— Acredita que sabe mais que isso? Como o que
acontecerá a seguir?
— E você? — Perguntou ele, olhando-a pela extremidade
do olho.
Ela encolheu os ombros, mas sentiu a culpa
acumulando-se. Tinha-o criticado por lhe haver mentido, mas
não fazia ela o mesmo? Guardava a informação porque tinha
medo de ficar sozinha?
— Não sei nada sobre o que sua avó sabe ou não sabe.
— Isso não é o que estou perguntando — respondeu ele
rotundamente. Deteve-se, parando-a um lado também — Estou te
perguntando, sabe o que acontece depois?
— Como poderia sabê-lo? — Perguntou ela. Sentiu seu
olhar nela, mas manteve o rosto oculto, negando-se a lhe deixar
ver além da superfície. Tinha-lhe feito a mesma
pergunta ontem à noite, na cozinha, antes de…
antes que caíssem através de um buraco no tempo.
Mas não sabia o que acontecia depois, só que
terminava com Sean e seu pai mortos e com a
família de Danni destroçada.
Brumas da Irlanda 1 Página312
Ela levantou o queixo e armando-se de coragem o olhou
nos olhos, ele apresentava uma expressão em branco que ela só
podia esperar que ocultasse a confusão atrás disso. Sean seguiu
olhando-a fixamente e ela viu que algo se movia em seu olhar
fixo. Uma dúvida, uma suspeita.
— Por que sua avó te enviaria para me buscar? —
Perguntou Danni em voz baixa, desviando seu olhar daqueles
curiosos olhos verde mar.
Ele deixou escapar um profundo e áspero suspiro.
— Não posso te dizer o porquê disso, Danni. Não sei.
— Tem a ver com Niall? Com seu pai?
Foi um tiro na escuridão, mas o golpeou. Sean meteu as
mãos nos bolsos e franziu o cenho.
— É verdade, Sean?
— Por que deveria?
— Não sei… é só um pressentimento. Você… quero
dizer, Michael, vejo como te utiliza para atuar em torno do
seu pai. Quando era jovem, olhava-o como se o
odiasse e parece… mais sério que simplesmente com
uma raiva adolescente. Como se tivesse um motivo.
Sei o que disse a respeito de como foi tratado
depois que Niall se suicidou, mas isso não
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aconteceu ainda, quero dizer, não no tempo que estamos agora.
Sean não disse nada, mas se manteve rígido e afastado.
— Fale comigo, Sean. Ajude-me a entender o que está
acontecendo aqui.
Ele deixou escapar um suspiro, sacudiu a cabeça como
se tentasse negar o que precisava dizer. Então, por fim, falou.
— Sabe por que, quando sua mãe desapareceu com você e
seu irmão, sabe por que a gente de Ballyfionúir se apressou a
dizer que foi assassinada e foram tão ansiosos por condenar meu
pai, um pescador que tinha vivido aqui em paz toda sua vida?
— Pensei que era porque meu pai o viu fazê-lo…
— Claro e eles acreditaram em um homem que nunca
tinha feito nada honrado por um dos seus.
— Mas a evidência…
— Não foi suficiente para condená-lo, morto ou não.
Eles o teriam feito se tivessem podido.
— Então, por quê?
— Porque todos pensaram que escapou
uma vez antes, quando matou a minha mãe. Já
tinha tirado a vida da sua própria esposa. Era
apenas óbvio pensar que ele matou outra pessoa.
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— Seu pai matou…?
— Sim, é o que estou dizendo — Em sua ira, em sua
dor, as emoções arrastaram suas palavras suavizando o comprido
e doloroso tom das consonantes e a nitidez das vocais. — Quer
saber por que o odiava aos quatorze anos? Bem, aqui está sua
resposta. Ele matou minha mãe quando eu tinha nove anos. Vi
com meus próprios olhos, embora inclusive agora não possa dizer
como aconteceu. Chamaram de um acidente. Talvez fosse não
tenho nem ideia. Mas, quem acredita que sofreu, Danni? Não só o
que comete o fato. Não só ele. Se minha avó nos trouxe até aqui,
não sei se foi à maneira de fazê-lo, mas se fez a razão não tem
nada a ver com meu pai.
Danni olhou nos olhos de Sean, olhou dentro de mar
muito agitado de contraditórias feridas e de raiva, de lembranças
confusas e de feitos imprecisos.
Viu nessa tormenta o menino que queria acreditar em
seu pai e viu o Sean amadurecido, que tinha vivido sua vida como
um fantasma devido ao mesmo homem. Isso o estava
destroçando, com suas emoções em conflito.
— Não sei que por que demônios estamos
aqui Danni. Acredita que é por uma razão? Bem,
não posso ver dessa maneira. Não posso ver como
vamos fazer uma pequena maldita diferença, não
importa o que façamos. O passado não pode
Brumas da Irlanda 1 Página315
mudar. Certamente sabe que isso é certo.
E com isso, afastou-se dela.
Brumas da Irlanda 1 Página316
Capítulo 20
Sean e Danni chegaram à porta da frente de Colleen em
um silêncio tenso. Ele tinha a mandíbula tensa e os lábios
apertados, com uma expressão tão fechada como uma porta com
tranca. Com suas palavras ainda atormentando os seus ouvidos,
Danni não se atreveu a lhe fazer mais pergunta. Mas tinha
muitas.
Colleen lançou um olhar curioso entre eles enquanto abria
a porta, mas viu a tensão no semblante de Sean e se absteve de
perguntar. Bean se sentou a seus pés, olhando-os nervosamente.
Michael levantou os olhos do seu prato e ficou olhando com
cauteloso interesse.
— É esgotamento o que vejo em seus rostos. Sabia que
aconteceria no momento que eles se encarregaram de
vós. Preparei o jantar e Michael os levará para o seu
novo lar. O bom Padre estava reunindo algumas
doações, mas ao ver que suas coisas se perderam.
As deixou para vocês.
Brumas da Irlanda 1 Página317
Como filhos obedientes, eles a agradeceram por seu
incomodo. Sean pegou a caixa que Colleen tinha preparado para
eles e seguiram Michael para porta. Danni se deteve e chamou
Bean, mas o pequeno cão bocejou e pôs sua cabeça entre suas
patas com uma expressão tímida em seu rosto.
Colleen ruborizou enquanto se apressava a explicar.
— Temo que posso ter a estragado um pouco. Foi um
grande consolo tê-la comigo quando não pude evitar.
— Está bem. — Disse Danni.
— Certeza que amanhã estará farta de mim e vai querer
voltar com sua ama.
Danni assentiu, tentando não mostrar sua dor. Sentia
como uma traição. Desanimada, seguiu Sean pela porta.
— Sabia que o pequeno roedor estava possuído —
murmurou ele.
Pegaram o mesmo caminho que Sean tinha tomado pela
manhã, serpenteando pela ladeira em volta do mar, ao redor de
enormes rochas e perfumado de urze. À medida que
desciam, podiam ouvir o compasso das ondas contra a
costa rochosa e cheirar o mar, enquanto mascarava
o entardecer com o perfume penetrante dos peixes,
do alcatrão e da tormenta.
Brumas da Irlanda 1 Página318
A rota se dividiu então, um lado conduzia à praia e a
outro paralelo. Michael os dirigiu pelo segundo.
— O cais está ali abaixo. É o lugar onde o navio está
atracado. É um montão de merda se querem saber a verdade. Eu
gostaria que afundasse.
Depois de escutar a história de Sean, seu coração só podia
pensar no jovem que tinha visto seu pai matar a sua mãe.
Depois de uns instantes, Michael assinalou atrás deles e
disse:
— Podem ver o castelo daqui.
Danni se voltou e conteve a respiração enquanto
contemplava o planalto íngreme e rochoso e as ruínas no alto de
uma cornija, como em uma torre. Dessa distância, podia ter uma
melhor ideia do que tinha sido. As paredes decrépitas tinham sido
ancoradas por quatro torres circulares com outro conjunto de
paredes dentro da fortaleza. Cinza no crepúsculo, a pedra
brilhava como algo de outro mundo, que representava uma vida
que se foi faz muito tempo e que dificilmente podia ser imaginada.
A imagem ficou gravada em sua memória muito
depois que ela se foi.
A cabana era mais um abrigo de palha
que uma casa. Uma porta frontal brilhante cor
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púrpura cintilava com pintura fresca nas descoloridas paredes.
Duas janelas faziam olhos na profunda escuridão a
cada lado da porta um pequeno alpendre cruzava a soleira de um
lado a outro.
Michael abriu a porta sem chave e acendeu um
interruptor. Um abajur sozinho em uma só mesa emitiu um
resplendor opaco e turvo de um só cômodo dividido por duas
cortinas em uma cozinha, sala de estar e dormitório.
O banheiro tinha porta, mas era tão minúsculo que
Danni tinha certeza que seria necessária uma manobra para
fechá-lo estando lá dentro.
— Era usada pelo Court Ou’Heaney’s — disse-lhes
Michael — Mas ele morreu há um mês. A coisa mais estranha que
já vi. Seu cão morreu na mesma noite. Ambos se foram. Ele
estava sentado em uma cadeira junto ao fogo e o cão estava a
seus pés. Alguma vez ouviu falar de tal coisa?
Danni e Sean disseram não em uníssono. Michael
esperou suas exclamações de assombro, com uma expressão de
esperança, mas o casal estava muito cansado e muito
confunso para isso.
— Bom, com licença. Verei-te na manhã,
primo — disse ele — Haverá necessidade de salmão
fresco e o pai estará tentando apanhá-lo.
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— Trabalha no navio do seu pai? — Perguntou Danni.
— Aye e não é um crime. É um trabalho infantil. Mas
não serve de nada. Tira-me da cama e me fará esfregar o navio ao
amanhecer. Um desperdício de um dia.
— É um dia de trabalho honesto — disse Sean, olhando
a versão adolescente de si mesmo com uma combinação de
humor e impaciência — O que mais você poderia fazer exceto
procurar problemas?
— Sou homem o suficientemente para passar meu
tempo sem precisar informar a você o que eu faço. — Disse ele
com orgulho defensivo e um olhar intencionado para Danni. Seu
olhar era ao mesmo tempo suplicante e sexual, lhe rogando que
visse mais à frente do menino, ao homem em que se converteria.
Isso a desconcertou, olhar fixamente para este jovem fazia eco ao
homem ao seu lado.
Pior que visão dobro, ela estava um pouco tonta e com
náuseas.
Sean, ao que parecia, não tinha tal confusão quando
isto vinha de Michael. Colocou-se diretamente na
frente dela, bloqueando a linha de visão de Michael.
Ciumento de si mesmo pensou ela com humor
insanamente escuro.
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— Voltaremos a te ver pela manhã então, — disse Sean
enquanto insistia que o menino fosse para a porta.
— Michael — Danni lhe perguntou antes que Sean
conseguisse tirá-lo — Alguma vez ouviste falar do livro de
Fennore?
Michael se deteve e a olhou. Sua expressão estava em
choque.
— Aye, todo mundo tem feito. Falam dele na América,
então?
— Não — disse ela, tentando ter um tom casual, um
sorriso natural. — Acabo de ler sobre ele. Acredita que é real?
— Por que não seria? Ninguém pode dizer que não é.
Nana o viu com seus próprios olhos.
— Pensei que ninguém o tinha visto antes.
— Ninguém o viu — disse Sean com firmeza — Sua
Nana está enchendo sua cabeça com contos. Da próxima vez dirá
que viu elefantes morando em Dublin.
Um rubor escuro manchou o rosto de
Michael enquanto olhava a Sean.
— Eu não sou nenhum imbecil.
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— É óbvio que não — disse Danni, disparando a Sean
um olhar de advertência — Obrigada, Michael, por nos mostrar o
caminho até aqui.
Acalmado, Michael assentiu e disse adeus. Quando pôr
fim a porta se fechou atrás dele, o ar em seu interior se sentiu
grosso e úmido. Havia um aroma de umidade e um frio que só
intensificaram seu cansaço. Danni necessitava um pouco de
espaço. Precisava ficar a sós. Precisava limpar a sujeira do dia e a
confusão da sua mente.
— Vou tomar uma ducha — anunciou no silêncio que
seguiu à saída de Michael.
Sean tinha-se aproximado da chaminé e estava pondo
partes do que parecia ser tijolos de barro no ralo. Quando ela
falou, ele a olhou. Seus olhos brilhavam em seu rosto como o
reflexo do sol sobre as águas agitadas. Isso fez arder um caminho
na sua garganta, detendo-se em seus seios, sussurrando sobre
seu ventre. Teve uma imagem íntima dele ali, na ducha junto a
ela, com seus braços enlaçados em suas costas, com sua pele
úmida pressionando a sua. Um calafrio lhe percorreu as costas e
baixou até a boca de seu estômago.
— Vou acender o fogo, então — disse ele,
com sua voz pecaminosamente profunda e suave.
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Danni assentiu pensando: Oh, mas já o tem feito! Ficou
parada por outro momento incômodo e logo disse: — Não
demorarei muito.
Ela girou e foi para o banheiro. Fechou a porta, apesar
de que era provável que Sean não entrasse sem permissão e se
fizesse isso não estava segura de que iria lamentar.
Despiu-se e entrou no pequeno compartimento sob o
lamentável jorro que espirrava e cuspia. Mas estava quente e
havia sabão e era mais do que espera.
Com a sensação de que o tempo estava se esgotando, mas
não tinha ideia de como detê-lo. Parecia que as duchas, as
comidas e os sonhos deviam ser adiados. Que ela deveria tomar
decisões e ações, mas com que fim. Um dia inteiro tinha se
passado e não estava mais perto de compreender por que estava
aqui ou o que deveria estar fazendo. Tinha seu cabelo cheio de
espuma do xampu que surpreendentemente cheirava a lavanda
quando o som da água se fez mais forte, mais insistente. O rugido
provinha do grifo e parecia se chocar contra as paredes de
azulejos, entretanto, Danni podia sentir a garoa débil, sem
mudanças, enquanto lhe corria pelas costas.
Cautelosa, lavou o sabão dos olhos e olhou a para
cima. Mas em lugar da ducha, em lugar dos azulejos
manchados e acessórios oxidados, encontrou-se
olhando fixamente a mancha cinza do céu
alcançado pelo oceano.
Brumas da Irlanda 1 Página324
Ela deu a volta, com as nuvens em cima, com o sol das
2h estendendo sua sombra diante dela, na praia rochosa. Nem
sequer havia sentido o ar, mas tinha feito de novo e agora estava
nua, molhada e com frio para o que iria acontecer.
As ondas que produzia o oceano esfregaram em seus
pés e as gaivotas grasnaram enquanto se elevavam, em busca de
saborosos aperitivos na maré. A sua esquerda, ela vislumbrou
uma pequena baía com os navios ancorados em seu porto.
Escutou uma rocha ricochetear ao lado íngrime e olhou
para cima. No planalto, viu a parte traseira das ruínas que se
caíram. Grandes blocos de cimento misturado com pedras
gigantes caíram em cascata do alto no mar. Essa devia ser a
parede do castelo que tinha caído e tomado o menino MacGrath
há tantos anos. Deus, o que deve ter sentido ele caindo lá de cima
no mar sem piedade?
O som da música lhe chamou a atenção e Danni olhou
para outro lado, alegrando-se de ser distraída das horríveis
imagens em sua cabeça. Pareciam vir do outro lado das rochas a
sua direita. Ainda nua Danni abriu passo com cautela sobre um
afloramento irregular, inclinando-se para manter
unidos as beirada das rochas enquanto avançava
cuidadosamente através da barreira natural. O
oceano a orvalhava com água geada e ela tremia de
frio.
Brumas da Irlanda 1 Página325
Chegou a uma praia isolada e se deteve para recuperar o
fôlego. A canção que tinha ouvido era mais forte aqui e viu um
corte no bordo do escarpado. Uma porta pensou, quase invisível
de qualquer outro ângulo. Olhando mais de perto, se deu conta
de outra coisa. Quando a água se reunia na parede rochosa que
conduzia ao planalto do castelo, havia um arco baixo, só visível
quando a maré se retirava.
Franzindo o cenho subiu à estreita entrada e a atravessou.
A escuridão ali era como veludo enrugado, grosso, suave
e flexível. Moveu-se através dele em silêncio, seguindo a melodia
para uma caverna iluminada por feixes de luz à medida que a
maré se precipitava para diante, bloqueando o sol, logo se
afastando para deixá-lo entrar. O chão sob seus pés descalços era
de cascalho e conchas sobre capas de pedra. As paredes estavam
grosseiramente lavradas, esculpidas pelo mar e desgastados pela
areia da maré incessante. Mas ao olhar mais de perto, viu um
padrão gravado em cada superfície, que se repetia uma e outra
vez nas paredes e no teto. Inclusive nas rochas escondidas ao
redor do agitado lago no meio. Espirais. Estavam por toda parte.
Tocou o pendente do seu pescoço e
estremeceu com cautela antes de seguir adiante,
mais à frente do lago na parte posterior, abria-se
outra porta na escuridão. A canção vinha dali.
Aproximou-se e olhou as escadas fazendo uma
rota circular.
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A surpresa a deixou sem fôlego. Estava em uma cova
sob o castelo. E talvez as escadas conduzissem a uma passagem
secreto. Um lugar escondido que lhe oferecesse algum escape,
embora não sem um pequeno perigo.
A persistente canção se fez mais forte e Danni se
escondeu, ficando nas sombras, embora uma parte dela soubesse
que não estava realmente ali. Mas o instinto a levou a uma
mulher com a voz mais bonita que a paisagem emoldurada que
surgia da escada.
Era Fia. Danni não deveria se surpreender.
Fia levava uma pequena lanterna e uma manta em suas
mãos. Seu cabelo castanho pendurava solto e sedoso balançandose sobre seus magros ombros. Sua canção era em gaélico e a
cantava com muita emoção, fechando os olhos enquanto as
dilaceradoras notas ressoavam contra as paredes da caverna.
Danni tragou o nó em sua garganta.
A canção terminou e Fia ficou muito quieta por um
momento, como se tivessem se esgotado suas forças com sua
tristeza. Ficou olhando a água ondulante, quase negra
que rodava as rochas, verde cinza, de onde surgiam
fora da abertura do arco. Sua expressão encheu
Danni de inquietação. O olhar em seus olhos
parecia suplicar milagres. Como se esperasse que
um navio aparecesse repentinamente nessa
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abertura e a levasse para longe. Era isso o que queria?
Incapaz de evitá-lo, Danni levantou a mão e roçou uma
mecha de cabelo do rosto de sua mãe. Fia se virou, sem notar
nada.
Ainda nua, ainda com frio, Danni seguiu sua mãe a
uma zona plana e lisa, onde ela deixou sua lanterna e estendeu a
manta.
Fia parecia indiferente ao frio quando se despojou de
suas roupas e as dobrou cuidadosamente. Danni viu as marcas
verdes e amarelas em suas costas e costelas. Tinha visto-as
antes, da primeira vez quando Sean a tinha guiado através da
visão. O que tinha acontecido com ela? Teria sofrido um acidente?
Teria caído?
Mais abaixo, na pele de cor branca nacarada de seu
antebraço, Danni viu a marca de nascimento em forma de rosa,
igual à do seu próprio braço. Fia se virou, e sem hesitar um
momento, pulou na piscina. Danni a seguiu.
A água era fresca, gelada, mas Fia não pareceu se
importar. Nadou e chapinhou como uma sereia,
liberada dos limites da gravidade. Danni a olhava,
pensando no quão jovem e quão formosa era sua
mãe. Perdida na magia e mistério desta estranha
que desejava conhecer, Danni não escutou os
passos até que se detiveram atrás dela. Ela
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franziu o cenho e olhou por cima do seu ombro.
Niall Ballagh estava contra as paredes duras desiguais
da caverna. O que estava fazendo aqui?
Igual a Sean, Niall era um homem grande. Costa largas,
magro de quadris, pernas compridas. Na fotografia que tinha
visto, Niall não tinha parecido tão grande e sólido. Mas aqui,
agora, era todo músculo e força física e próximo assim era
aterrador de algum jeito.
Na sua cabeça podia escutar as dolorosas e zangadas
palavras de Sean. Ele matou a minha mãe…. Estava aqui para
fazer o mesmo com Danni? Espreitando-a como uma abertura ao
ato final?
Fia não tinha o visto ainda, ele se moveu com o olhar
cravado no brilho da pele nua que aparecia na água e logo sumia
sob a superfície. Ele se deteve quando chegou à rocha plana e se
sentou ao lado da manta com a roupa, à espera.
Assustada, Danni nadou para sua mãe, querendo
alertá-la. Advertir-lhe. Mamãe, há um homem aqui e quer te fazer
mal.
Como se tivesse ouvido sua filha, Fia saiu
para tomar ar e se voltou para ver Niall sentado
pacientemente junto ao lago. Olharam-se durante
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um bom momento, enquanto Danni observava da água geada.
Nenhum deles falou.
Logo, lentamente, com uma deliberação nascida da
intenção, Fia se moveu para a borda do lago e saiu. Danni a
seguiu, consternada por sua nudez, embora soubesse que Niall
não podia vê-la. Fia parecia não ter tais escrúpulos. Parou na
frente dele, seus seios subiam e descia com cada inalação, sua
pele se arrepiava com milhares de calafrios. A água corria por seu
corpo, reunindo-se no oco de sua garganta, percorrendo o vale
entre seus seios, sobre seus quadris redondos e coxas. O olhar de
Niall deveria ter acendido fogo à pele molhada. Ele ficou de pé
lentamente, com graça, a um pequeno passo de distância.
Uma respiração profunda de Fia pareceu sussurrar
sobre o duro peito de Niall. Mas ele não se moveu.
Eles só se olharam, absortos, paralisados. O olhar de
Fia atravessou seu rosto, detendo-se nos seus olhos sombreados
e na sua boca esculpida com algo parecido à angústia. Então as
lágrimas brotaram de seus brilhantes olhos antes de transbordar
para misturar-se com as gotas do mar que se aferravam a sua
pele.
Olhando-os, uma sensação de ardente ira e
paralisante traição atravessou o estômago de
Danni. Ela quis lançar-se sobre Niall Ballagh. Quis
lhe arranhar o rosto, chutá-lo e atirá-lo e
empurrá-lo, afastá-lo de sua mãe. Em um
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momento de claridade, entendeu que isto, a força magnética que
parecia mantê-los cativos, não só a Niall, era o prelúdio da ruína.
Ela sabia sem lugar para dúvidas que Niall era o culpado da
tragédia que aconteceria na noite de amanhã. Niall estava
obcecado por sua mãe. Ele tinha destruído sua própria felicidade
e família…
Ela pensou duramente em Fia, tentando mover sua mãe
somente por sua vontade. Queria acreditar que Fia estava muito
assustada com Niall para gritar. Foi por isso que ficou tão quieta,
nua e tremendo. Era por isso que não havia lhe dito que partisse.
Danni avançou, tentando agarrar o braço de Niall e
arrastá-lo imediatamente. Lágrimas de raiva lhe encheram os
olhos enquanto gritava que deixasse sua mãe em paz. Mas não
serviu de nada. Ela não estava lá. Não para Niall, não para sua
mãe.
Niall soltou um som profundo em sua garganta, um de
resistência vencida, um de barreiras derrubadas. E então acabou
com o pequeno espaço que os mantinha separados e puxou o
corpo molhado de Fia para ele. Suas mãos roçaram sua pele
molhada, arrastando sobre suas curvas de seda, logo
subindo para tomar seu rosto.
— Não posso permanecer afastado —
disse ele e as palavras eram de demanda, de
desculpa… De derrota.
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Danni sentiu sua agonia, seu desejo e isso acendeu sua
impotente fúria. — Se esforce mais — gritou-lhe — Ela não é sua.
Meu pai a ama. Eu a amo.
E Niall destruiria tudo isso.
Ele arrastou seus dedos sobre seu esterno até o vale
entre eles e para baixo para colocá-los no pequeno aumento por
cima da sua pélvis. Caiu de joelhos, com suas mãos rodeando
seus quadris, sustentando-a enquanto ele mesmo se dobrava a
seus pés.
Pressionando um pouco além da apertada massa de
cachos de ouro vermelho, sussurrou:
— Serei o pai deste bebê mais do que só a semente. —
Então, com ferocidade — Por favor, Fia, por favor, permita-me
isso.
Danni voltou para a ducha com um grito afogado que
queimou seus pulmões e a fez engasgar-se com o repentino jorro
de água em sua cara. Tossiu, dobrando-se com a força da
emoção, com a necessidade de limpar seus pulmões, seu coração.
Ele havia dito pai. Havia dito bebê.
As implicações disso rodaram sobre ela
como o incontrolável poder do mar. Danni
rapidamente enxaguou o sabão do seu cabelo e
seu corpo. Desligou a água enquanto se afundava
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no chão da ducha e levantava seus joelhos.
Ele havia dito pai. Havia dito bebê.
As palavras se repetiam em sua cabeça, um eco que
destroçava suas crenças, suas esperanças e sonhos.
Niall Ballagh era o pai do bebê que Fia levava. Não
Cathán. Não seu marido.
Ela ficou de pé sobre suas pernas trementes, tirando a
toalha do gancho e envolvendo-se com ela. Estava fria e tremente
e com a alma doente.
Sean disse que depois que Fia e os meninos tinham
desaparecido, falou-se de um romance e Danni a tinha defendido.
Havia dito que sabia em seu coração, que não poderia ter havido
outro homem. A amarga verdade queimava como uma chama.
Enquanto Cathán estava tentando desesperadamente
agradar a Fia, fazê-la feliz, Fia se deitava com Niall Ballagh, um
homem que tinha matado sua própria esposa.
Danni apertou o punho pela dor e raiva. Colocou a
toalha ao redor dela, dando-se conta de que tinha se
esquecido da roupa limpa quando entrou, com um
grunhido de frustração, recolheu a pilha do chão e
abriu a porta.
Sean levantou a vista da chaminé com
surpresa e a olhou fixamente. Por um momento,
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ela só pôde lhe devolver o olhar. O fogo dourado o envolvia em
ouro quente, fazendo do escuro de seu cabelo uma capa de seda
brilhante de luz. Brilhavam com tonalidades de veludo negro
azulado. Seu rosto, queimado pelo vento e o sol, brilhava com
uma luminosidade interior, convertendo seus olhos brilhantes em
verde e prata rodeados por cílios enegrecidos e tons sombrios.
Nesse momento, ele não se parecia em nada com seu pai, não se
parecia com o homem que destruiria seu mundo e Danni estava
mais agradecida do que podia dizer ou sequer entender.
Ele se ergueu elegante inclusive com a pequena ação.
Ela viu seu corpo desdobrar-se e estender-se. Bebeu a vista de
seus largos ombros, o poder de seus fortes braços dobrando-se, a
beleza de sua esbelta figura. Viu como ela o estava olhando, com
um brilho profundo e insondável em seus olhos brilhantes.
— Essa foi uma ducha rápida — disse ele.
Ela sentia como se tivessem se passado dias, enquanto
se metia naquele lago gelado e na traição de sua mãe.
— Você está bem, Danni? — Perguntou ele, dando um
passo mais perto.
Ela captou seu cheiro. Revigorante como o
vento, como o oceano salgado, a homem. Mesmo
depois da longa jornada, ele cheirava bem, ao
menos para ela. Ela puxou o ar, deixando que ele
afugentasse a lembrança persistente da caverna,
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o fumegante aroma de escuros segredos.
Ela queria enterrar seu rosto contra o peito de Sean e
inalá-lo para sempre.
Sean estendeu uma mão e tocou seu ombro. Danni o
olhou nos olhos, incapaz de lutar contra a dor comendo-a de
dentro para fora. Ele parecia confuso, entretanto, soube
exatamente o que fazer. Tomou-a em seus braços, embalando sua
cabeça contra seu peito e a abraçou enquanto ela chorava.
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Capítulo 21
Sean não lhe perguntou por que estava chorando. Uma
parte dele sabia que se o fizesse seria um convite para uma crise
nervosa maior. De alguma forma Sean sentia que as lágrimas de
Danni brotavam do profundo medo e confusão de como tinham
acabado aqui.
Sua dor vinha de uma parte dela tão quente e central
como o núcleo da Terra. Não só estava chorando, chorava como
se tivesse a alma machucada. Seu sofrimento não podia ser mal
interpretado não era porque uma pessoa morreu. Mas por que
sofria?
Todas as coisas que aconteceram tinham feito dele um
homem que exigia uma explicação. Querendo arrumar o que
estava mal e fazer com que seu mundo estivesse bem
outra vez. Controlou a urgência disso, possivelmente
porque o mesmo homem que provocou sua dor
reconheceu seu erro. Não podia arrumar sua
angústia. Não importava quanto quisesse, não
podia.
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Tentar e falhar seria pior que não tentar. Assim fez o
que pôde. Abraçou-a. Tentando lhe dar consolo através da sua
força. Acalmando sua tormenta. Sua camiseta estava molhada
por suas lágrimas e estas seguiam fluindo, um rio de perda que
devia estar a muito reprimido. Ele tinha tomado suas roupas e o
tinha deixado de lado enquanto a balançava suave, gentilmente.
Esfregava suas costas, com suas mãos ocasionalmente
alcançando mais acima da toalha para encontrar-se com sua
cálida e suave pele. O contato era elétrico e o distraia, mas
continuou, lhe oferecendo nada mais que sua força e abraço.
Perdeu-se em seus sentimentos por ela, perdido em seu
perfume, na cálida vibração do seu corpo. Ela levantou a cabeça
do oco do seu ombro onde cabia perfeitamente e o olhou com os
olhos chorosos. Seus cílios eram escuros e longos, suas pupilas
enormes e negras, circundadas por um círculo de luz que
resplandecia por sua dor. Quis beijá-la. Quis tocá-la como o tinha
feito pela manhã… mesmo se não fosse mais que um sonho, mais
que uma fantasia que rondava interminavelmente sua mente.
Mas agora ela se via envergonhada e vulnerável e ele não podia
permitir a si mesmo cruzar a linha da confiança. Com um
controle que não se acreditava capaz, pressionou os
lábios em sua têmpora e deu um passo para trás.
— Eu sin… — Ela começou.
— Não, Danni — disse ele.
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Ficou olhando nos seus formosos olhos arredondados e ela
assentiu uma vez. Rápido, curto.
— Ia guardar o jantar que Nana nos enviou. —
Comentou ele, voltando-se, lhe dando um momento para
acalmar-se.
— Por que não veste uma roupa seca? Ela deu outro
assentimento sobressaltado.
— O farei. Vá e tome seu banho. Tirarei a comida
quando estiver vestida.
Ele sentiu seu desespero por fazer algo para encher sua
mente e assentiu.
— Espero ter deixado água quente. — Disse ela, voltandose para o quarto com cortinas.
— Deixou, estou certo. Pensei que demoraria, mas ficou
lá por poucos minutos.
Ela empalideceu ante isso e ele olhou dentro do
pequeno banheiro se perguntando o que tinha provocado tal
estado de choque. Que pensamentos ela teve sob o
chuveiro? Mas não perguntou nada.
Sua ducha foi mais longa que a dela e a
água quente terminou no final. Parecia que estava
fazendo tudo muito lento, encontrou-se
concentrado na sensação do jato de água contra
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sua pele, na sensação da pele em suas mãos. Por que ele sentia
tudo tão diferente aqui? Tão vívido e tangível. Do despertar pela
manhã, parecia que inclusive o ato de respirar, ou de existir, era
como uma sedução em si mesmo.
Seco, pegou uma boxer limpa e um jeans que eram um
pouco grandes. Penduravam em seus quadris e se lembrou dos
rappers que os usava ao redor de suas coxas como uma
afirmação de moda. Uma afirmação de moda que era muito velha
para aplicá-la neste tempo ou lugar. Colleen lhe tinha enviado
muitas camisetas, mas a maioria eram muito pequenas.
Separando duas que lhe serviam melhor, ambas eram muito
grossas para usar dentro da casa, assim optou por não usar
nenhuma.
Sentia-se como um homem novo quando saiu para
encontrar Danni sentada em frente do fogo que tinha acendido.
Seu cabelo castanho dourado estava quase seco e brilhava na
silenciosa luz. Vestia uma camiseta de homem de tamanho muito
grande… uma que teria lhe ficado muito pequena e de calças
estreitas que terminavam em uns grossas meias três-quartos
brancas. Ela olhou para ele por cima do seu ombro com seus
enormes olhos em completo choque.
— Olá — disse ele.
— Olá.
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Seu olhar se moveu de seu rosto para seu peito,
lentamente baixando e rapidamente subindo outra vez. Ela
ruborizou, e algo dentro dele, algo profundo e masculino, grunhiu
de satisfação.
Comeram o jantar frio que Colleen os enviou e lavaram
os pratos depois. Falaram pouco, mas entre eles havia uma
tensão tão real como o ar em seus pulmões e a comida que
tinham consumido. Estava completamente escuro lá fora, mas
Sean suspeitava que não fosse mais tarde que sete ou oito.
Estava cansado até os ossos, mas também alerta, compenetrado
na mulher ao seu lado.
— Foi casada, Danni? — Perguntou-lhe de repente.
— Não.
— Por que, você sabe? Ou os homens do Arizona são
completamente bobos? — Seu sorriso foi tenso e triste.
— Estive perto… Duas vezes.
— O que aconteceu, então?
Pensou que possivelmente não responderia.
Ele estava se intrometendo e não lhe devia nenhuma
explicação a respeito dela mesma ou do seu
passado. Mas esperava que o contasse. Queria
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saber mais a respeito dos outros homens de sua vida. Queria o
poder de expulsá-los de sua memória.
— A primeira vez, eu era muito jovem. Me… Jack. Esse
era seu nome. Conheceu alguém mais. — Olhou para baixo para
suas meias três quartos brancas — Ele não me disse isso.
Acredito que teria seguido adiante com o casamento no lugar de
enfrentar ao que estava acontecendo se eu não o tivesse pego.
Não entendi. Até hoje continuou sem entender. Mas os vi juntos.
Ele esperou, perguntando se os tinha visto
pessoalmente ou se tinha sonhado… como se fosse uma banshee.
Ela não havia dito muito, mas suspeitava que visse
coisas da mesma maneira em que fazia sua Nana. Perguntou se
suas repentinas perguntas sobre o Livro de Fennore tinham sido
impulsionadas por uma visão.
— Jack tentou negá-lo quando o confrontei. — Estava
dizendo Danni — Mas sabia muitos detalhes. Disse que não a
amava e que tinha sido um engano. — Olhou para Sean com
outro sorriso tenso — Quis acreditar. Quis tão desesperadamente
que o perdoei, mesmo sabendo. Nunca pude esquecer o que
ele tinha feito. Yvonne pensou que eu estava louca.
Acredito que estava certa…, mas me casar, ter uma
família. Ser parte de uma família… Era tudo o que
queria.
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Ele tragou recordando como tinha usado a mesma isca
para trazê-la de volta para casa. Não era o que queria Danni?
— A segunda vez que o surpreendi, soube que inclusive
se me casasse com Jack, nunca seríamos um casal. Acabaríamos
sendo duas pessoas compartilhando o mesmo sobrenome e
fingindo que gostávamos de estar juntos. Provavelmente não
tinha sentido. Mas assim me sentia. Inclusive então, ainda não
me atrevia a matar meu sonho. Esperei que ele o fizesse.
— Ele te deixou? — Disse Sean, surpreso.
— Sim. — Ela tomou uma respiração profunda, tirou
seus joelhos de debaixo de seu queixo e as abraçou— Ele me
deixou.
Sean quis aproximar-se. Abraçá-la de novo, suavizar a
pele sedosa franzida entre suas sobrancelhas.
— O que há do outro com o qual quase se casou?
— Seu nome era David. Nunca me enganou, mas
tampouco me amava. Dizia que era muito reservada e fria. Queria
uma mulher a quem pudesse amar, não só admirar. —
Piscou e Sean suspeitou que tivesse escapado
algumas lágrimas se não tivesse já chorado um
oceano.
— Nunca entendi o que quis dizer com
isso, acha que sou fria? — Perguntou-lhe.
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Diabos, não. Era uma chama e ele ficou exposto a sua
queimadura.
— Acredito que era um idiota.
Ela o estudou, procurando alguma falsidade em suas
palavras, em seus olhos. Algo que não pôde encontrar. Então
sorriu. Foi só um suspiro, mas era para ele e só para ele.
Com a cozinha limpa, ela serviu chá e sentou-se à mesa.
Via-se pequena com a camisa de homem, de ossos finos e pálida
como a luz de lua. Uma vez mais levantou os joelhos e os
abraçou.
— O que me diz de você? — Perguntou depois de um
momento — Esteve casado?
— Não. Nem sequer perto.
Ele viu algo no olhar que ela lhe deu que fez com que ele
sentisse uma cotovelada em um lugar escuro da sua mente.
Sentiu que havia um propósito por trás da pergunta, mas não
podia compreender o que era ou como questioná-la.
— Por que não? — Perguntou ela — Não quer
casar? Ter filhos?
Ele encolheu os ombros, percebendo que
não tinha pensado nisso em anos, inclusive
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considerado essa possibilidade. O motivo lhe escapava agora.
— Nunca conheci ninguém em quem confiasse o
suficiente. — Disse ele respondendo tanto a si mesmo como a ela.
— Quem confia o suficiente? O que acontece com amar
o suficiente? Andam de mãos dadas, certo?
— Nem sempre. Conheci homens que não confiavam em
suas esposas, mas que as amavam de qualquer forma.
Danni apertou os dentes e sacudiu a cabeça.
— Para mim tem que existir ambos. Você não pensa
assim?
— Sim.
Ela o olhou de novo com o mesmo olhar de sondagem. Ele
se sentiu como se fosse iluminado por um foco, como um raio
procurando evidências que provocavam as memórias que estavam
adormecidas e escondidas. O que ela queria saber? Por que ele
lutava tanto para evitar que ela descobrisse? Não gostava de suas
perguntas, mas foi sua negativa em responder inclusive a si
mesmo o que o fez ficar de pé e dar alguns quantos
passos se afastando.
— Entretanto teve relações sérias, não? —
Perguntou-lhe ela. Ele se obrigou a encolher os
ombros.
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— Conheci mulheres.
— Não quis dizer o contrário. — Disse ela, com a ponta
de suas orelhas colorindo-se.
Ele a quis beijar. Ele queria beijar cada centímetro dela.
Ela o pressionou.
— Perguntava-me se teve relações. Esteve-se
comprometido.
— Claro, que mulher não quereria estar comigo. Logo eu
que não tenho um urinol onde mijar.
— Algumas mulheres se preocupam mais pelo homem que
por seu dinheiro.
— Bom, ainda não conheci uma.
Ela se remexeu e ele sentiu um perverso prazer em
saber que a fez sentir-se incômoda. Não importava que ele
houvesse se interessado por sua vida pessoal primeiro, não
gostou que ela analisasse a sua.
— Assim é por isso? — Disse ela dissipando
qualquer esperança que ele tinha de que ela
abandonaria o interrogatório — Você não
acredita que tenha o suficiente para oferecer.
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Deu-lhe as costas passando uma mão pelo rosto.
— Não parece isso, tenho a habilidade especial de
conhecer mulheres em momentos de necessidade.
— Isso é mau?
— Só que nossa relação tende a ser uma ponte para
outra coisa. — Ele a olhou por cima do ombro perguntando se
havia descrito o que seria sua relação com Danni. Surpreso pelo
nó em seu estômago que essa ideia provocou. Ele não queria ser
uma ponte para Danni MacGrath. Ele queria cruzá-la. Queria
estar do outro lado com ela em seus braços. E isso o incomodava.
O preocupava porque as mulheres eram criaturas que não
entendia bem. E como tentou manter distância delas, não podia
predizer o que ela ia fazer.
– Alguma vez se apaixonou?
Danni insistiu, embora parecesse incômoda com a
pergunta. Sean se voltou e viu uma nova onda de rosa subindo
por suas orelhas.
— Suponho que o mais perto que cheguei de
estar apaixonado foi de Molly Clark. Seu marido
morreu e ela ficou sozinha com cinco filhos para
alimentar. Ajudava-a com as tarefas domésticas.
Cortava turva para o fogo e levava comida quando
podia.
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— Como a conheceu?
Outra pergunta que não gostava. Foi muito duro
escavar em sua memória e a raiva lhe mordeu o calcanhar outra
vez.
— Jesus, eu nem sequer me recordo.
— Dormiu com ela?
— Por que quer saber isso?
Ela tentou sorrir, tentou dissimular a pergunta para
que parecesse frívola. Mas a cor rosa obscureceu sua pele do
rosto até o pescoço e havia verdadeira dor em seus olhos. Porque
lhe doeria a pergunta? Esta mulher lhe desconcertava.
— Ela tinha cinco filhos e só podia estar com um
homem nas últimas horas da noite. — Disse ele.
— E o fez? Gastou essas horas com ela?
— Aye — disse pensando nesses minutos roubados na
escuridão do seu quarto, quando a lua começava a desvanecer-se
e o sol começava a brilhar. Ela o tinha acolhido em
seus braços lhe brindando com o toque suave da sua
pele. Ele recordava o calor da sua pele, a
necessidade em seus beijos, a sensação do seu
corpo sonolento embaixo dele.
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— Como um amante dos sonhos. — Disse Danni
brandamente. Tocando de algum jeito a lembrança em sua
cabeça.
Sean franziu o cenho diante disso. O que queria dizer
com amante dos sonhos? Mas uma parte dele sabia. Uma parte
que correu para a escuridão quando o flash brilhante dela tentou
retirá-lo. O que ele tinha compartilhado com Molly era bastante
real, embora não pudesse recordar seu rosto neste momento.
Talvez não tão real nem tão ardente como o que tinha
compartilhado com Danni está manhã. Parou o pensamento aí.
Não tinha certeza se tinham compartilhado algo.
Mordeu o lábio por um momento em silêncio
perguntando-se o que acontecia por trás dos formosos olhos
cinza. Sentada imóvel, com os braços ainda abraçando seus
joelhos, seu silêncio lhe pareceu pouco natural, como se de
repente fosse um entalhe de gesso que endureceu até o ponto de
que qualquer movimento a romperia em um milhão de
fragmentos de pó.
— Sean, há algo que preciso te dizer…
Ela fez uma pausa e ele esperou, com uma
opressão no peito. O que precisava? O que ia lhe
dizer?
As palavras pareciam afundá-la,
obstruindo sua garganta. E o instinto lhe disse
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que não devia pressioná-la. Para não forçar essas palavras. Não
queria as escutar.
Como se sentisse seus pensamentos, ela umedeceu os
lábios e desviou o olhar e uma onda de gratidão correu através
dele. O que fosse que ela estava a ponto de dizer, ela mudou de
ideia.
— Eu… só ia perguntar, quando sua mãe… Quando a
perdeu?
Seu alívio se desvaneceu tão rápido como chegou. Ela
não podia saber as farpas conectadas à sua pergunta, mas
morderam sua pele e rasgaram sua carne.
— Eu te disse, faz cinco anos… a partir de agora… a
partir desde momento. Eu tinha nove anos.
— Esteve realmente lá?
Ele assentiu. — E meu irmão.
— Não sabia que tinha um irmão. — Disse ela.
Ele não respondeu a isso. Mesmo agora era
muito doloroso falar disso.
Ele olhou para cima e viu que os olhos de
Danni estavam cheios de angústia. Ela não
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conhecia os detalhes, mas já tinha adivinhado que eram trágicos.
Perguntou-lhe:
— Como… Quero dizer… Por que… por que Niall não foi
preso?
Ele respirou fundo, vendo que ela queria obter mais
informação, sabendo que não poderia fugir da resposta.
— Minha mãe tinha um humor do cão e quando bebia,
não havia maneira de acalmá-la — disse ele em voz baixa —
xingava o açougueiro com a mesma ira que a seu marido, todo
mundo já tinha visto ela em um desses ataques. Nesse dia…. O
dia em que morreu, estava particularmente bêbada e
particularmente furiosa. Pegou a faca do meu pai e brigou com
ele. Foi tão rápido, que nem sequer soube o que aconteceu até
que a vi no chão, com uma faca no peito.
Danni começou a dizer algo, mas se deteve.
— Continua diga, o que seja, diga.
— Bom, estavam brigando pela faca que ela tinha tirado
dele, isso parece um acidente, Sean. Há alguma razão que
faz você pensar que ele fez de propósito?
Não pergunte, Sean quis lhe gritar. Não
me pergunte isso. A ignorância era a única maneira
de sair do escuro labirinto ao seu redor. O que ela
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não sabia não podia lhe fazer mal. Não podia destruir suas
esperanças, como pedaços de papel.
— Além do fato de que ele era o dobro do seu tamanho,
quer dizer? — Ela assentiu, estudando seu rosto com seus olhos
cinza, olhando seus próprios pensamentos. Procurando o que ele
não podia ocultar. De repente, ela afastou o olhar e Sean soube
que tinha encontrado.
— Foi por minha mãe? — Sussurrou ela.
A pergunta flutuou entre eles, uma linha invisível que ele
não queria cruzar.
— Acredito que sim. — Respondeu ele com sinceridade,
porque não podia mentir. Não a Danni.
— Vi-os hoje. Juntos.
— Onde? — Mas assim que perguntou, soube. No
banho. Ou melhor, além do banho.
— Acredita que ele a matou, não?
— A Fia? — Perguntou ele — Ou a minha mãe?
— Ambas.
— Não quero acreditar.
— Eu tampouco.
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O que não era, para nenhum deles, o mesmo que não
acreditar. Ele tragou, tentando afastar o aperto em seu peito.
— Quando vai me dizer a verdade, Danni? — Murmurou
ele. Ela franziu o cenho, parecendo culpada.
— Eu fiz. Tenho dito.
Ele se aproximou, pondo suas mãos sobre os braços da
sua cadeira e olhou fixamente seus formosos olhos.
— Onde estava quando os viu? — Ela tragou e retorceuse, tentou afastar o olhar, mas tomou seu queixo com a
mão e a obrigou a responder.
— Onde, Danni?
— Debaixo das ruínas. — Disse ela em voz tão baixa que
ele teve que esforçar-se para ouvi-la.
A resposta o surpreendeu. Sabia de que lugar estava
falando. Tinha crescido aqui, explorado a ilha como um viking em
uma busca.
— As ruínas não são seguras. — Disse ele.
Ela quase sorriu ante isso.
— Tomei cuidado.
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— Estava lá? Ou foi outro sonho? Como o da Banshee
Ela não respondeu. Podia ver o medo em seus olhos.
Isto não era algo sobre o que ela falasse, algo que confiasse a
outros. Sabendo que se desesperava mais ainda porque disse
para ele. Que confiou nele seus mais escuros secretos.
— Como estavam eles em seus sonhos? — Perguntou-lhe.
Ela estava ferida enquanto o olhava nos olhos, ferida pela
constatação de que de algum jeito ele tinha evitado todas suas
barreiras cuidadosamente construídas e agora se encontrava a
bordo do descobrimento. Ele quis tranquilizá-la lhe dizendo que
nunca faria uso de seus segredos, mas não tinha certeza de que
fosse verdade. Nada neste lugar e tempo louco poderia ser tomado
com certeza.
— Como as coisas parecem quando as vê? —
Pressionou-a. Ela hesitou um momento antes de dizer resignada
com voz grossa:
— Como se estivesse lá, só que sei que não estou. Sinto
as coisas… O ar, o frio. Mas não posso tocar nada. Só posso ver.
— Como sabe? Alguma vez tentou mudar o
que vê? — Ela franziu o cenho.
— Não posso. Não estou realmente ali. As
pessoas que vejo, não me veem.
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— Alguma vez?
Ela vacilou, suas sobrancelhas se juntaram, enrugando
a pele entre elas. Pela segunda vez essa noite, ele quis inclinar-se
e pressionar os lábios nesse ponto sedoso para alisá-lo.
— Uma vez — começou e ele teve que aproximar-se do
seu ouvido — Uma vez pensei, senti… como se minha mãe me
visse. Só por um momento. E hoje, antes, pensei que ela tinha me
escutado.
O ar pareceu mudar para algo sólido e inquebrável. Com
medo de que sua seguinte resposta o convertesse em pedra,
perguntou-lhe:
— É o que está acontecendo agora? Isto. Nós. Estamos
realmente aqui? Ou é tudo uma ilusão na qual tropecei?
Seu olhar de assombro delatava cada pensamento
cruzando por sua mente. A surpresa, negação, medo e a dúvida.
Possibilidade.
— Não — sussurrou ela.
— Está certa?
— Não posso… não pude falar ou ser vista.
Não, não pode ser assim.
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Ele conteve o alívio, porque mesmo negando, ela não
tinha certeza.
— Antes… antes que caíssemos aqui. Na sua cozinha,
senti como se as paredes estivessem desvanecendo sobre nós. —
Sean se esforçou para encontrar as palavras que pudessem
descrever a experiência — Como se convertessem em vidro e
quando o fizeram, não pude reconhecer o que estava do lado de
fora.
Seu gesto pareceu reflexivo. Um acordo desigual que ela
não se deu conta que tinha feito.
— Pode as convocar? — Perguntou ele.
— Às visões, quer dizer? Se posso fazer com que
aconteçam?
— Pode?
— Não sei. Nunca tentei. Sempre foi alguém que vem
para mim. Alguém que quer algo.
— E por quê?
— Como vou saber? Não as entendo. Nem
sequer sei por que acontecem. Antes de você,
tinham se passado anos, muito tempo e tinha me
esquecido de como as sentia.
Brumas da Irlanda 1 Página355
Ele ficou imóvel, olhando-a fixamente com olhos
entreabertos. — O que significa isso? Antes de mim?
— Eu te vi. Antes que viesse a minha casa pela manhã.
— Viu-me? — Repetiu ele estupidamente. Tinha a boca
seca e sua língua se sentia grossa. Recordou o olhar dela quando
parou no alpendre. Como se o tivesse reconhecido. Como se
tivesse esperando-o.
— Disse que alguém ia a você. Alguém que queria algo.
O que é que eu quero?
A mim. Ela não o disse, mas estava em seu rosto. Na
janela luminosa de seus olhos. Bem, era a verdade.
Ele a desejava mais do que jamais tinha desejado nada em
sua vida.
— Por que nunca vez tentou convocá-las? — Perguntou
ele.
— Por que faria isso?
Ele a olhou fixamente, deixando Danni
encontrar sua própria resposta à pergunta.
Honestamente, ele não sabia. Mas algo dentro dele o
dizia. Uma pergunta em seu subconsciente que não
podia pôr em enfoque. Obrigou às palavras a
saírem dos seus lábios.
Brumas da Irlanda 1 Página356
— É um mistério porque estamos aqui. Não posso
entender o caminho disso. Mas não posso negar que aconteceu
tampouco. Não quando estou sentado nesta mesa. Não quando
vejo meu próprio rosto. É impossível, mas estou pensando que em
algum lugar há uma explicação.
Ela se empurrou para fora da sua cadeira, o que o
obrigou a retroceder. Seu ímpeto a levou a dar alguns passos
antes de deter-se, com os braços cruzados protetoramente.
— Tudo o que te pergunto Danni, é que considere que
nada é o que parece. Estamos vinte anos fora de sintonia como
me assinalou esta tarde e nenhuma quantidade de raciocínio
pode fazer que isso seja normal. Mas parece que tem mais sentido
que a resposta esteja dentro de você e não no Livro de Fennore.
— O que acontece se for você? — Exigiu ela — Por que
tem que ser eu? Nada disto aconteceu antes que você batesse na
minha porta.
— Não posso ser eu — disse ele com uma risada triste —
Não há nada especial em mim.
— Não, Sean? Está tão seguro disso?
Ela o olhou fixamente, desejando que visse
algo que estava além da sua capacidade. O que
queria dizer? O que ela queria dele? Como podia
pensar que isto poderia ter algo a ver com ele?
Brumas da Irlanda 1 Página357
— Não se sentiu fora de sintonia durante muito tempo? —
Exigiu-lhe ela.
Ele assentiu, sem sequer dar-se conta da sua intenção
de fazê-lo. Sim, sim, sim. Havia sentindo-se alheio, não alinhado
com o tic tac do relógio, com o passar dos dias. À deriva, perdido.
E de repente, aqui e agora, quando não tinha nenhum sentido
absolutamente, sentia-se extremamente unido de volta no tempo.
Como podia ser isso?
Algo que ela viu em seu rosto fez com que Danni
retrocedesse de novo. Que se retratasse.
— Não importa. Esta conversa não tem sentido — disse
ela — Nenhum de nós é o suficientemente especial para mudar a
história. Qualquer que seja…, mas, chegamos a este lugar, sem
ter nada a ver com você ou comigo.
E, entretanto, como uma porta que uma vez foi aberta e
que não podia fechar, a ideia ficou ali, sólida entre eles.
— Estou cansada — disse. E o olhou. Seu olhar foi para
o lado da cama e então se afastou. Havia apenas uma
cama e não havia roupa de cama adicional. Só o
estreito colchão fino, escondido num canto.
Sean a olhou também, e fez a pergunta
que tinha consumido a maior parte do seu dia. De
algum jeito era mais urgente do que a forma em
Brumas da Irlanda 1 Página358
que tinham chegado aqui. Mais urgente do que qualquer coisa,
mais urgente que o instrumento de sua viagem. Ele se moveu até
que estava de pé atrás dela. A parte superior da sua cabeça
chegou ao seu queixo, o aroma do seu cabelo e sua pele encheu
seus sentidos.
Brandamente, com insistência, virou-a. Sentiu a
resistência do seu corpo, no olhar que subiu para se encontrar
com o seu.
Com uma voz que quase não reconheceu como sua,
perguntou-lhe:
— Fizemos amor esta manhã ou foi só um tipo diferente de
sonho?
Brumas da Irlanda 1 Página359
Capítulo 22
Parecia que Sean esperou uma eternidade para que ela
respondesse. Uma eternidade vazia, exceto por seus olhos, tão
misteriosos como a névoa do entardecer, grossa como a bruma
chapeada e forjada com o desconhecido. Ele viu sua própria
confusão refletida na profundidade dos seus olhos e soube que se
fazer amor com ela tinha sido só um sonho, era um que tinham
compartilhado.
— Foi um sonho — insistiu ela.
— Então, como é que nós dois sonhamos? — Ela franziu o
cenho e negou.
— Não podemos. Não fizemos.
— Aye, podemos — disse ele aproximando-se —
Aye, fizemos.
A vulnerabilidade retornou aos seus
olhos, mas desta vez ele soube. Sabia que provinha
de um lugar distinto. Ela estava comparando a
paixão desse sonho com a imagem que tinha de si
Brumas da Irlanda 1 Página360
mesma. Por causa de um estúpido homem que tinha conhecido,
ela pensava que era fria. Em algum lugar do caminho, ela tinha
se convencido de que eles tinham razão e que era incapaz de
sentir paixão. Sean viu isso, viu tão claramente como se estivesse
escrito no ar entre eles.
Mesmo agora que ela estava recuando, fechando e
trancando suas emoções. Ele podia ver o que sabia
instintivamente. Não havia nada frio ou reservado sobre o Danni
MacGrath. Ele queria mostrar-lhe, mas, no momento que a
alcançou, ele vacilou.
Seu cabelo caía em uma confusão encaracolada ao
redor da sua cabeça, com sua pele brilhando como as pérolas,
com seu rosto descoberto e suave.
Havia inocência em Danni, mas também havia fogo e
paixão. Sonho ou não, ele havia a sentido nesta manhã e queria
senti-la outra vez, queria desesperadamente, senti-la mais uma
vez.
Baixou o olhar para o pulso acelerado em sua garganta.
A camiseta de homem pendurava sobre seus seios,
cobrindo seus endurecidos mamilos. As calças
elásticas se ajustavam a suas magras pernas
torneadas, moldando suas curvas e músculos até
chegar a suas grossas meias três quartos e mesmo
essas eram de algum modo sexys, de algum modo
íntimas. Deu outra olhada, imaginando-se
Brumas da Irlanda 1 Página361
agarrando a borda da sua camisa e a tirando por sua cabeça,
despindo seus suaves ombros, a curva da sua garganta e a
inclinação dos seus seios.
Um desastre, isso era o que era. Mas a direção estava
estabelecida e o desenlace era inevitável.
Ela não disse uma palavra conforme o observava,
deixando que seus olhos se deslocassem do seu rosto, ao seu
peito nu e a seu estômago. Seus músculos se esticaram em
expectativa, como se seu olhar penetrante fosse o suficiente para
que aquecesse sua pele. Queria que ela olhasse mais abaixo, para
que ela visse que estar assim perto dela o fazia pensar em muito
mais.
Ninguém falou, porque as palavras seriam redundantes.
Ele se sentiu incapaz de mover-se e esperou que ela o
fizesse em seu lugar. Esperou que as perguntas em seus olhos se
convertessem em respostas, decisões. Ela balançou mais perto e
seu suave aroma o encheu com uma ardente necessidade. Quis
enterrar seu rosto em seu cabelo, inalá-lo, saborear seu aroma.
Saborear cada centímetro dela.
Suas mãos posaram em seu peito, ligeiras
como pétalas; quentes, sedosas e movendo-se sobre
seus firmes músculos.
Procurando, encontrando. Detiveram-se
sobre seu coração, sentindo o errático batimento
Brumas da Irlanda 1 Página362
do seu coração, fatigado com batimentos fortes. Pensou que ela
podia sentir o sangue correndo por suas veias, o impulsionando a
mover-se, a tomá-la. Sentiu calor, mais calor do que era
humanamente possível. Como se pudesse entra em
autocombustão de repente e derreter-se em algo que ela poderia
manejar com seu toque pessoal.
Ela ficou quieta, com suas pequenas mãos sobre seu
coração. Inclinou a cabeça para trás e ele olhou fixamente dentro
dos seus olhos frios e esfumaçados. Estavam dilatados, redondos,
feridos e desconcertados. Por que não voltava a tocá-lo?
— Tenho medo — disse ele sem querer dizê-lo.
Tinha medo de cair nesses olhos e não encontrar nunca
mais o caminho de volta. Temeroso de que isto, que parecia tão
real, pudesse de alguma forma lhe ser arrebatado se agarrasse
muito forte. Temeroso de que retornar a estas terras
intumescidas se tornaria sua vida. Temendo agora uma
oportunidade de escapar.
A resposta, uma profecia que tinha que ser cumprida, o
fez exalar com humor retorcido. Danni mordeu o lábio e
então sorriu, devagar, sexy e docemente.
— Não tenha — disse ela e essa foi sua
perdição.
Com um gemido abafado, ele a agarrou,
apertando suas mãos sobre seus quadris,
Brumas da Irlanda 1 Página363
consumindo a pequena curva com seu agarre e separando seus
dedos ao redor da sua suave carne traseira.
Ela se moveu no começo da sua rendição, com indecisa
ousadia, logo com crescente confiança que fez com que sua
cabeça aliviasse e seu coração pulsasse mais rápido. Seus braços
se colocaram agora ao redor do seu pescoço, seus quadris se
esfregaram contra a inconfundível ereção presa dolorosamente
em seu jeans. Foi a dor, gloriosa e real, que rompeu o último
vínculo da sua reserva.
Agarrou-a com força contra ele e o som que gerou em
sua garganta foi como um azeite aromático sobre um fogo
abrasador. Enchendo cada sentido e excitando cada receptor
nervoso do seu corpo. Como tinha imaginado, ele agarrou a barra
da sua camisa e puxou para cima em um movimento habilidoso.
Ela levantou os braços em uma silenciosa aceitação,
permanecendo diante dele enquanto a luz da lua reluzia sobre
sua resplandecente carne. Sua pele brilhou como uma estranha
opala branda, pálida e viva, suave e quente. Seus seios eram
pequenos e altos, perfeitos como só Deus podia criá-los. Tocou
um e então o outro, ainda com medo de que ela pudesse
desaparecer se ele fosse muito longe. Se a agarrasse
com muita avidez.
— Deve ter sido um sonho… — murmurou
ela contra sua garganta.
Brumas da Irlanda 1 Página364
Ela não terminou o pensamento. Não necessitava.
Estava em sua cabeça, a lembrança dele. Deve ter sido um sonho
porque não podia comparar-se à realidade desse momento.
Ele a levantou e a levou para a cama, devagar, porque
agora que se comprometeu, queria cada momento, cada segundo
que pudesse durar. Deu-lhe suaves beijos úmidos em seu peito e
garganta enquanto a depositava sobre o colchão e se abraçava a
ela. Emoldurou seu rosto com as mãos, tremendo com a sensação
de sua pele contra a sua, do seu corpo embaixo do dele.
Lentamente, cobriu a boca dela com a sua.
Seus lábios se encontraram com aceitação e demanda.
Ela o deixou tocá-la e incitá-la, compartilhando o ar entre eles
antes de abrir-se e o convidar para dentro. Seu fôlego era doce e
sua língua roçou a dela, ambas aveludadas, sensíveis e sensuais.
Senti-la e saboreá-la, era como uma droga disparada através da
sua corrente sanguínea aumentava a cada segundo até que seu
mundo se limitou a Danni e à doçura da sua entrega, da sua
própria entrega.
Ele se afastou, posicionando-se para poder tirar suas
calças e calcinha por suas pernas e as atirar em
algum lugar atrás dele, com suas meias três quartos
brancas colocadas no monte. O jeans dele se uniu
ao enredo, deixando a ambos nus e vulneráveis.
Sean respirou profundamente, tentando acalmar
seu coração, acalmando a urgência de querer
Brumas da Irlanda 1 Página365
enterrar-se dentro dela. Viu algo brilhando em seus olhos,
determinação, resolução. Durante um momento temeu que ela
tivesse mudado de ideia e quis gritar, agarrá-la, forçá-la. Mas não
era rechaço o que viu.
Nua, ela se aproximou de joelhos e o agarrou nas mãos,
paralisando-o com milhares de sensações. Os músculos do seu
estômago se esticaram e suas pernas tremeram, mas se manteve
de pé enquanto ela se inclinava, deixando que seus dedos
explorassem sua sensível pele conforme sua outra mão o
acariciava com firmeza roçando na mais deliciosa agonia.
Mais bruscamente do que pretendia, Sean tomou seu
rosto em suas mãos e a beijou de novo, usando sua língua,
dentes e o poder do seu desejo para fazer com que ela se sentisse
como ele a sentia. Desequilibrou-a e ela caiu sobre ele, mas suas
mãos continuaram sua maravilhosa tortura quando lhe devolveu
o beijo, o saboreando, o eletrificando com a sensação da sua
quente resposta. Quanto tempo esteve pensando nisto?
Desejando isto? Parecia que toda uma vida.
Não duraria se ela não parasse. Puxou-se dela para
apertá-la contra ele e fez com que ambos baixassem até
que se colocou sobre ela, quadril com quadril, boca
com boca. Ela o deixou livre com um desinteressado
puxão que quase lhe fez gozar.
Ela disse seu nome, dizendo-o com
reverência contra seus lábios, contra sua
Brumas da Irlanda 1 Página366
garganta, contra os sensíveis grupos de músculos dos seus
bíceps. Ela estava o seduzindo, o fazendo sentir-se inexperiente,
como se fosse sua primeira vez. Não como nesta manhã quando
tinha sido flexível e obediente, respondendo a suas demandas
com consentimento entusiasmado.
— Lembra-se do sonho? — Respirou ela contra sua orelha.
Sim, se lembrava, mas não era nada como está
transbordante tensão e necessidade. — Disse coisas, disse-me
que fizesse coisas…
—Lembro-me — disse ele puxando-a para poder beijar
seu seio, lambendo as duras pontas dos seus mamilos.
Ela se arqueou contra ele, com sua quente umidade
estendida sob seu ventre, fora do seu alcance, fora do seu
contato. Ele desejava agarrar seus quadris e a forçar para baixo,
introduzir-se dentro dela e observar seu formoso rosto enquanto o
fazia. Que idiota podia havê-la chamado de fria?
Ela estava beijando-o de novo, em todas as partes,
humilhando- lhe e investindo-o com essa paixão. Incitava-o com a
suave umidade da sua boca até que não pôde
suportá-lo mais. Então, ela se deteve uma vez mais.
— Sean? — Disse, enterrando o rosto em
seu pescoço. Ele sentiu uma quebra de onda de
calor seguindo seu nome e se moveu para poder
Brumas da Irlanda 1 Página367
olhá-la. Seu rosto se tornou vermelho e ela não conseguia olhá-lo
nos olhos.
— O que aconteceu? — Perguntou ele enquanto o rubor
se estendia por seu pescoço e peito — Danni, o que foi?
— Eu quero… — ela começou, e logo afastou os olhos
outra vez, com vergonha.
— Sim — disse ele com uma risada de surpresa que era
tão tensa como cada centímetro do seu corpo — Deus sim, algo
que queira, diga-me e o farei. Sim.
Ela o investigou com um olhar que era ao mesmo tempo
satisfeita e horrorizada, como se não pudesse acreditar que
tivesse a coragem para perguntar. Ele queria que lhe dissesse o
que queria, queria dar-lhe agora. Imediatamente.
— Quero fazer… O que fizemos no sonho. — Ela suspirou.
O que tinham feito? Que não tinham feito no sonho?
Tinha sido a mãe de todas as fantasias.
— Eu quero isso, também — disse ele, porque claro o
queria.
Ela respirou profundamente e então o
segurou. Um pequeno suspirou pareceu indicar que
algo dentro dela estava preparado. Moveu-se de
novo para poder sentar-se escarranchada, com
seus seios pressionando seu peito em uma tortura
Brumas da Irlanda 1 Página368
que felizmente duraria para sempre. Suas pernas penduravam
sobre a borda da cama e pressionou a ponta dos pés no chão
enquanto seu contato saturava cada centímetro dele. Sua boca
encontrou a dele e lhe beijou profundamente, com sua língua
suave e exótica contra a sua.
E então, ela começou a descer por seu corpo, com suas
carícias cada vez mais atrevidas conforme baixava. Mordeu seu
quadril, pressionando seus lábios no ponto abaixo do seu
umbigo. Depois, suas mãos estavam ao redor dele e sua boca.
Santa mãe de Deus, sua boca.
Ele fez um som de pura agonia e ela se deteve.
– Sinto muito. Machuquei-te? — Perguntou ela com voz
horrorizada. A incredulidade de Sean foi só superada por sua
necessidade.
— Deus não, Danni, é perfeita. Você está me fazendo…
Mas ela tinha ouvido tudo o que precisava ouvir e voltou
para o que tinha entre as mãos com renovado ardor. Sean se
apoiou sobre os cotovelos, observando-a enquanto lhe beijava,
acariciava, lambia e Deus lhe salvasse, chupava. Ele
estava tremendo pelo esforço de conter-se quando
ela parecia decidida a quebrá-lo.
— Danni, carinho — disse ele, sem
respiração, sem tempo — Se não… — Ela levou
sua língua sobre sua cabeça em círculos quentes
Brumas da Irlanda 1 Página369
e úmidos — Se não…
— O que? — Gritou ela de repente, com sua voz cheia de
frustração — O que estou fazendo errado? Por que não tem…. Por
que você não está…?
Os olhos dela se encontraram com os dele e viu seu
absoluto assombro. Viu que ele estava contendo-se, querendo lhe
agradar antes de gozar.
— Oh — disse ela.
Não lhe deu a oportunidade de dizer mais nada. Elevoua, rodando sobre suas costas enquanto encaixava entre suas
pernas, estômago contra estômago, agitado peito contra agitado
peito, boca contra boca. Cada parte dele parecia se encaixar com
seu corpo. Tremeu enquanto a sustentava, dentro do calor e da
umidade dela e começava a mover-se devagar, com carícias
tortuosas. Converteu-se em uma sensação isolada, a sensação
dos seus dedos em seu cabelo, da sua boca contra a dele, dos
seus seios suaves e aplanados pela forte parede do seu peito. Ele
se deslocou, movendo suas mãos para seu ventre plano para
tocá-la, onde cada suave e feminino mistério parecia
existir.
Ela gemeu seu nome e arqueou as costas,
arrastando-o mais profundo dentro dos seus
segredos. Ele se esfregou em círculos e se moveu
dentro dela, centrando-se no ritmo do seu corpo,
Brumas da Irlanda 1 Página370
no áspero da sua respiração, no suave murmúrio da sua voz
enquanto a levava a mesmo limite em que ele se encontrava. Ela
gozou com um grito que o levou com ela. Sujeitaram-se um ao
outro, enquanto as sensações lhes rasgavam em um insuportável
prazer. Sentia-se como se algo se abrisse em seu interior e a luz
se derramasse, afastando as sombras e os medos, deixando só o
momento em que Danni se marcou a fogo em sua mente.
Seu coração parecia que poderia transbordar do seu
peito enquanto se abraçava a ela e olhava seu formoso rosto. Em
só alguns dias, ela se converteu no centro do seu mundo.
Significava mais para ele que sua própria vida. Como tinha
ocorrido isso, não sabia. Mas não podia dizer que não era
verdade, nem sequer para si mesmo.
E com o reconhecimento, veio o medo outra vez. Escuro,
insidioso e sólido. Se a perdesse, morreria. Literalmente e
figurativamente. A compreensão o conduziu a um precipício que
não podia examinar. E não podia olhar para baixo.
Fez a única coisa que pôde. Abraçou-a com mais força,
encontrando um refúgio em seu contato, em seu aroma. Beijou-a
como se sua vida dependesse disso, sentindo que de
alguma maneira era assim.
Brumas da Irlanda 1 Página371
Capítulo 23
Eles estavam em silêncio altas horas da noite, frente a
frente, tocando os dedos, pele contra pele. Danni tinha
perguntado sobre sua infância, escutando a profunda mudança
da sua voz enquanto ele falava sobre ter crescido em Ballyfionúir,
onde conhecia à maioria das pessoas. Tinha falado sobre sua mãe
e de como ela batia em Sean e em seu irmão a cada momento de
suas vidas. Ela levava uma garrafa em sua bolsa e tinha
participado mais que na comunhão do vinho durante o serviço. O
fluxo da sua voz era outra carícia na escuridão e uma em que ela
caía, como uma escura piscina de água cálida.
Enquanto olhava sua boca formando as palavras,
enquanto observava as lembranças moverem-se através dos seus
olhos, ela pensava que ele era dolorosamente bonito. Quase no
mesmo instante, foi golpeada pela verdade da sua
situação. Era retorcido o que eles haviam
compartilhado, somente alguns momentos antes
que a realidade os separasse. Por alguma razão,
Sean estava vivo neste tempo, mas em seu tempo,
no tempo que ela conhecia e no que queria viver
Brumas da Irlanda 1 Página372
de novo, ele era um fantasma. A tragédia disso quase a tirou da
cama. Uma imagem ao azar chegou a ela então, de um filme que
tinha visto na casa de acolhida, antes que Yvonne a adotasse. Era
um filme dos anos noventa, sobre um homem que nunca tinha
conhecido o amor até que uma estranha mulher apareceu em sua
vida de repente.
Lembrava Tom Hanks como o herói, como o tonto e
encantador, apaixonado pela formosa mulher com um comprido
cabelo loiro e estranhas maneiras. Tinha-a levado para casa com
ele, tentado casar-se com ela e viverem felizes, até que tinha
descoberto que ela era uma sereia. Bêbado e desiludido, Tom
Hanks havia procurado seu irmão com uma perplexa dor e tinha
lhe contado que por toda sua vida tinha procurado alguém a
quem amar e agora que finalmente tinha encontrado, a mulher
dos seus sonhos era um peixe14.
O conteúdo da história tinha sido um clássico e nunca
falhava em provocar risadas. Embora não a fizesse sorrir pensar
nisso agora, porque a retorcida dor por trás da frívola declaração
era muito real para ela. Danni também esteve procurando alguém
a quem amar sua vida inteira. E Sean era mais do que tudo o que
tinha desejado.
Só que em seu caso, o homem dos seus
sonhos não era um peixe. Estava morto, ou o
estaria ao final do dia seguinte. Ela quase o havia

14 Se refere ao filme Splash
Brumas da Irlanda 1 Página373
dito antes, deveria haver-lhe contado quando a oportunidade
tinha estado ali, tão perto. Era quase como se ele tivesse
esperando-a pronunciar essas palavras. Mas não tinha
conseguido fazê-lo. Tinha mais medo de ser abandonada. Medo
de perdê-lo. Medo do que a verdade faria a frágil bolha em que
viviam agora.
Sean continuou falando, alheio à confusão do seu
coração, ela notou a confusão que nublava seus olhos enquanto
ele se olhava pelos anos de adolescência até a idade adulta. Os
vívidos detalhes das suas lembranças se atenuavam enquanto se
esforçava para se recordar da sua vida depois de haver-se
convertido em um espectro involuntário.
Ignorado, ou notado só por uns poucos, aqueles
sensíveis a sua energia, esses que temiam a imagem sombria que
nunca estava completamente enfocada.
Ele tinha tomado suas reações por aversão. Por que
gostariam dele e o aceitariam? Ele era o filho de um homem que
tinha assassinado sua própria esposa e depois, tinha aniquilado a
jovem e feliz família de outro homem. Não os culpava por sua
censura.
Colleen tinha sido a única constante em
sua vida depois que Fia e os filhos desapareceram
depois que Niall se suicidara arrependido…. Depois
Brumas da Irlanda 1 Página374
que Sean tinha sido assassinado. Danni juntou as peças do que
ele não dizia.
De vez em quando, parece que conhecia alguém com um
sexto sentido, alguém que realmente podia lhe ver e de repente,
os detalhes apareciam de novo. Não sabia como o alívio enchia
seus olhos então, nem como esses bolsos de consciência
começavam a confirmar sua existência.
Entretanto, Danni o entendia. Pensou no que ele tinha
contado antes, sobre a viúva que visitava no meio da noite. O
Sonho dos Amantes, ela o chamou, imaginou à solitária mulher
visitada por Sean; o sólido, musculoso e quente Sean. Ela tinha o
visto como Danni? Ou tinha sido uma fantasia que imaginou
como um sonho, como o que tinham compartilhado ontem pela
manhã?
— Ei — disse ele, passando seu dedo sobre sua
mandíbula — Te coloquei em coma com minhas aborrecidas
histórias, verdade?
A simples ideia a fez sorrir. Sean era muitas coisas que
ela não tinha esperado, mas aborrecido não era uma.
Podia escutar essa profunda e excitante voz todos os
dias e nunca se cansaria dela. Inclinou-se mais
perto e o beijou. A sensação da sua boca era
aditiva, como seu sabor, seu aroma. Fizeram amor
por horas, horas, até que seus músculos se
sentiram cansados e saciados, mas ela ainda
Brumas da Irlanda 1 Página375
queria mais. Uma provisão que durasse quando ele se fosse.
A ideia a fez pensar. Não. Encontraria um modo de
assegurar-se de que não acontecesse.
Faltavam várias horas antes do amanhecer quando Danni
saiu fora da cama e se vestiu. Tinha dormido um pouco, mas
cada vez que dormia, o calor do homem dormindo ao seu lado a
despertava de novo. Seus pensamentos finalmente a tinham
levado para fora da cama, longe do homem que despertava nela
sentimentos que não podia permitir que fincassem raízes. A
qualquer momento, o ar poderia mudar de novo e cuspi-los a
ambos para fora desse tempo e lugar e voltar para um futuro que
não tinha sentido. Não podia amar um homem morto.
Inquieta, andou pela cozinha até que começou a sentirse enjaulada. A sensação de estar presa finalmente a forçou a ir
para fora, onde o som do mar golpeava implacavelmente contra as
rochas, retumbando e retrocedendo com inquebrável
determinação, aliviando sua tensão. Debaixo da negra tapeçaria
do céu, ela podia ver as luzes sobre a água. Os navios de pesca já
frenando, lutando contra a maré.
Danni respirou o aroma salgado e úmido do
ar, girando seu rosto para a lua chapeada que
descia no horizonte. O amanhecer não estava longe.
Quase gritou quando uma sombra se
moveu para ela e Colleen se materializou na rocha
Brumas da Irlanda 1 Página376
plaina onde estava sentada. Como se fosse a coisa mais natural
do mundo para Danni dar um passeio a altas horas da
madrugada e para Colleen aparecer ao seu lado.
— Esteve me esperando — disse Danni e não era uma
pergunta.
— Por mais tempo de que sei, garota — respondeu
Colleen, atraindo-a de novo para a rocha — Sente-se, me faça
perguntas. Terá algumas a estas alturas.
— E me dirá a verdade se as formular?
— Por que não o faria?
Danni se sentou, tentando mascarar sua frustração pela
evasiva resposta de Colleen. Danni queria perguntar sobre Sean,
mas tinha medo… medo de que formular as perguntas em voz
alta pudessem de alguma forma tirar os minutos de felicidade que
tinha encontrado. Mas sabia que era uma forma tola de
pensamento. Porque nesta noite, ambos estariam mortos. Embora
ela não pudesse começar ali. Não com Sean.
— O que aconteceu a minha mãe? — Perguntou em
seu lugar.
— Foi para América — respondeu Colleen
friamente.
Brumas da Irlanda 1 Página
377
— Responda com algo que ainda não saiba. Por que
abandonou meu pai? Foi por Niall?
— Disso sei menos que você. Só sei que agarrou você e
seu irmão e foi encontrar-se com sua irmã.
— Com sua irmã? Na Califórnia?
— Acredito que é a verdade, mas não o juraria.
— Levou a ambos? A Rory e a mim? Mas o que
aconteceu com ele? E por que fui abandonada no Arizona?
Colleen olhou para seus pés e sacudiu a cabeça.
— Só posso imaginar pelo que sei de você, o que sei dela
e o que espero que tenha ocorrido. Acredito que deve ter
encontrado sua irmã e deixado Rory com ela. Então te levou para
o Arizona; não me pergunte por que, pois não lhe posso dizer
isso.
— E então, o que?
Ela olhou para Danni de forma lúgubre e encolheu os
ombros desalentadoramente.
— Só pode ser ruim, seja o que for. Nada a
teria feito afastar-se dos seus filhos.
Brumas da Irlanda 1 Página378
— A menos que decidisse voltar para Rory e simplesmente
me deixar para trás. Essas palavras queimaram sua garganta.
— Não acredita nisso, verdade? E eu tampouco.
Danni olhou para o outro lado. Não sabia no que
acreditava mais. Mas está podia ser sua única oportunidade de
encontrar a verdade e não pôde evitar perguntar o que mais
precisava saber só porque tinha medo.
– E sobre Sean? — Sussurrou — Como morreu?
— Não viu você mesma? — Inquiriu Colleen.
Danni cruzou os braços, olhando além de Colleen no mar.
— O que vi foi muito confuso. Não poderia dizer
exatamente o que estava acontecendo. Acredito que Sean, o jovem
Sean, já estava morto. Estava no chão e Niall lhe sustentava.
Estavam na caverna, sob as ruínas.
Ela levantou o olhar a tempo de ver como se estreitavam
os olhos de Colleen. Havia uma faísca de algo ardendo em sua
profundidade. Talvez esperança, talvez desespero. Danni não
podia dizê-lo.
— Minha mãe estava lá com Rory e comigo.
— E onde estou? — Perguntou Colleen.
Danni negou.
Brumas da Irlanda 1 Página379
— Há outro homem, mas não pude vê-lo. Não sei quem
é, mas estava zangado e discute com minha mãe, ou com Niall.
Não vejo meu pai absolutamente. Deve ter vindo depois. Muito
tarde para nos ajudar.
— E eu não estou lá? — Repeti Colleen, sua voz aguda.
— Não. Deveria estar lá?
— Desde que Michael era criança eu vi — disse ela
brandamente — E embora não tenho ideia de como, sei que vivi
isso.
— Viveu? O que significa isso?
Colleen sacode a cabeça.
—Conte-me mais.
Danni queria pressioná-la, mas a intensidade da
expressão de Colleen a fez continuar.
— A discussão entre o homem que não posso ver e Niall
ou minha mãe parece intensificar-se, escutei uma arma e há dor.
Sinto dor. Como se tivessem me disparado. E então,
estou do lado de fora de novo com Sean. Com o Sean
adulto. Estamos de pé ao lado de uma sepultura e
quando olho dentro, me vejo como sou agora. Uma
mulher. Estou em uma tumba com Michael, com
Sean. O menino.
Brumas da Irlanda 1 Página380
— E as ruínas estão as suas costas, com o dólmen à
distância.
— Como sabe?
— Vi isso, muitas vezes.
— Tudo? Ou só a sepultura? — Colleen não responde.
Frustrada, Danni faz outra pergunta — Por que disse que tinha o
vivido?
Colleen se move incômoda.
— Pensará que sou uma lunática — murmurou.
— Já penso isso — rebateu-lhe Danni e a velha mulher a
olhou com surpresa.
— Está bem, suponho. Vou te contar isso então, embora
duvide que acredite. Começa cada vez em um lugar diferente. A
princípio, era simplesmente o Livro que via.
— O Livro de Fennore?
— Sobre de que outro livro estaria falando? — Disse ela
bruscamente — Outras vezes, vi a tumba ou a
caverna.
— Pelo amor de Deus, Colleen. Só uma
vez, podia ser menos enigmática? — Pediu Danni.
Brumas da Irlanda 1 Página381
— Eu não gosto desse tom azedo, garota.
— Sinto muito. Mas acredito que estou ficando sem
tempo.
— Aye e tem razão a respeito disso. Mas você vê,
aconteceu uma e outra vez. Não só vi, também fiz isso. Também o
vivi.
— Não compreendo o que quer dizer com isso.
— Claro você apressa- me. Pode esperar?
Danni deixou sair um suspiro de exasperação e de
irônico regozijo. Sua avó podia parecer uma doce anciã, mas
qualquer parvo que a tomasse por essa enganosa aparência
encontraria logo abaixo dessa fachada uma vontade de ferro.
Colleen suspirou pesadamente e continuou.
— O que seja que funciona aqui, em Ballyfionúir está
quebrado. Fora de todo sentido de regras. Sempre foi dessa
maneira. Os antigos falarão disso, se os compra uma bebida e
junto com a música soltarão as línguas. Contarão histórias sobre
gente aparecendo como um relâmpago de luz só que
sem o trovão para te avisar. Ou outros que
simplesmente desapareceram, de repente estavam e
depois não. Eliminados por Deus e levados para
outro lugar.
Brumas da Irlanda 1 Página382
Lendas, mitos, construíam-se e estendiam-se através
dos tempos. Assim é como uma pessoa judiciosa o chamaria. Mas
Danni tinha renunciado à prudência, e parecia que a prudência
tinha desistido de Danni. Seriam os antigos de que Colleen falava,
outros viajantes no tempo? A pessoa que aparecia e desaparecia…
como tinham feito Sean e Danni? Danni teria zombado se não se
provou por si mesma o que ocorria, o que tinha ocorrido.
— É só aqui onde se contam essas histórias? Em
Ballyfionúir?
— Oh, não, a ilha inteira está cheia de magias da terra
até as nuvens. Não pode senti-lo?
Danni negou. Sim, sentia-o. — É pelo Livro de Fennore?
— Não posso te dar a resposta a isso. Nem eu sei. O que
sei é que não é a primeira vez que vivi o prelúdio desta terrível
noite quando tudo o que amo se perdeu. Vivi-a muitas vezes.
Seus pés de galinha aumentaram quando Danni
perguntou. — Por que não tentou deter isso, se sabia o que ia
acontecer?
— Está pensando que não tentei fazer isso?
Que simplesmente fiquei parada e observei?
— Não sei o que pensar, Colleen.
Brumas da Irlanda 1 Página383
— Tentei duas vezes, mas o destino seguiu seu
caminho. O demônio não se modificaria a não ser que estivesse
bêbado.
— Mas o que aconteceu quando tentou?
— O final foi o mesmo, entretanto, não foi. Não vou falar
disso — disse ela e havia uma escura pena em sua voz que cortou
Danni como as lascas de metal de uma espada — Só posso dizer
que fiz algo pior, ambas às vezes. Não posso tentar outra vez.
Danni a observou, esperando que continuasse, mas ela
caiu em um inquietante silêncio.
— Está lá quando acontece? — Repetiu Danni
brandamente — Porque eu não te vi?
— Nesta última vez, não pude ver outra vez. Não pude
enfrentar isso e não fazer nada. Entretanto, sabia que algo que
tentasse só pioraria no final. Assim eliminei minhas esperanças…
todas as esperanças… — foi calando e algo em seus olhos fez com
que Danni sentisse como se tivesse perdido uma pista vital.
— Então está dizendo que revive sua vida?
— Não toda.
Não toda? O que significava isso?
Brumas da Irlanda 1 Página384
— Eu deveria dizer que é sua vida a que vivo.
— Minha vida…? — Danni franziu o cenho.
E, de repente, o entendimento se alojou sobre sua vida
como a branca espuma chegava sobre a suave areia e os
fragmentos das conchas na praia. Esta noite, a Danni adulta
morreria, mas sua menina interior permaneceria abandonada no
Arizona, sempre procurando o que não poderia encontrar, o que
não poderia ter. E nesta noite, o jovem Sean morreria, só seu
espírito persistiria, para sempre procurando justiça. Ambos
existiriam em lados opostos do mundo até que um dia Colleen
enviaria esse espírito para encontrar Danni e a traria de volta
para esse ponto em concreto. Quando tudo aconteceria outra vez.
— Sabia que Sean e eu iriamos vir, porque estivemos
aqui antes — sussurrou ela.
Colleen assentiu.
— Mas não fazemos nada diferente. Simplesmente
morremos novamente. É isso o que está dizendo?
O lábio inferior de Colleen tremeu e seus
olhos brilharam com lágrimas retidas.
— Mas algo mudou desta vez, verdade?
Você acredita que algo será diferente. Por quê? O
que é?
Brumas da Irlanda 1 Página385
— Não posso dizer-lhe isso sussurrou ela, sua voz se
quebrou — Sorte, destino. Não podem ser forçados pela vontade
de uma pessoa, poderá agora? Não olhe para trás e faça de forma
diferente. O Senhor sabe que tentei alterar o curso do tempo
outra vez.
— Não dê voltas, Colleen. Diga-me o que fazer. Fale como
o salvar.
— E fazer tudo pior? Possivelmente trocar uma vida por
outra? Afastar a única oportunidade de alterá-lo de novo? Não
está escutando o que estou te dizendo, garota? Tentei e falhei. O
que for que tenha que vir, vai sair de você.
Ela tentou e falhou, entretanto Colleen tinha a
habilidade para fazer algo bom, ou ruim. Algo que tinha
culminado nesse momento, nesse momento de verdade. A não ser
que isso também fosse outra parte de um ritual repetitivo.
— O que o Livro de Fennore tem a ver comigo, Colleen?
Supõe-se que tenho que usá-lo? É isso que está tentando me
falar?
A luz da lua deu a Colleen um brilho de
cera. Parecia irreal, sentada na ansiosa escuridão da
noite, banhada pelo resplendor do severo e inflexível
brilho. As linhas do seu rosto eram um mapa de
profundos vales da sua pena, de bordas dentada
da sua alegria, dos vívidos rios de esperança. A
Brumas da Irlanda 1 Página386
brisa acariciava o final da sua capa e movia as mechas soltas do
seu cabelo. Parecia sozinha e perdida, mas forte e determinada.
— Confia em você mesma, neta — disse-lhe Colleen
brandamente — Se for o Livro o que acredita que deve usar, então
isso é o que deve fazer. Só você sabe a resposta dessa charada.
— Por que só eu?
— Foi você quem a escreveu — disse ela.
Danni fechou os olhos com força frente à onda de ira
que se erigiu em seu interior. Por que Colleen não podia lhe dar
uma resposta direta? Sim ou não, vá ou fique. Usa-o ou foge.
— Só me diga a verdade — disse ela, incapaz de manter
seu ressentimento a raia.
— Aye, todos queremos isso. A verdade. Mas, quem diz o
que é a verdade? Não eu, por isso tentei adivinhar, estive
equivocada muitas vezes antes.
Danni abriu os olhos outra vez, escutando o sussurro
das palavras repetirem-se na sua cabeça. Sorte, destino. Não
podem ser forçados pela vontade de uma pessoa,
poderá agora? Estava perguntando-o ou afirmandoo?
— Pode ser mudado — disse Danni de
repente, com força.
Brumas da Irlanda 1 Página387
— De verdade? E quem estaria realizando as
mudanças? Você? — Embora suas palavras viessem com uma
pontada de dúvida, Colleen não pôde esconder a impaciência em
seu tom.
— Talvez — disse Danni.
— Você tem certeza, não parece convencida? Talvez. É
talvez o que Deus tinha em mente quando criou ao mundo?
Danni levantou a sobrancelha.
— Talvez essa seja a razão pela que existe semelhante
desordem. Colleen sorriu ante isso.
— Colleen deu palmadas na mão de Danni. — Faça-me
outra pergunta — disse ela — Pelo que eu sei há uma resposta e
você encontrará a maneira de descobri-la.
— Conte-me sobre o livro — disse Danni brandamente
— Minha mãe o trouxe? — Só sei o que ouvi, não o escutei do
vento e cada janela escutou isso antes de mim. Todas são lendas.
Isso é o que é.
— Sean diz que o Livro não pode ser usado —
disse Danni.
A anciã se deteve, pensando. Danni se
perguntou que pensamentos iriam através de sua
aguda mente. Esperou, tensa e insegura.
Brumas da Irlanda 1 Página388
— Os Ballaghs sempre foram conhecidos como
curadores e místicos — disse Colleen, parecendo ignorar a
pergunta implícita — Um homem marcado, tão bruscamente
como significava seu nome. E não era verdade, mas marcados
havemos sido através dos séculos. Os Ballaghs eram poderosos e
temidos.
Ela olhou a Danni com um olhar significativo.
— É por isso que vejo coisas? — Perguntou Danni— por
que há sangue dos Ballagh em minhas veias?
— Aye, primeiro o obteve de mim e logo depois da sua
mãe.
— Minha mãe era uma Ballagh? — Murmurou Danni,
pensando no Cathán tinha perguntando a Fia se Danni era
aparentada com ela. Agora fazia sentido.
— Oh sim, uma descendente direta da união de um
MacGrath e um Ballagh. O mesmo pode dizer-se do seu pai. —
Em sua mente, Danni desenhou o escorregadio mapa da sua
linhagem. Ballaghs e MacGraths estavam entrelaçados e atados
em um laço.
— Minha mãe via coisas também?
— Agora, como eu saberia isso? Ela
pensaria que era eu uma mulher louca se lhe
perguntasse. Mas tinha a marca de nascimento,
Brumas da Irlanda 1 Página389
igual a você e a mim — Collen levantou a manga e mostrou a
Danni o perfil da pequena rosa no oco do seu braço.
– O sobre Sean?
– Na verdade, o que tem ele?
— Quem são seus pais?
— Acredito, que essa é a pergunta a que referi. Meu
marido era um Ballagh como foi sua esposa que morreu ao dar à
luz ao pai de Sean. E quando Niall escolheu uma esposa, foi outra
Ballagh.
— Assim Sean não tem sangue MacGrath?
— Pois sim, em algum lugar de sua árvore familiar
houve um MacGrath. Mas Sean é talvez o Ballagh mais puro de
sangre em séculos.
— E, quero dizer, ele tem visões?
— Se as tiver, nunca as compartilhou comigo. Mas as
visões não são a única coisa pela que se reconheça um Ballagh.
Oh, a lista dos poderes que um Ballagh pode possuir é longa.
Dizem que em outro tempo houve um Ballagh que
podia impedir que a maldita morte levasse os
moribundos.
A boca de Danni secou.
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— Impedi-lo, como?
— Agora bem, se soubesse seria milionária, não te
parece? Mas não era isso a que se referia, verdade? O que é o que
quer saber, garota?
— Sean tem… poderes? — Sentiu-se ridícula fazendo a
pergunta, mas seria mais absurdo ainda ignorar o que estava
acontecendo ao redor dela. Ballyfionúir era o lugar da magia, do
incrível.
— Oh, aye. É um grande feiticeiro. Não viu como captou
sua atenção?
Danni a olhou para cima ante sua resposta e viu senso
de humor nos olhos de Colleen. Mas por trás disso havia alguma
outra coisa. Algo mais. O olhar enviou um calafrio através do
corpo de Danni.
— Observei a Garda escavar essa tumba e tirar o corpo
de Michael fora dela. E o teu, vi isso também. Mas Michael estava
na manhã seguinte na mesa esperando o café da manhã?
O espírito de Michael, de todos os modos, mas
Colleen não tinha que explicar isso a Danni. Ao que
isso parecia a ambas como poder? Danni pensou em
como viu ele a noite que se apresentou em sua
porta. Não tinha pensado que era um fantasma.
Inclusive depois que lhe conheceu, quando a
tocava, beijava… Ele se sentia real. Não tão real
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como ontem à noite, mas o bastante real para acreditar.
— Ele não é o único fantasma da ilha, verdade? — Disse
Danni — E sobre o fantasma branco?
— O que sabe do fantasma branco? — Perguntou Colleen
com brutalidade.
— Vi-a.
— E que tentou fazer contigo? Ofereceu-te algo? Alguma
coisa?
— Seu pente.
Colleen respirou por seus dentes.
— Não o peguei. Sean me disse que nunca o pegasse.
— Aye, é um bom menino. Assim ele conhece suas
visões? — Perguntou ela, com curiosidade.
— Disse-lhe que era um sonho, mas adivinhou a verdade.
— Mentir nunca é a resposta, garota. Se tiverem que
salvar um ao outro, não podem existir segredos.
— É por isso que estou aqui? Para salvar
Sean?
— E ele, a ti.
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— Com o livro? É isso? Supõe-se que devo usá-lo? —
Colleen sacudiu a cabeça.
— E, como faria isso? Para usá-lo deve o ter. Para o ter,
deve saber onde encontrá-lo.
— O procurou verdade? — Perguntou Danni de repente
— Viu-o, também, tentou agarrá-lo.
— Vi-o só uma vez — contou-lhe Colleen — Nas mãos do
meu filho, logo antes que destroçasse tudo o que amava.
— Quer dizer no tempo real? Não em uma visão? —
Colleen assentiu, com os olhos no rosto de Danni.
— E você?
— Só em visões. Duas vezes, até o momento.
O sorriso que apareceu nos lábios de Colleen,
proporcionou-lhe muita satisfação porque Danni não sabia que
tinha chegado a esse ponto. Inexplicavelmente, mas
infalivelmente guiada.
— E, o que viu?
— O suficiente para tirar esse sorriso de
satisfação do seu rosto.
— Não é satisfação — disse ela.
Brumas da Irlanda 1 Página393
— O que é então? — Perguntou Danni. — O Livro de
Fennore é demoníaco. Posso sentir isso, e nem sequer estive lá.
Não realmente.
— É certo. Pode te dar tudo o que deseje, mas o que for
que pegue… roubará uma parte de você, do que te faz uma
pessoa, faz humana.
— Mas, quer que eu tente usá-lo de todos os modos? —
Perguntou Danni, ferida, sua alma danificada por ter que fazer
essa pergunta.
— Não posso dizer-te o que deve ou não deve fazer. Pode
não estar escutando minhas palavras?
— Escutei bem — E o tom de Danni dizia que o fazia.
Colleen estava disposta a sacrificar Danni se isso significava
salvar a todos outros. De repente, estava cansada, cansada até o
mais fundo do seu ser. Levantou-se e caminhou para a cabana.
— Sou só a mensageira aqui, Danni, — disse brandamente
Colleen.
— É curioso, Sean me disse o mesmo. Mas,
sabe o quê? Não o faz melhor. Escutei que Grim
Reaper é só um mensageiro, também.
Os olhos do Colleen se entreabriram.
Brumas da Irlanda 1 Página394
— Não use esse tom comigo, Dáirinn. Ainda sou sua avó
e terei o respeito que mereço.
— Minha avó? — Repetiu Danni com incredulidade —
Na verdade, Colleen é uma estranha. Nada mais, nada menos.
— E de quem é a culpa?
Danni a olhou, sem palavras. De quem é a culpa? Estava
louca?
Mas os olhos do Colleen estavam centelhando agora,
dirigiu-se para Danni e apontou o dedo.
— Direi isso, pois parece que perdeste a língua de
repente. A culpa é tua, Dáirinn MacGrath. E só tua.
O fôlego saiu dos seus pulmões com um assobio.
— Como pode dizer isso? Sabe como foi a vida para mim?
Faz…
— Ehhh, me economize o triste conto. O que foi a vida
para Sean? Para Niall? Para sua mãe? E sobre eles?
Danni estava sacudindo a cabeça, tentando
compreender como Colleen podia depositar a culpa
sobre Danni.
— Eu era uma menina quando tudo isto
aconteceu.
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— E inclusive então você poderia ter parado. Mas, em
seu lugar, colocou tudo no passado e nunca pensou nisso outra
vez. Esqueceu-o — acusou ela.
— Pensa que fiz de propósito? Meu Deus, Colleen,
acredita que escolheria viver dessa forma?
— O que eu acredito não é importante.
— Mas está me acusando…
— No final do dia, tudo o que amo será arrebatado. Não
tenho tempo para mostrar-te a verdade. Pode detê-lo.
— Não pode estar falando a sério? — Disse Danni,
sentindo impotência sob o peso da censura de Colleen — Olheme. Não sou um ser onipotente que pode estalar os dedos e
mudar o mundo. Não posso conseguir nem que meu próprio cão
siga-me para casa.
— E, entretanto, está aqui.
— Por você. Você trouxe-me aqui.
— Não, garota. Não fui eu e não foi Sean.
Olhe dentro de você mesma para ver como chegou
aqui. — Então girou e se afastou.
— Espera — disse Danni — Que mais…
como se supõe… o que devo fazer?
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— E que resposta quer que te dê? Pode fazer o que for
que queira sua mente. Não é isso o que diz o refrão?
— Mas nem sequer sei por onde começar.
— Então, clarearia minha mente para descobrir, verdade?
E com um gesto brusco se afastou e começou a descer o
caminho sem olhar para trás. A névoa do mar a envolveu e deixou
Danni só em um mundo em branco e negro sem lugar onde
esconder-se.
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Capítulo 24
Enquanto Danni retornava para dentro da casa, ainda
podia escutar as ondas golpeando contra as rochas, pedindo
submissão, erodindo a pedra e destroçando a sedosa areia. Assim
era como Danni sentia-se por dentro, como algo que tinha sido
feito em partículas que não voltariam a converter-se em sua
origem.
Sentou-se no sofá e colocou as pernas embaixo dela. A
casa estava em silêncio, exceto pelo suave e firme som da
respiração de Sean só a alguns centímetros em seu improvisado
dormitório. Tinha deixado a cortina aberta e podia ver a
misteriosa silhueta dele sobre a cama. Ela escutava, sentindo-se
fora da sua própria pele conforme a conversa com Colleen se
repetia em sua cabeça.
Inclusive então, poderia ter parado.
Sua vida inteira tinha tentando fingir era
como todos outros. Mas nunca enganou ninguém,
verdade? Não importava o quão bem se tornou em
esconder quem e o que era, os outros sempre
Brumas da Irlanda 1 Página398
sentiam que acontecendo algo com ela. Algo não muito bom, não
muito normal. Das famílias de acolhida até os homens que
conheceu, tinham-na rechaçado.
Agora, ali estava ela. Vivendo o impossível. Tendo
conversas na metade da noite com uma estranha, dizendo ser sua
avó. Alguém que pensava que tinha o poder de mudar seu
mundo. Ela fechou os olhos, escutando as palavras de Colleen em
sua cabeça, as repetindo como um mantra. Era Danni quem
havia lhes trazido aqui? Ou era o livro?
Aceitou que não era um sonho ou uma visão o que a levou
para vinte anos no passado. Recordava-se de ter pensado nesses
momentos antes que o ar se movesse e sentisse que caía,
pensando quão injusto era que Sean tivesse entrado em sua vida
desse modo. Como desejava poder fazer diferente.
Isto era real, não obstante impossível e talvez não fosse
responsável por isso. Assim o que importava se criava outro
gigante salto dentro do lado escuro? Que dano poderia fazer
forçando-o, ver se havia algo mais que pudesse fazer?
Pôs suas pernas para cima contra seu peito e
enrolou seus braços ao seu redor. Fechando os
olhos, concentrou-se em Niall, tentando lhe seguir
com a mente. Podia lhe ver claramente em sua
cabeça; a forma em que tinha estado de pé dentro
da caverna, observando sua mãe nadar como se
fosse uma mística criatura marinha jogada em
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seu mundo por poderes de encantamento. Parecia um homem
agonizando, enfrentando de repente a oportunidade da sua vida.
Ela apontou para isso, para seu desespero. Concentrada no ir e
vir de seus sentimentos conflituosos.
Sentiu o vínculo familiar, a tensão no ar. Oprimia-a,
formando redemoinhos a seu redor enquanto o alcançava. Perto,
tão perto. Podia ver tudo, mas não podia envolvê-lo com sua
mente, não podia encontrar uma maneira de transformá-lo. E
logo tudo se foi e começou a desvanecer-se.
Não.
Ela apertou os olhos fortemente, tentando sair e entrar
na briga, mas a ilusão era muito fina para apanhá-la, muito
difícil de alcançar. Não podia forçá-la.
Tinha sido estúpido pensar que poderia.
Deixou escapar um suspiro de derrota, de frustração e
de remorso. Collen estava equivocada, Danni era diferente, mas
não era especial. As coisas aconteciam a ela, não o reverso, não
porque ela provocasse que ocorressem. Descansando seu queixo
nos joelhos, olhou para silhueta de Sean na cama. A
vibração do ar pairava logo acima, fora do seu
alcance. Zombando dela, puxando dela.
— O que está fazendo? — A voz de Sean
ressonou através da habitação e a assustou.
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— Pensei que estava dormindo — disse ela, com a mão
sobre o coração.
Ele sentou-se e ela sentiu seu olhar movendo-se sobre
ela, embora não pudesse ver seu rosto ou distinguir suas feições.
— Despertei e você tinha saído. Onde foi? — Perguntoulhe ele.
— Estava lá fora. Necessitava ar fresco.
— Sozinha?
Não, simplesmente estive falando do impossível com sua
avó; espera, na realidade era minha avó.
— Sim.
Parecia que ele esperava que ela dissesse algo mais. Que
fizesse algo mais. Mas ela só podia olhar, beber a luz da pálida
lua sobre seu musculoso peito, brilhando sobre seus fortes
braços. Recordando as coisas que tinha feito ontem à noite que
faziam com que seu rosto esquentasse e seu estômago ficasse
nervoso. Mas o que tinha descoberto essa manhã a tinha
golpeado internamente fazendo difícil respirar. Fazia
lhe sentir-se incompetente. Estúpida. Intumescida.
Ele saiu da cama e colocou os jeans,
subindo cuidadosamente o zíper enquanto
avançava para onde estava ela. Seus olhos
estavam analisando-a conforme avançavam sobre
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sua rígida postura. O ar baixou sobre ela de repente e ela soube
imediatamente que estava ao seu alcance. Como uma porta que
se abria, pôde ver a entrada.
— Está bem? — Perguntou ele, detendo-se o lado do
sofá. Quando ela não respondeu, ele levantou seu queixo, olhou-a
nos olhos e disse. — Conte-me, Danni.
A sensação dos seus quentes dedos sobre sua pele, a
compreensão em sua profunda voz inflamou outras coisas ao
redor deles. Sentiu o assobio e o zumbido do ar enquanto a
acariciava como um ardente vento e ela o viu. Em sua mente,
abriu os olhos para visão e a chamou.
Sentiu como caía, caía dentro das profundidades e
então o ar, a casa, Sean, tudo isso começou a girar como se o ar
se apertasse como uma manta. Então se estendeu, apertou-se,
empurrou e a alcançou como uma rede de malha aberta e
pegajosos fios. O instinto a fez lutar antes que a razão pudesse
abraçá-la.
Sean sentiu também. Ela viu em seu rosto, viu a
surpresa, o assombro. Sua mão se moveu do seu
queixo, mas só para poder agarrar seus dedos,
sustentando-a enquanto o mundo se retorcia
asquerosamente. Ela pensou em como ele havia
descrito as paredes como de vidro, mudando o que
estava do outro lado para algo irreconhecível e
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observando como ocorria de novo.
E logo, com um gemido elétrico, as paredes se
desvaneceram completamente.
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Capítulo 25
Danni estava de pé no conhecido vale, empapada na
sombra das ruínas. A seus pés estava o lugar onde a tumba tinha
estado antes, mas agora a corcunda reveladora da terra estava
plaina e coberta de erva e flores. O mar rugia e se estrelava, com
aroma de pescado, pesado com salmoura e um frio que
intumescia. As ovelhas na distância pastavam sem se preocupar,
movendo-se como em uma dança lenta e metódica.
Olhou para baixo com a mão entre as suas Sean…
descalço, sem camisa, vestido só com seus jeans azuis estava ao
seu lado. Estava com ela antes, na primeira vez quando a tinha
guiado. Mas isto era diferente. Ela franziu o cenho enquanto
olhava suas mãos entrelaçadas. A palma da sua mão se sentia
quente contra a sua. Ele era sólido. Real. Igual a Danni, estava
nisso, não só uma parte. Uma pequena distinção
com uma enorme implicação.
Ele apertou seu agarre, atraindo seu olhar
para seu rosto. Estava pálido, com os olhos muito
abertos e turvados.
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— O que é isto? — Perguntou-lhe.
Ela lutou a incredulidade exercendo pressão sobre ela
como grosas e vinculantes cordas.
— Uma visão — disse ela.
E ela a tinha chamado, queria que acontecesse. Sentada
no sofá com os braços ao redor dos seus joelhos, tinha metido a
mão nas profundidades de si mesma e a tinha convocado.
Não. Impossível.
Mas não era impossível, só sem precedentes. Ela a
tinha chamado, seguindo-a como um cometa em uma cadeia,
enquanto flutuava ao seu redor e logo ziguezagueou ao seu redor
e voltou a remontar.
Outra vez, uma voz dentro dela zombou. A primeira vez
que o tinha levado com ela não tinha sido uma visão, foi através
do tempo. Não entendia como o tinha feito, mas algo dentro dela
insistia para que tomasse a responsabilidade.
— Onde estamos? — Sean lhe estava perguntando, mas
não estava segura se realmente tinha movido os
lábios, ou se a pergunta foi emitida diretamente em
sua mente. A ideia dele falando diretamente em sua
mente a fez ter náuseas, assustando-a.
— Danni, onde estamos?
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Ela o olhou nos olhos, sabendo que não estava lhe
perguntando onde no sentido de localização, a não ser no sentido
de tempo e propósito. Ela os trouxe até aqui e ele queria saber
por que. Era razoável. Desejou saber a resposta. Mas não sabia.
Não tinha nem ideia.
Ele assentiu enquanto ela formava o pensamento e
puxou sua mão, aproximando-a mais. Era enervante senti-lo ali,
junto a ela. Sabendo que não estava sozinha nisto. Antes sempre
tinha estado sozinha, ou não?
Será que quando era menina quando tinha pensado
nisso como em voar, houve alguma vez alguém com ela? Uma
lembrança se moveu nas escuras curvas da sua mente e se foi
antes que pudesse focá-la.
Enfrentaram o sinuoso caminho que conduzia das ruínas
à casa de Colleen. A partir dali, puderam ver a forma que
serpenteava ao redor das rochas e se separava como ramos de
árvores para diferentes destinos. Enquanto observavam, um
moço apareceu em um lugar onde o caminho se inclinava sobre a
crista de uma colina. Estava correndo, rindo, enquanto dois
meninos mais o perseguiam pelo outro lado. Estavam
perto de repente e Danni ficou olhando o roto que
tinha chegado a ser tão familiar para ela, viu os
olhos verdes cinzas, a espessa franja de cílios, o
cabelo negro brilhando ao sol. Tinha-o visto como
um homem, como um adolescente e agora como
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um moço jovem, despreocupado e feliz. Era Sean. É obvio que era
Sean.
Junto a ela, o homem adulto ficou rígido e respirou
vaiando profundamente. Puxou sua mão, tentando puxar ela para
trás, longe dos meninos. Ela sentiu sua ansiedade aumentar com
sua resistência, mas não cedeu. Devia seguir os meninos. Soube
de repente e por completo.
— Temos que ir com eles — disse — Venha rápido.
Fazendo caso omisso dos seus protestos, ela começou a
caminhar, cobrindo a distância a uma velocidade exagerada,
rebocando Sean apesar da sua relutância. Tinha medo de soltar
sua mão, medo de que se o fizesse ele estaria perdido neste lugar
onde nada era real, perdido em sua mente se era, em efeito, onde
se encontravam.
Os três meninos se detiveram em frente à casa de
Colleen e conversaram um momento, então um se foi e seguiu
abaixo pelo caminho. Sean, Michael como ainda era chamado
nessa idade e o moço mais jovem ficaram atrás. O menino junto a
Michael tinha o cabelo escuro e um punhado de sardas no
nariz. Seus olhos eram azuis-claros, com o rosto
miúdo com um queixo bicudo e as orelhas que se
sobressaíam um pouco.
— Quem é ele? — Perguntou ela, embora
uma parte dela já conhecesse a resposta.
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Com o rosto de pedra, Sean o confirmou.
— Meu irmão menor.
Os meninos se despediram do seu amigo, chamando-se
com insultos infantis entre si e soprando de risada enquanto se
separavam. O jovem Michael deixou de sorrir enquanto ele e seu
irmão chegavam à porta de entrada, inconscientes de que Danni e
Sean lhes seguiam. Alheios à batalha de vontades, enquanto
Danni tentava fazer Sean ir adiante.
Do interior da casa, o som das vozes zangadas soava
forte. Uma mulher gritou um sujo juramento e um momento
depois vidro foi destroçado em uma explosão frágil. A seu lado,
Sean tentou retroceder, girando para puxar sua mão. Danni
podia sentir seu horror, sua luta para contê-lo e nesse momento
se deu conta do que ia acontecer. Este era o dia em que a mãe de
Sean morreria.
O pavor se afundou profundamente em seu intestino,
mas agarrou os dedos de Sean, ocultando seu medo por ele
enquanto ela se aproximava mais. Estendeu a mão para lhe tocar
o rosto a outra. Obrigou-o a olhá-la.
Havia dor em seus olhos, uma
vulnerabilidade tão em desacordo com seu tamanho
e força que poderia parecer fingimento, se não fosse
pela angústia real que via nele. Não podia soltá-lo
de qualquer maneira. Ela sabia.
Brumas da Irlanda 1 Página408
— Estamos aqui por uma razão — disse ela, pondo a
palma da mão contra a dura linha da sua mandíbula — Lembrase do que disse? Alguém aqui quer algo de mim. — Fez uma
pausa — Sean acredito que é você.
Ela o tinha confundido com isso. Podia vê-lo em seu
rosto. Mas nenhuma explicação daria um sentido ao que queria
dizer. Em troca, ela o tentou de outra maneira.
— Não estamos aqui de verdade, Sean… não como
antes. Não retrocedemos no tempo e não vamos ficar aqui, mas
temos que ver, o que for, antes que possamos ir. — Olhou-o nos
olhos, tentando o convencer que o que dizia era a verdade —
Confia em mim.
As palavras pareceram penetrar e pouco a pouco a
tensão diminuiu de seu rosto, do seu pescoço e ombros. Ele
assentiu e lhe permitiu levá-lo para dentro da casa.
A sala principal estava em penumbras, o ar enevoado
com a fumaça dos cigarros que formavam redemoinhos em uma
dança sem ar, manchando as paredes e nublando o espelho
pendurado junto à porta. Havia cortinas marrons nas
janelas, todas fechadas com exceção de uma que se
abria na parte superior. Michael e seu irmão
estavam no centro da sala, congelados enquanto as
vozes iradas se faziam mais fortes, mais vingativas.
Os meninos se arrastaram para frente, movendose enquanto o pó e a fumaça flutuavam no feixe
Brumas da Irlanda 1 Página409
de luz que rompia através das cortinas. Na porta da cozinha,
Michael fez uma pausa, empurrando seu irmão para trás dele
enquanto olhava em seu interior. Danni podia sentir sua
angústia. Que se apoderou dela, fazendo-a mover-se mais rápido.
— Uma parva é o que pensa que sou — disse uma mulher,
com sua voz aguda e áspera.
Danni deu volta no canto e se meteu na pequena
cozinha. A mulher que tinha falado era baixa e dolorosamente
magra, com o cabelo vermelho muito brilhante para ser natural e
com sobrancelhas marrons escuras. Seu rosto era anguloso, suas
bochechas afundadas, mas Danni podia ver o irmão de Sean nos
ossos finos, no queixo bicudo e nos olhos azuis claros.
Ela sustentava uma taça de chá e um cigarro com uma
cinza alarmantemente larga em uma mão e apontava com um
dedo ao homem de pé em frente a ela com a outra. Seus
movimentos eram torpes, graves. Obviamente não era chá o que
estava bebendo.
— Acredita que sou uma maldita parva não é assim,
maldito bastardo? — Gritou ela, com seus lábios
vermelhos recolhidos em uma careta.
— A metade disso é verdade. Acredito que é
uma parva e que é uma bêbada, Brígid. — O
homem respondeu, virando com um suspiro de
resignação. Um homem gigante, com ombros
Brumas da Irlanda 1 Página410
largos e pernas largas, Danni soube quem era antes de ver seu
rosto. Niall Ballagh, o homem no qual havia se concentrado
quando tinha tentado chamar a visão. Entretanto, uma parte de
Danni estava convencida de que era Sean, quem tinha escolhido
a hora e o lugar.
Os meninos se mantiveram parados e sem ser notados à
sombra da porta, olhando com olhos muito abertos e rostos
pálidos enquanto Niall arrebatava uma garrafa da mesa e virava
um pouco em um copo. O tomou de um gole e o encheu de novo.
— Acredita que eu gosto de vir para casa para isto? —
Exigiu ele — Acabo com minhas costas de merda todo o dia
enquanto você gosta mais da garrafa. O que acontece com os
meninos? Estarão em casa logo.
— Em casa? — Zombou ela — Isto não é uma maldita
casa. Isto é um barraco. Um barraco, ouviu-me?
— Toda as pessoas em Ballyfionúir escutam seus gritos,
mulher.
— Jesus, por que me casei com você nunca saberei.
“Claro, é arrumado”, me disse mamãe. “Mas não
conseguirá nada se não o conseguiu até agora. Já
está nele o aroma do pescado”, disseram. “vai
cheirar a isso até que mora”.
Brumas da Irlanda 1 Página411
— A vida de um pescador é honrada, mulher. Há piores
coisas que um homem pode fazer para pôr comida na mesa.
Perdida em sua própria necessidade de embriaguez para
castrar seu marido, para destroçar e destruir seu orgulho, sua
vida, seu mundo com sua desilusão e o ressentimento
desalinhado, Brígid arrastou as palavras.
— Eu não lhes escutei, entretanto. Nunca saberei por que
não escutei.
— Não, e eu estarei na escuridão, como sempre —
respondeu Niall — Eu não te obriguei. Não pus uma pistola na
sua cabeça.
— E é óbvio desejaria havê-la feito. Eu gostaria que
mandasse meu cérebro para outro mundo, é o que desejo.
Brígid esvaziou seu copo de um gole longo e logo tentou
agarrar a garrafa de Niall. Ele lutou por ela, empurrando-a para
trás enquanto ela gritava com fúria. Sua taça caiu no chão e se
rompeu em mil pedaços quando ela se voltou de repente, pondo
sua mão em forma de garra. Passou-a pelo rosto de Niall com um
grito de satisfação e logo lhe arrebatou a garrafa e a
levantou triunfante.
Ao lado de Danni, a respiração de Sean se
tornou mais rápida. Cautelosamente olhou para
baixo para as crianças, vendo como seus peitos
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deixavam escapar as mesmas respirações curtas e rápidas.
Brígid inclinou a garrafa e bebeu diretamente do
gargalo, enquanto Niall limpava o sangue que emanava dos
arranhões em seu rosto.
— Cristo no céu, puta, é uma cadela louca.
— E você não é mais que um fracasso vestido como
homem. Ela pensa isso, também. — Brígid tropeçou e cambaleou
sobre o mostrador, deixando cair seu cigarro enquanto lutava
para salvar à garrafa que estava caindo. Ela tinha pisado no vidro
quebrado e tinha cortado seus pés nus, mas não parecia dar-se
conta da dor ou dos rastros de sangue que deixava. — Um
fracasso — espetou ela — Sempre comendo com os olhos às
esposas dos outros homens. Acredita que não vejo? Tenho olhos,
e enxergo bem.
— Brígid — disse Niall, com o tom de voz baixo,
suplicante. Em seus olhos se escondia dor, confusão e um pouco
de culpa. Depois do que tinha visto antes, Danni não podia deixar
de perguntar-se…. não podia deixar de acreditar que Brígid falava
da mãe de Danni, Fia — Brígid, — repetiu Niall — Está
equivocada, amor. Você é a única mulher para mim.
Esposa, meu coração é fiel a você.
Ele a olhou fixamente, com olhos
suplicantes e embora Danni visse que Fia,
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acreditava nele. Neste ponto no passado, suas palavras soavam
como verdade.
Brígid se balançava no mesmo lugar, procurando em
seu rosto, procurando a mentira, parecia certa de que
encontraria.
— Vejo-te observando-a como se fosse uma maldita
princesa das fadas. Nega-o. Vamos, me diga que as coisas não
são assim.
Niall tragou, dando a sua cabeça um movimento breve.
— Nunca fui infiel, Brígid. Nunca o serei, — disse ele
simplesmente.
Uma vez mais, havia verdade em suas palavras… Danni
podia vê-lo tão claramente como Brígid afirmava ter visto seu
desejo por outra. Mas não tinha respondido à sua pergunta, e os
dois sabiam.
— Fiel — espetou ela — Não em seu coração.
— Em todos os sentidos em que posso sê-lo.
Ela vacilou então e Danni ficou sem fôlego,
desejando correr para frente,rogar-lhe que
acreditasse.
Danni sabia o que tinham vindo ver e
como o homem a seu lado estava rígido, não
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estava segura de que pudesse suportar. Pegou a mão de Sean
com as suas, as sustentando enquanto via seus pais com
horroroso silêncio.
— Bom, não posso dizer o mesmo, Niall Ballagh. Não
serei fiel a um homem cujo coração é negro como o teu.
— Cuidado com sua língua, mulher.
— Oh, muito que me importa — disse ela, balançando
os ombros, esticando seus seios. Rodeou seus lábios com sua
língua em um gesto de bêbado que estava muito longe de ser
sedutor. Entretanto, fez seu ponto — Trevor nem sequer é seu
filho. Sabia disso? Nem sequer é teu.
Niall ficou muito quieto, olhando-a com os olhos negros e
a mandíbula dura.
— Retire isso — advertiu-lhe Niall.
— Ou o que?
— Ou torcerei seu maldito pescoço, isso é o que farei.
Brígid começou a rir histericamente e tomou outro gole da
garrafa.
— É a verdade. Nem sequer sei quem é seu
pai, é que foram tantos. Poderia ser Patrick Walsh,
talvez. Ou Harold Ou’Conner talvez, ou…
Brumas da Irlanda 1 Página415
Niall se moveu com uma velocidade imprópria ao seu
tamanho. Em um momento estava de pé junto à mesa, sujeitando
uma toalha contra seu rosto machucado e no seguinte
atravessava a cozinha, tirando a garrafa das mãos de Brígid e
golpeando-a com força com o dorso da sua mão.
Sua cabeça caiu para trás e um fio de sangue se
arrastou do canto da sua boca. O olhar em seus olhos quando os
enfocou em Niall fez com que o sangue de Danni se esfriasse.
Com o isolamento da raiva, Niall alegremente se virou e começou
a cruzar a sala. Brígid se levantou, olhando o sangue manchando
seus dedos com indignação. Com calma, abriu uma gaveta e
pegou uma faca com uma larga, perversa folha.
— Oh, meu Deus — respirou Danni. Os tremores
começaram a agitar o homem sólido ao seu lado. Sem soltar sua
mão, ela voltou-se para ele, puxando ele contra ela, desejando
poder lhe servir de refúgio, sabendo que era inútil tentá-lo. Os
dois meninos pequenos passaram despercebidos, enquanto se
refugiavam na porta. Ela queria sustentá-los, também, mas não
tinha forma de fazê-lo.
Sem dar-se conta de nada, exceto da sua ira,
Niall colocou quatro dedos de uísque em seu copo e o
tomou. Tremiam-lhe as mãos. Em seus olhos, Danni
viu a pena miserável, dessas que comiam a alma,
até que consumia tudo a seu caminho.
Brumas da Irlanda 1 Página416
Brígid se moveu em silêncio agora, sustentando a faca
em um punho forte enquanto fechava a distância entre eles.
— Não, — gritou Trevor de repente, sobressaltando a
todos. O moço deu um passo para frente enquanto Niall se virava
e Brígid se lançava. Mas Michael chegou lá primeiro, agarrando
seu irmão ao redor da cintura. Carregou o menino que
esperneava e gritava de costas para porta e o sentou.
— Fique aqui — disse Michael, com seu rosto convertido
em uma máscara de fúria e determinação.
Desejando que ele tivesse pego seu próprio conselho,
Danni observou Michael apressar-se de novo para briga. A seu
lado, Sean fez um som de incredulidade e um estremecimento lhe
percorreu.
Tudo pareceu esvanecer-se então. Danni estava a par de
Sean tentando sacudi-la para soltá-lo, tentando dar um passo
entre seus pais, mesmo que seu eu mais jovem fazia o mesmo.
Arrastou Danni com ele enquanto lutava para separar as duas
pessoas, mas não podia deter o que estava acontecendo. Não
agora. Não então. Só quando a faca passou através dele que
se deu conta do insubstancial que era nesse mundo.
Os olhos que se voltaram para o Danni eram
atormentados e enfurecidos.
Brígid se afastou para um lado e chegou
a Niall com tenaz determinação e instintivamente
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Danni pôs Sean longe, embora a parte lógica dela sabia que não
era necessário. Igual malditos espectadores, viram Niall tendo
dificuldade para desarmá-la, pois sua raiva e sua bebedeira lhe
davam a força de um homem.
Michael tentou obrigar a Niall e a Brígid a separarem-se,
como a versão adulta tinha tentado fazer, mas só conseguiu
enredar-se em suas pernas enquanto seu irmão pequeno gritava
da porta.
Brígid tropeçou com seu filho, mas não se deteve, não
parou, não lhe importava que suas ações o traumatizassem por
toda vida. A faca estava sobre sua cabeça agora e a levou com
força para baixo, enterrando-a na suave carne do ombro de Niall.
Niall gritou de dor, tentando inutilmente levantar seu filho e pô-lo
a salvo, lhe dizendo:
— Tudo ficará bem, filho. Vá agora, — enquanto Brígid
estava sobre ele de novo, lançando seu peso atrás do golpe
enquanto apontava seu coração.
Niall conseguiu que Michael ficasse de pé, empurrandoo para seu irmão, enquanto Brígid introduzia a faca em
suas costas. Pareceu golpear o osso e deter-se, mas
seu grito de agonia ecoou na pequena cozinha.
Sem alterar-se, Brígid arrancou a folha
liberando-a e foi para Niall de novo. Com seu filho
fora do caminho, Niall deu a volta para detê-la,
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capturando seu braço desta vez antes que pudesse baixar a faca.
Havia sangue brotando do seu ombro e das suas costas, fazendo
uma piscina no chão. Niall cambaleou ligeiramente, parecia que
ia cair.
Manteve seus sentidos o suficiente para lutar com sua
esposa, tentando arrancar seus dedos da folha com toda sua
força. Mas Brígid não estava sã e tinha a intenção de matá-lo. A
empurrou para golpear suas costas contra o contador, tentou
bater seu pulso com força à borda da pia. Ela se sustentava com
a força de uma mulher desprezada. Desvanecendo-se, Niall
envolveu sua mão livre ao redor da sua garganta e começou a
apertar enquanto lutava para controlar a faca com a outra.
Os meninos estavam gritando, vendo como o rosto da
sua mãe se estava ficando sem cor, enquanto ela ofegava, com
seus pés dançando um ritmo macabro contra o chão com sangue.
Mas mesmo assim se aferrava à faca. Mesmo assim, tentava
apunhalá-lo.
— Está matando-a. — gritou Michael.
Mas que outra opção tinha Niall? Se a soltava, ela
faria o mesmo com ele.
Apesar de que seus olhos se encheram de
lágrimas e sua garganta estava obstruída, Danni
não podia afastar o olhar da terrível cena em
frente a ela. A faca se aproximou mais, Niall
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apertou mais forte e finalmente, por fim, Brígid caiu de joelhos,
deixando que a faca fizesse ruído ao cair ao chão. Exausto, Niall
se deixou cair ao seu lado, sem lhe soltar a garganta, só que
agora seus dedos estavam soltos, com seu toque quase de
desculpa. Sangue corria de suas feridas, deixando a camisa de
uma cor vermelha escura pegajosa. Parecia que havia sangue em
todas as partes. No chão. Salpicada contra os armários. Sobre
Michael.
— Por que me faz te fazer mal? — Perguntou Niall, e as
lágrimas correram por seu rosto — Por que…?
Com uma máscara de raiva em seu rosto, Brígid
levantou a cabeça, agarrou a faca e se equilibrou de novo. Niall
abriu os olhos de medo ao ver o arco da folha brilhando para ele.
Por um momento, houve resignação, aceitação em seus olhos e
Danni pensou que daria bem-vinda, à liberação que a morte lhe
traria. E então o olhar se foi e ele se moveu, jogando seu ombro
contra o lado dela com um golpe que a embutiu contra os
armários.
Durante um longo momento, ninguém se moveu.
Ninguém falou. Os meninos pareciam ter deixado de
respirar, enquanto permaneciam quietos. Michael
tinha o rosto de Trevor contra seu peito para
protegê-lo da visão. Brígid se sentava apoiada nos
armários, olhando com consternação à faca que se
sobressaía do seu peito. Niall fez um som como se
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sua alma tivesse sido arrancada e destroçada. Meio que se
arrastou para seu lado, chorando enquanto a olhava nos olhos.
Seus lábios se moveram, mas não saiu nenhum som.
— O que? O que disse Brígid? — Perguntou-lhe Niall,
lhe tirando o cabelo do rosto. Inclinou-se mais, pondo a orelha
em seus lábios. Ela falou de novo, ainda em voz tão baixa que
Danni não pôde entender suas palavras. Mas o que ela disse,
Niall entendeu. Abraçou-a, chorando enquanto balançava seu
corpo. Então seu rosto ficou imóvel, seus olhos se tornaram fixos
e cegos e o último fôlego assobiou de seus pulmões.
Com um grito de dor e de raiva, Niall a olhou fixamente.
Tinha perdido muito sangue e seu rosto estava tão pálido como o
da sua falecida esposa, mas lutou para permanecer consciente
até que pôr fim seus olhos ficaram em branco e caiu, com sua
cabeça ricocheteando depois do impacto com o chão, com os
braços estendidos, como Jesus.
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Capítulo 26
O ar mudou com um gemido, arrancando com violência
Sean e Danni da maldita cozinha de volta para a casa de campo.
Deixou-a com uma sensação de mal-estar, como se tivesse estado
girando durante horas e horas. Deu uma olhada no rosto de
Sean, perguntando-se como ele estava. Mas ele estava com uma
expressão tão em branco que a assustou. Estava respirando?
Estava vivo?
— Sean?
Seus olhos se dirigiram para ela. Estavam obscurecidos
e de uma cor esverdeada tormentosa, profunda e desolada. Não
havia raiva neles. Havia desconcerto, agitação, medo e agonia,
tudo pela comoção que tinha passado.
— Sean, sinto muito. Não sabia que podia
levar-te… isso nunca tinha acontecido antes. Não
sabia que isso era o que veríamos. Seus pais….
Sinto muito. Não deveria ter visto isso…
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Ele fez um som profundo com sua garganta e se
afastou. Por um momento pareceu que iria dizer algo, mas logo
não o fez. Sem dizer uma palavra, pegou as roupas na cômoda. O
clique da porta do banheiro ao fechar-se atrás dele ecoou através
da silenciosa habitação. Entorpecida, Danni escutou os velhos
encanamentos gemerem quando ele abriu a ducha. Podia
imaginá-lo, todo força e nervos duros, músculos ondulantes
enquanto tirava suas roupas e tentava limpar o horror a que
tinha sobrevivido… de novo.
Mas ela sabia que ficaria com ele, igual a uma pintura
permanente não podia ser lavado com sabão e água quente. Ou
pela necessidade de esquecer.
Apesar de que lhe doía, o entendia…. Tinha revivido algo
tão horrível, que inclusive Danni não podia parar para pensar
nisso. Tinham sido seus pais que tinham lutado tão
amargamente, que tinham derramado o sangue um do outro.
Tinha sido sua mãe, quem jazia morta no piso da fria
cozinha, enquanto ele, só um menino, tentava proteger seu irmão
da terrível verdade disso. É obvio que queria esquecer.
Ela olhou para a porta do banheiro
fechada, tentando não fazer com ela uma barreira
entre eles, entre os dois.
Na cozinha, encontrou ovos e uma parte
de algo que parecia suspeitosamente como bacon
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sem cortar. Fez os ovos e cortou a carne em uma frigideira,
movendo-os metodicamente, como as ovelhas na ladeira.
Havia batatas em uma cesta. Nenhuma comida estava
completa sem batatas, tinha ouvido às mulheres com quem tinha
trabalhado ontem dizerem. As lavou e cortou em rodelas,
adicionando outro pedaço de bacon à frigideira. Consciente da
saúde, Danni fez uma careta de dor ante a ideia de toda gordura,
calorias e carboidratos dessa comida. Mas que importava, em
realidade? De uma forma ou outra, tudo acabaria logo, não é
assim? Ela se encontraria em uma tumba pouco profunda ou de
volta a seu próprio tempo, abandonada de novo. O que importava
qual? Nenhuma das opções parecia incluir Sean, certo?
Danni se apoiou no armário, deixando que isso rodasse
sobre ela. Sabia instintivamente. Algo que acontecesse ali, ela e
Sean não iriam juntos.
No momento em que Sean saiu da ducha, o café da
manhã estava preparado. Seus olhos estavam vermelhos e sabia
que sua aflição oscilava debaixo da superfície. Ele evitou olhá-la
enquanto ela permanecia de pé junto à mesa, esperando que se
sentasse antes de unir-se a ele. Se ela tivesse lhe
tocado, tivesse pedido que falasse com ela, ele teria
se partido em dois. Podia vê-lo na dura maneira em
que ele se mantinha, no olhar suplicante que lhe
rogava que não o quebrasse.
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Não agora. Não até que tivesse a oportunidade de
recuperar um certo controle.
Apesar de querer fazer caso omisso do seu pedido de
silêncio, Danni se obrigou a cumpri-lo. Ele tinha que controlar
suas emoções antes de compartilhá-las. Ela não gostava, mas o
compreendia.
Comeram em silêncio, ambos com fome o suficiente
para limpar seus pratos, mas não se deram conta do que
mastigavam e engoliam. Poderia ter sido comida de cães por todo
o desfrute que trazia.
Terminando, Sean levou seu prato para pia e começou a
limpá-lo.
— Deixa-o — disse Danni brandamente.
Ele deixou o prato e então olhou para cima, apoiando as
mãos ao lado da pia, enquanto ficava de frente para a janela. Era
a imagem da tensão, com os músculos de seus braços e ombros
apertados, a mandíbula fechada, os olhos entrecerrados. Ele
tinha dentro dele algo grande e doloroso, pesado e difícil de
dirigir. Ela podia ver em cada linha, em cada
centímetro tenso dele. Ela fez uma pausa na mesa,
observando-o.
Querendo chegar a ele, mas temendo o
que poderia acontecer se o tocasse. Não sabia o
que poderia oferecer-lhe. Não sabia o que ele
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poderia rechaçar. Ele se foi sem dizer adeus e ela o deixou.
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Capítulo 27
Depois que terminou de lavar os pratos do café da
manhã, Danni tomou banho e ficou pronta para o dia. Colleen
tinha acrescentado coisas no seu armário e agora havia um suave
par de jeans e um pulôver entre suas opções. Os pegou, enquanto
o fazia, viu um par de meias compridas e uma camiseta muito
grande na parte inferior da gaveta. Fez uma pausa, pareciam
familiares e ao mesmo tempo se perguntava como podia
reconhecê-los quando a roupa não era dela. E então se lembrou…
usava-os na primeira visão. Era o traje com o que morreria… com
o que seria enterrada com Sean, com o jovem Sean.
— Não, se não quiser fazê-lo — sussurrou desafiante.
Mas junto com o desafio veio a realidade de que acabava
seu tempo e não estava mais perto de saber como o
destino tinha conspirado para colocá-la naquela
tumba com uma versão de quatorze anos do homem
por qual se apaixonou.
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Enquanto meditava, frustrada por sua incapacidade
para conectar os pontos, olhou como os primeiros raios do sol se
levantavam no horizonte, anunciando o amanhecer de outro dia.
O céu passou de escuro a rosa, logo ao vermelho, o dourado e
finalmente o azul. Azul como os olhos do Brígid. Azul, como o
coração de Danni.
Disseram que se estivesse na casa dos MacGrath às
sete. Eram apenas 6:30 enquanto deixava a casa de campo, mas
não queria chegar tarde novamente e arriscar-se à ira de
Bronagh. Além disso, que outra coisa tinha para fazer?
Recordou a manhã enquanto andava. Primeiro Colleen,
dizendo-lhe que podia fazer o que decidisse fazer em sua mente.
Então a visão… A visão a chamando…. Mas não tinha mudado. A
mãe de Sean ainda estava morta, seu pai de uma maneira trágica
ainda era responsável. Ela não tinha o impedido, sem importar
quanto tivesse desejado poder fazê-lo. Que bem tinha feito trazer
a luz algo tão doloroso se só podia ser revivido?
Não era um dom, um presente o que ela tinha. Era uma
maldição.
Entrou na cozinha através da porta de
atrás como a tinham ordenado no dia anterior.
Aromas celestiais flutuavam no ar úmido e quente
da enorme cozinha. Era cedo, mas Bronagh já
estava agitada com uma caçarola vazia na mão.
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— Ah, aí está. E cedo. Que bom. Tenho bolos no forno e
ainda tenho que fazer um guisado de batatas.
— Tem um cheiro maravilhoso aqui, — disse Danni,
sorrindo.
Bronagh sorriu.
— É o aniversário ‘dos gêmeos’, já sabe e adorariam ter
tudo o que gostam hoje.
É obvio que sim, pensou Danni, com o coração apertado
pelo amor que viu no rosto de Bronagh, no cuidado que colocava
para fazer do seu aniversário algo especial.
Limpando sua garganta, Danni perguntou:
— O que quer que eu faça hoje?
— Pode seguir uma receita sozinha? E não me diga que
pode, se na verdade não puder fazê-lo.
— Sim, posso.
— Bom, — disse Bronagh assentindo — Aqui estão os
passos. Preste atenção à ordem, porque é importante.
Além disso, precisará reduzir na metade os
ingredientes. — As sobrancelhas de Bronagh
desceram em um cenho franzido — Também sabe
como fazê-lo?
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Danni assentiu e pegou a receita da mão de Bronagh,
tentando parecer mais segura do que se sentia.
— Excelente. Tenho compras e recados para fazer com a
Sra. MacGrath. O bolo terá que sair do forno quando o
temporizador avisar. Pode tirá-los para mim?
Danni assentiu.
— É obvio. Cheira maravilhoso.
Bronagh sorriu e a expressão que tinha enrugado seus
olhos mudou seu rosto por completo.
— É um bolo de pêssego, uma da própria Betty Crocker, —
disse com orgulho — Os meninos a amam. E espera até que
vejam o bolo que pedi na padaria. Mary Elizabeth O’Malley ‘é uma
maravilha’ com a massa e com o glacê.
Bronagh deu um último olhar ao bolo, comprovou o
temporizador e deixou Danni com sua tarefa. Havia não menos de
trinta ingredientes no cartão e quase tantos passos na
preparação. Ela a apoiou onde pudesse vê-la e começou a
recolher o que necessitaria. Enquanto trabalhava, a
porta da cozinha se abriu e os gêmeos chegaram.
— Bom dia a você, Sra. Ballagh —
disseram educadamente enquanto se inclinavam
contra o mostrador para vê-la.
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— O que é que está preparando? — Perguntou Dáirinn. —
Bom, espero que não seja um caos.
— Parece que poderia sê-lo, — disse Rory olhando os
ingredientes que ela tinha pegado — Embora cheire bem aqui.
— Bronagh tem um bolo no forno.
— Oh, — disseram em uníssono com um assentimento
conhecedor.
Danni ficou olhando-os, perguntando-se como podia ter
esquecido que tinha um irmão. Perguntando-se onde estaria
depois desta noite. Quando retornasse a seu próprio tempo. Ele
se perderia para ela outra vez? Um feroz aperto dentro dela se
rebelou contra essa ideia.
Você pode fazer o que for que te proponha…
— Vocês levantaram cedo, — disse Danni.
— Mamãe nos levou para o café na cama de manhã, —
disse-lhe Rory — Fez panquecas com orelhas do Mickey Mouse.
— Um dia iremos a Disneylândia, —
adicionou Dáirinn — Alguma vez esteve no
Disneylândia, Sra. Ballagh?
Danni tinha ido com Yvonne e seus filhos
há muitos anos. E foi ao mesmo tempo o mais
surpreendente e decepcionante dia da sua vida,
Brumas da Irlanda 1 Página431
uma amostra evidente de tudo o que tinha perdido contrastando
com tudo o que Yvonne oferecia-lhe. Tinha dezesseis, quase
dezessete, mas tinha ido a cada passeio, comido todos os
caramelos, gelados e bananas cobertas de chocolate que foram
oferecidos e então tinha chorado até dormir à noite, com dor de
estômago e seu coração oco e esperançoso.
— Sim, estive na Disneylândia. Passamos um momento
impressionante.
Satisfeitos, ambos sorriram.
— Mamãe tem algo divertido previsto para mais tarde.
Uma surpresa, mas devemos permanecer fora do caminho até
então, — disse Rory — É muito difícil, quando todo mundo está
no caminho.
— Estamos no seu caminho agora? — Perguntou Dáirinn.
— Não. Eu gosto da sua companhia.
Dáirinn sorriu e o coração de Danni bateu
dolorosamente em seu peito. Era como dividir-se, olhando seu
próprio rosto, mas vendo uma expressão que nunca
esteve ali antes. Satisfação. Segurança.
Confiança em si mesma. Todas essas
coisas que tinha tido aos cinco anos, mas perdeu
no caminho para a mulher que era agora.
Brumas da Irlanda 1 Página432
Ela tinha sido amada uma vez. Apreciada. E tinha tido
um companheiro, um irmão. Um gêmeo.
Elevou o olhar e pegou Dáirinn olhando-a com um
brilho peculiar nos olhos. Era cautela e algo mais, algo que fez
Danni afastar os olhos. A menina se moveu, dando uma olhada
sobre seu ombro para a porta aberta. Silenciosamente a fechou e
sentou no banco.
— Por que fez isso? — Perguntou Rory.
Dáirinn voltou ao seu banco sem responder. Apenas
olhando Danni, pegou então a mão do seu irmão e a segurou. O
gesto não foi aleatório, nem insignificante. Se não o soubesse
instintivamente, teria imaginado isso pela expressão solene que
agora tinham os gêmeos.
De repente se sentiu minimizada na sombra da sua
união. Estava se reduzindo enquanto o mundo ao redor ampliava
até que ela era só uma bolinha, a ponto de ser soprada do
caminho. A expressão reveladora no rosto de Rory e dela, fez
Danni ter consciência de que os gêmeos estavam comunicandose. De algum jeito, de alguma complexa e insondável
forma, Dáirinn estava contando o que sabia. Em um
momento terminou e agora ambos os pares de olhos
lhe olhavam com esse peculiar saber.
Perturbada, Danni limpou sua garganta
e colocou a farinha em um recipiente, tentando
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ocultar seu mal-estar. Mas estava fria com o que tinha visto.
Sacudida pela serenidade com a que os meninos a olhavam.
Perguntou como haveria se sentido Sean quando a tinha
olhado esta manhã. Teria experimentado a mesma inquietação
que punha os cabelos em pé?
Tomando respirações profundas mexeu os ingredientes em
seu recipiente.
— É pelo livro pelo que está aqui? — Perguntou Rory
brandamente. A cabeça de Danni se levantou de repente.
— O que?
— Disse-lhe isso, ela não sabe por que está aqui, —
Dáirinn chamou sua atenção.
— É verdade? — Disse Rory.
Aturdida, Danni assentiu e se encolheu ao mesmo
tempo. Neste ponto, não confiava em nada do que poderia pensar
que sabia.
— Dáirinn te trouxe aqui, então? — Rory se
virou em seu assento e enfrentou a sua irmã — Você o
fez?
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Danni estava contendo a respiração, esperando a
resposta. Mas Dáirinn só olhava tranquilamente de volta.
— Como Dáirinn traria-me? — Perguntou Danni,
embora tivesse medo da resposta. A ideia era muito complicada,
muito estranha de contemplar.
— Viu o livro, não? — Disse Dáirinn — Posso dizer que
o viu. É aterrador, não é?
— Você o viu também?
Dáirinn assentiu. — Não entendo por que o deseja,
entretanto. Não é bom.
— Sabe onde está?
Os irmãos intercambiaram outra conversa silenciosa
antes de responder. Danni os olhou, sustentando a tigela cheia de
farinha em sua mão. O que sentia era maior do que choque.
Maior do que medo. Um profundo e antigo instinto de fuga
apareceu. Tinha que sair daqui.
Finalmente, Rory falou.
— O livro move-se, — disse.
Move-se? Danni limpou sua garganta. E
baixou a tigela. Tentando parecer relaxada,
mas falhando disse:
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— O que quer dizer, com move-se? Está falando sobre o
livro de Fennore?
— Estava aqui, — disse Rory — Mas então se foi e não
sabemos aonde.
— O roubaram?
Sacudiram suas cabeças.
— Como podem estar seguros? — Perguntou Danni.
— Posso senti-lo, — disse simplesmente Rory — Fala
comigo às vezes.
Dáirinn fez um pequeno movimento, sacudindo-se com
suas palavras. Não gostava do que ele havia dito em voz alta.
— Não contarei, — disse Danni.
— Eu sei, — espetou Dáirinn — Por que mais
estaríamos dizendo-te algo? Mas sei o que pode fazer o livro e não
é adequado falar disso.
O peito de Danni se apertou e sua garganta queimou.
— Sabe o que pode fazer?
— Ela refere-se ao que ele faz às pessoas, —
disse Rory brandamente.
— Os Deixa loucos, — finalizou ela.
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— Mas… — Danni escolheu suas palavras com cuidado,
não estando segura do que ela queria dizer com isso — Pensei
que trazia poder.
— Aye. Pode fazê-lo. Mas isso não é tudo o que vem
através da porta quando se abre.
Danni tragou duro. Que mais? Que outra coisa viria?
— Está desejando ver sua magia? — Perguntou Rory.
— Vi magia, — disse Dáirinn com importância — Muitas
vezes. Uma noite voei do meu quarto para as docas e vi que meu
primo estava enredado nas redes. Ele estava lá embaixo e
ninguém sabia. Eu disse a mamãe e ela disse ao tio Patrick e eles
foram procurar meu primo. E sabe que quando meu tio estava no
convés ninguém sabia que meu primo estava lá embaixo? Meu tio
não saberia se mamãe não houvesse dito, mas ele então ele sabia
e quando tirou a rede lá estava meu primo quase se afogando.
— Então lhe salvou a vida? — Disse Danni, procurando
em sua memória. Mas se isso estava ali, eludiu ela.
— Aye. E um domingo na Igreja escutei ao
padre Lawlor falar de como tinha sido roubado na
noite anterior por uma pobre alma que pensava que
Jesus o tinha abandonado. O padre disse que teria
ajudado o homem porque efetivamente Jesus havia
o trazido para a igreja para ser o trabalhador que
eles necessitavam. Se o homem tivesse chegado
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sozinho com o coração e as mãos abertas, teria sido alimentado e
amado. Assim voei à noite para antes do acontecido e disse ao
pobre homem que não roubasse porque Jesus o amava. E que
viesse de manhã que o padre Lawlor lhe daria um trabalho onde
Jesus pudesse observar tudo o que fazia.
Danni olhou para a menina, olhando seu próprio rosto,
escutando sua voz doce, a sinceridade em seu tom. E sentindo o
eco da lembrança em seu interior, no fundo. Podia ver a imagem
daquela noite na Igreja, caminhando através das portas sem
necessidade de abri-las primeiro. Encontrando o mendigo
saqueando o sagrado altar. Aterrorizou-se ao vê-la, uma menina
em uma bata branca com cachos sedosos e olhos cinza. Tinha
pensado em um Anjo com uma mensagem celestial.
Tinha sido uma visão, entretanto, tinha visto. Falado
com ela. Ela havia voltado no tempo e mudado o resultado. Ela
mudaria o resultado…
— Ela não pode voar de verdade, — confiou-lhe Rory — Só
pensa que pode.
— E realmente você não pode falar com os
cavalos — Espetou-lhe Dáirinn.
— Está ciumenta, — brincou ele.
A Danni disse:
— Não são só os cavalos que entendo.
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— Não? — Disse ela, pensando que precisava sentar-se.
Precisava sentar-se rapidamente.
— Mamãe disse que não dissesse para ninguém, — disse
Dáirinn.
— Disse a você que não dissesse tampouco, — Rory
disparou de volta. — E tagarelou sua história, não?
Dáirinn franziu o cenho e cruzou os braços. Danni ficou
olhando para Rory, vendo-o tomar a decisão se diria mais ou não.
Mas ela já entendeu o que Rory podia fazer. Ele compreendia não
só às pessoas, mas também os animais. De todo tipo, desde aves
a bestas. Não como uma linguagem, a não ser com compreensão.
Como se seus desejos e necessidades se convertessem em
imagens na sua cabeça. E não parava ali.
— Uma vez houve um homem que chegou a nossa porta,
— começou Dáirinn.
— É minha história, eu a contarei, — interrompeu Rory.
Dáirinn fechou sua boca e se sentou com um bufo.
— Era um turista — Rory continuou onde
Dáirinn tinha parado — Não falava inglês nem
gaélico nem qualquer outro idioma que tivesse
ouvido.
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— Mas Rory sabia o que estava dizendo. E pôde dizer a
papai o que era.
— Eu que contaria, — disse Rory de mau humor.
— Pois, conte-lhe.
— E pude dizer o que meu papai dizia ao homem de
volta. Mais tarde aprendi que era russo. Pude falar russo.
— Ele não pode fazê-lo agora, entretanto, — disse
Dáirinn com um pouco de presunção— Só daquela vez.
Rory encolheu os ombros, disparando um sujo olhar a sua
irmã.
— Nos diga o que fará? — Dáirinn perguntou então.
— O que vou fazer? — Disse Danni.
— Bom, não está aqui para fazer salgadinhos, verdade?
Danni olhou para baixo para suas mãos. — A caçarola, — disse.
Os gêmeos riram, olhando-a com olhos espectadores.
Danni sabia o que queriam, mas como ia responder à sua
pergunta? Realmente sabia por que estava aqui?
Havia uma razão real? Ou foi um acidente o que
havia a trazido através do tempo? Colleen a tinha
visto vir. Dáirinn parecia como se houvesse
antecipado sua chegada. O que queria dizer isso?
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Pode fazer o que for que quiser na sua mente…
Ela pensou em Sean e seu coração doeu. Aqui, agora,
ele era tão real. Sólido, terrivelmente formoso.
— Estou aqui para salvar alguém, — disse brandamente.
— Tem direito a isso, — disse Dáirinn, como se já
soubesse a resposta — Mas o livro se foi, se usá-lo era sua
esperança. Essa é uma bênção, entretanto. Entende?
— Não.
Rory falou:
— É uma vida o que deseja salvar, o livro pode fazê-lo
também. Se for um tesouro o que está querendo, pode te dar isso
também. Qualquer sonho que possa ter, o livro te dará o poder de
conseguir.
— Mas não pode ser usado dessa forma, — disse
Dáirinn — Não dá sem ganhar e quanto maior seja o presente,
maior será o preço.
— Tomará um pedaço da sua alma, — disse
Rory brandamente — Como se fosse uma moeda da
sua bolsa. Você poderia não notar que aconteceu até
que um dia precisa dessa moeda e descobre que já
não a tem.
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Um pedaço da sua alma. Seria uma troca digna pela
vida de Sean? Pela da sua mãe, do seu irmão… Dela mesma?
— Aye, é um quebra-cabeças, não? — Disse Rory.
— Pode não sentir saudades da peça que deste, mas
alguém mais pode fazê-lo.
— A que se refere com isso? — Disse Danni.
— Bom, não pode quebrar um coração que você perdeu
— respondeu Dáirinn — Mas o que sentiria seu verdadeiro amor
se a parte que mais amasse em você se fosse?
— Ela leu isso, — disse Rory.
— Não fiz.
— Em um conto de fadas.
Dáirinn abriu sua boca em ardente negação, mas Danni
a interrompeu.
— Como ficaram tão inteligentes? Parecem ter mais de
cinco anos.
Ambos os pares de olhos giraram para seu
rosto.
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— Acredita que o mundo se compõe somente do que se vê?
— Dáirinn perguntou em vez de responder.
Danni sacudiu a cabeça.
— Nós também não.
A declaração era pesada no ar entre eles e Danni não
sabia como responder a isso. Sentiu que a simples declaração
devia responder a sua consulta, mas só a deixou com mais
perguntas, com mais confusão. Desde que tinha acordado ontem
pela manhã, tem tentado descobrir por que tinham sido trazidos
para cá. Agora sentia que estava perto da verdade. Estas duas
crianças sabiam, não só por que estava aqui, mas também o que
aconteceria depois.
A voz dura de Colleen sussurrou em sua cabeça. Mesmo
então você poderia tê-lo parado.
Danni olhou fixamente os olhos de Dáirinn, acreditando
nisso agora. Dáirinn poderia mudar o curso do destino, mas tinha
medo, medo do preço. Medo do livro. Danni tinha medo, também,
mas correria o risco. Se isso significava conter a maré da sua
danificada vida, arriscaria tudo.
Embora precisasse de ajuda e possivelmente
pudesse encontrá-la aqui, nesses dois.
— Há algo… — Danni começou, mas
deteve-se, tentando decidir como ou o que dizer.
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Dáirinn repentinamente se inclinou e estendeu sua
mão. Danni a olhou, tão pequena e inocente ali na frente dela,
mas hesitou, sabendo que tocar Dáirinn, tocar a si mesma,
poderia abrir uma porta que não saberia como fechar. Dáirinn
levantou seus olhos em um silencioso desafio.
Antes que ela pudesse mudar de opinião, Danni segurou a
mão de Dáirinn na sua e então Rory pôs a sua por cima das
duas. Por um momento, não aconteceu e então Danni sentiu um
zumbido, uma baixa vibração que tremeu através dos seus dedos,
do seu braço ao coração. Quis fugir de lá, puxar seu braço para
trás e romper a conexão, mas não o fez. Tinha parado de fugir e
negar o que não queria enfrentar.
Em sua mente uma imagem se formou. Franzindo o
cenho, deu-se conta de que era o irmão de Sean e ela estava
vendo-o no piso da cozinha, caído em um atoleiro de sangue junto
à sua mãe. Morto. Ela franziu o cenho, não podendo compreender
por que estaria vendo isso. O irmão de Sean não estava no chão,
não tinha morrido. Por que… Antes que pudesse se perguntar por
que tinha visto algo que não tinha acontecido, a porta da cozinha
se abriu.
E Cathán MacGrath entrou.
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Capítulo 28
Sean seguiu seu caminho lentamente até a baía em que
se ancorava o Guillermot. A névoa era espessa quando o sol
lançou os primeiros raios sobre o horizonte e se sentiu como se
passasse pelo tecido de aranha umedecida. O porto e o oceano se
obscureceram. Unicamente a estrada e o constante romper das
ondas lhe deram a certeza de que ia à direção correta.
A espessa bruma cinza combinava com seu estado de
ânimo. Tinha crescido entre coisas estranhas e inexplicáveis. Era
irlandês e quem deles não acreditava em outro mundo, em outra
realidade? Não era que esperasse ver fadas saindo das colinas
lançando encantamentos, mas sabia que o mundo era muito mais
que a rica terra, marés turvas e o céu sobre suas cabeças.
Olhou ao redor. Lá estava ele, um homem
fora do tempo, fora de seu próprio ritmo. Ontem,
quando tentou dar uma explicação de como tinha
chegado até ali, amaldiçoou (ou atribuiu) a sua avó.
Mas agora… depois dessa manhã, pensava que
tinha sido Danni… ela poderia haver o levado pelo
Brumas da Irlanda 1 Página445
mesmo caminho que o levou para o pior dos infernos da sua
infância, durante aquelas escuras horas antes do amanhecer?
Lembrou-se do aspecto que ela tinha ontem, quando
tinha despertado entre seus braços. Ficou tão perplexa pelo que
estava acontecendo como ele. Não podia ter fingido seu assombro
quando ambos se deram conta de que, de algum jeito, por
impossível que parecesse pensá-lo, despertaram vinte anos no
passado. Se o fez ela, não tinha sido intencionalmente.
Então, onde isso o deixava? Onde os deixava?
Esfregou o rosto com as mãos e sentiu como a barba
raspava-lhe. Esqueceu-se de barbear-se nesta manhã. Esqueceuse de muitas coisas, mas não podia sequer se lembrar de haver
sentido antes o pelo das bochechas e do queixo tão áspero, seco e
abrasivo. Essa sensação trouxe consigo outra sensação de
desassossego a sua mente. Quantas vezes, nas últimas vinte e
quatro horas, apoderou-se dele essa sensação extraordinária? O
fazia pensar que tinha se passado uma eternidade desde a última
vez em que sentiu o que sentia agora?
— Foda — murmurou, apertando o passo, agora
desesperado por chegar a Guillermot com as mãos
ocupadas não teria tempo para estar pensando em
idiotices.
Mas o curso de seus pensamentos
avançou, levando-o por um caminho em zigue
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zague. Ontem à noite com Danni… fechou os olhos e tudo em seu
interior se aferrou à lembrança do corpo dela rodeando o seu.
Sua suave boca o tocando, beijando- lhe fazendo sentir que nada
mais no mundo importava, como se nunca tivesse importado.
Jesus, tinha sido como uma explosão sensorial, cada segundo.
Tão real, tão tangível, tão oposto a qualquer coisa que tivesse
conhecido. De novo, pensou na sua existência antes de estar com
ela como o isolamento de um coco: protegido da experiência, do
sabor, da essência da própria vida.
Assim, por que agora, de repente, podia sentir? Dor….
alegria… A dor da necessidade… a agonia do desejo… a doce
recompensa de dar.
Sua avó tinha contado-lhe as coisas incríveis que tinha
visto desde as primeiras lembranças dele, coisas que não podia
ter visto, que não podia saber. E ele tinha suspeitado todo o
tempo que Danni tinha o mesmo dom, embora nunca o houvesse
dito. Mas o que Danni tinha feito nessa manhã ia além da sua
compreensão. Ainda podia escutar a sua mãe gritando, louca por
sua bebedeira e sua fúria. Nunca havia esquecido esse dia,
enquanto tinha permanecido de pé na sombra da entrada da
cozinha, tão assustado que nem sequer pode ajudar
seu irmão daquele surto de violência. Nunca se
esqueceu do sangue, a morte misturada com o fedor
a couves velha e charuto no meio do repentino
silêncio.
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Mas o que aconteceu essa manhã e o que tinha
acontecido neste mesmo dia a tanto tempo… não era o mesmo.
Agora entendia que seu terror e sua imaginação tinha
acrescentado alguma malícia a sua lembrança. A fúria possuindo
seu pai estava notavelmente ausente.
Mas, e quanto ao outro? O que aconteceu a Trevor?
Começava da mesma maneira, seu irmão e ele voltando
para casa do colégio, rindo com seu amigo Connor. Tinham
escutado o tom elevado das vozes ao entrarem e tinham ido à
cozinha onde tinham presenciado com horror como a discussão
de seus pais aumentava da normal enxurrada de
descontentamento bêbado da sua mãe até uma profunda
brutalidade. Mas então…
Anos atrás, Trevor tinha se metido na briga e tinha
tentado detê-los. Trevor, não Sean. Sean ficou petrificado na
sombria entrada, vendo como seu mundo se fazia em pedaços
pela mesma faca de açougueiro que sua mãe utilizava para cortar
as batatas do jantar que lhes preparava. Não tinha parado Trevor
para que não se metesse no meio da disputa. Não o protegeu. E
no final, os impulsos frenéticos da faca de sua mãe
atingiram Trevor com uma certeza infalível. Ela não
quis fazê-lo, não tinha se dado conta de que era seu
próprio filho.
Assim que Trevor caiu no chão, a
paralisia de Sean foi embora. Ele correu para seu
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irmão, levantou-o e o levou para longe da briga da sua mãe e do
seu pai, de volta para a porta. Sean se recordava de ter mantido
as mãos sobre o letal buraco no peito de Trevor. Viu, como o
sangue, a vida, emanava dele.
Assim que sua mãe caiu morta, seu pai se deu conta de
que seus dois filhos estavam lá e que tinha perdido algo mais que
sua esposa. Mas hoje, Sean tinha detido Trevor. E seu pai… seu
pai tinha protegido seu filho mais velho, arriscando sua própria
vida para salvar Sean. No final, sua mãe tinha morrido por seus
próprios atos. Ele sabia em seu coração que parte disso não tinha
mudado. Sua dor e sua ira tinham deformado a lembrança até
que recordou seu pai vingativo sobre o cadáver da sua mãe, com
a faca na mão. Mas Niall só tinha atuado em defesa própria, em
ambos os casos. Nunca quis ferir a mãe de Sean.
Deus Santo. Sean não sabia o que pensar agora. O que
significava que Trevor tinha sobrevivido a surrealista
reconstrução dessa manhã? Danni só tinha lhe mostrado o que
sempre quis fazer? Proteger e salvar seu irmão pequeno? A culpa
por não ter agido tinha carcomido toda sua vida. Por quantos
anos odiou a si mesmo por isso? Possivelmente havia
transformado o sonho de Danni “sua visão” no que
tão desesperadamente queria.
Perdido em sua própria confusão, chegou
de repente ao cais. Cheirou-o primeiro, cheirava a
peixes estripados, redes empapadas e alcatrão. O
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que escutou em seguida foi o som das ondas rompendo contra os
navios amarrados, os chiados e gemidos da madeira empapada, o
ruído oco do casco roçando a plataforma do cais. O golpe das
pegadas no convés. Então atravessou a névoa e pisou no
enegrecido embarcadouro tratado com creosoto que se
sobressaíam na baía. Meia dúzia de navios estavam ancorados
aqui. E meia dúzia mais já estavam vazios. O Guillermot ainda
estava amarrado e balançando-se.
— Chegou tarde — disse Nial, olhando Sean com um olhar
duro.
Michael afastou o olhar da bobina para olhar e antes
que Sam pudesse responder, outro menino saiu da cabine e lhe
sorriu. Tinha um rosto redondo e limpo, ainda suave, jovem e
inocente. Mil sardas povoavam seu nariz e bochechas e seus
radiantes olhos azuis brilhavam. Deu a Sean um rápido e tímido
sorriso que revelou a falta de um dente da frente. Sua doçura se
apoderou do coração de Sean. Jesus era Trevor…
— Eu disse que chegou tarde — repetiu Niall, desta vez
irritado.
— Desculpe-me, — disse Sean, ainda
distraído pela imagem de Trevor. Não podia ser real,
não? Trevor estava ali, com vida.
Sean subiu a bordo com rapidez e
começou a trabalhar, recolhendo as cordas e
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levantando a âncora, movendo-se com rápida eficiência que lhe
vinha desde a infância que tinha passado nesse mesmo convés.
Mas não podia evitar jogar olhares por cima do ombro
para o menino, um estranho e mesmo assim tão familiar, que
estava de pé ao lado de Michael, sussurrando em uma
camaradagem compartilhada.
Sob o sol nascente, Sean olhou o brilho do mar, parecia o
fim do mundo onde as chamas do sol balançavam nas águas do
mar. Não podia tirar da cabeça o que estava acontecendo, o que
tinha acontecido. Enquanto lutava contra seus pensamentos,
Niall ficou ao seu lado e de vez em quando, olhava por cima do
ombro para Trevor, que estava no leme. Michael se sentou a seu
lado, incomodando seu irmão e rindo sobre algo que Trevor tinha
lhe respondido.
Santo Céu, Danni mudou o passado.
Ela tinha salvado seu irmão.
Ele se embebeu na cena dos dois meninos, protegidos
pelo sangue e a vida. Juntos outra vez pela vontade de uma
mulher a quem Sean nunca entenderia. Mas estava tão
agradecido, tão, tão agradecido que queria ficar de
joelhos e chorar, não lhe importava o pouco natural
que aquilo era, entretanto, Danni o tinha feito.
Olhou para outro lado, lutando para manter as
lágrimas nos olhos.
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Danni não só mudou o resultado da sua vida, mas
também tinha mudado a perspectiva de Sean sobre o que tinha
acontecido naquele dia. Essa manhã tinha visto o rosto do seu
pai ao ser apunhalado pela sua mãe. A grande dor e a pena que
tinha visto em sua expressão não podia ser descrita por palavras.
Afundava-se nele mais que a afiada lamina da faca, mais
profundamente que o mar. E tinha visto seu pai receber a lamina
da faca para salvar Sean do mesmo destino.
Não havia tempo para pensar nisso agora, mas
compreendê-lo fazia com que Sean tirasse um peso de cima dele,
um peso que levava desde que podia se recordar. E o alívio da
culpa, o fazia sentir-se mais rápido. Mais forte.
Em pouco tempo desdobraram as velas e saíram em
marcha. Era um trabalho constante e intenso que de algum jeito
tranquilizava Sean e lhe ajudava a lutar com a pressão dos seus
pensamentos sem ter que os reconhecer abertamente.
Michael e Trevor trabalharam cotovelo com cotovelo
durante a manhã. A forte hostilidade de Michael do dia anterior
se desvaneceu e em seu lugar havia camaradagem e risadas.
Enquanto ele trabalhava, Niall observava com orgulho
seus filhos. Hoje, ambos lhe sorriam.
O dia avançava, sob o sol balançando-se
com a maré e Sean estava contente. Precisava ver
Danni, lhe explicar por que tinha estado tão
distante dela nessa manhã. Esperava que
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entendesse, pois tinha sido o choque que tinha mergulhado no
silêncio e solidão.
Quando colocaram as cordas e as velas para trás, Sean
se sentou com seu pai. Tinha uma sensação pacifica e de algum
jeito, tranquilizadora, estar ali sentado com o homem que tinha
amado e odiado com uma intensidade feroz. Agora eram da
mesma altura e camadas de músculos e nervos envolviam os
compridos e pesados ossos de ambos. Homens musculosos com
mãos grandes e costas largas, feitos para tarefas físicas.
— É um grande casco de navio — disse Sean, apoiando-se
no tabuleiro.
Niall emitiu um som de humor.
— Certamente, não é o Titanic, mas é irlandesa e está em
condições de navegar.
— Bom, esse último é muito mais do que o Titanic pode
dizer.
— Suponho.
Continuaram em silêncio um momento e
Niall perguntou de repente:
— O que faz aqui, filho?
A pergunta o pegou tão de surpresa,
como o fato de que pronunciasse esse casual
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“filho” no final da sua frase. A passagem do tempo tinha
aproximado suas idades e mesmo assim, seu pai parecia muitos
anos mais velho. Podia ver em seus olhos, no cansaço dos seus
ombros.
— Vim para trabalhar — respondeu Sean.
— Aye, mamãe disse isso— O olhar com que Niall lhe
olhou foi penetrante — Embora não é isso, não é?
— Diga-me isso você. Parece saber.
Niall deu um bufo de risada.
— Essa sim é boa, por Deus. Pareço saber alguma coisa.
A misteriosa resposta os deixou calados e Sean tentou
decifrar o significado. — Está falando do dom de Nana?
Niall se voltou para olhá-lo. — Estou? Que dom é esse?
— Ela vê coisas.
— Aye.
— Sabe coisas que não deveria.
— Certo, outra vez. Mas não, não me
referia a ela. Estava pensando em minha Brígid,
Deus a tenha em sua glória. Ela tinha o dom,
embora fosse mais uma maldição que outra coisa.
Estava acostumado a rezar a Deus para que me
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salvasse dela — desviou o olhar de Sean para seu filho maior. —
Ele te falou da sua mãe?
Sean assentiu com hesitação.
— Disseram que foi um acidente.
— Ah, sim? — Perguntou Niall, levantando as
sobrancelhas com incredulidade — É bom que minta, mas não,
não disseram que foi um acidente. Disseram que eu a matei.
— Sério?
— Matamos um ao outro. Ela com seu feliz
conhecimento. Eu com minha recusa em acreditar. Claro, ela me
disse que viria.
— Ela te disse o que? — Exclamou Sean, sentindo outro
tremor que o deixou petrificado.
— Brígid disse que sentiria como se te conhecesse
quando viesse. Mas não podia me dizer por que, poderia fazê-lo
agora? Só podia me dizer o que via. Mas não quando aconteceria,
nem como, nem por que. Fazia pecar a um santo.
— E você não é nenhum santo.
— Não.
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Niall agarrou um recipiente térmico e se serviu de chá
em uma caneca de plástico. Deu um gole e a passou a Sean.
— Assim possivelmente, seria tão amável de me explicar
o que ela não me explicou? Por que está aqui? Por que sinto que
conheço você?
Sean ficou olhando, desejando encontrar uma resposta
para lhe dar. Como podia lhe explicar algo que nem ele podia
compreender?
— Tinha que vir — disse, finalmente — Não tinha outra
opção e essa é a pura verdade. Mas não sei o porquê para contarte.
Nial assentiu.
— É justo. Não quero fazer mal, isso é o que posso dizer.
Sean arqueou as sobrancelhas ao ouvir isto, não com
rechaço, mas sim por curiosidade. Como ele sabia que Sean não
era uma ameaça?
— Oh, tenho minha pequena parte embora não como
Brígid. Ela era Ballagh dos pés à cabeça, às vezes
muito, se souber a que me refiro. Suspeito que em
alguma parte da sua árvore genealógica há mais de
um ramo concebido pela mesma raiz.
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Incesto. Endogamia. Estupendo, pensou Sean. Inclusive
seus genes eram um maldito desastre.
— Seu dom a deixou louca. Não controlava o que via e
não tinha forma de saber o que era. O que via podia ter
acontecido há dez anos ou podia acontecer em 40 anos. Tudo o
que sabia era o que via. Pensava que eu era infiel, mas jurei em
sua tumba que jamais fui. Ela me viu com outra e era tudo que
sabia.
Ele olhou para Sean com penetrante intensidade. Como
se tentasse convencer a ambos. Niall suspirou.
— Estávamos casados há pouco tempo quando me dei
conta de como seriam os anos que passaríamos juntos: uma
tormenta de possibilidades, enlaçadas ao acaso por uma rede
defeituosa. Em pouco tempo, ela perdeu a capacidade de
distinguir o que era real, o que passava neste mundo e o que era
uma visão. Era preciosa e doce e cheia de vida quando a conheci,
quando a fiz minha esposa. Mas no final, essa moça foi absorvida
pela enfermidade em sua cabeça. Sabe o que me disse enquanto
morria em meus braços?
Com a boca seca, Sean sacudiu a cabeça.
Não pode escutar suas últimas palavras.
— Disse “obrigado, meu amor”. E lá estava
eu sentado, sangrando, porque ela se pôs como
uma leoa e tinha tirado uma parte da minha
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carne e me deu obrigado. Havia sangue por toda parte, misturado
com lágrimas, tornando minha visão uma neblina vermelha. Meu
coração se partiu em dois. Quando ouvi atrás de mim meus
filhos, me olhando como se fosse uma besta selvagem que deviam
temer. Mas logo, os dois vieram para mim e choraram entre meus
braços. Se tivesse morrido nesse momento, acredito que tudo
tivesse ficado bem, sabendo que não me odiavam.
A expressão de Niall se parecia com a que Sean tinha
tido essa manhã. De resignação, de dor; uma confusa esperança,
tudo convertido em um só sentimento.
— É por ele, por quem preocupo — disse Nial, olhando a
seu filho maior. — É como ela em algumas coisas. Bom coração, e
uma alma forte. Daria sua última comida sem que sequer a
pedisse. Mas é um Ballagh, tanto como Brígid era. Por tudo o que
luta, tem o dom, a maldição.
Sean ficou tenso, como se tivessem o metido em gelo.
Não estava certo o que havia dito Niall. Ele não tinha o dom.
Nunca tinha visto nada antes que acontecesse. Certamente nada
como o que tinha visto nessa manhã.
— Está-me dizendo que ele também sabe
coisas? — Perguntou Sean.
Niall sacudiu a cabeça. — De algum jeito.
Houve um tempo em que Michael tivesse apontado
o mar, eu teria ido a qualquer lugar que me
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houvesse dito por que sempre sabia onde teria que soltar as
amarras. Diria que se aproximava uma tormenta mesmo que nem
sequer estivesse perto. E sua mãe, Oh, ele era bom com ela. “Pá”
diria ele “Mamãe está a caminho. Cuide bem dela”.
Essas palavras sacudiram Sean, batendo-o como faria
uma rocha contra uma parede de cristal. Uma parte dele se
quebrou e começou a recordar. Uma vez, pode predizer as
mudanças do tempo, as marés e o estado de ânimo daqueles que
amava. Podia ver dentro das pessoas, ver o que escondiam sob a
pele como um tecido de cores. Ninguém podia esconder um
coração escuro, nem um puro.
— Quando se deteve? — Perguntou Sean, sabendo que
Niall estava olhando com olhos perspicazes embora, mesmo
assim, era incapaz de esconder sua confusão.
— Não poderia te dizer — murmurou Niall — Quando
perdeu a sua mãe, encerrou-se em si mesmo. Pode ser que ainda
tenha esse conhecimento, mas já não o compartilha. Nem comigo,
nem com ninguém.
Sean assentiu, embora o fez mais por reflexo do
que para demonstrar que tinha entendido algo.
— E sobre Trevor? — Perguntou.
— Não, Deus o abençoe. Parece que
escapou da maldição. — Sean escutou em sua
Brumas da Irlanda 1 Página459
cabeça o eco da voz envenenada da sua mãe. Trevor nem sequer é
seu filho…
— Ah, aqui estamos — disse Niall, dirigindo-se a um
lugar do convés. — É um bom dia para trabalhar, alegro-me de te
ter a bordo.
E assim se deu por finalizada à conversa. Mas para
Sean, as perguntas só se multiplicaram até que já não pôde
pensar mais.
Brumas da Irlanda 1 Página460
Capítulo 29
Cathán estava assustado e um pouco aborrecido por ver
seus filhos sentados no banco em frente à Danni. Ele tentou
ocultar com fingida indiferença, mas o máximo que conseguiu foi
um sorriso torcido e um olhar duro. Para ocultar sua própria
apreensão, Danni acrescentou uma colherada de farinha no copo
medidor e polvilhou sobre os outros ingredientes. Já tinha posto
muita farinha e a lembrança de Bronagh a advertindo sobre os
ingredientes veio em seguida a sua mente. Mas já não podia fazer
nada. Passou o dedo pela lista até que chegou ao seguinte passo,
enquanto olhava de esguelha para Cathán que também a olhava.
Os meninos permaneceram em silêncio enquanto seu
pai desviou a atenção de seus rostos para Danni e logo olhou
para eles outra vez. Ela não tinha dúvidas de que ele tinha
escutado seus sussurros ao abrir a porta e ele não
gostou de vê-los segurando sua mão sobre a
bancada e de repente parassem de conversar.
Danni não podia o culpar pelo que sentia. No fim
ela era uma estranha que estava falando
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segredinhos com seus pequenos gêmeos. Ele tinha motivos para
suspeitar.
— O que está acontecendo? — Perguntou ele,
controlando-se para soar indiferente — Estão incomodando
Danni?
As duas cabeças negaram em uníssono.
— Ela nos disse que podíamos lhe fazer companhia, —
respondeu-lhe Rory.
— É verdade — acrescentou Danni, sorrindo — É uma
grande companhia. Deve estar muito orgulhoso deles.
— É claro que estou. São crianças brilhantes, embora
deva leva-los de sua encantadora companhia. Seja seus
aniversários ou não, é hora das lições de equitação, — olhou para
as crianças com um olhar doce — A menos que queiram que eu
cancele.
— Não — exclamaram ao mesmo tempo.
Lições de equitação. Danni tampouco se lembrava disso,
mas aparentemente gostava. Os gêmeos pareciam
felizes ao descerem dos seus bancos e
encaminharem-se para a porta.
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— Esperem um momento — disse Cathán, detendo-os —
Onde está sua mãe? Estou-a procurando.
— Tinha que entregar uns recados — respondeu Dáirinn.
Cathán assentiu e fez um gesto para que se fossem. Os
gêmeos saíram rapidamente, embora Danni captasse seus
olhares de curiosidade antes que a porta se fechasse atrás deles.
— Trabalhando duro outra vez, senhora Danni Ballagh?
O nome fez com que seu coração deixasse de pulsar um
instante.
— Sim. Embora lamente não fazer justiça à caçarola de
Bronagh.
— Eu nunca gostei, de qualquer maneira — disse ele.
O alarme do forno escolheu esse momento para começar
a soar. Danni tirou a sobremesa dourada de Bronagh e o pôs
para esfriar. Enquanto isso, seu pai se moveu pela cozinha
olhando-a por cima do ombro. Deixava a nervosa o ter em suas
costas, mas não sabia por que. Possivelmente fosse seu próprio
sentimento de culpa por ter tentado surrupiar
informação dos seus filhos. Este era seu pai, um
homem que obviamente a tinha querido durante
sua infância, um homem devoto a sua esposa,
embora Fia não lhe quisesse da mesma maneira.
Brumas da Irlanda 1 Página463
Não havia motivos para que Danni estivesse tensa na presença
dele.
Ela voltou para a bancada e terminou de cortar um
caule de aipo para acrescentá-lo à panela.
— Onde está seu marido nesta manhã? — Perguntou
Cathán e ela se deu conta de que ele se moveu para estar atrás
dela.
— Está trabalhando no barco com Niall — respondeu,
desejando que não ocupasse seu espaço. Ele parecia não se dar
conta do que era espaço pessoal, embora ela tentasse não se
sentir estranha nessa situação.
— Vocês os Ballaghs são pessoas trabalhadoras.
— Suponho…
Ele se moveu e ela sentiu seu calor nas suas costas.
Algo lhe roçou a pele da nuca descoberta, onde tinha prendido o
cabelo e ela deu um pulo, chocando-se contra ele ao dar a volta.
Ele não se afastou e ela se encontrou presa entre o canto da
bancada em forma de L e o corpo dele.
— Por que não acredito que esteja
realmente casada com ele? — Perguntou Cathán,
sombriamente.
—Perdoe-me?
Brumas da Irlanda 1 Página464
— Não usa anel.
— Tive que vendê-lo — disse ela, surpreendida pela
rapidez com a que a mentira lhe veio à boca — Para comprar
comida e pagar o aluguel. Passamos uma temporada difícil.
Ele sacudiu a cabeça.
— Não me parece bom que uma mulher tão formosa esteja
casada com um homem que nem sequer pode fazer com que sua
esposa tenha um anel.
Um risinho nervoso escapou dos lábios de Danni.
— O que estava fazendo com meus filhos, Danni? —
Perguntou ele, olhando-a com olhos entreabertos.
— Eu… Nada. Só estávamos conversando.
— Sussurrando — disse ele.
Ela negou, mas o aborrecimento que viu refletido em
seu olhar a fez deter-se. Seu pai queria proteger seus filhos é
claro que o fazia. Mentir-lhe só agravaria sua desconfiança. Mas
não podia lhe dizer a verdade, ou sim?
Considerou essa ideia. Se ele soubesse o
que ia acontecer essa noite, moveria céu e terra
para detê-lo. Danni, certamente, poderia utilizar
um aliado em tudo aquilo e possivelmente, só
possivelmente, seu protetor pai pudesse receber
Brumas da Irlanda 1 Página465
uma resposta. Não podia contar-lhe tudo, é obvio não tudo sobre
ela e Sean, mas podia dar a entender que essa noite poderia
trazer algum perigo para sua família…
Em sua cabeça, ele reviraria os olhos. Por acaso estava
louca? Se lhe contasse isso, ele assumiria que ela era o perigo. E
quem o culparia por isso? Assim, o que podia fazer?
Não tinha visto seu pai em sua primeira visão, mas o
artigo que tinha lido na internet dizia que ele tinha estado lá, na
caverna. Que tinha sido testemunha do ataque de Niall e que,
supostamente, tinha chegado muito tarde para evitá-lo. Mas se
pudesse conseguir que chegasse antes, possivelmente isso
equilibraria as coisas e pudesse marcar uma diferença. Não era
tão ingênua para acreditar que isso salvaria seu matrimônio, mas
poderia salvar a vida de Sean. Fia provavelmente escaparia com
Niall, mas Sean estaria vivo. Teria uma oportunidade.
Mesmo assim, ainda havia a questão do que tinha
acontecido com o Livro de Fennore e as visões que tinha tido dele.
Sua mãe tinha aparecido em ambas. Danni não podia adivinhar o
que tinha acontecido no tempo que transcorreu desde que tinha
visto Edel usando o Livro e agora, mas não havia
motivos para o desaparecimento de Edel, a mãe
delas tinha obrigado Fia a ocupar seu lugar. Isso
significava que Fia tinha o livro agora? Estava-o
usando? Ou havia outra possibilidade?
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E se Fia estava tentando desfazer-se dele? Ela tinha tido
algo com o Niall, ia ter um filho dele e queria ir para a América.
Isso era o quanto Danni sabia. Se vender o Livro de Fennore, Fia
teria que velar por dois assuntos críticos. Primeiro, teria que ir
embora e viver em outro lugar e segundo, não teriam que
suportar a carga de possuir algo tão terrível.
A ideia assumiu a mente de Danni e cresceu.
Possivelmente estava tentado planejá-lo para essa noite, mas o
comprador tinha traído Fia. Possivelmente ele era o homem que
não via na visão. Se ele tinha ameaçado matar Fia e seus filhos, e
já tinha assassinado a Sean…. Essa seria a razão pela que Fia
fugiria e se esconderia. Isso explicaria por que nunca tinha
retornado a Ballyfionúir. Por que tinha trocado o nome…
— Está pensando muito, Danni. É por acaso uma
pergunta difícil? Por que sussurrava com meus filhos?
A voz de Cathán a tirou dos seus pensamentos e a
devolveu para a cozinha. Ele ainda estava olhando-a com fria
suspeita. Não havia uma maneira de dizer nada disso a seu pai.
Era tudo uma hipótese, teorias apoiadas em pouco mais que uma
intuição. Ele não tinha razões para acreditar nela e
todas as razões do mundo para duvidar dela.
Seu olhar passou da sua cabeça para sua
garganta, até o colar que descansava em seu peito
agitado.
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— Quem é? — Exigiu ele — E não me diga que é a
esposa de Ballagh, porque não acredito nisso. Eu soube desde o
primeiro momento. Você finge que é amiga da minha esposa e dos
meus filhos, mas quer algo. O que está procurando?
— Nada, senhor MacGrath. Só faço meu trabalho. Se
preferir que não fale mais com seus filhos, não o farei. Mas só
estávamos conversando.
— Isso não está certo. Estavam de mãos dadas. Eu vi.
Toma-me por idiota? Acredita que não vi como entendem um ao
outro? Acredita que não sei o que eles podem fazer quando tocam
outras pessoas?
Ela tragou com dificuldade por ouvir a inegável ameaça
que havia em seu tom. Ele se aproximou dela, intimidando-a com
seu tamanho e com seu olhar cortante.
— O que lhe disseram? Contaram-lhe algo sobre o Livro de
Fennore, talvez?
Danni não pôde evitar o som agudo que fez ao respirar.
— Sabe onde está? — Perguntou ela, antes de
poder evitá-lo.
Ele se moveu rápido, agarrou-a pelos
braços e a sacudiu da cabeça aos pés.
— Por que, o quer?
Brumas da Irlanda 1 Página468
— Não o quero… — mentiu, mas ele não a escutava.
— Iria usá-los, verdade? — Disse ele, com voz
aparentemente tranquila e baixa — Sabe como usá-los.
— Iria usá-los? Não, eu não ia…
Ele a sacudiu mais forte, com isso conseguiu que ela
mordesse a língua pela sacudida da cabeça. — Como? — Exigiu
ele — Eles são fortes o bastante para controlá-lo? É isso?
Danni já não respondia a suas perguntas. Tentou
liberar-se do aperto dele com um puxão, mas ele a tinha presa
entre o canto da bancada e seu corpo. Então, ele agarrou-lhe o
queixo e a obrigou a olhar para seus olhos frios. Ontem havia
sentido um sentimento confuso pelo duro brilho em seus olhos e
antes, tinha pensado que o brilho que se desprendia deles era por
sua raiva. Mas agora, olhando a fria profundidade dos seus olhos,
deu-se conta de que estava equivocada, essa luz nos seus olhos
não era natural. Brilhavam como diamantes. Duros e com
distintas facetas. Já tinha visto esses olhos antes. Na visão em
que a irmã de Fia, Edel, havia tocado o Livro. Os olhos de Edel
tinham brilhado como o faziam os do Cathán agora.
— Está usando-o — ela respirou fundo, sua
voz refletia horror. Uma nova onda de pânico fez
com ela e tentasse escapar de novo — Deixe-me ir!
— Gritou, levantando o joelho. Mas ele estava
muito perto e o chute foi muito suave e não pôde
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liberar-se. Estava presa.
A ideia daquilo, na realidade, acendeu uma chama em
seu interior. Ela começou a retorcer-se grosseiramente, mas ele
era maior e mais forte. Agarrou-a pelos braços e os dobrou e os
pôs atrás das costas até que ela se retorceu de dor. Logo com
uma de suas mãos agarrou as duas dela e com a mão que ficava
livre, agarrou-a pelo pescoço.
— Diga o que sabe sobre o Livro — disse-lhe ele, com
seus dedos lhe rodeando o pescoço, apertando com força
suficiente para que ela soubesse que a faria mal.
Danni tentou lhe dar uma cabeçada, esperando com
isso alcançar seu nariz. Mas ele era muito alto e quão único
conseguiu foi lhe acertar na boca com a testa. A dor lhe percorreu
a cabeça e se sentiu atordoada. Mas seu ataque o tinha pego de
surpresa e ele a soltou o suficiente para lhe dar tempo de
escapar. Ela correu para a porta, mas ele a alcançou e conseguiu
a agarrar pelo cabelo, puxou-a e quase a derrubou no chão. Ela
cambaleou até que ele a agarrou por trás, agarrou-lhe os braços e
os cruzou diante do seu peito, como se lhe pusesse uma camisa
de força. Em seguida colocou a boca em seu ouvido e lhe
disse: — É meu, Danni Ballagh. Matarei você antes
de permitir que o tenha.
Brumas da Irlanda 1 Página470
Parte dela se rebelou não querendo reconhecer a
ameaça que percorria sua pele. Este era seu pai. Este era seu pai.
— Por favor, deixe-me ir, — disse ela rápido e odiou o
tom de súplica — Não quero o livro, eu tenho medo dele.
Ao sentir que ele começava a acreditar nela, ela seguiu por
essa linha.
— Sou muito fraca para usá-lo.
— Ter esse poder pode ajudar-te a destruir essa
debilidade — disse ele, lhe sacudindo as mãos.
Danni nunca saberia o que ele tinha planejado a seguir.
Pois nesse momento ouviu a voz aguda de Bronagh da entrada da
cozinha.
— Senhor MacGrath! O que está fazendo com a pobre
moça?
Cathán libertou Danni tão de repente que ela desabou
sobre a bancada. Ela moveu-se com rapidez e rodeou a bancada
até chegar do outro lado para que ele não pudesse voltar a
agarrá-la. Agora que ela podia respirar, mas não
conseguia puxar o fôlego. Doíam-lhe os braços e a
cabeça. Lágrimas de fúria lhe percorriam o rosto e
ardiam seus olhos quando olhou para expressão
fechada de Bronagh.
Brumas da Irlanda 1 Página471
— Peguei-a roubando — disse Cathán, em tom tranquilo.
Antes que Danni pudesse negá-lo, Fia entrou atrás de
Bronagh. Durante um instante, ninguém falou. Danni observou
como Fia olhava atentamente para o lábio machucado de Cathán.
— Senhora Ballagh — disse Bronagh para Danni com
forçada formalidade — É verdade? Está você roubando?
A voz de Cathán soou escandalizada e afogou a resposta
de Danni.
— É melhor não questionar minha palavra, Bronagh. Você
acredita que é mais do que uma empregada? Disse que ela fez
isso, então ela fez.
Bronagh empalideceu.
— Sim, senhor — Ela olhou com culpa para Danni antes
de perguntar para ele.
— Quer que chame as autoridades?
Cathán umedeceu uma toalha e a passou pelo rosto.
Sua boca sangrava e iria inchar.
— Não, só a tire daqui. Não quero tê-la mais
em minha casa.
— Sim, senhor — Ela não pôde olhar
para o rosto de Danni quando disse. — Senhora
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Ballagh, por favor, vá embora. Mandarei o seu pagamento por
Colleen.
— Não haverá pagamento — disse Cathán. — Deus sabe
quanto já terá roubado.
Fia não disse nada ao olhar para seu marido e depois
para Danni. Mas Danni percebeu que Fia tinha a sensação de que
o que tinham interrompido não era um ladrão com as mãos na
massa. Entretanto, não iria contra Cathán, isso estava bastante
claro. Danni pensou nos roxos que tinha visto em sua mãe e
agora via a causa com brutal claridade. Seu pai…
Com frieza, Danni desatou o avental e o deixou na
bancada. Sem dizer uma palavra se foi.
Ao sair, sentiu o ar fresco em sua pele e respirou fundo
várias vezes, tentando esquecer o pesadelo que acabava de viver
nos últimos minutos. Queria correr e esconder-se. Sentia a
vergonha cobri-la como um sudário escarlate. O som de rodas
sobre o cascalho a fez retroceder. Não podia ver ninguém. Não
com as emoções misturadas como as suas estavam, atravessou o
prado correndo, descendo pelo caminho que tinha visto
ontem e que levava até a borda rochosa. Uma vez lá,
seguiu seu caminho com cuidado até a baía e à
sombria entrada que dava para a caverna sob as
ruínas.
Brumas da Irlanda 1 Página473
Dentro fazia frio e havia silêncio, sentiu um estranho e
inexplicável conforto ao ver as intermináveis espirais desenhadas
nas paredes que a rodeavam, causadas pelo rítmico ir e vir da
maré contra a rocha. Finalmente, Danni deixou que as lágrimas
caíssem. Chorou pela menina que levava dentro dela, tão
desiludida que queria gritar sua angústia e sentir o eco contra a
dura pedra das paredes e o escuro charco. Toda sua vida tinha
sonhado em encontrar sua família, imaginava que a tinham
amado que a tinham procurado e que quereriam abraçá-la. Os
tinha os imaginados empobrecidos, mas devotados um ao outro.
Ou ricos, mas angustiados pela perda da sua filha. Tinha
sonhado com cada cena possível, mas nada se aproximou da
realidade.
Seu pai tinha o Livro de Fennore e o tinha usado. Além
disso, havia dito que mataria por ele.
Ela estremeceu ao recordar dos momentos em que
pensou nele como um aliado, quando pensou em lhe contar tudo
o que sabia. O que ele teria feito se soubesse de tudo isso? Teria
usado para fazer lhe mal?
Que classe de vida horrorosa tinha sua mãe?
Quanto saberiam os gêmeos sobre isso? E o que
Cathán quis dizer quando perguntou a Danni se
tinha descobriu como usar seus filhos? Usá-los
para que?
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Escondeu-se na fria umidade da cova, protegida pela
escuridão das sombras. Tinha dormido pouco a noite anterior e
estava exausta, mas seus pensamentos não se aquietaram na sua
cabeça.
Cathán tinha o Livro de Fennore. E mataria para que ele
continuasse em seu poder.
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Capítulo 30
Danni não sabia quanto tempo se passou antes que um
ruído a despertasse. Ao abrir os olhos seus músculos doeram e
ela fez uma careta de dor. Com cautela, girou a cabeça. Soavam
passos que vinham das estreitas escadas que levavam às ruínas
do castelo. Danni se moveu até que pôde ver o caminho e
escutou.
Durante um momento, continuou escutando o som de
alguém arrastando os pés, mas, tinha a sensação de que alguém
se movia de um lado para o outro. Os passos que escutava eram
lentos e pesados, logo se detiveram e voltaram a subir mais
rápido. Depois, repetiu o mesmo processo. Danni se moveu do
seu esconderijo para poder investigar mais; de repente, um feixe
de luz chegou da porta, o que a obrigou a agachar-se de novo. Um
momento depois, apareceu Fia MacGrath carregando
uma mochila de viagem. Colocou-a sobre uma rocha
saliente próxima ao charco e então voltou a subir as
escadas. Passaram-se alguns minutos e voltou com
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outra. Quando terminou, duas mochilas e uma mala estavam
colocadas junto à água. Fia ficou as observando durante um
longo momento.
Ela parecia pequena, indefesa e completamente
esgotada. Danni pensou em seu rosto quando a tinha visto entrar
na cozinha. Tinha refletido curiosidade e medo. Aborrecimento,
dor e resignação, mas mesmo assim ela tinha visto algo mais:
confirmação. Então convicção. Resolução. O que fosse que Fia
tinha visto, o que fosse que tivesse assumido para si mesma,
Empurrando a para tomar uma decisão.
Danni fechou os olhos ao dar-se conta da ironia final.
Não era um cruel reverso do destino que, tentando salvar sua
família, Danni tinha se convertido, sem dar-se conta, no
catalizador que tinha feito Fia fugir?
As palavras de Colleen vieram a sua mente. Só posso-te
dizer que piorei tudo. Era isso o que estava fazendo Danni agora?
Piorá-lo? Mesmo assim, Colleen estava convencida de que Danni
podia fazer o certo… de que podia fazer o que estivesse em sua
mente.
— Deus, estou ferrada — murmurou.
O que ninguém lhe havia dito era como,
como faria para que sua mente fizesse o que seu
coração queria. Certamente, não tinha tido êxito
no que havia tentado fazer essa manhã. Não
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importava quão desesperada esteve para deter os terríveis
acontecimentos que ocorreria, o resultado tinha sido o mesmo.
Necessitava algo mais que sua vontade para fazer a diferença.
Obviamente, não podia fazer sozinha. Necessitava do Livro de
Fennore.
Precisará de parte da sua alma, tinham-lhe confessado os
gêmeos.
Mas, uma parte de sua alma era um preço pequeno se
isso significava salvar a vida de Sean. No fim, o que seria da sua
vida sem ele? Em poucos dias, ele converteu-se em muito valioso
para ela. Amava-o, como uma idiota, tão inconveniente como era,
amava Sean Ballagh e faria algo para lhe salvar.
Inclusive se isso sacrificar a parte que te faz humana?
Zombou uma voz em sua cabeça e imediatamente Danni
visualizou em sua mente os olhos do seu pai… aquele brilho de
várias facetas… na fria promessa: Matarei-te antes que o tenha.
E ela acreditava.
Inconsciente da presença de Danni Fia colocou as malas
contra a parede as ocultando nas sombras. Deu uma
olhada nervosa ao redor e subiu com rapidez as
escadas. Danni esperou até que não ouviu mais
seus passos antes de segui-la.
As serpenteantes escadas eram
resistentes, mas empoeiradas. Em algumas
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partes, os degraus se desintegraram totalmente, o qual a obrigava
a ir tateando em cada lugar que podia apoiar o pé. As paredes
que a rodeavam estavam se desmoronando e eram escorregadias,
além disso, a passagem estava tão escura que quase não
distinguir seus pés. Quanto mais alto subia, mais escuras
estavam.
Começou a sentir medo, assustava a ideia de sentir-se
absorvida pela escuridão, apanhada com força sob o manto de
negrume que não a deixava respirar. Essa sensação aumentou
até tal ponto que temeu não poder seguir em frente, começou a
passar quando pôde distinguir as mãos entre a ardente
escuridão, como pequenos pássaros revoando a seu redor.
Finalmente, a luz apareceu sobre ela. Respirou fundo, aliviada.
Saiu em um caminho que dava em cima da parede em
ruínas. Uma mureta bordeava o caminho, mas a maior parte
tinha sucumbido ao tempo e aos elementos e caiu no mar,
deixando-a exposta aos fortes ventos. A uns doze metros, o
caminho levava a outra torre: o claro destino a que se dirigia Fia.
Armando-se de coragem, ela começou a cruzar o
caminho, mantendo o equilíbrio e retrocedendo
quando o vento movia seu corpo. A vista era
magnífica e não pôde evitar olhar os intermináveis
prados, o pequeno povoado encravado no paraíso
criado entre as colinas e mais à frente, o oceano. O
romper das ondas brancas com intenso poder,
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davam-lhe a sensação de que seria assim para sempre.
Alcançou a torre sem fôlego e atravessou o duvidoso
amparo de suas paredes, quase gritou quando Fia entrou em seu
caminho e lhe perguntou:
— Por que me está seguindo?
— Não…, não o fazia — respondeu Danni, mas
obviamente a seguia — Somente queria ver onde levavam as
escadas.
— Bom, pois já o viu, o que mais quer ver?
— Nada.
Fia cruzou os braços, seus olhos se entreabriram
denotando sua suspeita. Danni se deu conta de que estava
assustada. Tinha medo de Danni.
— Não contarei a ninguém que vai embora, — disse
Danni, com suavidade — Não estou aqui por isso.
— Ah, não? Ilumine-me então sobre os verdadeiros
motivos para estar na minha casa. Para seguir-m? Sei que
não anda atrás do meu marido e lamento que ele
tenha te incomodado, mas foi que fizesse sangrar o
seu fodido lábio — soltou Fia, com um tom de
diversão zombeteira — É mais valente que eu. Mas
há uma razão por que está aqui, qual é?
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Fez-se outro comprido minuto de silêncio, Danni tentou
responder, “estou aqui para mudar meu passado”, mas
provavelmente isso não inspiraria Fia a confiar nela.
Como se tivesse escutado seus pensamentos, Fia fez
outro som de desdém e se virou. Presa do pânico, Danni se deu
conta de que tentava ir embora.
— Espera… é que… preciso te dizer algo.
Fia se deteve, mas não se virou.
— Sobre meu marido? Não se incomode. Com certeza é
algo que já sei.
— Não, é sobre esta noite — disse Danni.
— O que acredita que sabe sobre esta noite? — Perguntou
Fia.
— Ele alcançará-te, — disse Danni — e quando o fizer,
ele fará mal. A você e às pessoas que ama.
Fia olhou fixamente. Não lhe perguntou como sabia.
Mesmo assim, não continuou a caminhar.
— Já nos tem feito mal.
— Mas quando esta noite acabar, Niall e
Michael estarão mortos e sua família se separará.
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— Pode ser que essa seja uma opção — disse ela, com
calma — Pode ser que não.
Danni respirou fundo e se lembrou de que Fia não sabia
quem era ela em realidade. Por que Fia ia acreditar algo do que
lhe dissesse?
— Só me escute, seja o que for que está planejando fazer
esta noite, não o faça. Não vá.
— Para eu não ir embora? — Repetiu Fia, incrédula —
Mudará algo se não for? Parece saber o que acontecerá se vou
embora ou se não vou? O que acontecerá então, senhora Ballagh?
O que acontecerá então?
— Não sei.
— Aye, não sabe. Deixe-me te dizer o que eu sei. Sempre
foi assim: dois caminhos diante de mim. Sempre foram claros,
sem que ninguém me explicasse isso. Por um lado, arrisco tudo o
que desejo e tudo o que quis durante toda minha vida. E por
outro, arrisco a única coisa que me importa: meus filhos. Eu
esperava que estivesse equivocada, mas agora sei que não. Ele
encontrou o Livro e o está usando. Se eu não for,
usará os meninos contra mim. Vai tira-los de mim e
os usará para seus próprios fins. De qualquer forma
o fará, compreendeu? E quanto a mim, irei embora
e nunca me encontrarão. Não importa qual
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caminho escolha, é o mesmo destino em um lugar diferente.
O peso das suas palavras, o tom de finalidade em sua
voz, derrubou os ombros de Danni. É o mesmo destino, em um
lugar diferente.
— E Niall, também conhece os riscos… não adocei o que
vai acontecer para ele, pois seu destino está entrelaçado ao meu.
Se tiver o poder para fazê-lo, meu marido apagará Niall e seus
filhos da face da terra. Ele também sabe isso.
— Ou seja, você se convenceu que só há duas opções?
Fugir ou não fazer nada? E sobre ficar e lutar contra ele?
— Lutar contra ele? Olhaste em seus olhos? Viu o que
vive dentro dele? Brigar contra Cathán, seria uma briga que
levaria a morte. Quem acredita que sobreviverá a essa batalha?
Eu? Meus filhos? De verdade é tão idiota?
— Mas deve haver algo que possa fazer.
— Não haveria ninguém mais feliz que eu se isso fosse
possível — Fia franziu o cenho, estudando o rosto de Danni,
considerando-a — Sinto como se já te conhecesse —
disse — apesar de que sei que não nos vimos antes.
Por que me parece tão familiar?
Porque sou sua filha…
Como se tivesse escutado suas palavras,
os olhos de Fia se abriram de par em par e seu
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rosto empalideceu até alcançar um branco cadavérico.
— Jesus — disse e respirou, olhando Danni.
Um pequeno brilho de esperança brotou dentro de
Danni. Sua mãe se deu conta, por fim, de quem era ela. Mas,
igualmente rápido, sua esperança morreu. Danni pôde ver em
sua expressão que não era reconhecimento. Era horror.
— Foi você aquela noite, não? — Fia respirou — Foi você
que vi no canto da casa da minha mãe…, mas, como? Isso
aconteceu há muito tempo…
Ela se referia à noite em que tinha visto a irmã de Fia
utilizar o Livro de Fennore. Danni soube sem necessidade de
confirmar isso.
— Naquela noite, entre as sombras — prosseguiu Fia —
você foi pelo Livro. Foi você quem o levou.
Ao mesmo tempo em que franzia o cenho, Danni negou.
Ela não pegou o livro. Jamais o havia tocado.
— O Livro de Fennore?
Fia retrocedeu e tropeçou, sacudindo a
cabeça ao mesmo tempo em que dizia:
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— Como o fez? Por que foste pegar isso não sabe o que é,
nem o que pode fazer. É uma idiota se acredita que pode usá-lo.
— Não sei do que está falando. Eu não peguei…
Mas Fia já se virava, correndo através da passagem e
descia pelas escadas. Danni olhou pela alta e estreita janela e a
viu sair das ruínas, dar um furtivo olhar e acelerar o passo até a
casa, movendo-se tão rápido como se o diabo estivesse atrás dela.
Danni cobriu o rosto com as mãos. A que ela se referiu?
Tinha visto Danni quando a visão a tinha levado até a casa de Fia
na noite em que sua irmã usou o Livro de Fennore e desapareu,
mas, por que ia pensar que Danni o tinha levado? Nem sequer o
havia tocado.
Ainda.
A palavra lhe veio à mente, mesmo antes de ter pensado
nela. E, o que significava isso? Que em algum momento, antes do
anoitecer, Danni voltaria para a casa e nesta ocasião poderia
levar o Livro com ela?
A simples ideia daquilo congelou seu sangue e a
fez tremer. Lentamente, apoiou-se sobre a parede e
se deixou cair até o chão. Não tinha conseguido
mudar o resultado da visão dos pais de Sean, mas
tinha conseguido trazer Sean com ela. E se podia
acreditar em Colleen, tinha sido Danni quem
havia lhes trazido para Ballyfionúir, para seu
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passado. Mas Danni continuava sem saber como o havia feito.
O que quiser que aconteça, utilize sua mente, havia-lhe
dito Colleen.
Também havia dito a Danni que usasse o Livro se isso
era o que acreditava que devia fazer.
Caralho, era isso? Usar o Livro de Fennore era a resposta?
E assumindo que poderia ir ao último lugar em que o
tinha visto, também poderia trazer o Livro da visão? Trouxe Sean
com ela, mas, poderia fazer o mesmo com um objeto? Algo como o
Livro de Fennore?
Aparentemente sim, de outra forma por que Fia haveria
dito isso?
Danni umedeceu os lábios secos e respirou fundo. O sol
estava no ponto gélido do meio-dia. Dispunha de algumas horas
antes que começasse a reinar a escuridão da noite, mas Danni
estava sem tempo. Não podia se fazer essas perguntas por mais
tempo. Tinha que procurar as respostas e tinha que fazê-lo agora.
O tempo de que dispunha, era o único que
tinha para tentá-lo.
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Capítulo 31
Danni fechou os olhos e se obrigou a relaxar, sentiu a
tensão dos seus membros. Não era fácil estar sentada no chão
contra um muro de pedra, mas pouco a pouco pôde desterrar o
estresse e a tensão dos seus músculos e eliminar o ruído de
confusão em sua cabeça. Agarrou o pendente celta da corrente de
ouro e sustentou-o na mão, concentrou-se na noite em que tinha
visto a casa de Fia, centrando-se na tormenta, na janela, no frio.
Sentiu o vento úmido contra seu rosto e se entregou
para senti-lo, abraçando o medo que punha os pelos do seu corpo
em pé. O som da chuva golpeando os telhados, lavando o dreno e
as poças transbordando. E depois o frio. Um frio que era tão
profundo como seus ossos.
Pouco a pouco, Danni abriu os olhos. Estava lá,
diante da janela, olhando a habitação iluminada
cheia de elegantes móveis. A casa estava deserta, a
chaminé vazia. Ninguém tinha notado Danni
movendo-se para porta, testando a fechadura.
Estava fechada com chave.
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Por um momento a frustração se apoderou dela. Agora o
que? Tinha conseguido retornar aqui, mas não havia maneira de
entrar. Podia sentir o pânico e a inutilidade da sua luta pelo
controle e se acalmou. Lembrou, que em realidade não estava
aqui, Verdade? As portas não tinham sentido nesta existência.
Pôs uma mão contra ela, esperando encontrar resistência. Então
deu um passo para trás, deu uma profunda respiração e deixou
escapar o ar.
Não há porta. Nada pode me deter.
Com os olhos fechados, Danni se dirigiu direto para ela.
Só quando já não sentiu a chuva em seu rosto abriu os olhos.
Tinha conseguido. Estava dentro. Rapidamente se moveu até o
armário onde tinha visto a mãe de Fia guardar o Livro de
Fennore. Outro que certamente ofereceria uma barreira, mas
desta vez Danni não duvidou. Foi com suas mãos através da
madeira pesada, até que encontrou a engrenagem da antiga
tranca do outro lado… centrou-se em fazer igual o que tinha feito
para conseguir abrir as portas. Seus dedos se fecharam ao redor
das alavancas e puxou delas em direções opostas. A tranca foi
liberada e a porta se abriu com um clique.
E lá estava. O Livro de Fennore.
Estava envolto em uma lona como o tinha
visto antes, mas mesmo assim teve que prepararse para tocá-lo. Com cuidado, levantou o grosso
livro do armário, concentrando-se em sua forma,
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fazendo-o real em ambos os mundos. Não se permitiu pensar
mais à frente do momento, da tarefa, mas não pôde ignorar o
tremor que viajou do Livro para seu corpo. Como se ele se
emocionasse ao vê-la. Como se estivesse esperando-a.
Ela deixou o livro no chão, fechou o cofre e voltou a
assegurá-lo. Quando o levantou de novo, ouviu vozes do lado de
fora e depois de um momento uma chave girou e a porta da frente
se abriu. Ela se virou rapidamente por que uma parte racional
dela insistia em que não a veriam. Mas poderiam ver o livro. Isso
era real, sem levar em conta o fato de que ela o sustentava. E que
ele poderia ficar da mesma forma que Danni estava agora.
Correu até o canto onde se escondeu da primeira vez
enquanto as três mulheres entravam na habitação.
— Não o farei, — Estava dizendo Edel — E não tente
enviar Fia. Iria matá-la.
— O fará, se eu quiser, — replicou a mãe de Edel.
— Tome cuidado com o que deseja mãe, — disse Edel em
voz baixa.
Danni conteve o fôlego quando passaram por
onde ela estava encurralada no canto sombreado. O
trio usava roupa diferente de quando as tinha visto
na primeira vez. Era uma noite diferente, então.
Danni o pegou, antes que Edel utilizasse o livro,
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antes que o livro devorasse o último resquício de prudência dela?
A mãe parecia querer discutir com sua filha mais velha,
mas em seu lugar ordenou a Edel que acendesse o fogo enquanto
ela preparava o chá. Fia flutuava na sala, como se não soubesse
qual era seu propósito nisto.
— Você não deixará que ela mande-me de verdade Edel?
— Perguntou Fia, quando sua mãe foi para a cozinha.
Edel levantou o olhar, com seus olhos brilhando
estranhos, mas não com o brilho maníaco que tinha antes e
sacudiu a cabeça, com expressão triste e resignada.
— Farei todo o possível, Fia. Mas meu tempo está
chegando ao seu fim. Não pode ver isso?
Os olhos de Fia se tornaram luminosos, com lágrimas
contidas.
— Não o usou demais, verdade?
— Isso não importa. Cada vez que coloco as mãos na
escuridão, me tira algo. Não resta muito.
Fia caiu de joelhos junto a sua irmã e a
abraçou. Mas foi Edel quem deu-lhe consolo.
— Shhh, minha querida Fia. Eu protegerte-ei se…. — Arrastou as palavras e de repente
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levantou a cabeça para analisar a sala — Ouviu isso?
— O que? — Perguntou Fia, olhando ao seu redor
também.
Edel se levantou e rodeou a sala com Fia atrás como um
cachorrinho. Seus olhos revoaram para o canto onde Danni
estava de pé, quieta, aterrada e seguiu seu caminho.
— O que ouve? — Perguntou Fia.
De repente, Edel ficou sem fôlego. Danni olhou com
olhos arregalados para a janela, onde um homem se encontrava
do outro lado do vidro, as olhando. Ficou lá somente um
momento antes de pular para trás, mas Danni o viu e Edel
também.
Os olhos do homem eram duros e brilhantes, malévolos
e agressivos. Havia um homem na janela da primeira vez que
Danni tinha estado lá. Ele não tinha visto Danni então, mas
agora…
Desta vez não estavam simplesmente vendo um ao
outro. Desta vez havia reconhecimento para ambos.
O homem na janela era o pai de Danni,
Cathán McGrath.
— O que aconteceu? O que viu? —
Perguntou Fia, avançando para olhar à chuva que
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caía. Como antes, ele se afastou tão rápido que poderia ter
desaparecido no ar.
Outra sacudida de medo atravessou Danni. Deu-se
conta de que ela não o tinha imaginado no Arizona. Não tinha
sido um homem que se parecia com seu pai quem tinha visto.
Tinha sido seu pai.
Mas, como fez isso? Da mesma maneira que Danni? E por
que estava ali?
Por que mais, uma voz em sua cabeça respondeu. Está
procurando o livro.
Algo mais golpeou Danni nesse momento. Lembrou-se da
psíquica esperando por ela no dia em que tinha visto seu pai. A
moça tinha falado de um Espírito, que a psíquica podia ver
flutuando ao redor de Danni. Danni tinha assumido que era
Sean, mas a garota havia dito que isso… Danni franziu o cenho,
tentando recordar as palavras exatas da psíquica.
Disse que Danni estava fugindo e ao correr, destruiria a si
mesma. E então disse que o espírito queria isso. Isso o faria feliz.
— O que viu? — Perguntou uma vez mais
Fia, com pânico em sua voz — Não há nada ali,
Edel.
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— Tem razão. Não é nada, mas minha imaginação está
ativa esta noite. Avivaria o fogo por mim?
Assentindo vacilante, Fia se ajoelhou no lugar onde Edel
tinha estado.
Edel ficou junto à janela um momento mais e então
pouco a pouco se voltou e olhou nos olhos de Danni. Olharam-se
por um longo, longo momento, o que deixou Danni sem dúvida
nenhuma de que Edel podia vê-la.
— Estarei contigo se mamãe tentar fazer você ir de novo
— dizia Fia enquanto adicionava o que pareciam tijolos de barro
ao fogo.
— Não se preocupe com o Livro, irmã, — disse Edel,
ainda olhando para Danni — Acredito que não será um problema,
para nenhuma de nós.
A pele de Danni se sentiu úmida enquanto apertava o
pesado livro contra seu peito. Seu coração golpeava com tanta
força contra suas costelas que temia que pudesse crescer e parar
por completo.
Sorrindo com confusão e alívio, Fia olhou
por cima do ombro para sua irmã, mas seu olhar
parou no canto e ela congelou. Em câmara lenta,
Danni viu as mãos de Fia cobrirem sua boca, seus
olhos se abriram com medo e surpresa enquanto
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um grito enchia seus pulmões.
Vire, Danni gritou em silencio em sua cabeça, desejando
que o ar mudasse e a tirasse dali. Vire!
E ele o fez. Com um assobio que apagou as feições de
Fia, a sala, a escuridão. Que levaram Danni o outro lado com
uma força que golpeou sua cabeça contra a parede de pedra da
cornija do castelo.
Danni estava ofegando, coberta de um suor frio e
pegajoso. Seu coração ainda estava acelerado e estava tremendo,
como se o livro a estivesse agarrando com suas mãos. Olhou-o,
odiando inclusive quando se regozijou em sua presença. Tinha-o
obtido. Trouxe o livro de Fennore.
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Capítulo 32
As largas sombras da tarde se reuniram na casinha,
enquanto Sean esperava que Danni retornasse.
Tinham tido uma boa manhã no Guillermot e tinham
atracado antes do meio-dia com o porão completo e cheio de
peixes. Sean tinha se apressado para retornar a casa para
encontrar Danni. Tinha que falar com ela, compensar seu frio
abandono desta manhã. Queria nada mais que a abraçar e lhe
dizer que sentia muito.
Mas ela não estava ali. Não estava na casa MacGrath
tampouco. Quando tinha ido à sua procura, Bronagh lhe havia
dito em termos inequívocos que Danni já tinha saído. Bronagh
tinha sido vaga e abrupta sobre onde Danni teria ido. Algo tinha
ocorrido, mas não tinha ideia do que era.
Tinha comprovado com Nana depois disso,
mas ela não tinha nenhuma informação para darlhe, exceto lhe dizer que fosse para casa.
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Esperaria o que fosse necessário. Foi de novo para a
casinha onde tinham dormido ontem à noite, com a esperança de
que ela tivesse retornado. Mas tudo o que esperava era as quatro
paredes, a cama em que tinham feito amor e a certeza terminante
de que não estava tudo bem.
Esteve sentado na cozinha durante o que pareceram
horas, bebendo chá e depois uísque, enquanto os minutos se
passavam. Depois de uma hora, ouviu arranhar a porta e a abriu
para encontrar o cachorro de Danni do outro lado.
Bean o olhou com olhos esperançosos e logo depois com
decepção. Pela forma em que o dia tinha começado, Sean
esperava que o cão o mordesse, mas ele só o seguiu ao interior.
Ao que parece, disposto a esquecer do passado nesta terra
estrangeira, Bean agora se encontrava equilibrado sobre o braço
da sua cadeira e Sean acariciava distraidamente sua cabeça e
sedoso pelo. Estava seguro de que o cão sentia sua ansiedade.
Sabia que tinha machucado Danni esta manhã quando
a excluiu. Mas tinha se surpreendido pelo que tinha acontecido,
estava muito surpreso para falar com ela. Necessitava de tempo a
sós para processar tudo. Certamente ela o entenderia.
Mas à medida que os minutos se
transformavam em uma hora, logo outra, Sean
começou a duvidar. A preocupar-se. Quando pôr
fim ouviu passos no alpendre, quis saltar a seus
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pés e abrir a porta de um puxão.
Bean levantou a cabeça quando Danni entrou, mas
obedeceu à pressão da mão de Sean e permaneceu em silêncio e
quieto. Sean tampouco se moveu. Em seu lugar, sentou-se em
silêncio, saboreando seu uísque com chá. Olhando. Ela se movia
com lentidão, com rigidez em seu corpo e tranquilamente fechou
a porta atrás dela. Pôs sua jaqueta em um cabide e tinha um
pacote apertado contra seu peito e se moveu como se sustentasse
um grande peso. Sem olhar a seu redor, dirigiu-se ao quarto com
cortinas o fechando e abriu a gaveta superior da maltratada
cômoda. Colocou a camisa com o pacote dentro dela enquanto
tirava uma roupa limpa e se dirigia ao banheiro.
— Onde esteve? — Perguntou, com sua voz
enganosamente suave. Só o mínimo tremor fazia alusão a uma
fúria que reuniu em seu interior enquanto a olhava.
Surpreendeu-lhe, mas sentia-se bem, também. Agora que ela
estava aqui, a maré entristecedora de medo, de preocupação, de
que algo tivesse acontecido com ela. Era a ira nascida do
desespero, que reconheceu e que já o consumia.
Ele teve medo de que ela tivesse ido a uma de
suas visões e que o tivesse deixado para trás.
Sozinho. Aterrorizado de que ela não voltasse.
Queria agarrá-la, abraçá-la e nunca a
deixar ir. Queria lhe dizer que a amava. Que a
vida sem ela não seria digna de ser vivida. Queria
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se casar com ela, envelhecer com ela, tomar seu último fôlego em
seus braços. Entretanto, sua frustração, seu inegável sentido de
que tudo o que queria estava a ponto de se perder retorcia tudo
dentro dele. E o que surgiu foi uma ira inexplicável e implacável.
A ira em si mesmo, na conspiração do destino que o levou até
este ponto.
Danni se virou ao som da sua voz. Parecia pequena e
frágil, tão delicada como as pétalas de cor branca florescendo nas
ladeiras. As sombras projetavam círculos escuros ao redor dos
seus olhos. Seu olhar posou sobre Bean e um sussurro de sorriso
curvou sua boca. Estava contente em ver o cão.
— Onde esteve? — Exigiu ele de novo.
— Fui para a casa…
Ele a cortou antes que ela pudesse terminar.
— Fui à casa. Disseram-me que você já tinha ido. Isso foi
há horas.
— Oh. Fui dar um passeio.
Ele ficou de pé tão de repente que sacudiu a
cadeira para trás. Bean desceu de um salto e correu
para sua proprietária.
Danni se ajoelhou e acariciou o pequeno
cão com dedos gentis.
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As emoções latentes de Sean chegaram ao ponto de
ebulição, engrossando o caldo de sua ira em conflito. — E foi até
a Lua para onde caminhou, Danni? É isso o que a manteve
durante horas sem ser vista?
— Não, — disse ela em voz baixa e calma — Estava na
caverna. Nas ruínas.
Nas ruínas? Ele a olhou com a boca aberta. — Sabe
quantos anos tem o castelo? Tem alguma puta ideia de quão
perigoso é estar lá embaixo?
Em silêncio, ela assentiu. Grande. Ela sabia e tinha ido de
qualquer maneira.
Ele podia ver o brilho desses enormes olhos cinza, mas
não a expressão neles. Não o que ela estava pensando. O que
estavam escondendo esses luminosos olhos?
— O que estava fazendo lá embaixo? — Perguntou-lhe,
esforçando-se por se acalmar, sabendo que essa raiva não era
razoável, não era racional. Sentindo como se algo o incitasse, mas
não compreendia o que poderia ser. Em toda sua vida nunca
tinha tido a tentação de recorrer à força com uma
mulher, mas Danni o levava sempre para o
desconhecido.
— Estava pensando, — disse ela em voz
baixa e então lhe deu as costas e seguiu seu curso
para o pequeno banheiro da mesma forma em que
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ele foi nessa manhã. Mas não podia deixa-la ir tão
tranquilamente como ela a ele.
— Pensando? — Repetiu ele, elevando a voz apesar das
suas intenções. Tentou se controlar, tentando apaziguar à besta
selvagem que era. Mas não pôde — Até estas malditas horas? Não
te ocorreu que eu poderia estar um pouco preocupado a respeito
do seu paradeiro?
— Sinto muito, — disse ela, mas estava na porta do
banheiro agora e ele pôde ver que tinha a intenção de fechá-la.
Deixando ele de fora.
— Vai me responder, por Deus, — gritou ele — Quero
saber que diabos estava fazendo. Quem estava com você?
E ali estava, o que tinha sido muito terrível para
admitir. Ontem à noite ela entrou e disse a ele que não podia
dormir. Disse que estava sozinha. Mas ele estava seguro de ter
ouvido vozes, seguro de que ela estava mentindo. E aqui estava
outra vez a mesma mentira. Igual sua mãe tinha mentido, temia
que ela estivesse com outro. Somente a ideia de Danni, sua
Danni, com outro homem, Sean sentia que o cortava até
o osso. Não podia acreditar entretanto, não podia
controlar a tocha de angústia que queimava em seu
interior.
Danni o ficou olhando, com as costas
retas de repente, com os ombros rígidos. Sua
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postura rígida de algum jeito era uma resposta à sua pergunta.
Ela não estava a sós, mas não lhe diria com quem tinha estado.
Estava ali, na inclinação do seu queixo desafiante, na linha dura
da sua boca. Cada nervo do seu corpo gritava com confusão,
ciúmes e fúria, incitando-o à dúvida enquanto ele insistia em
deter-se.
— Não irá a nenhum lugar, — disse ele entre dentes —
com ninguém sem que eu saiba. Ouviu-me Danni? — Ela deu
passos involuntários para frente, movendo-se como um zumbi
dos velhos filmes de terror que ele ser lembrava-se da sua
infância.
— Irei aonde e com quem me dê vontade, Sean. Não
presuma que está farsa de casamento te dá algum direito de
dizer-me o que posso fazer. — Sentiu como se ela o tivesse
golpeado e ele só pudesse estar ali, sem palavras, vendo como ela
se virava e se encaminhava para o banheiro. A porta se fechou e
ele ouviu girar a fechadura.
Ela também poderia ter jogado gasolina nele e acendido
um fósforo. Sua visão nublou por um momento e então se
rompeu com claridade. Ela abriu a água e ele a ouviu
mover-se, enquanto tirava sua roupa. Por que tinha
ido diretamente para ducha? O que queria lavar da
sua pele?
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Nada, necessitava prudência urgente. Está se
comportando como um louco, insistiu consigo mesmo.
E estava certo. Sabia que tinha razão. Entretanto, uma
voz parecia sussurrar na sua cabeça, lhe assegurando que sua
raiva era justificada. Ela está mentindo, dizia-lhe.
Ele estava na porta antes mesmo de dar-se conta de que
se moveu. Do outro lado, os ganchos metálicos sustentando a
cortina da ducha se moveram enquanto ela entrava depois se
sacudiram enquanto voltava a fechar. Ele ficou olhando a porta.
A porta que estava fechada para ele, escutando de novo suas
palavras feridas. Não agora, havia dito ela. A farsa do casamento,
ela havia chamado, como se ontem à noite não tivesse sido mais
que jogos prévios.
Seu ombro foi para porta e a golpeou duro, baixo e
centrado. Era feita de madeira fina que cedeu com um pop ao
estilhaçar-se. A porta se fechou sobre suas dobradiças, com um
grito surpreso da pequena Danni. Ela apareceu atrás da cortina,
com a água fluindo sobre seu rosto, com seus olhos tão grandes e
redondos como o mundo. Mesmo agora, ainda empapada e
esgotada, era a mulher mais formosa que jamais tinha
visto.
Minha.
Essa ideia lhe encheu, consumiu-o,
explorando de dentro, pressionando tudo para
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baixo. Um passo o tinha parado em frente a ela. Ele viu o medo
em seu rosto e o encheu de satisfação.
Ela deveria ter medo. Pertencia a ele do mesmo modo
que suas mãos, seus pés, seu coração pertencia-lhe.
Da mesma maneira em que pertencia a ela. Dizer o
contrário era despertar um monstro que não poderia ser contido.
Ele arrancou a cortina das suas mãos, fazendo os
ganchos saírem pela polia com um assobio. Ela ficou de pé diante
dele nua, sua pele era escorregadia e brilhante sob a débil luz que
vinha de cima. Seu cabelo caía em cordas molhadas sobre seus
ombros, contra o marfim do seu peito. Sua garganta era magra,
delicadamente arqueada, sua clavícula um anel frágil em sua
base com o colar que lhe tinha dado descansando contra a pérola
da sua pele. Seus seios eram cheios, pesados, com a ponta de
seus mamilos rosa escuro. Ele seguiu o vale entre eles como o rio
de água correndo por seu ventre, em seus cachos, na união de
suas coxas, pelas largas pernas de seda aos pequenos tornozelos
e delicados pés. Ela era uma maravilha, uma beleza que desafiava
a descrição. E era dele.
Ela estremeceu quando chegou a ela e sua ira
minguante se acendeu uma vez mais. Sem se
importar que a água tivesse empapado sua camisa e
calças, tomou o rosto dela entre as mãos e a
beijou. Queria ser duro, exigente, dominante.
Demonstrar-lhe a quem pertencia. Queria o
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reconhecimento, a aceitação, queria sua submissão. Mas no
momento em que tocou a boca dela, o calor e a doçura dela
fundiram a ira geada em seu interior e pôr fim domou ao monstro
do medo.
O remorso e a vergonha o alagaram e quis se afastar,
cair de joelhos e lhe rogar perdão. Sentia como se de repente
tivesse sido liberado do interior de um demônio furioso. Mas não
pôde se afastar da doçura do seu sabor tempo suficiente para
falar. Não pôde afastar suas mãos de sua pele de seda.
Ele se moveu, suavizando o beijo até que seus lábios
rogaram pelo que seu coração necessitava. Beijou-a como se fosse
o ar dos seus pulmões, o sangue de suas veias, o batimento do
seu coração. Com suavidade, com respeito, deixou que seus
dedos explorassem os contornos de seus seios, a seda da sua
mandíbula, a curva da sua garganta e a frágil concha da sua
orelha.
Esperava rechaço dela. Esperava que se afastasse, O
que poderia está encantadora criatura ver nele, a não ser os
defeitos e o fracasso? Desejava-a com cada fibra do seu corpo,
mas só podia ter o que lhe desse.
Então, incrivelmente, sua boca se suavizou
e logo seus braços foram ao redor do seu pescoço,
puxando ele contra o calor da sua pele, exigindo
com necessidade seu beijo. Sua boca estava
faminta, desesperada, não o entendeu mesmo
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enquanto a esmagava contra ele, ainda de pé do outro lado do
banheiro, metade afogando-se no jorro da ducha. Ele a deixou
sem fôlego, fazendo-a uma parte de si mesmo e logo enviando de
volta para encher seus pulmões, a correr com seu coração.
Suas mãos percorreram seus ombros, os ossos finos da
sua coluna vertebral, suas curvas tentadoras. Ele agarrou a carne
suave com suas duas mãos, trazendo toda a suavidade de sua
dureza contra ela. Ela fez um ruído profundo e sedutor que
encheu lhe a cabeça e os sentidos. Puxou sua camisa e suas
calças, trabalhando nos botões para liberá-lo, então ele a ajudo a
abri-la para que ela pudesse exercer pressão contra ele. Pele
contra pele, calor com calor. Seu toque era como morrer. Era
como o paraíso, a redenção e a condenação, tudo era vivo e se
respirava como fantasia.
Minha. Chegou de novo, a necessidade e a possessividade
de fazê-la sua, a única.
Mas logo essa voz insidiosa sussurrou na sua cabeça, ela
mente. Ele tentou bloqueá-la, mas era ardilosa, aproximando-se
dele novamente. Com quem ela estava?
— Sean… — Ela pronunciou seu nome no
ar, com um rogo inerente e urgente.
Mas a voz zombadora cantou. Com quem
estava? Por que mentiu? Com quem esteve? Por que
mentiu?
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O fogo ardente ao seu ardor esfriou e trouxe de volta a sua
dor, ira e medo.
Como podia ela pensar que isto, o que se passava entre
eles era uma farsa? Como podia sequer pensar em viver sem ele?
Por Deus como testemunha, ele não podia pensar em viver sem
ela.
E com quem estava ela na caverna?
Vacilou quando tudo dentro dele exigiu que tomasse,
que a enchesse de si mesmo e não deixasse dúvida de a quem
pertencia. E ele podia fazê-lo, sabia. Ela era vulnerável e se
preocupava com ele, ele sabia que lhe importava. Mas isso não
era suficiente. Queria que ela o amasse como ele a amava. Queria
que a decisão viesse de dentro do seu coração, não porque ele a
tivesse excitado até o ponto de não retorno.
Ela é uma mentirosa, dizia-lhe a voz em sua cabeça.
Sean tinha Danni entre suas mãos, não podia deixar de
tocá-la enquanto se afastava. Ela o olhou, com seus olhos
carregados de paixão, com seus suaves rasgos cheios de desejo.
Pouco a pouco se centrou, dando-se conta que ele se
afastou. Seu olhar cinza posou em seu rosto. Uma
parte dele saiu do controle, converteu-se em cinzas
açoitadas pelo vento enquanto olhava dentro dos
seus formosos olhos e os via ampliar-se com
surpresa.
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— É uma farsa o que faz dizer meu nome como se fosse
uma oração? — Disse ele em voz baixa — Uma farsa o que faz
rogar por meu contato?
Suas sobrancelhas se juntaram e um rubor acendeu
desde sua esbelta garganta a suas bochechas.
— Você é mais minha que qualquer esposa por nome ou
por escrito. Não se esqueça no futuro.
Então se voltou e partiu, deixando a porta danificada,
igual ao seu coração atrás dele.
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Capítulo 33
A princípio, só a surpresa afetou Danni. Apanhada por
um intumescimento frio, olhou fixamente a porta, sem se
importar que dá ducha ainda saísse um vapor quente enquanto
ficava de pé nua e exposta à corrente. Logo, uma voz que parecia
ao mesmo tempo vir de dentro e fora dela começou a sussurrar:
Quem acredita que é? Como se atreve a te falar dessa maneira? O
machuque.
O machuque.
A voz acendeu um pavio de raiva que incendiou com
vida própria. Queimando seu caminho desde sua cabeça até seus
pés, movendo-se nela antes que seu cérebro tivesse oportunidade
de registrar a magnitude do fogo.
Virou na ducha, agarrou uma toalha e saiu
jorrando água do banheiro.
Bean se apressou em sair do caminho
dela, mas Sean estava de pé na cozinha, sem darse conta da tormenta que se aproximava. Danni
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estava tremendo, todo seu corpo se agitava com quebras de onda
de indignação. Tentou falar. Tentou de esmagar a intensidade
encerrada em sua garganta. Mas sua raiva era muita.
Como ele se atrevia a tratá-la dessa maneira? Como se
atrevia a fazer demandas que não tinha nenhum direito, sem poder
as retirar? A voz incentivava as chamas. Ele estava morto Por
Deus. Não é a classe de homem que você gostaria como marido de
todos os modos.
Havia um cinzeiro pesado de vidro na mesa de café. Ela
o pegou e o atirou nele. O vidro pesado se estatelou contra o
armário junto a ele e caiu no chão sem romper-se. Ele se virou,
mas seu olhar de choque só a enfureceu ainda mais. A voz
aplaudiu seus esforços e a provocou para que voltasse a tentar.
— O que? Esperava que eu só aceitasse? Doce pequena
Danni, é muito boa para defender-se depois que seu homem a
tomasse na ducha? — Acredita que devido à ontem à noite pode
tocar-me quando quiser? Não sou tua. Nem agora. Nem nunca.
As palavras gritadas se sentiam como um bálsamo
contra seu orgulho ferido e para suas emoções
maltratadas. Dizia-se o suficientemente forte,
repetisse várias vezes, talvez se tornasse certo.
Agarrando fortemente a toalha, pisoteou para o
quarto com cortinas. Entretanto, Sean tinha se
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recuperado da sua surpresa e estava ali, bloqueando seu
caminho.
— O que? — Perguntou ela — Quer ver, se pode
conseguir me pôr uma coleira? Amarrar-me à cama?
A ideia obviamente o atraía, e o fantasma de um sorriso
puxou sua boca antes que tivesse a sensatez de detê-la. Mas foi o
suficiente. A persistente voz na sua cabeça exigiu lhe uma
bofetada o suficientemente forte para que ele afastasse o olhar.
Danni tinha passado por muito nos últimos dias. Suas emoções
tinham sido empurradas e puxadas, revoltas e sacudidas.
Transformando-a em algo que não conhecia, em alguém cujas
reações já não podia controlar. Levantou a mão para golpeá-lo,
mas ele a apanhou antes que a satisfatória conexão se pudesse
fazer.
A outra mão dela voltou e ele a agarrou também, lhe
fazendo dar um passo para trás contra a parede, contendo seus
punhos e fixando seu corpo. Sua toalha caiu em um atoleiro
úmido a seus pés, deixando-a nua e exposta.
Machuca-o, machuca-o, MACHUCA-O, gritava- lhe
a voz, e de repente ela a reconheceu. Essa voz não
vinha de dentro da sua cabeça. Era o Livro. Cristo,
era o Livro.
Ela respirava com dificuldade, com
profundas respirações irregulares que queimavam
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sua garganta e se precipitavam a seus ouvidos. Sean também.
Deu-se conta de que o Livro devia estar zombando dele também,
conduzindo os dois a um frenesi de emoções que nenhum
entendia.
Ela sentia o peito dele tocar o dela. O contato a queimava,
e a aliviava, lançando seus já caóticos sentimentos a uma queda
vertiginosa. Ele a olhou nos olhos, mantendo-a cativa com o mar
tormentoso que via dentro dele. Queria olhar para o outro lado,
mas não havia somente raiva sob seu olhar. Havia dor.
Desespero. Agonia. Ela via que ele tinha sido maltratado, tão
carente, confuso e atormentado como ela. Que entendia menos
ainda suas próprias reações.
Entretanto, como ela, tinha convertido toda essa
emoção em ira, algo que poderia ser arrojado. Algo que podia
encontrar uma marca, encontrar um propósito. Os olhos dele se
estreitaram e ela ouviu um sussurro no ar.
Com quem estava ela, é uma mentirosa, com quem estava?
As palavras giraram em torno deles, sem as ouvir, mas
as sentindo. Danni apertou os olhos com força, furiosa
consigo mesma por trazer a maldição aqui. No que
estava pensando? Que estaria a salvo em uma
gaveta?
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Tinha sido advertida repetidamente a respeito disso,
mas não tinha prestado atenção ao perigo. E aqui estava,
manipulando os dois.
Machuca-o, machuca-o, machuca…
Suficiente. A palavra se converteu em ação, uma rede
que ela projetou em torno da voz. Ela sentiu a rebelião, a
resistência, e afastou seus pensamentos, lutando contra o poder
do mal como se sua vida dependesse disso.
Em sua mente, colocou a voz em um canto escuro,
selou-o com um muro de pedra. Prendendo-a em uma prisão da
que não pudesse escapar. Esta gritou com raiva, mas por agora,
seus venenosos gritos estavam contidos, surdos e insignificantes,
atrás da barreira.
Era uma solução temporária, mas a sustentou. Sua
mente clareou e com ela se foi a raiva. A inexplicável necessidade
de fazer mal ao homem que amava.
E nem sequer o havia tocado…
Enquanto o olhava, os olhos de Sean
clarearam também, deixando-o perplexo.
A vergonha, coloriu o verde e os fez brilhar.
Parecia que queria falar, tomando uma
rápida respiração, sua língua umedeceu seus
lábios. Ela tinha medo do que diria e de que não o
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fizesse. Não havia tempo para explicações. Era só o aqui e o
agora, momentos antes que ela tivesse que tirar a escuridão e o
mal indescritível do Livro da gaveta onde o tinha colocado, e o
levasse de volta à caverna.
Sean continuou olhando fixamente seus olhos,
profunda, suplicante e avidamente. E ela compreendeu que o fogo
estava se derretendo em seu coração e que sua alma ardia dentro
dele também. Não havia maneira de sair desse inferno.
Ela se inclinou, lutando contra as mãos que ainda
tinham seus pulsos e apertou a boca na dele, beijando-o com
fome. Ele se sacudiu surpreso e o poder alagou as veias dela. Ele
não sabia se respondia ou a repreendia, e isso a agradou,
também. Ela tomou a decisão por ele, usando seus dentes e
língua para brincar e provocá-lo. O som que ele fez foi
combustível para seu êxtase. Ele gemeu profundamente em sua
garganta e logo suas mãos tomaram seu rosto, com seus dedos
longos afundando-se em seu couro cabeludo.
Fazendo-a sentir.
Ela respondeu da mesma maneira, puxando sua
camisa molhada, arrancando-a de seus ombros. Ele a
soltou o suficiente para cooperar. Então, seus dedos
cravaram nos duros músculos do seu peito e
braços, puxando ele para o forno ardente de
emoção e desejo.
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Ele procurou baixar suas calças, tentando aferrar-se a
ela e trabalhando para liberar-se o mesmo tempo. Ela apertou os
quadris contra ele, o que o dificultou e apressou ao mesmo
tempo. Por fim, ele os abriu e os empurrou para baixo ao mesmo
tempo em que agarrava seus quadris e puxava ela até encontrarse com ele.
Ele estava duro e congestionado e se afundou nela sem
tato ou delicadeza. Não havia nada suave, nada de amar a
respeito e isso poderia ter doído se ela não estivesse pronta e
esperando-o. Se não tivesse sido o que espera, o que queria.
Precisava senti-lo com tudo o que possuía, precisava abraçar a
dor e a glória destes momentos que poderiam ser os últimos. Ela
arqueou as costas, envolvendo suas pernas ao redor da sua
cintura e sua cabeça golpeou a parede.
Ela apertou a boca na dele, lhe roubando a respiração,
tirando dele tudo o que podia. Deixou-o indefeso, escravo da sua
própria necessidade e sua boca exigente. Ele a manteve no lugar,
enquanto bombeava sem cessar, brutalmente. Cada vez que se
enterrava nela, logo saía e o fazia de novo, ela sentiu que ele
crescia em seu interior, com a violência ascendendo e apertandose. A altura suicida e a intensidade se
incrementavam com cada investida feroz.
E então gozou, nesse momento vertiginoso
antes que tudo dentro dela se voltasse líquido e se
fundisse em uma explosão de calor, dor e prazer.
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Ela se sentia como uma tocha luminosa, brilhante na mais
escura noite, assobiando, queimando e iluminando. Um instante
depois ele veio com ela, gritando seu nome quando se dirigiu
profundamente dentro dela, soltando sua raiva e medo, deixando
que se encontrasse e enredasse com a sua. Deixando que a
combinação de calor queimasse a violência louca que
impulsionava os dois a essa borda perigosa.
Ela sentiu a tensão deixá-lo, com a sua própria também
indo de boa vontade. Ele voltou seu rosto para o oco da sua
garganta e meigamente a beijou no pescoço.
— Sinto muito — disse ele.
— Não o faça. Eu o desejava.
Ele levantou a vista, para ver a verdade em seus olhos,
entendendo que ela havia sentido a mesma paixão consumindo-a,
a mesma necessidade de apertar-se e afastar-se. De conservar-se
e deixar-se ir. Logo se foram afastando da parede, ainda se
mantendo unidos. Ela jogou os braços e as pernas com mais
força a seu redor e se aferrou a ele enquanto a baixava à cama.
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Capítulo 34
Danni tinha só algumas horas para decidir o que faria.
Uma parte dela queria atirar das cobertas sobre sua cabeça e
fingir que nada ia mudar, imaginar que manhã despertaria nos
braços de Sean igual tinha feito esta manhã e na manhã anterior.
Entretanto, Danni tinha passado a maior parte da sua vida
negando o que não queria enfrentar. Negava-se a fazê-lo por mais
tempo.
Na gaveta da cômoda, sentiu o livro esperando e
observando. Tinha conseguido contê-lo antes, mas estava cada
vez mais fraca pelo esforço. Podia senti-lo drenar sua força.
Suspirando, moveu-se da cama, pegou uma calcinha da
cômoda e se encolheu os ombros agarrando a camisa de Sean que
se encontrava no chão. Um rubor cobriu seu rosto ao
pensar na forma que a tinha arrancado do seu
corpo. Bean levantou a vista do tapete aos pés da
cama e moveu a rechonchuda cauda.
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— Aonde vai? — Perguntou Sean, com voz grossa e com
sono zumbido profundo desde seu peito.
— Pegar água — respondeu ela — Trago para você
também.
Quando retornou, ele estava sentado, apoiado nos
travesseiros, com as mãos entrelaçadas atrás da cabeça. Ela o
olhou fixamente, admirando os músculos planos do seu
estômago, a amplitude do seu peito duro e o brilho do aumento
de seus ombros a seus bíceps juntos. A perfeita curva dos
tendões e dos ossos. Era formoso em forma, cara e mente. Ela
subiu na cama a seu lado, com as pernas juntas e colocadas
baixo ela.
Deu-lhe obrigado pela água e a bebeu. Depois do sexo
selvagem que tinham tido, pareciam de repente tímidos, nem
sequer olhavam os olhos um do outro.
Ainda tinha muito por dizer entre eles e isso converteu a
intimidade em uma tensa espera.
Finalmente, ele se inclinou, pondo uma grande mão
cálida em seu joelho dobrado.
— O que aconteceu hoje? — Perguntou-lhe
em voz baixa.
— Meu pai me ameaçou. Na cozinha —
disse ela.
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Repentinas lágrimas queimaram seus olhos e ela
tampou o rosto com as mãos para ocultá-las. Sean amaldiçoou
baixo e então se ajoelhou a seu lado, puxando ela para um abraço
que foi suave e firme.
— Ia pedir a ajuda dele, mas… ele esteve usando o Livro
de Fennore e se voltou louco. Bronagh e minha mãe entraram e
ele disse que me surpreendeu roubando… — engasgou-se,
gaguejando pelo horror disso.
Sean esfregou suas costas com lentos movimentos
circulares.
— O que disseram elas? — Perguntou-lhe.
— Bronagh disse-me que fosse. Não sei que mais disse
depois disso.
— É por isso que foi à caverna?
Ela assentiu.
— Tive que me ocultar. Estava tão molesta. Disse que me
mataria antes de deixar-me ter o livro. Meu pai é um monstro.
Estava tão feliz de havê-lo encontrado, mas é que
ele… — Tomou uma respiração profunda, incapaz de
falar.
— Olhe-me. — Disse ele, apertando seus
ombros — Danni. — Esperou até que ela o
estivesse olhando fixamente seus olhos, disse-lhe
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— Quem ou o que é ele, não importa. Não define quem você é.
Ela queria acreditar, mas suas palavras eram tão
hipócritas que não podia. — Não? Não foi você mesmo que se
mediu por todos esses anos pelos fracassos do seu pai e seus
crimes?
A boca de Sean se apertou e ela soube que queria
discutir. Mas em seu núcleo, Sean era um homem honrado. Não
podia negar a verdade, inclusive a ele mesmo.
— Bom, suponho que isso faz de mim um tonto — disse
em voz baixa — Estou seguro de que já sabia isso.
Ela o olhou, ao mar turbulento de seus olhos verdes.
Quase desejou a ira insultante que tinha sentido na ducha
quando ele a tinha deixado tremendo e necessitada. Mas havia
muita dor aqui e agora, neste momento de verdade. Excesso de
angústia e finalidade, já que ela sabia o que tinha que dizer e não
havia lugar para a ira mesquinha. Não havia lugar para a
vingança.
Ela se afastou e deixou cair os braços enquanto ele a
olhava. Seu olhar era intenso e focado.
Ela sentia como se estivesse vendo através
dela, à dor em seu interior.
— Há algo que preciso te dizer — disse ela.
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— Há algo que tenho que te dizer, também — respondeu
ele.
Isso a desequilibrou e a fez perguntar. — O que é?
Ele sorriu, embora parecesse sério, decidido e
vulnerável de algum jeito. Inseguro de si mesmo.
Inseguro dela.
— Sinto o que aconteceu, na ducha. Quis dizer o que
disse, entretanto. O que há entre nós, o que sinto quando estou
com você, é real.
A mão dele se moveu para a garganta dela, indo através
do seu cabelo e puxando ela mais perto para um beijo. Ela fechou
os olhos e cedeu ao calor e entregou-se a ele.
— Estou apaixonado por você, Danni. Quero estar
contigo. Sempre. Para sempre.
Houve lágrimas nos olhos dela de novo, só que estas
não foram as lágrimas ardentes e amargas de ira e humilhação.
Estas eram gotas grandes e reluzentes que deslizavam por suas
bochechas. Ele a amava. E Deus sabia que ela o
amava também. Mas ele não sabia toda a verdade a
respeito do que tinha-lhe acontecido no seu quinto
aniversário. E quando se dessa conta de que ela
sabia de tudo e não o havia dito…
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Ele apertou os lábios em seu rosto, em suas lágrimas
salgadas.
— Não chore — disse ele e sua voz profunda e baixa pela
dor.
— Sean…
Ele ouviu a nota de fatalidade em sua voz e ficou rígido,
com seus lábios ainda pressionados em sua bochecha. Pouco a
pouco se moveu para trás, olhando o rosto dela com seus olhos
em guarda.
Danni ficou de pé, precisando pôr um pouco de
distância entre eles antes de falar. Não sabia por onde começar e
explicar a este homem que tinha estado morto durante as últimas
duas décadas. E o que a assustava mais, o que a tinha impedido
de falar antes, era a pergunta que evitava: O que aconteceria
quando ele soubesse? E sobre sua existência? Será que ele
pensar que estava vivo era o que o fazia parecer tão real? Se ela
esmagasse isso, ele se converteria no fantasma que ela sabia que
era?
— Você se lembra de quando veio à minha
casa? — Perguntou ela.
— Foi somente há alguns dias.
— Sei. Mas se lembra de como chegou lá?
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Ele franziu o cenho. — O que quer dizer?
— Como chegou até lá, Sean. Pegou um táxi?
Ele sacudiu a cabeça, juntando as sobrancelhas em
consternação.
— Não.
— Não tem um automóvel. Ou o teria visto.
— Não sei aonde vai com isto. Qual é seu ponto, Danni?
— E como voltou para seu hotel? — Perguntou ela.
Ele encolheu os ombros.
— Acredito que caminhei.
— Talvez o fez. Mas deveria se lembrar, não?
Ele sacudiu a cabeça, sem comprometer-se. Mas agora
parecia zangado. Sentindo como se algo se rompesse dentro dela,
continuou.
— O que aconteceu no voo da Irlanda? Lembra-se disso?
— É obvio — disse ele, mas o gesto se
converteu em uma careta e ela sabia que ele estava
tentando recordar, inclusive ao falar.
— Onde fez escala? — Perguntou ela.
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— O que?
— Um voo tão longo tinha que ter uma escala. Em que
cidade foi?
Em silêncio, ele negou outra vez.
— Pensa nisso, Sean. Não pode recordar porque não
esteve em um voo.
— Assim está dizendo, o que? Acredita que cheguei ao
Arizona da mesma maneira em que chegamos aqui?
— Não exatamente.
— Deixa de dar voltas no que seja que está tentando
dizer, Danni. Qual é seu ponto?
Ela respirou fundo e soltou o ar lentamente.
— Depois que veio para ver-me, no Arizona, procurei
Ballyfionúir na Internet. Encontrei um artigo sobre você, sobre o
que aconteceu aqui na noite em que minha mãe desapareceu.
— A meu respeito? Por quê? O que dizia?
— Tinha uma foto do seu pai. Foi tirada…
— Tragou, com sua garganta ardendo de dor e medo
— Foi tirada antes que ele se suicidasse. Havia uma
foto de você, também, Sean. Quando foi jovem. Da
idade que Michael tem agora.
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— Por que havia minha foto?
Ela fez uma pausa. Agora que estava começou, nesse
momento, não acreditava em poder seguir adiante.
— Por que havia minha foto? — Repetiu ele.
— Devido a…. a que dizia que tinham o matado nessa
mesma noite. Dizia que seu corpo tinha sido encontrado mais
tarde em uma tumba anônima. No vale, pelas ruínas.
De repente ele ficou de pé, nu e formoso, atormentado e
silencioso. Estava se lembrando. Ela via isso, sentia nas emoções
que cintilavam por seu rosto.
— Não estava sozinho, entretanto — seguiu Danni com
a voz quebrada — Havia uma mulher não identificada com você.
Estava morta, também.
Ele a olhou, a fúria da sua confusão era como ondas
rodando sobre os dois.
— Essa mulher… Era eu.
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Capítulo 35
Sean rezava para que Danni sorrisse, para que risse.
Que lhe dissesse que estava brincando. Mas, é obvio, não o fez.
Ela ficou de pé, olhando-o triste e doída, olhando-o fixamente
com esses grandes olhos cinza. Ele se concentrou em sua faceta
de prata e estanho, no chuvoso dia que formava redemoinhos em
torno do negro de suas pupilas. Algo para manter seus
pensamentos de onde eles dirigiam-se.
Ele disse que desejaria morrer naquela noite.
— O que seja que tenha lido estava errado — disse
Sean. — Obviamente.
Danni continuou olhando-o enquanto ele tentava soar
seguro. Para convencê-la.
Você não estava sozinho, entretanto…
Quando ela falou, sua voz era suave e
tranquilizadora. Mas suas palavras chegaram
como pequenos dardos, perfurando sua pele sem
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extrair sangue.
— Não acredito que tenha sido um engano, Sean. Dizia
que o seu e o da mulher não identificada eram os únicos corpos
que encontraram.
— Está ouvindo-se? Se tivesse sido assassinado aos
quatorze anos, explique-me como estou aqui agora, como um
homem adulto?
— Não posso.
— Exatamente.
— Mas não posso explicar como algum de nós está aqui,
agora. Nossa existência em Ballyfionúir vinte anos atrás, nem
sequer é uma possibilidade.
— Não para mim, possivelmente — disse ele tentando
manter a compostura. Se ele não levasse a sério, então, como
podia ela fazê-lo? — Mas você faz este tipo de coisas todo o
tempo.
— Não, não as fazia. Até que você irrompeu em minha
vida, eu não tinha tido uma visão em anos. Não desde
que era pequena.
— Minha vida foi normal até agora.
— Realmente foi?
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Havia uma demanda em sua pergunta e impregnou-lhe
até os ossos. Havia dito que a amava e ela tinha girado à conversa
a esta insalubre acusação e culpa. A esta inquisição tinha a
intenção de fazê-lo duvidar da sua própria maldita existência.
— Lembra quando veio à loja de antiguidades me ver? —
Perguntou-lhe.
Ele a olhou fixamente, tentando seguir o fio do tema.
Não pôde. O que tinha isso que ver com a morte e os corpos?
— No Arizona. — Continuou ela com voz paciência.
Como se estivesse falando com um imbecil — Falamos sobre ir
jantar e então todas aquelas mulheres com seus meninos
estavam nos olhando e pensamos que era estranho. Mas não era.
Olhavam-me porque estava sozinha, falando comigo mesma, pelo
menos isso era o que parecia-lhes, como se não você estivesse lá.
— Pode escutar-se? Algumas mulheres lhe olham estranho
e o torceste isso em…
— Há mais que isso e sabe. Elas não escutavam-lhe. Sean.
Não o viam.
— Agora sou invisível.
— Não maldito seja. Não é invisível. Está
morto. Está morto, Sean.
As palavras soaram como um trovão.
Tiraram o ar dos seus pulmões e o fizeram ofegar,
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tossir, e dar um passo atrás. Deveria rir disso. Era evidente que
ela não se encontrava bem. Ele não estava morto. Mas a sensação
de ser sugado de dentro para fora não lhe permitia rir.
— Não todos os patos grasnam verdade carinho? —
Disse ele, tentando ocultar seu mal-estar, seu medo.
Porque isso era no que se converteu, nesse sentimento de
vazio.
— Não faça brincadeiras.
— Bom, estou tendo dificuldades pensando em outra
coisa que fazer, vendo como estou morto.
— Não agora, não o está — disse ela.
— E você não tem nem um pouco de sentido.
— Pensa nisso — disse ela com gravidade — Em umas
poucas horas, algo acontecerá. Minha mãe tentará fugir com os
gêmeos. Acredito que você e seu pai iam com eles. Mas algo saiu
errado. Um menino e uma mulher são assassinados e seus
corpos ficam para trás.
— Mas isso faz com que você esteja morta
também.
Ela se via frustrada, com seus olhos
exagerados e sérios ao mesmo tempo.
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— Escute-me. Os dois estão aqui e vivos porque chegamos
a tempo. Estamos aqui antes dos assassinatos. E se a história se
repete então esta noite Michael, você quando menino, será
assassinado.
— E então, o que acontecerá comigo como homem?
Deixe-me adivinhar. Brotam-me umas malditas asas de anjo e
voo para longe.
Ela tragou e o olhou.
— Estou só supondo — começou ela e sua voz tremeu. O
som de seu tremor correndo através de cada palavra eliminou a
última parte de incredulidade. Tão louco como soava, ela queria
dizer o que estava dizendo e doía-lhe. — Mas acho que quando o
menino estiver morto, o homem deixará de existir.
Sua risada foi tênue e forçada. O que atraiu a pequena
cabeça do cão de entre suas patas para olhá-los a ambos com
receio.
— Nunca terá a oportunidade de crescer, Sean. Em
realidade não. Passará seus dias vagando por esta cidade, nunca
reconhecido. Nunca visto. Não é assim como será?
Ele a olhou fixamente, recordando o vazio
da sua vida, os dias vácuos e nômades. Sem
propósito. Mas sendo um homem desesperado em
seu interior tentou fingir que não era certo.
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— Então, quem foi a sua casa no Arizona? Diga-me isso. E
se você é assassinada também, então por que não deixará de
existir também?
— Porque ainda estava viva quando menina. Não se dá
conta? Em meu caso, a mulher que morrerá não é real ainda…
Dáirinn ainda terá que crescer e converter-se nela. Em mim.
Entretanto para você, o menino morre antes que chegue a ser
homem…
Sean a olhou fixamente e para seu horror viu. Era uma
loucura, mas respondia a muitas perguntas. Quantas vezes desde
que tinha vindo aqui com Danni tinha sido afligido com o
tangível, com a claridade e o deleite de cada experiência? Quantos
momentos passaram só bebendo a sensação do ar úmido da
Irlanda contra sua pele, a cadência de suas palavras rodando por
sua língua, ou o aroma desta mulher enchendo-o de prazer?
— Como chegou ao Arizona, Sean? — Perguntou-lhe
Danni de novo.
Ele tentou evitar responder. Tentou desviar-se,
ignorando-a como o tinha feito da primeira vez. Mas ali
estava, um grande sinal de interrogação em negro
contra sua memória em branco.
— Não sei.
Sua resposta trouxe um brilho cinza em
seus olhos, convertendo-os em tormenta e
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vendaval. Um distorcido reflexo de si mesmo brilhou nas
profundidades. Não queria olhar ali. Queria manter suas ilusões
fechadas e completas. Mas já era muito tarde.
Todos esses anos, todo esse tempo quando havia
sentido como se fosse através dos movimentos, mas não
realmente conectado à causa e efeito que o rodeava. Quantos dias
havia se sentido ignorado, rechaçado? Tinha sido invisível, visto
só por sua avó. E quem sabe pior de tudo era que nem sequer o
sabia.
Suas pernas se tornaram débeis e cambaleou para trás,
sentando-se pesadamente sobre a cama. Danni estendeu a mão,
mas ele retrocedeu ante seu tato enquanto a compreensão enchia
sua mente.
Uma lembrança se precipitou à superfície e rodou sobre
ele. Viu surgir em sua cabeça como se fosse um espectador
horrorizado que de algum jeito conseguiu enterrar durante todos
esses anos. Tinha quatorze anos zangado, furioso e cheio de
culpa pela morte da sua mãe e irmão menor. Com o peso da
responsabilidade adoecendo-o como um mal.
Cinco anos depois de sua trágica morte, Niall
tinha se apaixonado por Fia.
Sean tinha suspeitado antes, mas o tinha
confirmado quando os havia visto juntos. E a
única coisa em que podia pensar era na acusação
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que sua mãe tinha feito na cozinha naquele dia. Ela tinha
acusado Niall de amar Fia MacGrath e Niall o tinha negado.
Sean tinha seguido seu pai na noite em que Fia MacGrath
tinha desaparecido. Tinha ido atrás deles à caverna. Pensando
que era o momento de enfrentar seu pai. De dizer a Niall quanto o
odiava. Mas então Cathán MacGrath tinha aparecido com a
pistola e algo se quebrou dentro de Sean. Sean tinha se mantido
à margem e não tinha feito nada para ajudar seu irmão ou a sua
mãe naquele dia tanto tempo atrás, mas não tinha podido fazer o
mesmo quando Cathán tinha ameaçado seu pai. Lançou-se na
frente de Niall, um homem que pensava que odiava e recebido a
bala destinada a ele.
Podia vê-lo agora, o rosto do seu pai enquanto
sustentava Sean, chorando e perguntando a Jesus para que lhe
dissesse por que, por que…
Cristo no céu, se o que Danni dizia era verdade, então,
tudo o que o tinha enviado a esta queda chorosa, poderia se
repetir. A formosa sensação de viver, de viver realmente, se
evaporaria como a névoa e nunca se sentiria assim outra vez, até
que uma vez mais ela o trouxesse para este momento,
aqui e agora, em que tudo lhe seria roubado de novo.
Ele deu uma olhada em Danni, apanhou-a
olhando-o com uma expressão que o fez deter-se.
Ela parecia… culpada? Por quê? Por que tinha que
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sentir-se culpada? Ela afastou o rosto e a resposta desceu sobre
ele.
Ela sabia. Sabia desde o começo e, entretanto, não disse
nada. Havia tocado e feito amor com ele, sabendo que tudo
terminaria nesta noite, não só que sua mãe poderia desaparecer
com Danni e seu irmão, mas sim Sean morreria. Teria sido só um
jogo para ela? Uma incursão de sua imaginação, uma fantasia
que podia viver sem risco para si mesma? Porque ela continuaria.
Mas para Sean era o final do caminho.
— Nunca confie em uma MacGrath — disse ele em voz
baixa, repetindo as palavras que seus parentes haviam dito
centenas de vezes antes.
— Sean não — sussurrou ela, olhando-o como se
importasse com o que pensava e o que sentia. Mas não
acreditava. Não acreditava. Tinha estado tão cativado pela ideia
de que ela o visse, de que ela o possuísse, que nem sequer se deu
conta que nunca a tinha conseguido. Nunca mais. Zangado,
vestiu-se e se dirigiu para a porta.
— Que tenha uma vida agradável, Danni —
disse — Talvez nos vejamos no outro lado. Ou pode
ser que não.
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Capítulo 36
A porta se fechou com uma batida atrás de Sean,
deixando Danni só na pequena casa. Sozinha outra vez, pensou.
Seu destino.
Queria ir atrás dele, lhe pedir que entendesse que
voltasse e passasse as últimas horas que tinham juntos. Mas
sabia que não era bom fazê-lo. Porque não queria que essas
fossem suas últimas horas. E não ia permanecer à margem
enquanto o destino roubava suas esperanças e sonhos uma vez
mais.
Não sabia o que a tinha trazido há esse tempo e lugar.
Possivelmente tinha sido o Livro de Fennore. Possivelmente
Danni. Qualquer que fosse a razão, recusava-se a desperdiçar a
oportunidade de fazê-lo diferente. De fazer tudo
diferente. Se Colleen podia ser de confiança, tinha
realizado esta viagem antes, mas não tinha tentado
de mudar o curso da história nas vezes anteriores.
Recusava-se a falhar de novo.
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Os gêmeos haviam dito que o Livro tinha desaparecido.
Que tinha se movido e uma parte dela suspeitava que o
movimento fosse, em realidade, viajar através do tempo.
Não havia dúvida na mente de Danni que seu pai tinha
o usado antes. Sua repentina saúde… O estranho olhar em seus
olhos… a tensão que sentia quando estava perto… o medo que
tinha visto em sua mãe. Quantas vezes tinha colocado as mãos
nessa sinistra capa e empunhado seu poder? Quantas peças de
sua alma teria entregado ao livro? Um punhado? Ou toda? Ficava
algo do homem que Cathán tinha sido antes que o Livro de
Fennore lhe tivesse chamado? Antes que começasse a sussurrar
em seu ouvido como o tinha feito com Sean e Danni esta noite?
Danni estava segura que tinha sido Cathán a quem tinha
visto no Arizona, Cathán a quem tinha visto na visão na casa de
Fia, quando tinha observado Edel usar o Livro. De alguma forma
tinha habilidade de viajar no tempo.
Fazia deliberadamente o que Sean e Danni fizeram por
acidente. Não deveria estar tão surpreendida; compartilhavam o
mesmo sangue o que a fazia única, verdade?
Desejou entender como funcionava o Livro
ou como impactava na história. Tinha viajado atrás
no tempo e o tinha roubado, mas tinha retornado a
um mundo igual ao que tinha sido quando se foi.
Sean e ela estavam ainda em Ballyfionúir e suas
lembranças não estavam alteradas. A mudança
Brumas da Irlanda 1 Página537
que tinha realizado no passado ao agarrar o Livro de Fennore não
parecia ter provocado nenhuma consequência.
Era isso o que significava quando seu pai se preocupou?
Tinha sentido pensar que ele tinha “adquirido” o Livro de Fennore
um pouco de tempo depois da noite em que tinha visto Edel usálo. Mas hoje tinha retornado ao momento anterior a esse e o tinha
roubado.
Isso significava que não estaria ali depois, quando ele
mesmo fosse por ele… Verdade? Entraria em jogo a partir de
agora o impacto do que tinha feito? Não sabia, não podia seguir
com seus pensamentos dando voltas em sua cabeça. Não podia
nem conceber como tinha encontrado o lugar que estava
pensando de forma abstrata para mudar o passado.
Não obstante tinha funcionado, Cathán havia a visto na
casa de Edel e apesar de todos seus defeitos, Danni não
acreditava que fosse um homem estúpido. Faria a conexão e
saberia que Danni tinha o Livro de Fennore. Possivelmente o
Livro mesmo o tinha contado.
Ela havia trazido o Livro para cá, sem
precaver-se do que tinha convidado para sua casa.
Agora que sabia, compreendia que não poderia usálo perto de ninguém a quem amasse. Não poderia
confiar nele, não poderia confiar em si mesma ao
Brumas da Irlanda 1 Página538
redor dele. O que precisava fazer agora era retornar à caverna e
usar o Livro lá, antes que seu pai pudesse detê-la.
Tão aterrador como era o pensamento, Danni estava
decidida a seguir em frente. Obrigaria a si mesma a fazê-lo e
rezaria com todo seu coração pela salvação; por Sean, por sua
mãe e seu irmão, por si mesma. Suplicaria com a voz em sua
cabeça, negociaria sua vida se fosse isso o que lhe pedisse.
Danni tragou, recordando a visão, com o sangue que se
derramou sobre o Livro e como quando Edel havia tocado a capa,
tinha gotejado como lama, absorvendo a mão de Edel
profundamente dentro de seu seio.
Não pense nisso.
Mas não podia evitar recordar a escuridão e o espantoso
aroma do Livro, o estranho e discordante zumbido que tinha
sentido em seus ossos, ou o sangue que gotejava de suas páginas
abertas.
Embora nada disso importasse. O usaria para mudar os
acontecimentos dessa noite, a qualquer preço.
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Capítulo 37
Dáirinn MacGrath sabia que os problemas chegariam.
Não os tinha visto, mas havia sentido que cresciam, como a
pressão em um bule. Logo o vapor vaiaria em um alarido que
mudaria o mundo. Ninguém o pararia.
Estava acordada e esperando quando Rory abriu a porta.
— Mamãe está a caminho — disse.
— Eu sei.
Ele subiu na cama ao lado dela.
— Viu algo mais? — Perguntou.
— Só o mesmo. Danni tem o Livro, mas não sei como o
obteve.
— Não podemos deixar que o use.
Dáirinn já sabia disso. Havia visto
suficientes vezes, em sonhos. Em visões. O Livro
de Fennore era ambicioso e tomaria mais do que
Brumas da Irlanda 1 Página540
Danni podia dar. Danni não compreendia quão diferente era.
Quão especial. Mas o Livro sabia e estava faminto dela. A
devoraria e ela o faria mais poderoso, mais atroz do que qualquer
um podia imaginar.
Danni poderia fazer o que ninguém poderia inclusive
imaginar. Era a que tinha o poder de desbloquear o Livro de
Fennore. Podia desembaraçar a anciã espiral Celta da vida. E
uma vez separada, nunca voltariam a estar juntos jamais. Não da
mesma forma. Não como deveriam.
Ele permaneceria aberto e procurando, alimentando-se
dos indefesos, usando o mal no mundo para seus próprios
propósitos.
Rory lhe havia dito isso. Seu irmão entendia o Livro de
Fennore, embora não sabia por que estava conectado a ele.
Dáirinn não tinha dúvidas de que essa era a verdade. Rory nunca
mentia.
— Tem que encontrar Sean, Rory. É o único que pode
detê-la. Mas seja cuidadoso. Também quer a ti.
— Eu sei — disse Rory solenemente.
Dáirinn abraçou seu irmão, sentindo de
novo a profunda ansiedade no interior dela. Não
conhecia o futuro, mas sentia que afastava suas
esperanças como a maré desgastava a praia sob
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as ruínas.
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Capítulo 38
Sean se sentou no alpendre principal da casa da sua
avó enquanto o sol se punha. Não tinha chamado nem tinha feito
saber que estava ali, mas não pensava que fosse necessário.
Colleen tinha um sexto sentido no que se se refere a ele. Tinha
pensado que era seu amor para ele o que tinha-lhe atraído, mas
agora sabia que era simplesmente sua forma de ser, sua conexão
com o outro mundo. O mundo a que ele pertencia.
— O que está fazendo aqui esperando na escuridão? —
Perguntou ela conforme fechava a porta principal atrás de si.
— É onde pertenço, verdade?
Ela estudou seu rosto durante um momento antes de se
sentar ao seu lado.
— Aye, poderia ser visto desse modo. Embora
eu não penso isso. Vejo-te bem no plano de luz.
Ao menos não tinha que mentir ou dar a
entender que não sabia do que estava falando.
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— Por que me trouxe aqui? Perguntou ele, e sua voz traiu
a profundidade de seus sentimentos.
— Não fui eu quem te trouxe aqui.
— Entretanto, me enviou a ela. Enviou-me para
encontrá-la e trazê-la para casa. Inclusive comprou-me um
bilhete de avião. Por que passar por todos esses problemas
quando sabia que estava…?
Ela levantou uma mão, com o rosto pálido e os olhos
chamejantes.
— Jesus, Maria e José, não diga isso em minha presença,
Sean Michael Ballagh. Não é um idiota. Por que te comporta como
um?
Não, não um idiota. Só um morto.
— Por que me enviou para que a trouxesse de volta? —
Perguntou.
— Claro que há coisas com as que todos devíamos viver.
Está-se pensando que não sei, então é um parvo. O Senhor
mostra o caminho e não posso fazer mais que o
seguir. Não me culpe pelas decisões que tomei. Sim,
enviei você para que a trouxesse. E como pode me
perguntar por quê? Ela pode mudar o que
acontecerá esta noite. Não seria a mulher que sou
se não quisesse que o tentasse.
Brumas da Irlanda 1 Página544
Sean não tinha nenhuma ideia do que ela tinha querido
dizer com isso.
— Estou dizendo que há uma oportunidade de mudar o
acontecerá. Estou dizendo que Danni é essa oportunidade.
— E sobre o Livro de Fennore? Deu-lhe a ideia de usá-lo?
— Por quem me toma? Como se não soubesse que o
Livro de Fennore não é um brinquedo com o qual se possa jogar.
Não é um poço dos desejos onde atira uma moeda. Mas pode ser
usado, isso é certo. E certo que pode ser usado imprudentemente.
Não é parte da vontade de Deus, mas tem bastante poder para ser
como Deus. Tanto se nossa Danni usa ou não o livro é só questão
dela e só dela.
Sean se virou em seu assento e olhou à anciã que tinha
sido sua única companhia por mais tempo de que podia se
recordar.
— Ela salvou Trevor, — disse ele.
Colleen assentiu e seus olhos brilharam pelas lágrimas.
— Quando o vi caminhar pela porta, pensei
que meu coração quebrou em pedacinhos de tanta
felicidade. Era como se algo se rompesse dentro de
mim.
Sentiu-se como se um buraco negro, de
repente, encheu-se com risadas e amor. Trevor
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tinha sido o coração da sua família desde o dia em que nasceu.
Sua morte os tinha envolto em uma escura mortalha da que
nunca tinham escapado.
— Ela sabe? — Perguntou Colleen.
— Sabe o que? — Sean franziu o cenho.
— Que o salvou?
— Como poderia não o saber? Estava morto e agora está
vivo.
— Mas não saberia isso, verdade? A menos que você o
dissesse.
Sean negou lentamente. Não havia dito nada sobre
Trevor; nem antes nem essa manhã. É obvio, tinha assumido que
ela sabia o que tinha feito. Mas nunca tinha mencionado Trevor,
não tinha podido dizer seu nome desde o dia em que tinha visto
seu irmão menor assassinado na cozinha da sua casa.
A princípio estava muito aturdido para sequer falar. E
quando tinha retornado do navio do seu pai, não a encontrou.
Depois disso… sentiu que seu rosto se esquentava
quando pensou no que tinha acontecido depois
disso.
Franziu o cenho para sua avó.
Brumas da Irlanda 1 Página546
— Se sabe o que acontecerá esta noite, por que não o
detém?
— É o que acredita que estou fazendo agora? Estou de
braços cruzados sem fazer nada?
— Está depositando muita responsabilidade sobre os
ombros de Danni. Muita fé em suas… habilidades. E se não
puder fazer com que seja diferente?
— Aye, mas e se puder?
— E se a mudança for para pior?
— E como poderia ser pior, Sean? — Ele não conhecia a
resposta a isso. Mas a pergunta o encheu de pavor.
— Ela está tentando salvar-te, — disse Colleen,
colocando uma nodosa mão sobre a dele — Será algo bom se fizer
o mesmo por ela.
Antes que ele pudesse perguntar o que queria dizer ou
como podia fazê-lo, escutaram passos ressoando sobre o chão, e
de repente, Rory MacGrath apareceu de entre as sombras. Estava
acalorado, sem fôlego e só pôde ofegar umas poucas
ininteligíveis palavras enquanto o olhavam com
assombro.
— Sente-se, moço, — disse Colleen — O
que ocorre?
Brumas da Irlanda 1 Página547
Rory assinalou para Sean.
— Tem que vir. É Danni.
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Capítulo 39
A escuridão nunca tinha sido tão grande e negra como
quando Danni saiu da cabana sozinha. Lá fora se podiam
vislumbrar as luzes de um pequeno alpendre que parecia esperar
impaciente. Tinha encontrado uma lanterna em uma das gavetas
da cozinha, mas as pilhas estavam um pouco gastas e não dava
luz o suficiente para iluminá-la essa noite escura que a envolvia.
Tremendo, Danni olhou para o céu, com nuvens que apagavam as
estrelas e atravessavam a estreita franja da lua.
Uma corrente de ar frio tinha percorrido todo seu corpo,
gelando-a até os ossos. Com o céu estrelado em um segundo
plano, sentia-se intumescida e deslocada. Insegura de seus
seguintes passos. Mas sem dúvida, tinha que escolher um.
Com cuidado, agarrou o livro, ainda envolto em
sua jaqueta, enquanto caminhava pelo caminho
desigual que conduzia à praia rochosa. Seus passos
soavam estranhamente fortes, mas o batimento
frenético do seu coração era cada vez mais
intenso. A cada dois passos parava e olhava
Brumas da Irlanda 1 Página549
convencida de que alguém a estava seguindo. Com a esperança
de que talvez fosse Sean, chegou à temível conclusão de que não
era ele. Os cabelos do pescoço se puseram de pé e começou a
analisar as sombras da noite, mas ao que parecia era sua
imaginação, que estava brincando com ela. Mas continuou tendo
a sensação de que a observavam.
Cambaleou enquanto caminhava pelo íngreme atalho,
mas conseguiu descer sem cair. Um milagre, porque na metade
do caminho, o Livro de Fennore começou a chamá-la,
apressando-a freneticamente para que continuasse. Cada passo
era mais exigente, mais ansioso. O que fez com que Danni se
encontrasse mais receosa e aterrorizada.
O arrepiante zumbido a sacudiu com determinação e o
medo invadiu seu corpo. A ideia de abrir o livro e olhar a capa
com as joias incrustadas… De tocá-lo… Fazia com que quisesse
fugir e não voltar a olhar para trás.
Mas de algum modo, continuou se movendo até que a
pedra que marcava a entrada ficou em frente dela. Obrigou-se a
mover as pernas para atravessá-la.
— Só o faça, — sussurrou para si mesma.
Tinha acumulado toda a valentia que possuía para
voltar para a casa da sua mãe a roubar o Livro. Ela
podia ser, e seria, valente agora. Só uns poucos
minutos mais e poderia arrumar todos os enganos
da sua vida. Poderia salvar Sean. Poderia ajudar
Brumas da Irlanda 1 Página550
sua mãe para que não tivesse que desaparecer. E não destroçaria
nem abandonaria Dáirinn nem a Rory. Poderia ter tudo o que
sempre quis ter, só se conseguisse manter a calma agora.
Danni respirou profundamente, acalmando-se,
negando-se a deixar-se levar pelos pensamentos a respeito da
magnitude do que pensava em fazer. Ia mudar o passado. Não só
seu passado, mas o de muitas pessoas. Havia visto suficientes
filmes de ficção científica para temer as consequências que seus
feitos poderiam provocar no mundo. Mas tinha que acreditar que
se tinham outorgado esse poder, era por algum motivo.
Possivelmente esse era seu propósito. De fato, tinha que ser forte
e acreditar nela mesma.
Teria que enviar seu pai para outro lugar para ter êxito.
Para um lugar muito longínquo. Para outro tempo, a outro lugar
onde não pudesse lhes fazer mal nunca mais. Sem o Livro, só
seria um homem, um que não teria que temer de novo.
Repetiu isso várias vezes enquanto continuava andando
pelas desiguais pedras da caverna, debaixo das ruínas. Sua luz
minguante se refletia no interior da água ondulante, voltando-o
negro e branco, transformando-o em uma besta
escondida que cobrava vida a seus pés. Com outra
olhada sobre seu ombro, apoiou a lanterna no chão
e afastou a jaqueta para desembrulhar o Livro de
Fennore.
Brumas da Irlanda 1 Página551
O envoltório de lona tinha um tato oleoso e o zumbido
estranho lhe repugnou quando levantou o pesado Livro. Suas
mãos vibraram, em resposta a sua proximidade, o Livro chiou
com mais intensidade e volume.
As barreiras que tinha construído em sua mente
cambalearam e logo ruíram a seu redor. Seus dedos tremeram
enquanto deixava o Livro sobre uma enorme pedra que havia a
seu lado.
Com cuidado, afastou o tecido, pensando em como sua
mãe tinha feito o mesmo da primeira vez quando tinha mostrado
o Livro de Fennore a Danni. Danni não queria tocá-lo. Com todo
seu coração, rezava para não ter que tocá-lo. Mas, é obvio teria
que fazê-lo. De que outro modo podia fazer o que tinha que fazer?
Observou as espirais que se encaixavam com o
fechamento da capa do Livro e logo olhou os símbolos incrustados
nas paredes da caverna. O Livro pertencia a este lugar. Sentia-o.
Temia-o.
— É precioso, sim? — Disse uma voz de homem, atrás
dela.
Com um guincho, Danni se virou para
encontrar seu pai apoiado contra a parede da
caverna, a uns metros de distância.
Aparentemente e não só por sua
imaginação, Tinha a seguido. Por que não
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acreditou em seus instintos? Por que sempre duvidava daquilo
que sabia?
— Fique para trás — advertiu-lhe ela.
— Ou, o que?
— O utilizarei.
Era um diálogo ridículo tirado de um velho filme de
gângsteres. Ela elevou o queixo, para que parecesse que dizia a
sério e que seguiria sua ameaça. O Livro ronronou de satisfação.
Gostava dos conflitos. Gostava da tensão que flutuava no ar.
Cathán se afastou da parede e se aproximou dela.
Medindo-a. Desafiando-a. Em um momento, iria expor isso. E o
que faria ela então? O deixaria pegar o livro e o levar enquanto
duvidava? Ele deu outro passo, ela elevou a mão, separando seus
dedos e pondo-os sobre a capa.
— Digo a sério, — avisou-lhe. O suor salpicava suas
sobrancelhas e suas pernas pareciam chicletes. Mas ele se
deteve, considerando-a com seu horripilante e cintilante olhar.
Seus olhos se tornariam assim, quando chegasse
amanhã?
— Não é o que planeja fazer de todas as
formas? Certeza que não o roubou para admirá-lo,
não?
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Danni não respondeu. Tinha-lhe secado a garganta com o
sufocante medo que sentia.
— Quer saber o que acontece quando o tocar? —
Murmurou ele. Tinha um sorriso no rosto, o tremor em sua voz
desapareceu. O Livro também o assustava, mas ao mesmo tempo,
cativava-lhe. Fazia e desfazia círculos com os dedos se
antecipando a voltar a tocá-lo.
Cathán continuou, baixou seu tom de voz,
harmonizando com o palpitante e sinistro Livro.
— A princípio é como se inundar em um pântano. Está tão
frio que não pode nem o entender. Faz-te sentir que pode se fosse
partir-se em dois com uma brisa de ar. E, depois, escuridão.
Como se lhe tivessem enterrado vivo. Assim é.
Seus olhos brilharam com ferocidade. Pareciam
sobrenaturais, duros e como se não pertencessem a seu rosto.
Danni pôde sentir seu desejo, seu desejo de ter o livro e
tudo o que representava. Estava assustada do que ele
responderia, mas, ao mesmo tempo, sabia que precisava aprender
tudo o que pudesse sobre o Livro de Fennore.
Respirou fundo e perguntou:
— Então me diga, por que parece que não
pode esperar para tocá-lo outra vez?
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Ele riu e o som ricocheteou e se quebrou contra as
cavernosas paredes e criou uma onda na caverna.
— Uma loucura, verdade? Tem razão… não posso esperar.
Ver você o sustentando, afastando o de mim…. Deixa-me louco!
Como se pudesse arrancar-te a cabeça só para recuperá-lo.
O último comentário veio acompanhado de um amável
olhar. Não é a coisa mais incrível que você ouviu alguma vez?
Dizia-lhe com o olhar. Mas havia parte de uma promessa em suas
palavras. Danni sentiu a ameaça e o perigo na boca do estômago.
Ele se moveu para a direita e Danni se moveu para
poder continuar o olhando. Utilizando como fina barreira à lona
que o cobria, ela apertou o Livro com mais força, mas tomou
cuidado, oh muito cuidado, de não deixar que a lona caísse.
— Meu pai não podia me tolerar, sabia isso? —
Perguntou ele, confundindo-a com essas palavras aleatórias.
Franzindo o cenho, ela o seguiu enquanto caminhava,
rodeando o livro como um leão a sua presa ferida. O ataque
estava perto. Tinha que estar preparada para isso. Vacilava-se,
não tinha nenhuma dúvida de que ele a devoraria.
— Não tinha ideia de por que me odiava —
continuou ele — e tentei muito lhe agradar. Olhavame como se fosse à semente do diabo. Meu próprio
pai.
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Ela agarrou o Livro, pensou em Colleen, no bebê que
tinha abandonado. A ironia do pai de Cathán que pensava que
sua esposa tinha lhe sido infiel.
O brilho dos olhos de Cathán se obscureceu.
— Mas acredito que sabe por que não podia suportar me
olhar, verdade, Danni? O livro disse a você, sussurrou isso no seu
ouvido, ele faz isso, mas aprenderá isto por si mesma em alguns
minutos, não? Quando puser a mão sobre ele. Quando lhe deixar
destruir seus mais apreciados pensamentos e acaricie seus mais
escuros secretos. Como um amante… é um amante cruel e
imprevisível que tanto te banhará em presentes como te marcará
com um ferro quente.
Ele estava jogando com sua mente. Ela sabia, mas não
podia fugir da imagem que ele tinha semeado em sua cabeça.
— Oh, sim, é muito íntimo. Como fazer amor, só que
sem o afeto e sem a ternura. Acredito que é, mas como uma
violação, não? Mas te dá prazer, quando se submete.
— E você o faz? — Perguntou ela. Com fanfarrice
levantou o queixo. Aferrando-se a isso — Submete-se? Dá
de volta e cede? — Não tinha dúvidas por que seu
pai pensava que era débil.
— Valentes palavras, mas ainda não o
tocou, verdade?
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Ela encolheu os ombros, nivelando o olhar fixo no rosto
dele, perguntando-se se era uma ruptura o que havia em sua
compostura. Desejando que o tivesse pressionado a esse ponto.
— Talvez pensasse que era filho de outro. Possivelmente o
desejasse.
Os olhos do Cathán se entreabriram.
— Quem te contou isso?
— Pensava que era inadequado, é obvio que desejaria
culpar a outra pessoa por suas carências. É o que todo mundo
pensa. Todo mundo fala sobre isso, de você. Como se imagina
como um rei, mas não é mais que um homenzinho com uma
opinião exagerada de sua própria importância. Diziam que a
única coisa inteligente que tinha feito foi se casar com Fia.
Ela pôde ver outra ruptura em sua compostura, desta
vez larga e quebradiça. Um sorriso desenhou-se em seus lábios e
a satisfação percorreu-lhe o corpo, dando calor e reconfortando-a,
quente e eletrizante. É o livro, sussurrou-lhe uma voz em sua
cabeça. Desfrutando da sua dor.
— Mente — disse ele, brandamente. Mas
não demonstrou o mesmo nível de confiança com
que tinha começado e Danni voltou a golpear.
— Só lhe conto o que ouvi. Embora
achem engraçado como você anda por aí como se
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fosse da realeza. Seu pai ordenava respeito e lealdade, mas você…
dizem que é uma pena que não se pareça mais com ele.
Danni sentiu uma sacudida de puro prazer
atravessando-a ao ver como o efeito de suas palavras tinha feito
com que o sangue drenasse do seu rosto antes de banhá-lo com a
mancha da humilhação. Ainda não havia tocado o livro e ele já
estava a controlando. Ainda podia dominar seus pensamentos e
atos. Como uma erva daninha, cuja raiz cresce selvagem em seu
interior. Sentia que semeou algo escuro e insidioso em sua alma.
Algo que conseguiria deixar seus tentáculos se ela
tentasse arrancá-lo.
Foi a vez de Cathán sorrir.
— Está fodendo sua mente já, Danni? Entrando e saindo
dela, procurando uma debilidade onde pode plantar. E nem se
quer o tocou ainda. Deve possuir algo que queira com ânsia para
havê-lo feito ir tão longe.
Ela tragou com dificuldade, sentindo os afiados
tentáculos, como uma sonda em seu interior, enroscando-se
dentro dela…
— É assim como o encontrou? — Exigiu ela
— Queria algo que você tem?
Seus olhos brilharam.
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— É uma boa pergunta. Uma que não posso responder
agora. Sim quer algo que tenho. Mas a pergunta é, por que
acredita que você é minha?
Danni necessitou um momento para entender suas
palavras. Ficou ali, com o Livro de Fennore preso entre suas
mãos e essa ideia passeou por sua mente. Estava ele dizendo que
o Livro de Fennore tinha chegado até ele para encontrar ela?
— Isso. Ele chamou-me, doce Danni. Chamou-me como
um sino gigante. Podia vê-lo em minha cabeça, a forma em que
brilhava a forma em que retumbava. Queria tocá-lo. O ter.
Ele deu um passo aproximando-se de Danni, mas ela
retrocedeu.
— Necessitei anos olhando entre velhos documentos,
riscando a linha familiar até anos antes que se escrevesse a
história. Escutei a todas as pessoas senis que diziam saber algo
sobre isso. E logo a encontrei, a minha adorada esposa,
esperando por alguém que a salvasse de sua ambiciosa mãe e de
sua fracassada irmã. Foi coisa do destino que ela estivesse tão só
ao dobrar a esquina. A mãe de Fia a tinha feito usá-lo uma
vez que sua irmã… Morreu.
Sua voz se fez mais profunda e teceu um
feitiço a seu redor até que se converteu em tudo o
que ela ouviu. Ela o observou, fascinada e ao
mesmo tempo repugnada pelo que ele dizia. Ela
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conhecia o terrível destino que sua mãe tinha deslocado, ainda
podia ouvir o grito de Edel e à mãe de Fia planejando enviar Fia
como a seguinte.
— Depois de que sua irmã usou o Livro da última vez e
não voltou, Fia estava mais que feliz em deixar que a resgatasse,
ela achava que tinha visto o Livro de Fennore pela última vez,
especialmente uma vez que sua mãe morreu pobre desventurada.
Foi um terrível acidente, que sua mãe caísse como o fez. Como se
alguém a tivesse empurrado por aquelas escadas. Eu a convenci
de que o Livro estava perdido, de que, de algum jeito, Edel o tinha
levado com ela. Fia quis acreditar nisso e o fez.
Ele estava mais perto. Danni não tinha o viu mover-se,
mas estava definitivamente mais perto que antes.
Ela retrocedeu outro passo e sentiu a sólida parede de
rocha que estava atrás dela.
— Para que vai usá-lo Danni? Que escuros segredos
guarda seu coração?
— Não é meu coração que é escuro. É o teu. Não quero
usá-lo, mas devo fazê-lo.
— Deve — disse ele, com voz doce e suave
— Sim, entendo isso. Eu também tinha essa mesma
razão. Não podia perder meu lar, meu castelo. Sou
rei aqui, tanto se esses idiotas sabem ou não.
Poderia eliminar todos eles, só o desejando. Às
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vezes estou a ponto de fazê-lo. Desejo-o. Penso neles debaixo da
terra, todos esses verdes prados tintos de vermelho por seu
sangue, uma maré vermelha da carnificina. Pode imaginar isso?
— Sussurrou ele.
— Sim, posso.
Ela tragou e seus olhos se arregalaram com a viva
imagem que ocupou sua mente. O Livro respondia a horripilante
descrição de Cathán. Com alegria cantava, pedindo a Danni que o
tocasse, acariciasse-o, abraçasse-o.
— Fazer com que alguém o tema não te converte em
poderoso. Não o converte em rei.
— Nunca subestime o poder do medo, Danni. É uma arma
formidável.
Ele deu outro passo e já não houve lugar ao qual moverse, não havia cantos para evadir-se. O livro chiou com frustração,
aterrorizando-a tanto que bloqueou sua habilidade para pensar.
Para reagir. Uma parte do seu cérebro, simplesmente, apagou-se.
— O momento da verdade, amor — disse ele —
Quero ajudar. De verdade que quero. Seus olhos são
como um livro aberto e posso ler quão assustada
está. Uma vez que o toque, uma vez que o use,
nunca será a mesma. Não poderá voltar atrás. Seja
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o que te desespere, diga-me isso e o farei sumir. Deixe-me te
economizar este horror. Deixe levar sua carga.
Ela se sentiu estranhamente desorientada e olhou seus
olhos brilhosos. Ele queria ajudá-la. É obvio que queria. Era seu
pai e os pais ajudavam suas filhas.
Algo mudou em sua expressão e por um momento, ele
parecia confuso. Olhou Danni como se a estivesse vendo pela
primeira vez.
— Quem é você? — Perguntou ele, brandamente — Quem
realmente é?
Ela quis dizer-lhe, uma parte dela ainda acreditava que,
uma vez que ele soubesse, tudo seria diferente. Ele abriria seus
braços com amor e faria o que ela sempre tinha sonhado que
faziam os pais, fazer tudo ficar bem. Quando ela pensou nisso, ele
voltou a se mover e agora a observava com calculada astúcia.
— Sabia que não era Danni Ballagh — disse ele —
quase me tornei louco, doce Danni. Mas não é inocente, verdade?
É você que nos traz de volta a este lugar uma e outra vez. Bom,
esta será a última vez que isso acontece. Importa-me
uma merda se for ela em carne e osso. Juro-te que
esta será a última vez.
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Agora a imagem que Danni tinha em sua mente era a
ânsia da fada banshee. Do fantasma branco. Ela mesma em
carne e osso.
Apesar da frieza de suas palavras, ela sentiu o medo
dele.
— O Livro é meu — disse ele. — Sempre será meu.
Ele pegou-a com o olhar quando a alcançou. Uma voz
em sua cabeça tentou gritar, adverti-la, mas Danni não podia se
mover. O choramingo do Livro lhe paralisou os sentidos,
alimentando o terror em seu interior. Sentia-se drogada, sem
forças. Embora soubesse que seria um engano fatal o deixar
tomá-lo, Danni permaneceu paralisada quando ele alcançou o
Livro de Fennore.
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Capítulo 40
— Não! — O grito despertou Danni do transe que tinha
provocado Cathán. Sentia-se um pouco enjoada, como se de
algum jeito, ele tivesse aspirado o ar de seus pulmões, o oxigênio
de seu cérebro. Na abertura que conduzia às escadas, Dáirinn e
sua mãe estavam de pé como figuras de cera. A expressão de Fia
era um reflexo do horror que sentia.
Cathán ficou irado ao enfrentar elas e Danni aproveitou
essa distração para escapar do canto onde ele a tinha prendido.
— O que está fazendo? — Disse Fia com um suspiro,
olhando para trás e para frente entre Cathán e Danni — Não sabe
o que é? É diabólico. Por que o trouxeste até aqui?
Antes que Danni pudesse responder, ouviu o
ruído de um motor e momentos mais tarde, uma
lancha entrou através do ovalado estreito na boca da
caverna. Niall Ballagh desligou o motor e ficou em
estado de choque ao ver o grupo de pessoas que
estavam no interior. O barco ficou à deriva
durante um momento antes que Niall recuperasse
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a compostura e gritasse uma ordem a Michael para que atasse a
embarcação a um poste da caverna para tal fim.
— O que é isto? — Perguntou Cathán. Sua voz era tão
fria e escura como a água que caía sobre as pedras — Que
demônios é isto?
Ninguém falou enquanto olhavam uns aos outros.
Danni sentia-se como uma espectadora do que estava
acontecendo. Viu uma sombra mover-se na porta que levava a
costa rochosa. Era Rory que apareceu logo atrás de Sean. Os dois
pararam e uniram-se ao silêncio sufocante.
Todo mundo estava reunido agora, tal e como tinha
acontecido na visão. A qualquer momento, Cathán tiraria sua
pistola, apontaria a Niall, mas feriria mortalmente Michael. Danni
seria seu seguinte objetivo, agora só restava entender o por que.
Ela ainda seguia segurando o Livro com força entre seus braços.
Ele simplesmente teria que matá-la e agarrá- lo.
E tudo voltaria a começar de novo.
— Não, — disse ela. Sua voz soava estranhamente
tranquila, por isso voltou a repeti-lo — Não.
Sem dúvida o momento para fazer
perguntas tinha passado. Danni arrancou o tecido
que cobria e sustentava o Livro de Fennore em
suas próprias mãos. Estremeceu, tremendo de
emoção enquanto se preparava para ir a essa
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terra negra e geada, tal e como Cathán a havia descrito.
Enquanto se preparava para o que viria. Fechou seus olhos e
disse:
— Isto não acontecerá de novo…
Antes que pudesse terminar, Rory deixou escapar um
grito que ressoou como uma explosão na caverna. Danni vacilou
e Cathán se moveu rapidamente, arrancando-lhe o livro. Danni
lutou por ele, mas ele foi tão rápido, tão forte. Apesar de Sean
tentar pegá-lo, Cathán o arrancou dando um grito triunfal.
Ele não teve dúvidas, não como tinha feito Danni.
Cathán usou uma das pedras como uma mesa para sustentar o
pesado livro, colocou sua mão esquerda sobre a capa e fechou os
olhos.
A vibração no ar adquiriu substância até que parecia
que todos estavam inundados nas profundas e frias águas que
golpeavam ferozmente contra o dique. Enquanto olhavam com
horror, a vibração pareceu afundar-se debaixo da pele de Cathán.
Parecia uma miragem, brilhando no calor de um sol implacável.
Parecia que já não estava em realidade aqui,
entretanto, eles podiam vê-lo instável com o ritmo
que pulsava do Livro.
Era horrível e ao mesmo tempo, fascinante e
nenhum deles podia afastar os olhos. Cathán
tinha uma arma apontada para eles antes que
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alguém se precavesse de que pegou em seu bolso com a mão que
tinha livre. Danni viu que tudo acontecia muito depressa. Mas,
nesse momento, de alguma forma, tudo ficou terrivelmente lento.
Cada instante ficou registrado antes que passasse o seguinte.
— Nunca terá minha esposa, — disse Cathán a Niall
com um olhar cheio de ódio que ardia naqueles aterrados olhos.
Sem prévio aviso, apertou o gatilho.
A bala pareceu voar através da caverna e Danni, por um
momento, pensou que em realidade poderia detê-la. Talvez não
fosse muito tarde para mudar seu destino. Talvez, depois de tudo,
não tinha fracassado.
Mas quando tentou interceptar a bala, viu Michael
equilibrar-se sobre seu pai, empurrando o de tal maneira que a
bala impactou o peito do menino, diretamente em seu coração.
Ao mesmo tempo, Sean gritou de agonia e Danni soltou
um grito que retumbou na cova e ressoou sem cessar ao seu
redor. Dividida, sem saber se ia ajudar o menino ou o homem,
Danni ficou em duvidas e Cathán disparou de novo lhe atirando
nas costas. Sentiu-se como se uma varinha ardendo lhe
atravessasse o corpo, entrando em sua carne. Ela
caiu de joelhos e então, desabou no chão de pedra.
A princípio, esteve tão aturdida que não
pôde mover nem seus braços nem suas pernas.
Girou com esforço a cabeça. Sean tentava chegar
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até ela, mas lhe custava mover-se e então ele começou a se
desvanecer.
— Eu te amo, — tentou dizer Danni. Mas sua voz foi
quase um suspiro. Por que não o havia dito antes? Por que
permitiu que se fosse sem ter dito aquelas simples palavras?
— Danni — disse enquanto a imagem vacilava — Ainda
pode detê-lo. Não precisa do livro. — Tudo se obscureceu em sua
mente e as palavras começaram a distorcer-se na sua cabeça. O
que estava tentando dizer-lhe? — Pode mudar tudo, Trevor está
vivo. Mudou o passado. Salvou-o.
Não tinha sentido. O que estava dizendo? Então Danni
recordou aquele momento quando agarrou as mãos de Dáirinn e
Rory e viu a imagem do irmão de Sean, morto no chão da
cozinha.
A compreensão estava lá, flutuando por cima de sua
capacidade para entendê-lo. Sean ainda seguia lutando.
— O que aconteceu quando minha mãe morreu foi
diferente. Na primeira vez, Trevor morreu com ela. Mas hoje…
está vivo. Você o salvou.
Ela não o entendeu. Mas não podia lhe
perguntar pois ele se desvanecia. Desvanecia-se. As
lágrimas começaram a cair sobre seu rosto quando
se deu conta do que estava acontecendo.
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— Não — disse ela em um sussurro. Ele não sabia que o
amava. Não sabia o muito que significava para ela — Não me
deixe.
Ele se foi em um instante.
Um soluço saiu de sua garganta, enquanto as lágrimas
quentes corriam por seu rosto. Danni voltou a cabeça e viu que
uma sombra fantasmal saía da forma inerte de Michael e a
olhava. Niall começou a gemer enquanto agarrava o corpo sem
vida do seu filho contra ele. Parecia que tinham se passado horas
desde que Cathán tinha dado seu primeiro tiro, mas só tinham se
passado alguns segundos. Agora era a voz de Fia que ela ouviu
enquanto sua mãe tentava conter Dáirinn para que não se
lançasse sobre Cathán e o Livro que sustentava em suas mãos.
Fia a segurava, mas, ao mesmo tempo, seu outro filho correu
para frente. Sem medo, Rory atacou com seu pequeno corpo o de
seu pai, lhe apanhando pela cintura e o fazendo perder o
equilíbrio. Cathán cambaleou para trás, levando o livro com ele,
enquanto Rory lutava para tomá-lo.
Isso não devia ter ocorrido. Os pensamentos de Danni e
sua consciência começaram a diminuir com o ruído
surdo do seu coração.
Rory deu um forte grito e puxou o livro
para longe. Por um momento, ficou petrificado,
com suas pequenas mãos afundando-se na
brilhante capa negra. Seus olhos estavam muito
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abertos pelo horror do que tinha visto e então, Cathán se jogou
sobre ele e ambos desapareceram no ar.
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Capítulo 41
Dáirinn ficou olhando para o lugar onde seu irmão
tinha desaparecido e um medo como nunca imaginou se fechou
sobre ela. Podia escutar sua mãe chorando, ouvir o pai de
Michael soluçando, ver o acumulo de sangue sob o corpo de
Danni. E em sua cabeça, ouviu seu irmão gritar, lhe rogando que
o ajudasse.
Suas mãos e pernas se sentiam rígidas quando se
soltou das mãos de sua mamãe, indo para onde estava Danni.
Ajoelhou-se ao seu lado, sentindo o sangue lhe empapando os
joelhos de suas calças. Já estava fria.
— O que quis dizer? — Perguntou Dáirinn, olhando os
olhos cinza de Danni, sentindo como se estivesse olhando um
reflexo dos seus — Disse que salvou Trevor. O que
quis dizer?
Danni piscou e seus lábios se moveram,
mas não pôde falar. Estava morrendo.
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— Afaste-se — disse Fia, tentando puxar Dáirinn de pé
— sai de perto dela. — E de repente Fia ficou quieta. Ficou
olhando o rosto de Danni, sua própria palidez de medo se
converteu em algo mais. Lentamente olhou para sua filha,
Dáirinn e então se voltou de novo. Danni viu sua compreensão,
incredulidade e angústia pelo controle das emoções de Fia. E logo
outra coisa brilhou nos olhos de Fia. Era amor; era remorso. Era
orgulho. Em uma fração de segundos, Danni percebeu que Fia se
deu conta da situação, que de algum jeito tinha juntado todas as
peças que faltavam e havia resolvido o quebra-cabeça.
Tudo o que ela podia haver dito se perdeu, porque
Dáirinn usou o choque de sua mãe para se soltar do agarre de
suas mãos. Chegando mais perto de Danni, perguntando de novo.
— O que quis dizer?
Danni umedeceu os lábios. Olhando para Michael e de
repente Dáirinn viu a forma escura de pé sobre o corpo do
menino. Era seu espírito. Ela sabia, inclusive quando os olhos
dele se elevaram para encontrar-se com os dela. Seu corpo ficou
rígido.
Ela sentiu como se uma corda os atasse,
puxando com força em um círculo que não podia se
romper. Dáirinn e Danni. Michael e seu espírito.
Ela se agachou e tomo a mão de Danni
entre a suas. Inclinando-se, Dáirinn olhou os
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olhos que se pareciam tanto aos dela. Estavam conectadas,
embora não sabia como.
O marido de Danni disse: Você pode mudá-lo. Disse que
Danni tinha salvado seu irmão, Trevor.
Dáirinn abriu os olhos como pratos enquanto seu olhar
se voltava para o espírito que se materializou quase ao mesmo
tempo em que o Sr. Ballagh tinha desaparecido. Um indício da
verdade se abateu sobre ela. Então ouviu a voz de Rory, agora
mais fraca enquanto gritava em sua cabeça.
— Ajude-me.
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Capítulo 42
Danni se concentrou na intensidade dos olhos de
Dáirinn e todo o resto desapareceu.
Pode mudá-lo…
Era a voz de Sean, era Dáirinn e era ela mesma, falando
a algo profundamente dentro dela. Pode mudá-lo… a voz insistiu
de novo. Mais forte desta vez.
Ela sentiu que algo se agitava em seu coração.
Estremeceu e aumentou até que era uma pressão que ameaçou
explodir. Danni ficou olhando os olhos da própria menina e
agarrou essa pressão, envolveu-se ao redor dela e deixou que se
expandisse até que a envolveu por completo. Rodeada por essa
faísca brilhante, Danni se concentrou no núcleo do
lugar onde as explosões de energia se rompiam e
apareciam e chispavam.
Obrigou-se a não sentir medo em sua
mente, por que o que tinha a perder agora? Tudo o
que sempre quis, tudo o que alguma vez tinha
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sonhado se foi. Mas podia recuperá-lo, se acreditasse nisso.
Armou-se de coragem para suportar a dor que
certamente viria. Em sua mente, aproximou-se da borda do
núcleo que formava redemoinhos à espreita em seu interior. A
ardente sacudida arrancou um ofego de seus lábios e a trouxe de
novo à consciência da caverna. Voltou se para a menina que
sustentava sua mão, que febrilmente lhe rogava que fizesse, o que
fosse. Danni imaginou seus pensamentos como fumaça, filtrandose por lugares tranquilos, encontrando um caminho através das
barreiras que a mantinham separada da menina que uma vez
tinha sido. Dáirinn respirou fundo e Danni se focou nisso,
seguindo o fôlego dos pulmões de Dáirinn, através de seu sangue,
de seu coração, de sua mente. A menina voltou a respirar e de
repente eram uma.
As lembranças de Danni corriam como se fossem um
filme que se reproduzia de um modo rápido para que Dáirinn os
visse. Sentia que ela tentava de fazê-los mais lentos para assim
poder absorvê-los. Juntas viram Fia abraçando sua irmã diante
de um bangalô em uma ensolarada rua na praia, lhe prometendo
que voltaria logo. Deixaram para trás Rory aos cuidados de Edel
quando subiram no carro. Então Danni e Fia tinham
conduzido através do deserto, com a mãe de Danni
interrogando-a sobre seus novos nomes, de onde
eram.
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Fia tinha ido para o Arizona porque parecia do outro
lado do mundo. Cathán nunca a encontraria ali. Tinha se
separado de seus filhos por segurança, temendo que juntos
pudessem enviar de algum jeito algum sinal que Cathán, através
do Livro, poderia captar.
Sempre teve a intenção de voltar para Rory, quando
fosse seguro.
Finalmente Danni viu a resposta do por que sua mãe a
tinha abandonado. Cathán tinha encontrado Fia. Sua mãe tinha
o visto primeiro e fez a única coisa que teve tempo. Abandonou
Danni em Cacto Wren Preschool e fugiu, rezando para que
Cathán a seguisse e não encontrasse as crianças.
Como uma, Danni e Dáirinn sentiram as lembranças, os
anos de não pertencer. Unidas, experimentaram os anos de
isolamento, de nunca se sentir uma parte do mundo. Lá estava
Yvonne com seu sorriso, oferecendo um santuário no caos. E
então Sean estava na porta da frente de Danni e não havia mais
desaceleração porque tudo isso veio como uma maré que alagou
às duas.
— Podemos mudar isto, — disse Danni em
sua mente —Ajude-me.
Sua mão livre parecia como chumbo,
enquanto tentava levantá-la. O esforço puxou seus
músculos destroçados e a fez querer gritar, mas
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de algum jeito conseguiu que seus dedos rodeassem o pendente
celta em sua garganta.
Sentiu que inchava em sua mão e o sentiu arder contra
sua palma. E logo se moveu, sentiu que os fios de prata
mudavam, desembaralhando-se, mudando para algo novo.
Dáirinn agarrou a outra mão de Danni e ela soube que a
menina o havia sentido também. Assustou a ambas, mas não se
soltaram. Não se afastaram. Dáirinn canalizou as súplicas de
Rory nos pensamentos de Danni até que sentiu uma faísca e logo
a chama da vida. O ar ao redor delas começou a tremer e tremer,
sacudindo as pedras soltas que estralaram no chão e se
inundaram na água. Sua mãe estava gritando, mas Danni e
Dáirinn se agarraram. Dentro da cabeça de Danni, as imagens
brilharam como um relâmpago e logo todo o resto pareceu se
frear até um ponto morto, como se o tempo simplesmente se
detivesse.
Danni abriu seus olhos e olhou ao redor. Sua mãe
estava de pé com a boca aberta, com suas mãos congeladas a
meio caminho. Niall estava ajoelhado ao lado do seu filho, com as
lágrimas suspensas em seu rosto. O espírito de
Michael imóvel no ar.
Dáirinn olhou para Danni e a encontrou
lhe devolvendo fixamente o olhar. Balançou
levemente a cabeça e o ar mudou devagar,
chiando como uma roda oxidada em um eixo
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antigo. Sussurrando diante delas, ganhando ímpeto, soprando
mais e mais rápido até que pareceu uivar. O atoleiro de sangue
sob Danni começou a encolher-se e ela respirou fundo, com seus
olhos mais claros, com seu aperto mais forte.
Está rebobinando, pensou Danni, assombrada. Estamos
rebobinando o tempo.
Os sons vieram como explosões. De repente, sua mãe
sustentava a outra Dáirinn em seus braços enquanto a menina
tentava desesperadamente se libertar. E logo seu pai e Rory
reapareceram, lutando pelo Livro e então Rory se afastou. Sean se
filtrou de novo em sua carne, de pé a alguns metros de distância
dela. Ela o olhou nos olhos e amarrou seus pensamentos
apertados e os enviou para sua mente.
Uma oportunidade. Uma oportunidade.
Do outro lado, Cathán disparou sua arma para Danni,
só que agora a bala voltou para dentro da sua arma. Cathán a
afastou e apontou uma vez mais para Niall. A bala se sacudiu do
corpo de Michael, parecendo que lhe puxava para cima a partir
do chão e o empurrava para trás onde tinha estado de pé
ao lado do seu pai.
Danni apertou a mão de Dáirinn uma vez e
logo a soltou.
Como um elástico esticado ao seu limite
e liberado, o tempo voou para elas com um estalo.
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O rebobinar terminou e agora os segundos se precipitaram para
frente. Danni estava de pé, movendo-se mesmo antes de
recuperar o equilíbrio. Cathán levantou a arma para Niall uma
vez mais, mas Danni golpeou sua mão quando ele disparou e o
tiro se perdeu.
Ele bateu a pistola contra seu rosto e a dor explodiu por
toda parte. Sem perder um segundo, disparou a queima roupa em
seu estômago, e então virou a arma para Niall e disparou de novo.
Danni viu em câmara lenta como a bala acertaria infalivelmente
em Niall Ballagh. Uma vez mais, Michael pulou na frente do seu
pai, mas desta vez, o Sean adulto o fez primeiro. A bala lhe
acertou no peito e ele bateu contra a parede. Seu coração se
deteve imediatamente e ele caiu por terra, com os olhos cegos.
O grito de agonia de Danni chegou do fundo da sua
alma. Uma vez mais, sentiu que a vida se drenava dela.
Estava intumescida e a morte se equilibrava sobre ela
como um borrão e ela lhe dava bem-vinda, porque o que seria da
vida sem Sean?
Com um último fôlego ofegante, olhou seu
destino se desdobrar.
Rory já estava lutando pelo Livro com seu
pai, mas Danni viu que Dáirinn não deixaria que
ele se fosse agora. Apesar de Dáirinn o agarrar por
trás, Rory desapareceu como tinha feito antes,
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mas com Dáirinn agarrando-o. Danni sentiu que o menino
puxava seus pensamentos como uma corda e o agarrou.
E então ela o puxou. Seu irmão retornou com um zumbido
que golpeou a ambos ao chão.
Mas seu pai e o Livro de Fennore se foram para sempre.
Tudo ficou negro então. As vozes ao seu redor e se deu
conta de que estava se desvanecendo, igual a Sean. Ela levantou
a mão e a sentiu pesada, mas pôde ver através dela. Uma bruma,
como uma névoa na manhã.
Houve um momento de pânico. O que aconteceria
agora? Tinham mudado a história. Mudado suas próprias vidas…,
o medo se desvaneceu com sua existência. Ela fechou os olhos
para as vozes alarmadas e cedeu ante a maré do destino.
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Capítulo 43
Não era um sonho, não era uma visão. Era um misto das
duas.
Ela olhou para baixo para seu próprio corpo,
ensanguentado e derrubado… Derrotado. Mas não sentia nenhuma
dor. Não sentiu nenhum medo.
Afastou-se, se virando quando uma voz familiar a
chamou por seu nome. Sorriu quando olhou seus incomuns olhos,
não completamente verdes, nem completamente cinzas e tomou a
mão que lhe estendia. Sem uma palavra, o seguiu para fora da
caverna e para a luz brilhante que os esperava.
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Capítulo 44
Em seu quinto aniversário, Dáirinn MacGrath, declarou
que se chamaria Danni e não responderia a nenhum outro mais.
Quando pensavam nisso, as pessoas de Ballyfionúir atribuíram o
pedido às singularidades da menina. Era a forma como os
Ballaghs e os MacGraths agiam, todos sabiam disso? Depois que
Cathán MacGrath desapareceu sem deixar rastro; sem dúvida
fugindo com alguma puta de Cork ou mesmo de Limerick, os
cidadãos tendiam a concordar com os meninos. E quem não o
faria em seu lugar?
É obvio que durante anos as más línguas falavam sobre
o abandono de Cathán a sua família. Alguns especularam que
não tinha fugido, mas foi baleado por algum pai irado por
engravidar sua filha. Outros diziam que o mais provável era que
um marido ciumento o converteu em um homem
miserável. Uma pequena minoria pensava que
poderia ter atirado em si mesmo e posto fim a seus
pecados, pelo do engano.
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E alguns pensavam que um destino mais escuro levou
Cathán MacGrath. Por acaso não tinham ouvido todos os
rumores a respeito do que esteve fazendo? Não tinham falado as
anciãs sobre ele quando se zangavam no sábado à noite? Diziam
que tinha encontrado o livro de Fennore. Dizia-se que estaria
maldito por toda a eternidade devido a isso.
Seja qual for seu destino, perdeu-se como a fome ou
como um nada como dizia.
Os gêmeos MacGrath foram criados por sua mãe e seu
segundo marido, Niall Ballagh, que trouxe para a união dois
filhos do seu primeiro matrimônio. A sorte do casal, a mãe de
Ballagh estava geralmente disponível para dar uma mão. Fia
tinha dado à luz a uma filha encantadora seis meses depois
daquela noite, à noite em que seu marido desapareceu. A menina
se dizia era uma bênção de proporções inimagináveis.
Havia um amplo acordo de que Danni MacGrath foi
capaz de superar o trauma de perder seu pai biológico, mas seu
irmão gêmeo Rory carecia de força para fazer o mesmo. O menino
sério se converteu em taciturno e retraído. À medida que os anos
da adolescência se aproximavam, suas formas
tristonhas se tornaram melancólicas e, logo,
destrutivas. Na idade de doze anos, o menino foi
enviado para longe um verão para viver com sua tia
Edel e seu marido americano. Um dentista, diziam.
Os cidadãos que tinham sofrido seu vandalismo e
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roubos menores durante anos ficaram muito aliviados; mais
ainda quando o menino se negou a retornar para casa. O rumor
dizia que o jovem Rory enviava mensagens para casa e, de vez em
quando, enviava também uma fotografia. Tinha dentes bonitos, o
menino também era, e todos tinham decidido que foi o melhor
que lhe aconteceu.
O filho mais velho de Niall Ballagh, Sean, foi para a
escola em Londres e ficou famoso pelas restaurações de
monumentos históricos. O mais jovem não foi tão bem, mas a
tragédia não era nada novo para Ballyfionúir.

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Epílogo
Passaram-se sete anos desde que Dáirinn McGrath;
Danni para os amigos e familiares, deixou Nova Iorque e a
Universidade de Columbia. Graduou-se como a melhor da sua
classe e trabalhou como freelance antes de tornar-se redatora
para o New York Times. Era a culminação de toda uma vida de
metas e sonhos; era uma boa repórter, uma das melhores, como
seu editor havia dito. Sempre parecia saber quando a história era
importante ou uma testemunha estava a ponto de soltar seus
segredos. Um dom, dizia seu editor. Um presente. Mas apesar de
adorar cada minuto da sua vida, conforme Danni se aproximava
do seu aniversário de vinte e cinco anos, reconheceu que lhe
faltava algo. Começou a ter sonhos que a atormentavam e
perseguiam à noite. Sonhos onde perdia algo, algo próximo e
querido. Algo insubstituível.
Depois de ter contado a história das crianças
abandonadas, sua vida mudou por completo. Seu
artigo provocou uma reforma na agência de amparo
à infância e nas leis de adoção que evitavam que
tantos bons casais adotassem ao invés colocavam
muitas crianças em lares abusivos. O trabalho
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que fez, abriu-lhe o coração à grave situação das crianças
perdidas e abandonadas do mundo.
Decidiu no ato que faria a diferença o máximo que
pudesse. Sua babá Colleen lhe havia dito uma vez, que uma
pessoa devia olhar em seu próprio quintal antes de querer limpar
o do outro. E assim, Danni estava voltando para casa para
começar por lá.
Ballyfionúir não mudou muito ao longo dos anos,
entretanto, ao voltar para casa pela primeira vez depois de tanto
tempo, parecia que as diferenças eram profundas. Havia um
brilho na aldeia de pescadores provocado em parte pelo aumento
do turismo. Havia lojas de especialidades, bares e
estabelecimentos de comida que cobriam a estrada. Os edifícios
que eram descoloridos estavam pintadas em impressionantes
tons pastéis com suas portas brilhantes e coloridas. No entanto
não havia nada parecido a hotéis; a opinião predominante era que
os turistas deveriam encontrar o caminho para casa antes que a
necessidade de dormir os alcançasse.
Sua mãe lhe escreveu e contou que seu meio-irmão
Sean tinha voltado para a cidade também. E ele estava
olhando as ruínas MacGrath com a intenção de
restaurá-las. Uma ideia nobre, apesar de que uma
grande parte dela tivesse preferido que fossem
simplesmente destruídas. Ela não recordava nada
da noite em que seu pai desapareceu, mas sempre
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lhe parecia que algo grave aconteceu na caverna sob as ruínas e
ela associou isso ao seu abandono.
Deixou escapar um suspiro, sabia que Rory se
recordava de muito mais, embora nunca falasse disso. Rory jurou
que nunca voltaria para Ballyfionúir e o havia dito a sério. Sabia
que sua mãe sentia terrivelmente a falta dele e se culpava,
embora Danni nunca tenha entendido o por que.
Enquanto conduzia seu carro de aluguel para casa, viu
trabalhadores e material por toda parte. Os terrenos ao redor da
casa e as ruínas pareciam um completo caos, ela franziu o cenho.
Tinha sonhado com a paz e a tranquilidade do seu lar, não com o
som dos martelos, as serras e as enormes gruas. Maldito Sean
Michael Ballagh, pensou, mesmo quando seu coração acelerou
ante a ideia de que ele pudesse aparecer a qualquer momento.
A última vez que o viu, ela tinha treze anos, e ele vinte e
dois e ele ficou na escola em Londres nos últimos quatro anos.
Quatro anos, durante os quais, ela mudou de criança a
adolescente e sonhava com o dia que ele voltasse para casa e a
veria como mulher. Ele não era seu verdadeiro irmão, e nunca
pensou nele como tal.
Mas em lugar de estreitá-la entre seus braços
e declarar suas intenções de esperar até que ela
alcançasse a idade de se casar, ele levou outra
mulher para casa; uma coisa bonita com cabelo
negro, olhos azuis e seios que não podiam ser
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reais. Ele deu um puxão no seu rabo de cavalo e lhe entregado
um bicho de pelúcia que levou de presente. Era um cachorrinho,
ao qual ela amava em segredo. Mas naquele momento, ele a fez se
sentir como uma criança que foi acalmada e despachada com um
brinquedo. Ficou tão ferida e zangada que se fechou no seu
quarto e não saiu em todo o fim de semana, nem sequer para
dizer adeus.
Quando ele voltou para casa de novo, ela estava na
universidade e já se passaram doze anos. Bom, definitivamente
ela era uma mulher agora.
Olhou os jeans desgastados e o pulôver velho que
usava. Tinha que tomar um banho e mudar de roupa antes de
cumprimentá-lo. Não importava que seu amor por Sean houvesse
terminado há muito tempo, era mulher o bastante para querer
usar um look sofisticado e sereno quando o visse, demônios e
com certeza queria abandonar a imagem de garota desajeitada de
treze anos. Virou para entrar e ver seus pais, quando uma
pequena bola de pelo negro e marrom correu para ela vindo da
área de construção. Estava latindo como louco e correndo para
Danni como se ela fosse um suculento guisado de osso em perigo
de ser perdido. Um cão? Surpreendida, Danni deu
um passo para trás em direção ao carro enquanto o
animal se detinha a seus pés. Uma mistura de viralata de tantas raças que mal parecia um cão. Tinha
as pernas longas e magras e um corpo robusto.
Sem cauda, mas com orelhas alegres e olhos
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marrons que agora a olhavam com uma adoração que ela não
merecia.
— Olá, — disse, agachando-se. O cão tinha um pelo que
parecia seda e moveu todo seu corpo, enquanto ela o acariciava
— Está tentando parecer um cão? — Danni riu enquanto lhe
arranhava atrás da orelha.
Uma voz severa chamou à pequena besta, Danni olhou
para cima e viu um homem vir pelo mesmo caminho por onde o
cão tinha saído.
Era um homem alto com ombros largos e músculos como
os de um guerreiro, embora se movesse com elegância fácil,
passos compridos e decididos. Usava uma camiseta que poderia
ter sido branca quando a vestiu, mas que agora estava coberta de
terra. Uma camisa xadrez de botões aberta sobre ela. Jeans
desbotados que se ajustavam desde seus quadris magros até
suas pernas grossas. Não só era alto, era um homem grande.
Ele se deteve diante dela e se agachou ao seu lado. Os
olhos de Danni seguiram as linhas poderosas desde seu ventre
plano, para seu peito musculoso, a garganta, a queixo
quadrado e se deteve nos olhos que eram nem
verdes, nem de todo cinzas. Olhos como o mar da
Irlanda. Ela não poderia ter reconhecido o homem
em que Sean se converteu se não fosse por esses
inesquecíveis olhos.
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Por um momento, só pôde olhá-lo fixamente e parecia
que em algum lugar além da sua memória, além deste momento
no tempo, havia uma história que envolvia os dois. Um passado
inexplicável e um futuro entrelaçado e tecido, unindo-os. Imagens
se abateram sobre ela… Seus braços ao redor dela, seu corpo
próximo e quente, sua boca sobre a dela. Mas ela nunca havia…
Eles nunca haviam…
E, no entanto, igual a uma canção que não podia
esquecer, os pensamentos brincavam com ela como se houvesse
acontecido…
Era como se ela estivesse esperando para ter novamente
o que eles tinham compartilhado uma vez. Era uma loucura, mas
parecia muito real para duvidar.
Seus olhos pareciam obscurecer-se e o olhar nesse mar
de verde e cinza de algum jeito refletia as complexas e caóticas
emoções que se reproduziam em seu interior. Ele entendia. Ele
também havia sentido. O conhecimento a golpeou e lhe tirou o
fôlego. Ele também sentiu.
Então, ele sorriu, um lento sorriso de
reconhecimento que se estendeu por seu rosto e
mostrou as duas covinhas pelas quais Danni se
apaixonou há muito tempo. Ela se encontrou lhe
devolvendo o sorriso, mesmo que seu coração
estivesse disparado e sua boca estivesse seca. O
resto do mundo pareceu desaparecer, era somente
Brumas da Irlanda 1 Página590
Sean e Danni e infinitas possibilidades. O futuro diante deles era
brilhante e luminoso à espera do que o destino reservou para
eles.
— Bem-vinda de volta, Danni, — disse ele, com sua voz de
barítono que roçou sua pele como veludo e que a fez aproximarse.
Ela estendeu a mão, desejando tocá-lo, acreditando na
esmagadora onda que sentia. Ele pegou sua mão, puxando-a para
mais perto, um milhão de pensamentos encheram sua cabeça,
mas nenhum dos dois pôde resistir. Aqui era onde ela pertencia,
onde estava destinada a estar.
Ele fez uma pausa, com seu olhar movendo-se sobre seu
rosto, como se memorizasse cada característica dela. Ele voltou a
falar então, com palavras suaves como a brisa cálida e
perfumada.
— É bom ter você em casa. Parece que sempre estive à
espera de te ver de novo.
Fim.

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