// LIVRO

Jogando Com o Coracao.007Z

Jogando com o Coração

Renato Trevisan construiu uma reputação exemplar nos últimos anos, o que fez com que se tornasse uma referência no mercado financeiro da América Latina e um empresário de renome. Contudo, o prestígio sempre trazia consequências, e para Renato não foi diferente. A ausência na vida dos filhos e a rotina estressante que levava, fez com que ele acabasse aceitando a proposta de uma velha amiga da faculdade. A fusão entre as duas empresas oferece a ele uma chance de ter mais tempo de qualidade com os seus filhos, e Renato lutará para garantir que isso dê certo. Nathalia Gama se acostumou com uma rotina em meio ao caos, mas no último semestre da especialização, ela se viu obrigada a aceitar uma fusão inesperada no escritório que gerenciava — ciente de que aquilo desalinharia os planos que traçou para o seu futuro. E por mais que todos vissem aquela transação como um movimento assertivo, algo lhe dizia que parecia bom demais para ser verdade — e após um período de reestruturação para reerguer a firma, tudo o que ela não queria, era colocar o seu esforço em risco. No entanto, juntamente com a fusão, Renato trouxe uma nova rotina; novos hábitos e planos aos quais Nathalia teria que se adaptar para que a parceria funcionasse perfeitamente. O que os dois não esperavam era que a junção dos escritórios fosse ser essencial para entrelaçar seus destinos de maneira definitiva. Os vínculos que deveriam ser estritamente profissionais se tornaram a combinação perfeita entre a loucura e o proibido, e por mais que soubessem dos riscos que a relação traria para as suas carreiras, se esquivar do sentimento intenso que os dominava não parecia ser uma opção aceitável. Decididos a não fugir da paixão avassaladora, um lance de alto risco é feito e Nathalia e Renato precisam lidar com as consequências da aposta. Eles, que sempre prezaram pela carreira acima de qualquer coisa, acabam se aventurando por um caminho incerto, colocando o amor e as suas carreiras em xeque.

ATO I
APOSTAS
Pela primeira vez naquele dia, meus ombros relaxaram sobre o couro
do estofado e permiti que minhas costas afundassem na poltrona
confortável.
Cinco minutos.
Era apenas disso que eu precisava.
Trezentos míseros segundos em que meu cérebro não se dedicaria a
resolver os problemas de alguém, ou a escutar as queixas infantis de um dos
operadores, associados ou sócios.
Aspirei o ar, mantendo-o preso nos pulmões por alguns segundos,
antes de soltá-lo vagarosamente. Fechei os olhos na tentativa de aliviar a
ardência que incomodava minha visão, pressionei as pontas dos dedos nas
têmporas e massageei até sentir que uma parte de todo o estresse que me
acompanhou durante o expediente havia passado.
Contudo, meu desejado descanso não durou muito tempo.
Nunca durava.
Abri os olhos ao escutar a porta da sala abrir e virei o rosto na
direção, espreitando para observar a figura sorrateira que entrava em
silêncio. As luzes apagadas impossibilitavam que ela me visse de cara, e a
iluminação do prédio vizinho iluminava apenas a minha mesa; as persianas
desse lado estavam fechadas, fazendo com que o ponto em que eu me
escondia não passasse de um breu.
— O que houve? — Minha voz não passou de um ruído áspero ao
escapar dos lábios.
A mulher virou o rosto bruscamente em minha direção e xingou alto,
resmungando pelo susto. Ignorei-a por tempo suficiente para que eu
alcançasse o controle remoto e acendesse algumas lâmpadas, o bastante
para que não ficássemos na escuridão e para que meus olhos não ardessem
com a claridade repentina.
Minha cabeça parecia pesar uma tonelada e eu sabia que era por
conta da rotina insana que vinha levando nas últimas semanas. Não
lembrava de quando tinha sido a última noite em que dormi por mais de
quatro horas. Se dividisse essa informação com a minha mãe, Tatiana
largaria tudo e pegaria um avião direto para cá, apenas para fazer uma
intervenção.
Honestamente, não fazia ideia de quantos dias de repouso eu
precisaria para repor todas as noites em claro, mas tinha certeza de que uma
não seria o bastante.
— Pensei que já tivesse ido embora — murmurou Roberta,
abandonando o envelope no sofá à minha direita e se sentou.
Minha atenção recaiu no embrulho escuro, a logomarca de um dos
maiores escritórios de advocacia do país me permitiu descobrir o motivo da
sua invasão repentina e, instintivamente, meus ombros enrijeceram quando
percebi qual seria o tema da nossa conversa.
— Tenho uma reunião com a Maitê em meia hora.
Impulsionei o corpo para me levantar, temendo que não pudesse
completar o movimento apenas com um comando do meu cérebro, e me
aproximei do minibar. O cheiro de nicotina com canela se impregnou em
cada centímetro da sala, como acontecia sempre que Roberta me visitava.
Torci o nariz, aborrecida. Eu precisava de uma bebida forte antes de
iniciarmos a conversa que sabia que me tiraria dos trilhos.
Calmamente, servi mais duas doses de The Macallan com gelo antes
de retornar para o sofá e oferecer um copo para a Roberta.
Respirei fundo.
Uma… duas… três vezes.
Em um dia menos exaustivo, eu colocaria a garrafa sobre a mesa e
me esforçaria para argumentar sobre todos os prós e contras da escolha que
ela fez. Entretanto, não me senti disposta a permanecer discutindo sobre o
assunto sabendo que não venceria aquela briga.
Eu estava cansada.
Não só no físico, mas no mental e psicológico também.
Eu nunca admitiria aquilo em voz alta, mas me sentia um caco.
— Como andam as coisas na D.A? — perguntou, comendo pela
beirada.
Sentei-me na poltrona em que estava antes de ter a sala invadida, e
esmaguei os dedos livres na têmpora esquerda para aliviar a latência que
estava crescendo e embaçando a minha visão.
Minha cabeça explodiria a qualquer segundo.
— Nada de importante. Maitê está trabalhando na coleção de
primavera. — Dei um longo gole, apreciando a sensação da bebida
aquecendo a garganta. — Não precisa fingir que está interessada nas
excentricidades dela, Roberta… seja direta.
Ela deu um meio sorriso, endireitou os ombros e virou a bebida de
uma única vez, antes de empurrar o envelope na minha direção. Abandonei
o copo pela metade e estiquei a mão para alcançar o embrulho, demorando
mais tempo do que o necessário para romper o lacre e retirar o amontoado
de folhas que ele protegia.
Como se isso pudesse de alguma forma minimizar o desgosto que me
atingiria quando visse a notícia que ele carregava.
Lentamente, arrastei os olhos entre as linhas milimetricamente
reformuladas com as alterações que eu havia instruído.
Porque para completar a minha desgraça, era óbvio que eu precisava
ter sido a responsável por encontrar a melhor solução para o problema.
Um que eles sequer teriam notado se eu não tivesse insistido em ler o
contrato antes que Roberta assinasse o termo de compromisso. Talvez, se eu
não fosse tão intrometida e tivesse deixado que a minuta fosse assinada
antes de ser enviada ao advogado responsável, Roberta teria se dado conta
de como era insanidade entrar em uma fusão, dois anos depois da última.
A mesma em que seu antigo sócio retirou milhões da conta bancária
da firma; roubou clientes importantes e levou metade da equipe; deixando-a
com um escritório naufragando, uma reputação na lama e uma pilha de
processos para enfrentar sozinha.
O mesmo escritório que eu encontrei prestes a declarar falência, e que
passei cada maldito dia dos últimos dois anos dando meu sangue e suor para
reerguer o que havia sido destruído.
E ainda assim, minha opinião foi desconsiderada e mesmo sabendo
de todas as minhas ressalvas, Roberta iria adiante. Por pura ganância pelos
números.
Engoli a vontade de rir de desgosto ao ver como tudo ao que me
dediquei nesses anos tinha sido reduzido a dois dígitos no novo quadro
societário.
— Vinte por cento? — Arqueei a sobrancelha, erguendo o rosto para
encará-la.
Roberta não parecia contente em ter ficado com uma fatia tão
pequena, mas não era como se pudesse dizer que não sabia que isso
aconteceria, eu a avisei. Desde que invadiu a minha sala com um sorriso
estranho e uma garrafa do meu uísque preferido; noticiando que tinha
reencontrado com dois velhos amigos e que depois de um jantar, decidiram
estudar a possibilidade de uma fusão.
Ela sabia o que eu pensava e os motivos de não concordar com
aquilo.
Eu poderia argumentar que, não somente, tinha avisado, como seus
“amigos” foram muito generosos com a sua participação na sociedade — o
que na minha percepção era, no mínimo, muito suspeito. Afinal, eu
pessoalmente estudei cada extrato, relatório, posição e receita dos
envolvidos na negociação, e se fosse ser imparcial, a Roberta valia no
máximo quinze por cento.
Por pior que fosse, era assim que uma fusão funcionava; tudo o que
importava eram os números e a receita que esses dados geravam. Os longos
anos de amizade? Não valiam de nada. A quantia absurda de dinheiro
envolvido em uma transação dessas, fazia um filho trair a própria mãe.
O fato de um dos sócios ter tentado usar a negociação para passar a
perna nela, dizia muito sobre como esse tipo de operação funcionava.
— Foi o máximo que eu consegui negociar — disse a contragosto,
servindo-se com outra dose de uísque.
— E mesmo assim, você vai seguir adiante?
— Sim.
Respirei fundo, largando a cópia do contrato em cima da mesa de
centro e me levantando. Precisava dar uma volta para que os pensamentos
fluíssem melhor, antes que o cansaço me fizesse despejar toda a minha
frustração em cima dela.
— Ok.
— Ok? — Repetiu, engolindo uma risada sarcástica. — É tudo o que
tem para dizer sobre isso?
Obriguei-me a virar e fitar seu rosto, confusa com a sua pergunta.
— O que prefere que eu diga? Que é uma decisão equivocada? —
indaguei, apoiando as mãos no encosto do sofá branco em frente as enormes
janelas que cobriam a parede atrás de mim. — E que, apesar de insistir em
dizer que a minha opinião é valiosa, bastou que eu não dissesse o que você
queria escutar, para que me desse as costas e seguisse em frente com a
fusão?
Roberta apertou os olhos nos meus, surpresa com a minha irritação
repentina.
A verdade era que estava de saco cheio de pisar em ovos com ela.
Lidar com Roberta sempre me despertava uma frustração que
demorava tempo demais para passar. Se as coisas não fossem como queria,
ela simplesmente ignorava tudo e garantia que sua vontade prevalecesse.
E se eu tivesse que continuar fingindo que não estava vendo a enorme
furada em que estávamos entrando só para manter a nossa relação
confortável para ela, eu preferia arrumar as minhas coisas e ir embora. Me
recusava assistir tudo o que construí nos últimos anos desmoronar, porque
ela foi inconsequente e gananciosa.
— Eu tomei uma decisão, Nathalia — falou, chateada. — E vou para
casa ciente do que pode acontecer, e ainda assim, dormirei tranquila.
Não me dignei a responder, a latência na minha cabeça havia piorado,
e sabia que discutir com ela não me levaria a lugar algum.
Roberta fez uma escolha.
— É a sua empresa — declarei, apertando os dedos em volta do copo
de cristal, os cubos de gelo derreteram um pouco, mas nada que
atrapalhasse no gosto da bebida. — Faça como preferir.
A mulher acenou, me dando as costas para sair da minha sala como
se a nossa conversa nunca tivesse acontecido.
Apostaria o meu maior cliente na certeza de que na segunda-feira, ela
agiria como se nunca tivéssemos discordado sobre a fusão e que estava tudo
bem entre nós.
— Estou confiante, Nathalia… porque sei que se algo der errado,
podemos nos reerguer de novo. — Roberta parou perto da porta, segurando
a maçaneta e me olhando com aquele sorrisinho polido que eu tanto
detestava. — Tenho você ao meu lado, e sei que sempre estará na minha
retaguarda… e, a propósito, foi você quem me disse que eu deveria pensar
positivo, não foi?
— Boa noite, Roberta — soprei, incapaz de responder outra coisa.
Claro que ela estava confiante. Fui eu quem passou noites e mais
noites em claro, quem se dividiu entre uma especialização e a administração
de um escritório com mais de quatrocentos funcionários, e que ainda se
desdobrava para atender aos clientes dela quando sua agenda estava
apertada demais.
Talvez meu pai estivesse certo no fim das contas.
Eu precisava tomar cuidado com as pessoas para quem estendia a
mão, porque elas costumavam arrancar tudo no processo.
Respirei fundo, meus olhos se moveram para o celular que não
parava de vibrar em cima da mesa e me aproximei, reconhecendo o nome
da minha cliente e amiga na tela.
— Oi, Maitê.
— Vadia, por favor… não fique irritada com o meu atraso —
choramingou.
Pude ouvir o barulho dos seus saltos afiados ecoando no piso, e
afastei um pouco o celular para conferir o horário.
Ela estava vinte minutos atrasada.
— Fiquei presa em uma reunião com o designer e preciso ir até
Milão ainda essa noite, você se importa se remarcarmos?
Esfreguei a mão livre na lateral da calça e desbloqueei a tela do iPad,
verificando minha agenda online — apenas para confirmar que precisava
dar um jeito de fazer com que o meu dia passasse a ter vinte horas a mais.
— Tudo bem, Maitê… remarcamos quando você voltar para São
Paulo.
Joguei-me na poltrona, encarando a quantidade absurda de
compromissos amontoados no calendário.
— Dia difícil?
— Tão na cara assim?
Maitê riu, dispensando alguém e dando ordem para o motorista seguir
direto para o aeroporto.
— Você foi compreensiva demais… isso só me faz pensar que sua
cabeça já está mais para lá, do que para cá — disse, divertida. — Que tal
ao invés de remarcarmos a reunião no seu escritório, você me encontra em
casa e jantamos? Faz um tempo desde a última vez em que tivemos uma
pausa no meio dessa bagunça.
Sorri, encarando a tela e confirmando que até os meus finais de
semana foram destinados para assuntos do escritório.
— Claro, vou adorar.
— Ok! Se você não estivesse tão ocupada, eu te arrastaria para ir
comigo. Quando foi a última vez em que viajou?
Afundei o corpo na poltrona, analisando a sala que estava se tornando
praticamente a minha segunda casa, e não foi difícil perceber que a última
vez em que consegui uma folga fazia tanto tempo que eu sequer lembrava.
A viagem rápida para encontrar meus avós e meus pais nas festas de
fim de ano contava como descanso, mesmo que tivesse durado menos de
dois dias? Tenho certeza que não.
Não foi difícil mudar de assunto com a Maitê, e ela rapidamente
explicou o motivo da viagem repentina. O seu novo fornecedor estava
dando alguns problemas, e ela preferia resolver a situação pessoalmente a
enviar um representante.
Não podia criticá-la por isso, uma vez que eu estava presa nessa
avalanche de merda justamente por querer abraçar o mundo sozinha. Tudo
porque sentia que ninguém era capaz de fazer as coisas melhor do que eu.
Esse era o problema de ser extremamente perfeccionista.
Minutos depois, desliguei a chamada com ela e aproveitei o tempo
livre para colocar alguns relatórios em dia. No entanto, por mais que
tentasse muito focar nas tarefas, hora ou outra, meus olhos vagavam para o
envelope em cima da mesa de centro do outro lado da sala.
Fisguei o lábio inferior entre os dentes e ignorei a forma ansiosa que
meus dedos batucavam contra a madeira.
Isso não é um problema meu…
Mas e se…
Ciente de que não conseguiria ir embora sem dar uma última olhada
naquele documento, busquei o maldito e o joguei em cima dos relatórios
que eu deveria estar examinando.
Se fosse um pouco menos estúpida, deixaria que Roberta visse por
conta própria a furada que estava se metendo, mas não… eu precisava
bancar a salvadora do mundo!
Ignorei o celular vibrando, afinal, para qualquer efeito eu estava em
reunião com Maitê. E com atenção redobrada, meus olhos correram por
cada linha do contrato e do termo de partnership que havia sido
reformulado pelo advogado que era amigo dos outros dois sócios. Para a
minha frustração, Marc tinha feito todas as alterações que sinalizei e o odiei
por ser tão competente no que fazia.
Meus olhos recaíram novamente para a divisão societária, sem
conseguir ignorar o gosto amargo na garganta ao ter que engolir aquilo.
Renato Monteiro Trevisan: 43.000.000 quotas
Leandro Barbieri Salazar: 32.000.000 quotas
Roberta Montes Faroni: 20.000.000 quotas
Guilherme Bastos: 3.000.000 quotas
Tesouraria: 2.000.000 quotas
Não sei ao certo quanto tempo fiquei encarando os números e
cláusulas que asseguravam onde os direitos como sócios começavam e
terminavam, mas quando me dei conta de que aquelas condições não
mudariam, guardei as folhas de volta no envelope e coloquei no cofre da
minha sala.
Cansada, optei por terminar de resolver as pendências do dia em casa,
e enquanto me preparava para descer, chequei algumas mensagens e
respondi apenas a Bianca — porque na correria do dia, acabei esquecendo
completamente de ver como ela estava.
Menos de dez minutos depois, atravessei a garagem do meu prédio,
acenando para um senhor simpático que sempre esbarrava comigo naquele
horário.
Todos os movimentos seguintes foram automáticos, meu cérebro
parecia estar se desligando gradativamente e qualquer sinapse mais
complexa era impossível de ser concluída.
Quando me dei conta, estava no hall do meu apartamento e o quadro
bizarro com o rosto do Leonardo DiCaprio segurando uma nota de dólar —
em alusão ao filme O Lobo de Wall Street —, me encarava de volta.
Eu odiava aquela pintura em aquarela, mas como perdi uma aposta
com meu pai, a minha punição era ser a guardiã daquele presente cafona
que ele ganhou de um cliente. Não era nem pelo DiCaprio. O problema era
que a pintura berrante me incomodava demais, destoava de toda a
decoração daquele espaço e nem mesmo os milhares de dólares que a peça
de arte valia, fazia com que sua presença se tornasse menos desagradável.
Estava prestes a me desfazer da roupa no meio do caminho, ansiando
por afundar o corpo na banheira e aproveitar do silêncio na companhia de
uma boa garrafa de vinho, quando parei no meio do corredor. Larguei a
chave do carro e minha bolsa no aparador, buscando pela origem da música
baixa que ecoava.
O elevador só permitia a subida de pessoas com uma impressão
biométrica autorizada e senha, e poucos tinham acesso a isso. Então, eu
sabia que não havia motivo para pânico.
Busquei meu celular, verificando as mensagens para saber se meus
pais avisaram de alguma visita ou se um dos seguranças tinha vindo para
fazer a checagem de rotina, mas antes que entrasse no aplicativo para
consultar a senha usada, meus olhos repousaram no homem
extraordinariamente lindo do outro lado da ilha.
Ele usava apenas uma camiseta preta de algodão, os músculos bem
definidos nos braços marcavam a peça e a gola V me permitia vislumbrar o
peitoral malhado, fruto da rotina obsessiva na academia. O cabelo preto
contrastava com a pele branca e eu odiava o quanto ele era bonito sem
precisar de esforço. Os olhos grandes e cor de avelã costumavam ficar
verdes quando expostos à claridade, o que realçava ainda mais sua beleza.
Mesmo com a barba por fazer, o maldito conseguia ficar lindo em um nível
quase transcendental.
Tê-lo como melhor amigo era uma benção e uma desgraça na mesma
proporção. A quantidade de garotas que se aproximaram e fingiram querer
ser minhas amigas, apenas para me usar para chegar nele, era digno de
entrar no livro dos recordes.
E eu odiava isso. Detestava me sentir um meio para um fim.
Aquela era a história da minha vida desde que nasci.
Um meio para alcançar o magnata dos investimentos.
Um meio para alcançar o cara mais cobiçado de Manhattan.
Precisei aprender a desconfiar de cada pessoa que se aproximava de
mim e mesmo após aprender a filtrar, ainda tinha a sensação de que as
pessoas só gostavam de mim porque era conveniente.
— Você poderia ter me avisado que estava na cidade — comentei,
recostando o corpo no pilar e o olhando com alívio genuíno.
O meio sorriso prepotente que ele deu trouxe um acalento que apenas
o meu melhor amigo era capaz de proporcionar.
— Considere uma surpresa — disse, limpando as mãos. Ele pegou
uma taça de cristal e enquanto se aproximava, me serviu um pouco de
vinho. — Eu estava por perto e decidi fazer uma visita.
Sorri, sabendo que não era bem assim que as coisas funcionavam
com ele. Aceitei a taça e deixei um suspiro escapar dos meus lábios quando
depositou um beijo em minha testa, antes de voltar para o que estava
fazendo.
— Perto… onde?
— Medellín. — Deu de ombros, tranquilo.
Bom, levando em consideração nosso histórico… até que era perto.
— Foi ver meu pai?
— Precisei levar alguns documentos para ele assinar.
Franzi o cenho.
— E desde quando você carrega documentos para ele? — perguntei,
sentando-me na banqueta e o fitando com atenção.
Antônio ergueu os olhos do suco de limão siciliano que preparava e,
sem disfarçar, esquadrinhou o meu rosto. Ele não escondeu o
descontentamento com o que encontrou.
— Bianca me disse que você estava com o humor péssimo, que não
come direito há dias e não dorme também — falou, sério.
Quase sorri ao me dar conta de como ele sempre assumia o cargo de
irmão mais velho quando queria me dar bronca. Ignorando seu olhar de
repreensão, bebi um gole do vinho; fechei os olhos e soltei um gemidinho
ao sentir o gosto suave.
Era disso que eu precisava para o meu dia ficar melhor.
Antônio esperou pacientemente que eu terminasse de beber aquela
taça para servir mais um pouco.
Encarei-o, curiosa.
— Então, você e Bianca estão fofocando sobre mim agora?
Levantei-me e caminhei para a lavanderia ao lado da cozinha, me
desfazendo da blusa que usava e permanecendo com o sutiã preto de renda.
Abandonei os saltos e meus pés agradeceram o conforto do piso morno,
enquanto eu retornava para a cozinha e via Antônio colocar algo no forno.
— Nós cuidamos dos nossos, bebê — falou simplesmente e sorri,
agradecida. — E de toda forma, eu viria de um jeito ou de outro. Você não
responde minhas mensagens há dias.
Revirei os olhos para o seu drama.
— Dois dias.
— Muito tempo — frisou, dando um peteleco na minha testa. —
Agora vá tomar banho, o jantar fica pronto em vinte minutos.
Assenti, bebendo o restante do líquido antes de dar as costas para ele
e correr para o quarto.
Depois de responder a Bianca, deixei o celular no quarto e desci para
a sala de jantar, onde Antônio arrumou a mesa apenas para nós dois. Não
era um cômodo da casa que usava com frequência, na maior parte do tempo
éramos apenas eu e a Bianca — quando ela não saía com alguém ou ficava
com a mãe e irmã.
Era um apartamento muito grande para uma única pessoa, mas como
eu não costumava passar muito tempo em casa, não me importava em
frequentar todos os cômodos.
— Como anda a abertura de capital da…
Antônio me interrompeu.
— Shh… sem falar de trabalho — repreendeu, obrigando-me a sentar
na cadeira e como se eu fosse uma criança, começou a me servir. — Desliga
essa cabecinha workaholic um pouco, tudo bem? É noite de sexta-feira.
— Mas…
Seu olhar me calou e como uma boa garota, deixei que Antônio
fizesse o que queria. Minha ajuda foi recusada todas às vezes em que a
ofereci e aguardei até que ele retornasse para a mesa e se sentasse comigo.
Antônio era o meu melhor amigo desde… sempre.
Nunca houve um momento da minha vida em que ele não estivesse
ao meu lado. Quando eu nasci? Antônio segurava a mão da minha mãe,
porque meu pai estava em um avião retornando às pressas de Pequim e eu
decidi nascer antes do previsto. Quando precisei retirar o apêndice? Antônio
segurou a minha mão e me distraiu enquanto o anestesista me dopava.
Quando terminei um namoro de dois anos e fui largada nas Ilhas Turcas na
véspera do réveillon? Antônio saiu de Tóquio e abandonou uma orgia de
três dias para ficar comigo.
Era isso o que representamos para o outro, um abrigo e um ombroamigo sempre que fosse preciso. Não importava aonde ou com quem
estivéssemos, estaríamos ali. Mataríamos e morreríamos pelo outro, e não
percebi o quanto precisava disso, até vê-lo na minha frente.
— Você pretende ficar quanto tempo na cidade? — indaguei,
tentando esconder o nó que se instalou na minha garganta.
Antônio ergueu o olhar para mim e deu um sorriso enviesado.
— Quanto tempo você precisar, bebê.
— E seus compromissos?
— Nada que eu não possa resolver daqui.
— Sabe que não é do trabalho que estou falando — retruquei,
beliscando um damasco da salada.
Antônio riu baixo, balançando a cabeça vagarosamente, como se
estivesse com preguiça de responder minha pergunta.
— Coma, bebê.
— Mas…
— Vou precisar ligar para o seu pai e contar como anda a rotina da
menininha dele? — ameaçou, arqueando a sobrancelha.
Fiz bico e isso arrancou outra risada dele.
— Chato.
— Mimada.
Rolei os olhos.
— E o Luke?
— Vai passar alguns dias com a minha mãe em Vermont —
respondeu, nos servindo outra taça de vinho. — Ele sente saudades da
madrinha.
A culpa me atingiu duramente.
Eu estava ausente em tantas áreas da minha vida desde que essa fusão
caiu no meu colo, que sequer me passou pela cabeça que eu não via meu
afilhado há semanas.
— Prometo que assim que tudo isso acabar, levo ele para onde quiser.
— Não faça esse tipo de promessa. Na última vez que a fez, você nos
colocou em um safari embaixo do sol de quarenta graus.
Estremeci, ainda lembrava perfeitamente de como meu afilhado
decidiu que queria ir para um safari na pior época do ano, onde as
temperaturas chegavam em quase quarenta e sete graus, e não importava a
potência do ar-condicionado do hotel… as noites eram infernais.
— Mas pense pelo lado positivo, ele teve uma experiência única.
— Claro… ele nunca vai esquecer que uma girafa roubou a bolsa da
madrinha dele, e que ela considerou uma boa ideia perseguir o animal para
recuperar a peça.
Ri, a memória daquele fim de semana sempre me arrancava uma boa
gargalhada.
— Proporcionamos um ótimo entretenimento para a criança.
— Ou alguns traumas para ele tratar futuramente — brincou,
piscando para mim antes de me atualizar de tudo o que aconteceu na sua
vida nos últimos dois dias.
Isso foi bom porque durante todo o jantar, nada do que vinha me
perturbando nas últimas semanas arriscou disputar com Antônio pela minha
atenção.
Depois de colocarmos tudo o que usamos na lava-louças, voltamos
para a sala de estar. Antônio acendeu a lareira e abriu a nossa quarta garrafa
de vinho naquela noite chuvosa.
Joguei-me no sofá macio e minhas costas agradeceram o descanso.
Meu corpo vibrou quando Antônio capturou meus pés e pressionou seus
dedos com habilidade nos pontos de tensão.
— Sua cabeça ainda está doendo? — perguntou, preocupado.
— Como sabe?
— A veia saltando na sua testa denunciou — disse, sem parar de
massagear meu pé esquerdo enquanto eu bebericava o vinho. — Como
andam as coisas no escritório?
— Roberta assinou com eles.
— Então, é oficial — declarou, trazendo à tona a verdade que eu
estava evitando enfrentar. — O que você vai fazer sobre isso?
— Honestamente? Não faço ideia.
Um vinco surgiu em sua testa, seus dedos pararam de fazer a pressão
e as íris avelãs me fitaram com uma atenção meticulosa.
— Não faz ideia? Desde quando?
Uma risada sem resquício de humor escapou pelos meus lábios.
— É complicado…
— Não te ofereceram nada? — A indignação em sua voz era
palpável, e eu compartilhava desse sentimento.
Não era como se eu esperasse que Leandro, Guilherme ou Renato
tivessem consideração por mim e pelo meu trabalho no escritório nos
últimos dois anos. Eles não me conheciam, o máximo de interação que
tivemos havia sido através de e-mails.
Mas eu esperava alguma coisa da Roberta.
Afinal, ela era minha mentora.
Investi tempo, conhecimento, energia e muito dinheiro naquela firma.
E ela não apenas ignorou a minha opinião, como permitiu que eu fosse
reduzida a uma mera funcionária entre todos os outros.
— Foi ingenuidade da minha parte ter esperado reconhecimento, né?
— Miei, após explicar como ficou a repartição da empresa.
Antônio apertou a mandíbula, abandonando sua taça e voltou a
massagear meu pé, pressionando os pontos doloridos pelo uso constante de
sandálias altas.
— Não, não foi. Você veio de um lugar que recompensa a lealdade…
— disse, virando-se para me observar. — É normal que espere que eles
ajam do mesmo jeito que você agiria.
Eu sabia que ele estava sendo gentil. Antônio nunca era dos mais
cuidadosos com as palavras; sua fama era justamente de ser um babaca
imbatível, e ser sua amiga raramente me poupava do seu sarcasmo. Mas eu
agradeci que ele estivesse sendo um pouco cuidadoso naquele momento.
— Eu me sinto uma idiota.
— Imagino… — Antônio franziu o cenho, absorto. — Por que não
volta para casa?
Com casa, ele queria dizer: a Alpha Capital Investiments Group — a
gestora do meu pai. O lugar do qual fugi, porque não importava o que
fizesse, sempre me viam como a filha do Miguel.
— Ainda não — resmunguei, tateando o estofado para alcançar o
controle da televisão e passeando pelos programas disponíveis. — Podemos
assistir e amanhã conversamos sobre isso? — pedi.
Antônio concordou, apagando a luz pelo comando de voz e deu início
a uma maratona da nossa sitcom favorita, apenas para preencher o silêncio.
O meu lance fez com que a bola atravessasse a rede em uma curva
alta, alcançando o outro lado da quadra antes de ser rebatida por Antônio e
voltar em minha direção com força.
Minha respiração se agitou no peito e meus dedos apertaram o cabo
da raquete, antes de golpear a bola novamente e por um pequeno descuido
do meu oponente, um ponto ser marcado ao meu favor.
Sorri, ouvindo o alerta de que aquela partida havia se encerrado e
ergui os braços, vitoriosa.
Jogar contra o Antônio sempre era desafiador e fazia com que a
vitória tivesse um gosto mais saboroso.
— Você melhorou o seu forehand[4] — elogiou, arrastando os dedos
no cabelo preto e deu um meio sorriso, soberbo. — Está quase no meu
nível.
Rolei os olhos, ignorando seu comentário pretensioso e aceitei a
toalha que um funcionário do clube ofereceu, enquanto caminhávamos para
a pequena arquibancada disposta para quem quisesse assistir aos treinos.
Bianca estava distraída no seu celular, os fios tingidos em um tom de
loiro perolado foram enrolados no alto da sua cabeça, presos por uma
caneta que ela encontrou na minha bolsa. O top preto que usava deixou seus
ombros e braços expostos, revelando todas as suas tatuagens. Isso não foi o
suficiente para livrá-la do calor que parecia estar sentindo, e quando os
olhos castanho-escuro vieram em minha direção, seu descontentamento
ficou explícito.
— Por que justo hoje que decidi vir comportada, o tempo decidiu
abrir? — reclamou, agitando as mãos em frente ao rosto para amenizar o
calor.
Antônio retirou a camiseta polo e jogou em cima dela, que não
demorou para estapeá-lo no ombro e xingar todas as suas gerações passadas
e futuras, o que não o incomodou nenhum pouco. Se precisasse perturbá-la
todos os dias para fazer com que Bianca saísse da concha, era exatamente o
que Antônio faria, sem hesitar.
Aproveitei a toalha que havia acabado de usar para forrar o degrau ao
lado dela e me sentei, buscando pelo celular, para verificar se um cliente
específico tinha respondido o meu e-mail sobre a troca de portfólio.
Infelizmente, meus amigos eram péssimas companhias e antes que eu
apertasse o ícone do aplicativo, o celular foi arrancado da minha mão, e o
olhar enfezado de Bianca fuzilou meu rosto.
— Sem trabalho, sua obcecada.
— Não é trabalho, eu só…
— Não quero saber — retrucou, enfiando o aparelho dentro da sua
bolsa e se levantou, olhando para mim com firmeza. — O escritório não vai
desmoronar se você descansar por um dia, ok? Os clientes sobreviverão!
Olhei para Antônio, vendo que ele estava respondendo um e-mail de
trabalho e voltei para Bianca, como se aquilo fosse autoexplicativo. Foi o
suficiente para que ela repetisse o movimento anterior com ele, que xingou
alto quando o celular foi arrancado de sua mão antes que conseguisse
concluir o envio.
— Preciso boletar uma ordem, loira. — Gesticulou com os dedos
para que ela devolvesse o aparelho, de nada adiantou.
— Falta escrever mais alguma coisa? — Bia indagou, recebendo uma
resposta negativa do meu melhor amigo e isso a fez sorrir. Seus dedos
voltaram para o aparelho e ela nos encarou. — Pronto, enviado.
— Pensei que o combinado fosse deixar ela fora do celular — ralhou
Antônio, tal qual um idoso.
— E se você estiver trabalhando também, ela vai usar isso como
argumento para continuar com o celular.
— Vocês podem parar de falar sobre mim como se eu não estivesse
aqui? — pedi.
— Não. Cala a boca! — disseram em uníssono.
Bufei, levantando-me e deixei os dois sozinhos para dar uma volta no
clube. Eu precisava de um banho gelado com urgência.
Bianca estava terrivelmente certa quanto ao clima, depois de um fim
de ano com temperaturas que não passavam de 20º, eu precisava confessar
que não estava pronta para voltarmos para a casa dos 30º. O pior era que
sequer passava de 10h00, ou seja, tendia a ficar ainda mais quente.
Durante todo o trajeto para o vestiário, acompanhei a discussão de
Bianca e Antônio sobre o nosso cronograma do dia, uma vez que minha
agenda do fim de semana havia sido dominada pelos dois que tinham uma
preocupação desnecessária com a minha rotina de trabalho.
Tinha total ciência de que estava sobrecarregada, mas o que eu
poderia fazer quanto a isso?
A resposta era simples, nadinha.
Fazia parte da rotina de qualquer um que trabalhava no mercado
financeiro, e eu não soltaria os pratos, porque se o fizesse, seria o mesmo
que confirmar para todos que não dava conta do trabalho.
Não permitiria que as suspeitas sobre mim se confirmassem.
Eu conseguia administrar o escritório, atender os meus clientes e da
Roberta, gerir dezessete equipes internas na empresa, concluir minha
especialização, preparar minha inscrição para o estágio de outono na
Bentley & Hathaway, auxiliar na conclusão da fusão indesejada e ainda
manter uma saúde mental estável.
Só precisava de cinco minutos de silêncio para colocar os meus
pensamentos e as tarefas intermináveis em ordem.
Depois de tomar uma ducha, Bianca me acompanhou até o salão de
beleza do clube e aproveitei para roubar meu celular de sua bolsa e verificar
as mensagens pendentes.
O número de conversas sem respostas me angustiava e não esperava
que meus amigos entendessem a carga que eu tinha nos ombros, mas
facilitaria muito se não me tratassem como se fosse louca.
— Você conversou com a Roberta ontem? — perguntou Bianca,
sentando-se na cadeira ao meu lado, enquanto Janine ensaboava meu
cabelo.
— Ela comentou sobre a fusão, por quê?
— O aniversário dela está chegando… acho que vai fazer um almoço
no apartamento só para os mais próximos — explicou, deitando a cabeça no
suporte do lavatório e não demorou para que um funcionário estivesse
massageando seu couro cabeludo, assim como Janine fazia comigo. — Não
sei o que dar de presente.
Acedi, desviando o olhar para o teto perfeitamente branco, sentindo
as pálpebras pesarem conforme os dedos de Janine esfregavam minha
cabeça.
— Apareça e vai ser um ótimo presente — falei simplesmente.
Meus olhos recaíram no aparelho entre meus dedos, notando que
mesmo respondendo algumas mensagens, o número de conversas pendentes
nunca diminuía, ao contrário, apenas aumentava.
Puxei o ar lentamente, expirando aos poucos e senti a atenção das
duas mulheres que mais me conheciam nesse mundo – depois da minha
própria mãe –, se concentrarem em mim.
— Tudo bem, Nath? — perguntou Janine, preocupada.
Estava angustiada com a quantidade de coisas que tinha para resolver.
A sensação que eu tinha era como se nunca tivesse tempo suficiente para
resolver tudo, e me sentia péssima por isso.
— Tudo — soprei, forçando um meio sorriso que não pareceu
convencê-la.
Janine me conhecia desde criança.
Quando estávamos no Brasil, meu pai costumava marcar suas
reuniões no clube para que eu não ficasse sozinha em casa, e era Janine
quem se dedicava a me distrair com algumas traquinagens que
aprontávamos no meu cabelo.
Ainda me lembrava da expressão de choque que cobriu o rosto de
Miguel quando veio me buscar e me encontrou com os fios tingidos de rosa,
às vésperas de um evento da família real espanhola.
Janine se tornou uma boa amiga e era a única pessoa que eu confiava
para mexer no meu precioso cabelo, não importava em que lugar do mundo
estivesse, era atrás dela que corria quando precisava. Então, era normal que
ela soubesse reconhecer quando eu estava incomodada com algo.
— É tão irritante como você sempre dá essa resposta — resmungou
Bianca em relação a sua pergunta anterior, ela se sentou na cadeira com
uma toalha enrolada nos fios. Seus olhos escuros espreitaram meu rosto e
ela suspirou. — Não vai cair o mundo se disserem o que querem de
presente, sabia?
Sorri, achando graça e escutei Janine rir baixinho.
— Não preciso de presentes, Bia.
— É, eu sei que se quiser alguma coisa é só estalar os dedos que ela
aparece na sua frente, mas… é legal ajudar a amiguinha a ser uma boa
amiga, sabe? — Fez beicinho, dramática.
Rolei os olhos, bloqueando o celular e deixando para resolver as
mensagens acumuladas em outro momento. Janine sinalizou que deixaria o
produto agindo no cabelo por alguns minutos e se afastou, nos deixando a
sós.
— Dê algo que ela usa com frequência… — sugeri.
— Cigarros? — perguntou, divertida, me arrancando uma risada. —
É o que ela mais usa.
— Os adesivos de nicotina não funcionaram?
— Não, ela nem abriu a caixa. Deixei um documento na sala ontem, e
percebi que ainda está no mesmo lugar… nem saiu do embrulho.
Torci os lábios, pensativa.
Bianca havia me feito a mesma pergunta na semana do Natal e como
Roberta tinha comentado que estava planejando parar de fumar, achei que
seria um bom presente… já que se dependesse de Roberta dar o primeiro
passo, certamente nada mudaria.
Pelo visto, o pequeno incentivo ainda não tinha surtido efeito.
— Hum… ainda podemos pensar um pouco, é só no fim do mês.
— Pensei em férias… ela está saindo com alguém?
— Não faço a menor ideia.
— Vocês são mais próximas.
— Não nesse nível. — Suspirei, vendo de canto de olho que Janine se
aproximava para enxaguar o meu cabelo. — Sabe melhor do que ninguém
como ela é… complicada.
Bianca apertou os lábios, pensativa, depois meneou a cabeça
concluindo o mesmo.
Roberta e eu nos conhecíamos há pouco mais de dois anos, e ela
ainda era uma incógnita. A sensação que eu tinha era de que mesmo quando
estava abrindo uma parte de sua vida para mim, ela ainda escondia mais
coisas e eu nunca ultrapassava a superfície.
Era… estranho.
Compreendia que ela era mais retraída e desconfiada, conhecia sua
carreira e entre alguns goles de uísque e vinho, consegui descobrir um
pouco mais de sua origem…, mas se alguém me perguntasse se a conhecia?
Certamente, seria incapaz de confirmar.
Conhecia a sua rotina, seus modus operandi no trabalho, sua filha e a
sua mãe — por quem eu tinha um verdadeiro apreço e aprendi a considerar
como parte da minha família nos últimos meses. Mas isso não amortecia a
sensação de que quando olhava para ela, Roberta era uma completa
desconhecida.
Tudo o que eu sabia, era o que ela me permitia vislumbrar. E muitas
vezes precisava refletir se estava lidando com sua verdadeira essência ou
com um dos personagens que criava para agradar os seus clientes. Em
alguns momentos, era difícil distinguir com qual alter ego estava lidando.
Nos dávamos bem nos negócios — ou ao menos costumava ser assim
antes da fusão entrar em pauta. Segundo Roberta, eu era a pessoa em quem
mais confiava… só que se eu fosse ser franca, não sentia que era realmente
assim que ela se sentia.
Ela confiava mesmo em mim? Eu não apostaria nisso.
— Acho que vou comprar alguma quinquilharia de papelaria… é o
que ela gosta — disse Bianca, atraindo minha atenção enquanto Janine me
guiava para a cadeira em frente ao espelho que cobria toda a parede onde
ficava o balcão. — É mais fácil dar presente para você.
Arqueei a sobrancelha, virando na sua direção com curiosidade pelo
comentário repentino.
— Não quero presentes.
— Pau no seu cu, princesa.
Ri fraco, balançando a cabeça e vendo uma senhora olhar feio na
nossa direção, como se o simples fato de Bianca ter dito um palavrão
pudesse ser um crime.
Revirei os olhos, satisfeita em saber que minha amiga não se
importava mais em se controlar quando estávamos dentro do Niké. Nas
primeiras vezes em que a trouxe para ficar comigo, ela sempre parecia estar
a um passo de escavar um buraco no gramado para se esconder, e quando
falava, eu precisava me aproximar dela para escutar os miados que
escapavam dos seus lábios.
No entanto, isso felizmente havia mudado e depois de alguns anos,
ela finalmente conseguiu se soltar e deixar escapar as coisas que passavam
pela sua cabeça, sem medo da censura.
Era uma vitória.
Um pigarro soou, atraindo nossa atenção e meus olhos se desviaram
de Bianca para o reflexo de Ofélia no espelho, seus braços cruzados em
frente ao corpo e o queixo erguido, cheia de soberba.
— Algum problema, Sra. Ofélia?
— Seria um grande incômodo que as senhoritas tivessem um pouco
mais de cuidado com a forma como falam aqui dentro? — indagou, e suas
narinas inflaram em clara irritação.
Senti o olhar de Janine em cima de mim, assim como a minha amiga
que não moveu sua atenção para a esposa do senador do estado. Por algum
motivo, Ofélia insistia em cismar com a presença de Bianca no clube e
sempre tinha algum pretexto para implicar. Minha amiga não falou alto,
tanto que as outras pessoas no salão sequer prestaram atenção na conversa,
mas Ofélia não deixaria isso de lado porque era o que fazia sempre.
— O que exatamente a senhora não gostou? — Usei de toda a minha
educação para manter o tom de voz ameno, ainda que aquela mulher não a
merecesse.
Quando os olhos verdes desviaram do meu rosto e se moveram para
Bianca que estava fingindo verificar suas mensagens, pigarreei e trouxe sua
atenção de volta para mim, sentindo o sangue esquentar.
— Sugiro que leve suas queixas ao Marcel. — Forcei um sorriso,
tamborilando meus dedos no forro de couro do apoio de braço, sem desviar
a atenção dela. — Garanto que ele vai te dar uma solução mais do que
satisfatória para o problema que tanto te aflige.
Ofélia estreitou os olhos, duas veias saltaram em sua garganta e ela
inspirou profundamente. Acompanhei o movimento de deglutição conforme
digeria a minha resposta com desgosto. Tínhamos lidado com aquilo no
passado e a mulher sabia exatamente qual seria a resposta do gerente de
filiação do clube.
Se eu estivesse em um dia ruim, poderia lembrá-la de que o motivo
dela frequentar o clube era meramente pelo fato de seu esposo ser o atual
senador do estado e, por isso, a administração abriu uma exceção para a
entrada deles. Se ela não tivesse a vantagem de estar de alguma forma
ligada aos políticos que frequentavam o clube, nunca passaria dos portões
que rodeavam a propriedade. Logo, não era tão superior a Bianca como
acreditava.
Mas eu não precisava fazer aquilo porque Ofélia tinha consciência de
que se fosse da minha vontade, bastava uma ligação e não importaria a
influência política do seu esposo, ela nunca mais pisaria nesse salão ou em
qualquer outro estabelecimento que pertencia ao Niké.
— Algum problema? — Jaque, administradora do espaço, veio em
nossa direção com um vinco em sua testa.
— Não — resmungou Ofélia, nos dando as costas e caminhando para
fora.
— O que ela queria?
— Encher a minha paciência — murmurei, dando de ombros,
indiferente. — O Ashford sabe das liberações que o Marcel fez para o
senador?
— Sim.
— Entendi — resmunguei, voltando para Bianca, que pareceu ficar
um pouco amuada, desconfortável pela situação desnecessária. — Se você
demonstrar que se importa com o que aquela mulher fala, ela vai continuar
implicando.
Bianca soltou o ar lentamente e bloqueou o aparelho, virando-se para
mim enquanto o rapaz começava a pentear seu cabelo.
— É fácil falar, você é sócia e cresceu com os donos desse lugar
jantando na sua casa… eu sou apenas a sua amiga.
— E isso te transforma em uma sócia tanto quanto qualquer um,
Bianca. — Rolei os olhos, endireitando a postura para que Janine pudesse
continuar trabalhando.
Bianca permaneceu quieta, e a conhecia o suficiente para saber que
continuaria remoendo a situação estúpida pelo restante do dia. Era sempre
assim. Eu conseguia ajudá-la a avançar alguns degraus para sair do fundo
do poço, comemorava a vitória… e bastava que uma pessoa que não
significava absolutamente nada na nossa vida dissesse algo, para que ela
retrocedesse.
— Por que não clareamos um pouco mais o seu cabelo? — O rapaz
perguntou para ela, atraindo sua atenção e Bianca encarou seu reflexo no
espelho.
— Ainda não… estou tentando me acostumar com esse tom.
— Loiro combina com você — comentou Janine, dando um sorriso
terno na sua direção e isso a relaxou um pouco.
Era bobeira que ela se deixasse abater pela Ofélia, todos no clube a
adoravam e sempre a tratavam com muito respeito e carinho, e eu não
permitiria que uma única pessoa a fizesse se sentir desconfortável em um
lugar que frequentava há muito mais tempo.
Nos minutos seguintes, mantive-me ocupada e distraída, ouvindo a
conversa animada dos três faladores. Eles discutiam uma notícia recente
sobre uma atriz que estava namorando um jogador de futebol conhecido por
sua reputação de ser um babaca mulherengo.
Vez ou outra, murmurei em resposta apenas para me manter dentro do
diálogo, mas, minha atenção estava no turbilhão de assuntos pendentes que
eu tinha que resolver, antes que tomassem meu celular novamente.
Na manhã de domingo, assim que as portas do elevador se abriram no
meu andar, escutei as risadas que vinham de algum lugar dentro do
apartamento.
Abandonei a mochila de treino no armário da lavanderia e atravessei
o espaço, procurando pelos hóspedes responsáveis por preencher o silêncio
habitual e os encontrei no terraço, aproveitando a manhã quente.
— Bom dia, raio de sol — cantarolou Bianca, deixando a sua caneca
em cima do apoio e usei a mão para proteger os olhos da claridade
repentina.
— Estávamos falando sobre você.
Olhei para Antônio, reconhecendo que diferente da Bianca que bebia
chá, ele estava na metade da garrafa de vinho.
— Falando mal?
— Sempre. — Bianca estalou a língua, espalmando o espaço ao seu
lado para que eu me sentasse.
Ainda sentia as pernas tremendo devido ao treino de inferiores, meu
personal não tinha pegado leve e eu sabia que sentiria os músculos
doloridos em breve.
— Novidade. Eu dou um lugar para dormirem… e ganho o quê?
— Dois melhores amigos que te aturam, mimadinha — retrucou
Antônio, jogando uma almofada em minha direção e ergui o dedo do meio.
— Bianca estava falando sobre como acha que você deveria transar.
— Que lindos. — O sarcasmo foi inevitável. — Desde quando minha
vida sexual entrou em pauta para discussão?
— Desde que você parou de se divertir para administrar uma firma
que está pouco se importando para o que você pensa — falou Antônio, sem
qualquer gentileza.
Estava demorando…
Virei o rosto em sua direção, sentindo a chateação recair novamente
sobre meus ombros ao constatar que iriam me obrigar a falar sobre aquilo.
Tentei fugir da conversa durante todo o fim de semana, mas Antônio
precisava voltar para Nova Iorque na manhã seguinte e não me deixaria
sozinha sem ter certeza de que nenhuma pauta ficou de fora.
— Ok.
— É tudo o que tem a dizer? — indagou Bianca, preocupada.
— O que querem que eu diga? — Suspirei, erguendo os pés para
cima do estofado e afundando as costas nas almofadas macias.
Uma taça de vinho foi servida e colocada na minha mão pelo meu
melhor amigo que me observava meticulosamente, como se estivesse
pronto para pegar algo escondido nas entrelinhas.
— É uma merda. Mas eu sabia que seria assim, não é? — Olhei para
os dois de relance, esperando que dissessem que eu havia sido estúpida. —
É o escritório dela, a decisão final é dela.
— Isso não te impede de ficar chateada.
— Não estou chateada. É só que…
— Isso foi traição, caralho — disse Antônio, roubando as palavras
que eu estava evitando dizer em voz alta. — Você não quer falar, então, eu
digo por você. Ela teve a chance de negociar essa fusão por sua causa, a
RCI[5] estava prestes a declarar falência quando as duas se conheceram. Foi
você quem investiu na contratação de todos os funcionários que ela se gaba
por ter, quem custeou a operação por um ano inteiro do próprio bolso
enquanto ela cuidava dos processos que recebeu…
— Eu sei.
— Então, pronto. Use as palavras certas, não fica dourando a pílula
— disse, com a sua impaciência e rispidez habitual. — Isso nunca
aconteceria na Alpha.
Meus ombros retesaram e apertei os dedos em volta da taça.
— Eu não estou na Alpha, esqueceu?
— Não, eu não esqueci — rebateu, endireitando os ombros e me
olhando duramente. — Mas a Nathalia que eu conheço nunca deixaria que
dessem uma rasteira dessas nela e ficaria calada.
— O que você quer, Antônio? — bufei, estressada. — Não vou exigir
uma posição no escritório que reergui. Ela deveria ter feito isso sem que eu
precisasse pedir! Se não fosse pela merda da consideração, que fosse pelos
meus números. Eles são maiores do que qualquer outro sócio sênior.
Senti o olhar da Bianca dançando de um para o outro, como se
estivesse tentando decidir qual era o melhor momento para dizer alguma
coisa, sem que se perdesse na nossa pequena discussão.
— Querem que eu diga que me sinto a pessoa mais estúpida do
mundo por achar que ela tinha por mim, a mesma consideração que tenho
por ela? — perguntei, arrumando a coluna de forma mais ereta. — Porque é
assim que me sinto, e soltar os cachorros em cima dela não vai mudar a
decisão que tomou.
Bianca pigarreou, atraindo nossa atenção antes que Antônio falasse
algo. Viramos o rosto para ela e seus dedos tamborilaram na porcelana da
caneca, receosos.
— A decisão dela não muda, amiga…, mas a forma como você vai
responder ao que aconteceu, sim — disse, contida.
— Como assim?
— Você vai aceitar calada e o que acontece depois? Eles vão fundir
com outro, depois mais um… e você? — indagou, pensativa. — Onde você
vai ficar no fim das contas?
Olhei para Antônio, vendo que ele concordava com o comentário que
Bianca ainda não havia feito em voz alta, mas que era bem óbvio. E para
garantir que eu entenderia, meu amigo me encarou sem qualquer empatia e
questionou:
— Se ela não te deu um lugar na mesa agora, por que faria isso
depois?
Ela não faria.
Eu sabia melhor do que ninguém que o melhor momento para uma
movimentação desse tipo, era durante um reajuste geral do escritório. Se
passássemos por mais uma fusão, os outros sócios teriam exigências que
pesariam mais na negociação e qualquer outra se perderia no meio do
caminho.
Sorvi um pouco do vinho, usando-o para ganhar tempo antes de
precisar concordar com os dois.
— Você sabe o que é melhor para você — declarou Bianca, dando de
ombros, serena. — Vou te acompanhar para onde você for.
Assenti, absorta.
Ouvi os dois começarem a falar sobre a balada que havíamos ido à
noite passada, mas minha mente estava ocupada refletindo sobre o que
disseram.
Meus amigos raramente comentavam sobre as decisões que eu
tomava. Eles sempre diziam que confiavam no meu julgamento e que se
tinha optado por seguir um caminho, era porque sabia que era o melhor para
mim.
Contudo, escutá-los falando sobre a minha permanência no escritório
me fez perceber que eu não fazia ideia se ainda queria estar ali.
Eu não confiava em ninguém da outra parte da negociação, e tinha
experiência mais do que suficiente para saber que a traição poderia vir de
quem menos esperávamos.
Meu pai foi traído por um amigo de longa data e sócio.
Miguel descobriu que enquanto esteve de licença após o meu
nascimento, Charles usou a sua ausência para desviar dinheiro de clientes
da Alpha Capital e esconder uma quantia absurda em paraísos fiscais.
Charles era meu padrinho… ele esteve ao lado dos meus pais quando
se casaram e era o genitor do meu melhor amigo. Isso não o impediu de
trair a confiança que meu pai depositou nele.
E se isso aconteceu com Miguel que sempre foi muito cuidadoso com
todos com quem se associava. O que me garantia que não seria o mesmo
com a Roberta?
Se meu pai foi traído por um amigo de infância, por que eu deveria
confiar que os colegas de faculdade da Roberta – que ela não via há anos –,
não fariam o mesmo que Charles?
E então eu seria arrastada para o mesmo fundo do poço que a
encontrei dois anos atrás e a única coisa que se lembrariam quando
falassem de mim, seria sobre como tentei provar para o mundo que me
virava sem o meu pai e acabei levando o maior golpe da história.
O risco valia a pena? Me parecia uma aposta arriscada demais.
Se a fusão desse errado, colocariam a culpa em mim. E se fosse
adiante, ninguém se importaria com o que eu havia feito pela firma antes da
sua conclusão.
Eu sairia no prejuízo em qualquer um dos cenários.
— O que acha de sair para almoçar? — Antônio sugeriu, sentando-se
ao meu lado e só naquele instante me dei conta de que Bianca havia se
distanciado e estava do outro lado do terraço ao telefone. — Consigo
reservas para…
— Prefiro ficar em casa — cortei, repousando a cabeça no encosto do
sofá e deixando que meus olhos fossem em sua direção, esquadrinhando seu
rosto.
Antônio era tão bonito que me irritava. E ele era ciente de como
arrancava suspiros e calcinhas sem precisar de esforço, era exatamente por
isso que não nos poupava de sua arrogância.
Às vezes, me questionava sobre o que fiz de tão errado para ter como
melhor amigo, o cara mais babaca do mundo.
— Tudo bem?
Um som ininteligível escapou do fundo da minha garganta, e isso fez
com que ele se deitasse preguiçosamente ao meu lado; seu braço esquerdo
enlaçou meus ombros e com a gentileza de um troglodita, ele me puxou
para perto.
Senti seus lábios depositarem um beijo em meu cabelo e seus dedos
se arrastaram pelo meu braço. Eram raros os momentos em que o ogro dava
uma volta e meu amigo conseguia ser gentil e carinhoso, mas, nas
pouquíssimas vezes em que isso acontecia, costumava ser comigo.
— Por que não pede alguns dias de folga e vai para a fazenda? —
sugeriu, baixinho.
E a ideia me pareceu mais atrativa do que o normal.
Eu amava visitar os meus avós, sempre fui apegada a minha família e
apesar de ter morado em Nova Iorque com o meu pai na maior parte do
tempo, minhas férias eram sempre na fazenda. Meu avô costumava dizer
que aquele lugar era como um pedacinho do céu na terra, e ele não estava
errado. Normalmente, quando as coisas ficavam pesadas, era para lá que eu
fugia.
E apesar de tê-los visitado no Natal, mal tive tempo de realmente
aproveitar a estadia. Tinha saído do escritório por volta de 22h00, cheguei
na fazenda na madrugada do dia 25 — e voltei para São Paulo no fim do
dia, porque precisava estar na empresa para uma reunião na manhã
seguinte. O mesmo ocorreu no ano novo.
— Os novos sócios mudam para o escritório amanhã… se eu me
ausentar agora, vai parecer que estou fazendo birra.
— Foda-se — retrucou, puxando uma mecha do meu cabelo por
implicância e cravou as íris avelãs no meu rosto, irredutível. — Você está
trabalhando sem descanso há meses, merece uma semana de folga. Eles não
vão morrer na sua ausência.
Fiz beicinho, sentindo o impacto das palavras que ele engoliu.
— Claro, se não precisaram de mim para a negociação… por que
precisariam para a mudança? — O sarcasmo escapou contra a minha
vontade.
Antônio estalou a língua e arrastou os dedos pelo meu pescoço,
alcançando a minha bochecha e apertou levemente.
— Eu tentei conter o comentário ácido.
— Não precisa, se é para pisar em cima de mim… faz o serviço
completo.
Ele riu, balançando a cabeça.
— Não seja tão dramática, bebê.
Suspirei, cansada.
Eu tinha dormido pouco mais do que o habitual, mas ainda me sentia
exausta e se ele continuasse fazendo cafuné no meu cabelo, eu não
duvidava que acabaria caindo no sono.
— Se eu decidir sair… — murmurei, preguiçosa —, você consegue
colocar a Bianca na Alpha?
Meu melhor amigo deixou um esboço de sorriso dançar em seus
lábios e apertou levemente meu cabelo, ameaçando puxá-los novamente.
— A empresa é sua, Nathalia. Se a quiser trabalhando lá, basta avisar
a Jessica o dia que ela começa.
Senti meu rosto se contorcer em uma careta involuntária.
Sim, eu sabia disso. Mas também tinha certeza de que teria um preço,
era assim que as coisas funcionavam nesse mundo e Jessica, diferente do
meu pai, não era tão compreensiva com a minha decisão de não trabalhar na
ACIG. Ela veria o meu pedido como uma chance de voltar a me encher com
o discurso de sempre. Eu amava a minha madrinha, mas ela me enlouquecia
naquele assunto.
— Não quero pedir um favor para a Jessica.
— Não é um favor… você é a herdeira do Miguel, quando isso vai
entrar na sua cabeça? — Retrucou, enfiando uma faca no meu peito e
trucidando meu orgulho.
Engoli o nó na garganta.
— É aí que está… até você me vê só como a filha do meu pai,
Antônio!
— Não foi isso o que eu disse.
— Não? — Acusei, ressentida. — Porque sabe melhor do que
ninguém que se eu pisar naquele escritório, a única coisa que as pessoas vão
enxergar é que sou a filha do chefe e que não tenho nenhuma aptidão para
estar ali. Já passamos por isso e não vou me submeter a mesma humilhação
duas vezes!
Antônio respirou fundo, amolecendo um pouco o olhar ríspido que
me direcionava e assentiu, compreendendo a situação.
Não era como se eu nunca tivesse tentado passar pela porta que
estava aberta para mim desde o dia em que nasci, mas nós dois sabíamos
que quando isso aconteceu, ninguém me levou a sério. Foi por esse motivo
que decidi que precisava ir para outro lugar e construir meu nome sozinha.
Sem qualquer influência do meu pai ou de Antônio, para que quando
voltasse, me vissem como a Nathalia, apenas.
Não a herdeira do Miguel Gama.
Ou a melhor amiga mimada do Antônio Sturzenecker.
Precisava me bastar sozinha, sem que um homem da minha vida
fosse referido para que soubessem quem eu era.
E eles gostando ou não, essa era uma condição inegociável para
garantir o meu retorno para a Alpha.
O suor escorria pela nuca quando minhas mãos caíram ao lado do
meu corpo e puxei o ar com força, sentindo o coração acelerado no peito.
A risada baixa de Pedro soou não muito distante.
Virei o rosto em sua direção, encontrando-o próximo ao saco e com
um sorriso vitorioso estampado nos lábios.
— Estou começando a achar que Leandro não mentiu quando disse
que você estava ficando velho — comentou, desdenhoso.
Rolei os olhos preguiçosamente e me desfiz das luvas, deixando-as
em um banco em cima do tatame.
A noite passada tinha sido uma merda.
— Matheus está melhor? — indagou, preocupado.
Assenti, usando a toalha seca para enxugar o suor que escorria pelo
peito e me sentei, sentindo os músculos tensos pelo esforço do exercício.
Por cima dos ombros de Pedro, pude confirmar pelas janelas que o
dia havia clareado.
Estava tão acostumado a levantar antes que a escuridão noturna se
esvaísse completamente, que meu corpo despertou sem que precisasse de
um alarme ecoando pelo quarto. E ainda que estivesse disposto a perder
algumas horas na cama para repor o fiasco que tinha sido a madrugada, o
convite de Pedro para treinarmos acabou me incentivando a levantar.
Cansado ou não, eu prezava por seguir uma rotina e se fugisse
minimamente dela, sentia que meu dia saía dos trilhos.
— Na última vez em que chequei, a febre cedeu um pouco — falei,
soltando o ar dos pulmões e inspirando novamente.
— Algum diagnóstico?
— Gripe. — Meu rosto se contorceu em uma careta involuntária.
Meus filhos raramente adoeciam. Mas emendamos uma viagem na
outra nas últimas semanas; eles saíram da rotina que estavam familiarizados
e a imunidade de Matheus foi a primeira a fraquejar e deixá-lo de cama.
Minha noite de domingo havia sido no consultório do pediatra,
dividido entre me concentrar em cada instrução que o médico passava e dar
toda a atenção que o meu caçula pedia em meio ao dengo.
Colocá-lo para dormir quando chegamos em casa, havia sido a pior
tarefa. Mesmo com febre e medicado, o pestinha insistia em manter os
olhos abertos, me fazendo gastar todo o estoque de criatividade para
encaixar os seus super-heróis preferidos em uma história de ninar.
Quando finalmente consegui vencê-lo e o fiz dormir, precisei acertar
inúmeras pendências do escritório, antes de conseguir tomar uma ducha e
cair na cama por alguns poucos minutos.
— Deve ter sido pela mudança brusca de temperatura… — meu
amigo pensou alto, observando distraído a movimentação da cidade no
início da manhã.
Concordava com a sua hipótese. No último mês, saímos de um calor
infernal entre Cancun e Orlando para uma semana fria em Aspen — onde a
temperatura mais alta durante nossa estadia havia sido -9º. E depois disso,
retornamos para o calor do Brasil.
Aquilo, somado a folga que eles ganharam na alimentação, se tornou
a receita do desastre.
— Como estão as coisas na ZAE? — perguntei, curioso.
— Henrique aproveitou a minha ausência para tentar algumas
mudanças de equipe. E decidiu contratar a irmã do Werneck para um
estágio. — Deu de ombros, indiferente.
— Pensei que Alicia estagiaria na empresa da família dela.
— Eu também. Ainda não consegui conversar com Rodrigo sobre
isso, ele viajou para Miami com a Amanda — disse Pedro, virando para me
encarar, tranquilo.
— Ela vai ficar com você?
Pedro empalideceu e a careta que cobriu seu rosto foi impagável.
— Eu não lido com estagiários.
— Ela é irmã de um amigo, acho que não custa ajudar a garota.
Zimmermann escondeu as mãos nos bolsos da calça de moletom e
apoiou as costas no vidro, olhando-me indignado apenas por sugerir uma
coisa assim.
Como se lidar com a garota fosse o fim do mundo.
— Prefiro que ela fique longe… não gosto de trabalhar com
aprendizes; não sou dos mais pacientes para ensinar e não quero o Rodrigo
enchendo a porra do meu saco por causa dela — enumerou, arrancando-me
uma risada baixa.
Bem, isso fazia muito sentido.
Rodrigo[6] era superprotetor com os irmãos e apesar de vez ou outra
perder a calma com Alicia, ele nunca permitiria que Pedro fosse
minimamente grosseiro com a garota. E a Werneck não era o tipo de mulher
que ficava quieta quando era contrariada e suas vontades não eram
atendidas. O canteiro de obras viraria uma zona de guerra com os dois
trabalhando juntos.
— E a fusão? — questionou Pedro, trazendo à tona o assunto que
vinha me dando certa dor de cabeça nos últimos meses. — Leandro
comentou que vocês se mudam essa semana.
— A equipe está lá desde sexta-feira… Roberta coordenou tudo com
o braço direito dela.
— E por que não parece contente com isso? A fusão era o que você
queria, não?
Anuí, apoiando os cotovelos nos joelhos e entrelaçando as mãos,
pensativo.
— Tenho a impressão de que deixei alguma coisa passar e não gosto
dessa sensação — confessei.
— Isso é por causa do problema com o Guilherme que a garota lá
teve?
— O nome dela é Nathalia — corrigi, olhando-o de relance. Pedro
sacudiu os ombros, alheio a informação. — E não… isso eu resolvi e
Guilherme sabe que se destratar a garota de novo, terá problemas comigo.
Esse havia sido um dos meus primeiros problemas quando a fusão
começou a ser negociada, Guilherme e Nathalia tomaram a frente na
negociação, representando as duas partes e pelo que chegou até mim, as
diferenças entre eles se tornaram intragáveis quando Bastos desrespeitou a
garota.
Apesar do meu sócio garantir que não tinha feito o que Roberta o
acusava, eu conhecia Guilherme o suficiente para saber que não colocaria
minha mão no fogo por ele. Por esse motivo, coloquei Marc para
representar nossos interesses.
Aparentemente, isso se resolveu bem.
Sempre que conversávamos, Marc tecia uma lista interminável de
elogios à Nathalia e parecia meio deslumbrado com a garota. Se eu não
soubesse o quanto ele era apaixonado pela namorada, cogitaria que estava
interessado na sócia de Roberta.
— Acha que vale a pena comprar briga com um sócio por causa de
uma funcionária que você nem conhece? — Zimmermann indagou,
pendendo a cabeça para o lado e me analisando com atenção. — Ele pode
ser um merda, mas é um sócio e pode te trazer problemas no futuro.
— Não tolero desrespeito com ninguém na minha empresa, Pedro.
Ele ser um sócio não vai conceder privilégios para tratar as pessoas como
bem entender — falei, firme.
Não me preocupava com Guilherme, ele era um sócio com uma
porção muito pequena do escritório, que se manteve apenas porque eu sou
um homem de palavra e a dei para ele anos atrás, quando bateu na minha
porta e se ofereceu para facilitar as coisas para a gente.
Administrar um escritório nunca foi um dos meus interesses, eu
preferia gastar o meu tempo acompanhando o mercado, gerindo os
portfólios dos meus clientes e em reuniões com eles. Dirigir uma empresa
com algumas centenas de funcionários e uma filial em outro Estado, estava
na lista de coisas que eu não tinha o menor prazer de fazer — porque me
tirava todo o tempo que poderia passar com os meus filhos.
— Então, se o problema não é com ele… o que mais pode ser?
Desviei os olhos para o relógio em meu pulso, eu precisava subir e
acordar Igor para ir ao colégio. Meus filhos estudam em uma escola de
ensino norte-americano e o ano letivo acompanhava o calendário dos
Estados Unidos. Apesar da pequena pausa para as festas de fim de ano, as
aulas recomeçaram e meu primogênito estava ansioso para voltar a assistilas.
Diferente de Matheus que fazia drama para acordar, Igor não
precisava que eu chamasse uma segunda vez. Com a mudança de colégio,
eu torcia para que seu humor melhorasse e que ele parasse de se fechar em
uma bolha. E com a fusão, esperava que sobrasse mais tempo para ajudá-lo
na adaptação com a nova rotina. Por isso, a ideia de algo dar errado por
descuido da minha parte ou por deixar uma ponta solta no meio do
caminho, me incomodava demais.
— Tenho a impressão de que a Roberta não está contando tudo —
confessei, seguindo Pedro para o elevador, onde nos despediríamos.
Apesar de morar no mesmo condomínio, seu apartamento ficava na
torre vizinha e por termos rotinas similares ele costumava vir treinar
comigo. Eu passaria as próximas horas no escritório e Pedro em um
canteiro de obras do outro lado da cidade — onde estava construindo um
condomínio residencial de luxo no meio de uma reserva florestal.
— E isso interfere na sua decisão de ir em frente com a fusão?
— Não.
— Então, o que pretende fazer? — perguntou, entrando na caixa de
aço e digitei a senha que liberaria a nossa subida.
Respirei fundo, observando os números alternarem entre o primeiro e
segundo piso da cobertura. Para a nossa surpresa, quando as portas se
abriram, Igor estava acordado e conversando com a babá na cozinha.
— Leandro acha que estou paranoico e imaginando coisas. De toda
maneira, vou conversar com ela hoje — murmurei, olhando para o meu
amigo. Pedro parecia tão cansado quanto eu e conhecendo seu problema
com enxaquecas, não duvidava que tivesse tido uma noite difícil. — Por
que não fica para tomar café?
Uma careta cobriu seu rosto e ele apertou o botão para descer ao
térreo.
— Volto à noite para assistir o Uníon[7]
jogar contra o Bayern —
falou, dando um passo para trás e recostando o corpo na parede de aço. —
Preciso de uma folga das crianças. Duas semanas foram mais do que eu
posso aguentar.
Dei risada, concordando.
— Você é um ótimo padrinho.
— O que não faço por uma amizade de anos… — resmungou, sisudo.
Apertei seu ombro e caminhei para fora do elevador, despedindo-me
do padrinho de Igor. Eu devia um agradecimento por toda a ajuda que
Leandro e ele me deram nas últimas duas semanas.
Minha agenda no último ano ficou descontrolada, entre viagens para
encontrar com clientes e todo o salto que o escritório viveu em um pequeno
intervalo de tempo, estar presente na vida dos meus filhos vinha se tornando
um pouco mais complicado e eu me sentia imensamente culpado por isso.
Mas eu tinha sorte.
Meus pais sempre estavam à disposição para ficar com eles quando
precisava me ausentar por alguns dias. Meus amigos que detestavam
crianças e não tinham a menor habilidade para lidar com elas; abriam
exceções para me ajudar com os garotos e até passavam suas
confraternizações de fim de ano conosco.
Eu não podia reclamar, tinha uma rede de apoio incrível a minha
disposição.
— Bom dia, Renatinho! — Mara saudou, assim que apareci em seu
campo de visão e o rosto de Igor virou na minha direção, atento.
— Bom dia, Mara — cumprimentei, dando um meio sorriso para ela
e meus olhos recaíram no meu filho que estava pronto para o colégio. —
Caiu da cama?
— Perdi o sono — resmungou, aproximando-se e seus braços
enlaçaram meu corpo em um abraço desengonçado. Meu coração inflou no
peito e me abaixei, deixando um beijo em seu cabelo. — Matheus ainda tá
com febre?
— Não, mas vai ficar em casa essa semana.
Igor assentiu, me soltando e voltou para a bancada para tomar seu
café da manhã que estava sendo preparado pela Mara.
— Não precisava vir agora… posso cuidar dos garotos pela manhã —
falei, preocupado com ela.
Mara dispensou o meu comentário com um gesto de mão e se afastou
para buscar alguns ovos.
— Estou acostumada a acordar cedo, não é problema nenhum…, mas
se for uma rotina de vocês, posso deixar o café da manhã por sua conta —
disse, com um meio sorriso afetuoso nos lábios.
— Prefiro os ovos mexidos da Mara — opinou Igor, atraindo nossa
atenção e fingi ofensa, o que arrancou uma risada baixa dele. — Mas os
seus também são bons, pai.
— Claro que são… — rolei os olhos, sem tirar o sorriso dos lábios.
Era bom vê-lo se dando bem com a nova babá, ele não tinha gostado
nenhum pouco das últimas três que tivemos e não se importou em esconder
isso delas. Mara o conquistou muito rápido, talvez por ser mais velha do
que as outras, ele tenha se sentido mais confortável na presença dela.
Mara foi uma indicação indireta de Nathalia. Comentei com Roberta
sobre a dificuldade em encontrar alguém para ficar com os meninos
enquanto estivesse no escritório e, no fim do dia, recebi o currículo de Mara
em meu e-mail juntamente com o seu número.
Ela trabalhou para a família de Nathalia por quinze anos, cuidando da
própria e segundo Mara, o único motivo para ter saído era porque a filha de
Miguel Gama não precisava mais dos seus cuidados, e ela se sentia mal em
continuar recebendo por um trabalho que não executava.
Ironicamente, a decisão de Mara coincidiu com a minha busca por
alguém para cuidar dos meus filhos; Roberta comentou com a Nathalia e ela
viu nisso a solução para os nossos problemas. Sua babá continuaria
trabalhando, e eu teria alguém de confiança para ficar com Matheus e Igor
na minha ausência.
Uma mão lavava a outra, e eu não tinha do que reclamar até aquele
momento.
Depois de tomar uma ducha, desci para a cozinha e encontrei Igor
sentado na bancada me esperando para tomarmos café da manhã juntos. Era
uma tradição e um dos poucos momentos em que podia dedicar toda a
minha atenção para ele e o irmão, e eu prezava demais por manter isso.
— Bel ainda tá com raiva de mim — falou, revirando os olhos
enquanto eu servia um pouco de vitamina no seu copo.
— O que aconteceu dessa vez?
— Nada… loucura dela.
Sorri, assentindo e me sentei ao seu lado, bebendo um pouco do meu
café e o observando com atenção.
Dos meus dois filhos, Igor era o que mais se assemelhava a mim.
Com exceção das íris esverdeadas que herdou da genitora, todo o
restante era idêntico às fotos que minha mãe guardava da minha infância,
inclusive a personalidade introspectiva. Enquanto Matheus sorria, abraçava
e amava todos que se aproximavam, Igor sempre foi mais calado e na dele.
No entanto, nos últimos meses passou a ficar constantemente
desconfiado e retraído… e era minha culpa.
Ele não era assim, mas passou a ser depois da última vez em que
deixei Flávia retornar para a nossa vida.
— Decidiu sobre a festa de aniversário? — perguntei.
Igor meneou a cabeça, pensativo e olhou para mim. Seu rosto estava
neutro e quando chacoalhou os ombros, soube que não iria querer a festa.
— Podemos ficar na minha avó — sugeriu.
— Claro, mas não quer ficar com os seus amigos?
— A Bel pode ir?
— Pode.
— Então, tá bom pra mim.
Aquiesci, concordando.
Isabelle era amiga de Igor desde que meu filho aprendeu a falar,
como a avó da garota era professora no antigo colégio, ela era uma
figurinha carimbada na minha casa. Quando os troquei de colégio, precisei
garantir que Isabelle também iria. E, aparentemente, ficar longe por duas
semanas foi um pretexto para os dois entrarem em uma briga boba que no
fim, não importava o motivo, eles sempre fariam as pazes.
— Mara é legal — cochichou, seu cotovelo tocou ligeiramente no
meu e desci os olhos para o seu rosto, acompanhando de canto de olho
enquanto a mulher caminhava pela sala, organizando algumas almofadas
desalinhadas. — Ela vai ficar?
— Você quer que ela fique? — interroguei, alçando a sobrancelha.
Igor anuiu, quieto.
— Então, tudo certo.
Meu filho meneou a cabeça vagarosamente e mordeu um pedaço da
sua maçã, saltando para fora do banco e me deu um meio sorriso.
— Fico pronto em dez minutos — avisou, responsável.
— Combinado, chefe.
O som das portas de aço se abrindo despertou minha atenção e
desviei os olhos dos gráficos que estava acompanhando, enquanto projetava
uma operação para verificar os riscos.
Graças a um movimento dos sauditas, o preço do barril de petróleo
vinha sofrendo com oscilações violentas desde sexta-feira e não se falava
sobre outra coisa nos canais de notícias. Todos estavam teorizando sobre o
que poderia ter motivado e meu celular não parava de tocar com pedidos de
explicações. A verdade era que não era difícil reconhecer uma manipulação
de preços quando ela acontecia diante dos olhos do mundo.
O mercado sangraria por mais alguns dias até os sauditas decidirem
acompanhar a tabela padrão e as coisas se acalmarem. Era simples. Alguém
estava financiando essa palhaçada para lucrar de alguma forma, mas logo
tudo voltaria ao normal. No entanto, não seria o suficiente para diminuir o
estresse que eu enfrentaria pelos próximos dias com clientes mais ansiosos.
Seria uma semana desafiante.
Meus olhos se arrastaram pelo lobby, reconhecendo os outros
elevadores. Aquela área era exclusiva para a entrada e saída no escritório,
as duas paredes eram ocupadas por quatro elevadores de cada lado. A
parede à minha direita era revestida por um painel de madeira e as letras
prateadas nomeavam o meu novo escritório: Real Capital Investiments —
Wealth Management. Abaixo da nova logomarca, as cidades das três filiais
que tínhamos firmado após a fusão: Rio de Janeiro, Brasília, Porto Alegre e
a matriz em São Paulo.
À minha direita, um enorme balcão em mármore ficava em frente a
uma parede de vidro e atrás dele, uma mulher loira falava ao telefone. Seus
olhos vieram em minha direção e ela se levantou, murmurando algo e
encerrou a chamada conforme eu me aproximava.
Não cheguei a visitar o andar durante a reforma, apenas quando
negociamos a locação da cobertura e tudo estava muito diferente. Existiam
duas entradas na recepção, uma que eu sabia que levaria para a área de
serviço e outra que me levaria direto para dentro do escritório, e antes que
eu alcançasse a entrada, a recepcionista surgiu na minha frente.
O colar em seu pescoço tinha gravado em letras cursivas um nome,
que eu sabia que era o seu por tê-la conhecido algumas semanas atrás,
durante a minha primeira visita. E conhecendo o meu melhor amigo e sócio,
eu não duvidaria que Leandro conseguiria fazer uma piada em relação a
isso assim que a conhecesse.
— Renato, seja bem-vindo! — cumprimentou, as mãos entrelaçadas
em frente ao corpo e um sorriso afável.
A loira bateu os cílios grossos e deu um passo, aproximando-se de
mim.
— Não sabia que você viria hoje.
— Bom dia, Samantha — falei, cordial. Meus olhos varreram a
recepção, apreciando o trabalho feito pelo arquiteto responsável pelo
projeto e não demorei a voltar para a recepcionista, esboçando um sorriso
educado. — Os rapazes estão se comportando?
— Claro, eles já foram instalados nas suas devidas posições.
Assenti, olhando por cima da sua cabeça, notando a movimentação
atrás do vidro.
— Ótimo.
Dei um passo para o lado para contorná-la e entrar no escritório.
Contudo, a loira imitou o meu movimento e se colocou na minha frente
novamente.
— Quer que eu apresente o lugar?
Balancei a cabeça, dispensando sua oferta.
— Preciso falar com a Nathalia e ela pode fazer isso. — Tentei me
afastar da barreira que o corpo esguio da garota criou entre mim e a entrada,
e quando ela me fechou outra vez, precisei arquear a sobrancelha ao encarála confuso. — Algum problema, Samantha?
Ela deu um sorriso amarelo, seus dedos apertaram a placa de
mármore que revestia a parte de cima do balcão e seus olhos se fixaram em
meu rosto, parecendo ansiosos.
— Na verdade… Nathalia não está.
— Não?
Considerando que ainda eram nove horas da manhã e o mercado abria
as dez, não era estranho que a garota ainda não tivesse chegado.
Samantha pigarreou, dando mais um passo em minha direção. Não
me passou despercebido quando sua mão se arrastou no balcão, e em um
movimento falsamente despretensioso, tocou meu antebraço e o apertou.
— Tecnicamente, ela esteve aqui. Mas foi embora faz vinte minutos,
e disse que não voltaria.
Concordei, desvencilhando-me do seu contato e dei um passo para
trás, conseguindo contorná-la para entrar no escritório.
— Tudo bem. Obrigado, Samantha.
Com um aceno sutil, dei as costas para a loira e entrei na firma,
esquadrinhando o ambiente compartilhado. Aquele andar possuía uma vista
privilegiada da cidade e uma escada levava para um segundo pavimento,
onde as salas dos sócios ficavam.
No primeiro pavimento ficavam as equipes operacionais. Atrás da
escada havia uma sala fechada em vidro, com acesso controlado, onde um
painel que cobria a parede oposta a entrada transmitia os papéis em que o
escritório tinha maior posição; oito fileiras de dezesseis posições
acomodavam os garotos da mesa de operações, e ela estava praticamente
ocupada por completo, deixando apenas uma fileira vazia para futuras
contratações.
Na parte externa da sala de RV[8]
, as mesas foram enfileiradas à
esquerda e direita, deixando um largo corredor para passagem da equipe.
De um lado, existiam outras salas de vidro fechadas para os times de
Recursos Humanos, Marketing, Contabilidade, Risco e BackOffice. Do
outro, uma copa de apoio para um breve descanso enquanto preparavam um
café ou chá; banheiros e seis salas de conferência.
No segundo pavimento, as salas eram fechadas por paredes que
concediam privacidade aos sócios, uma vez que costumávamos atender
clientes em nossas salas, e eles preferiam a discrição de não terem seus
portfólios expostos para qualquer um que estivesse passando. Outras três
salas de reuniões ficavam disponíveis ali, assim como outra escada que
levava para o terraço do prédio, que apesar de não fazer parte da estrutura
do escritório, os funcionários fumantes poderiam subir para um intervalo.
Conforme caminhava pelo corredor do segundo piso, meus olhos se
arrastavam pelas placas com nomes de sócios gravados. Apenas os
fundadores e seniores ficavam naquele andar, associados e sócios júniores
ficavam no primeiro piso com as equipes. E não me surpreendi ao encontrar
minha sala em frente a de Leandro; a porta estava aberta e quando meus
olhos correram por ela, encontrei meu melhor amigo sentado em uma das
poltronas, seus olhos fixos em uma mulher loira na sua frente e de costas
para mim.
Dei uma batida na porta e a garota trouxe a atenção para onde eu
estava, me dando um sorriso largo em resposta.
— Renato!
Acompanhei seu sorriso, mais familiarizado com ela do que com
qualquer outro funcionário da equipe de Roberta.
— Bom dia, Bianca — saudei, recostando o ombro no batente da
porta e a garota se levantou, contornando o sofá e não me choquei quando
seus braços enlaçaram meus ombros e seus lábios tocaram levemente minha
bochecha. — Como está?
— Sobrevivendo, seu melhor amigo já conseguiu me tirar do sério e
ainda não são dez da manhã… — suspirou, teatralmente, e captei quando
Leandro revirou os olhos e bebeu um pouco do líquido em sua caneca.
Bianca não demorou a me soltar e uma risada baixa escapou da
minha garganta.
— Bem-vinda aos últimos vinte anos da minha vida — resmunguei,
ignorando a expressão ofendida de Leandro.
— Vinte anos? Como você aguentou? — Bianca arregalou os olhos,
chocada. — Eu estou lidando com isso… — apontou para o meu amigo —,
há dois meses e falta isso aqui para arrancar a língua dele. — Concluiu,
unindo o indicador e o polegar e deixando um espaço quase inexistente
entre eles.
— Credo, neném… — Leandro lamentou, dramático —, quem ouve
você falar assim, vai acreditar que realmente não me suporta.
Bianca o encarou por cima dos ombros e sorriu, desdenhosa.
— Continua me chamando assim e não vai precisar se preocupar com
quem estiver ouvindo o que eu falo.
— Prefere que eu te chame como, neném? — provocou, sorrindo
debochado.
Balancei a cabeça, sabendo que falar para Leandro não usar um
apelido idiota era o mesmo que incentivá-lo a fazer isso o tempo inteiro.
A loira grunhiu, afastando-se de mim e voltando para dentro da sala,
enfezada. Meu amigo teve certa dificuldade em desviar sua atenção da
garota para mim e quando o fez, a diversão se esvaiu do seu rosto e ele
meneou a cabeça, indicando que eu entrasse na sua sala.
— Precisamos conversar, eremita.
Rolei os olhos para o apelido tosco.
— É urgente? — indaguei, porque era raro Leandro dizer algo assim
e o assunto ser, de fato, importante.
Normalmente, assim que me sentava, o babaca falava alguma coisa
estúpida que me fazia questionar todas as decisões que nos tornaram amigos
e sócios.
— Sempre é, Renatinho… sou a pessoa mais importante da sua vida
— respondeu, sem tirar os olhos de mim. — Me dê um pouco mais de
atenção, tenho me sentido negligenciado.
Espreitei os olhos, escutando a risadinha de Bianca, e ciente de que
recusar seu convite seria o bastante para que continuasse me perturbando
pelo restante da manhã, decidi entrar de uma vez e escutar o que o idiota
tinha para falar.
— Ótimo, agora que estamos todos aqui… vamos para as fofocas que
você interrompeu — disse, olhando-me feio, como se eu tivesse cometido
um crime.
O filho da puta voltou a encarar Bianca com um sorriso enviesado e
abandonou a caneca na mesa de centro, relaxando no estofado.
— Continue de onde parou, neném.
— Do que estão falando? — perguntei, confuso.
— Bianca estava me contando de uma briga que aconteceu mais
cedo.
Senti um vinco surgir em minha testa e mirei a garota, esperando por
uma explicação.
— Que horas?
— Bem cedo… eu tinha acabado de chegar, não era nem oito da
manhã ainda. — Deu de ombros, afundando as costas no sofá. — Enfim,
como eu dizia para o seu amigo… não sei o que aconteceu. Quando cheguei
os dois estavam discutindo e depois disso ela entrou na sala e só falou com
a Roberta.
Se antes estava confuso, depois da sua explicação tive certeza de que
não fazia ideia do que estávamos conversando.
— De quem estamos falando?
— Nathalia e Guilherme — disse Leandro, como se fosse óbvio. —
Bia encontrou os dois discutindo.
— Por quê?
— Não sei. — Bianca suspirou, suas unhas batiam contra o tecido do
estofado, visivelmente angustiada. — Só escutei o final da discussão, era
alguma coisa sobre Nathalia não o respeitar e estar com os dias contados
aqui dentro.
Leandro respirou fundo, os ombros enrijeceram e a diversão que
dançava em suas íris se esvaiu.
— Ainda acha que manter sua palavra foi uma boa ideia? —
perguntou, sem conter o desdém.
— Mantive a nossa palavra — corrigi.
Depois dos meus filhos, a coisa mais valiosa que eu tinha era a minha
palavra. E gostando ou não, eu havia dado ela ao Guilherme e precisava
cumpri-la, ainda que estivesse descontente com as suas atitudes desde que a
fusão começou a ser negociada.
Se eu não cumprisse o que prometia, por que as pessoas confiariam
no que digo?
Uma batida na porta interrompeu o que Leandro estava prestes a falar
e quando foi aberta, Roberta surgiu com uma expressão nada amigável. Eu
a conhecia o suficiente para saber quando estava furiosa, e quando seus
olhos correram de mim para Leandro, soube que éramos os responsáveis
por seu descontentamento.
— Ótimo, estão todos aqui… isso facilita as coisas para mim — falou,
seca.
Roberta ignorou o cumprimento de Leandro e fechou a porta atrás de
si, atravessando a distância que nos separava e parou entre os dois sofás.
Um envelope aberto em sua mão, denunciava que o conteúdo dele era o
motivo da sua fúria.
— Aconteceu algo? — decidi perguntar, antes que seu olhar nos
fulminasse.
Sem responder minha pergunta, Roberta esticou o braço na minha
direção, entregando o envelope e vi de canto de olho quando Bianca tentou
se levantar sorrateiramente, mas foi impedida por Roberta.
— Você fica — ordenou, curta e grossa. — Duvido muito que não
saiba do que se trata.
— Saber, eu sei… só não acho que seja importante que eu fique aqui
— retrucou Bianca, sem se importar com o jeito rude de Roberta.
Quase como se estivesse acostumada com isso.
Perdido no assunto, meus olhos recaíram no documento e conforme
entendia do que se tratava, compreendi o motivo da raiva de Roberta.
— Nathalia está se demitindo? — perguntei retoricamente.
— Com um aviso prévio de trinta dias.
Leandro franziu a testa e se levantou, apanhando o documento da
minha mão para confirmar o que estava escrito nele.
— Por quê?
— Por causa do seu sócio — Roberta grunhiu, raivosa. — Ele insiste
em desrespeitá-la na frente de todo mundo.
Mirei Bianca, pedindo por uma confirmação, mas ela estava ocupada
encarando as janelas que cobriam a parede atrás de Leandro, como se
estivesse alheia ao assunto.
— Bianca?
— Não sei de nada — disse, defensiva.
Voltei para Roberta, sem entender o motivo de sua raiva estar sendo
direcionada a mim, uma vez que ela também havia concordado com a
permanência de Guilherme na fusão.
— Se a Nathalia sair desse escritório, ele não vai durar um mês,
Renato. — Seus olhos não se desviaram dos meus e por mais que tentasse
esconder, eu podia ver que a sua preocupação nada tinha a ver com a firma,
mas com a sua relação com a garota. — Conversem com ela e a façam ficar,
ou essa fusão vai acabar antes de se estabelecer no mercado.
Leandro olhou de mim para ela.
— Por que acha que vamos conseguir convencê-la? — perguntou,
confuso. — Você a conhece a mais tempo.
Roberta virou para ele, cínica.
— Acha que eu não tentei?
— E se você não conseguiu, por que acha que vamos conseguir? —
insistiu Leandro, cruzando os braços em frente ao peito, incomodado pela
posição em que estávamos sendo colocados.
Faroni deu de ombros, olhando para a Bianca como se ela pudesse
nos explicar o que estava acontecendo, mas a loira não parecia disposta a
ajudar no problema.
— Só façam alguma coisa — Roberta ordenou, e optei por considerar
que estava abalada demais com a possível partida do seu braço-direito, para
não focar na forma desrespeitosa que estava nos tratando.
Sem dar chance de qualquer outra pergunta ser feita, Roberta nos deu
as costas e saiu da sala do Salazar, batendo a porta e nos deixando
novamente a sós.
Meus olhos recaíram na loira e respirei fundo.
— Nathalia pediu demissão por causa do Guilherme? — investiguei,
desconfiado.
Ela apertou os lábios, batendo os dedos contra o apoio de braços e
deu de ombros.
— É uma opção.
— Como assim, neném? — perguntou Leandro, sentando-se
novamente sem soltar o documento que havia sido assinado por Nathalia.
Bianca olhou de um para o outro, parecendo indecisa se responderia
nosso questionamento.
Não era como se eu esperasse que abrisse o jogo conosco, Leandro e
ela estavam próximos — apesar de se conhecerem a pouco tempo —, mas
se não quis contar para a Roberta o que estava acontecendo, duvidava muito
que diria algo para dois homens que haviam acabado de chegar.
Parecendo concluir uma linha de raciocínio, Bianca respirou fundo e
deu um meio sorriso.
— Ela preparou a carta de demissão ontem, mas ainda estava
decidindo se assinaria ou não.
— Então, não foi por culpa do Guilherme — concluiu Leandro.
Bianca revirou os olhos.
— Meio que foi, mas, não só culpa dele.
— Culpa de quem, então?
— De vocês e da Roberta.
Quê? Eu sequer a conhecia.
Bianca pareceu saber o que eu estava pensando, quando as orbes
escuras vieram para mim, ela deu um suspiro derrotado e explicou
exatamente que merda aconteceu.
— Nathalia não queria a fusão. Ela disse isso explicitamente para a
Roberta e foi ignorada. Quando conheceu o seu sócio, ele… — Bianca
refreou as palavras, afundando as unhas no couro do estofado e prosseguiu:
—, ele a tratou pior do que lixo e tem feito isso sempre que interagem.
Nathalia falou que não toleraria por inúmeros motivos que não cabem a
mim contar. Roberta prometeu para ela que resolveria e ainda assim,
continuou com a fusão.
Isso era uma surpresa para mim, e não uma boa.
— Roberta me disse que todos os sócios estavam de acordo com a
fusão — falei.
Afinal, essa era uma das nossas exigências. Fundir com um escritório
dividido e com sócios descontentes só nos traria problemas no futuro.
Bianca estalou a língua, um sorrisinho amargo dançou em seus lábios.
— E estavam.
— Mas você acabou de dizer que Nathalia não estava de acordo.
— Nathalia não é uma sócia — disse Bianca, me surpreendendo pela
segunda vez.
Aquilo não fazia o menor sentido, eu tinha analisado os relatórios de
todos os managers de portfólio do escritório da Roberta. Me recordava
perfeitamente de ter ficado surpreso por Nathalia ser tão jovem e ter uma
carteira de clientes melhor do que muito sócio mais velho. Não fazia
sentido ela não ser sócia.
— Por que não? — foi Leandro quem perguntou.
Bianca deu de ombros.
— Era um acerto delas, mas Nathalia estava esperando que isso fosse
ajustado durante a fusão… e não foi. — Bianca se levantou, pronta para nos
deixar a sós. — E isso que aconteceu hoje, foi uma resposta para a pergunta
que ela estava se fazendo desde que teve a opinião invalidada sobre a fusão.
— Que pergunta? — Escutei Leandro interrogar, tentando assimilar a
situação.
— Se valia a pena continuar aqui.
Bianca murmurou que precisava voltar ao trabalho e quando saiu da
sala de Salazar, senti os olhos do meu amigo em cima de mim.
— Você vai falar com ela? — inquiriu, levantando-se e caminhando
até a mesa do outro lado da sala.
— Por que eu?
Ele riu baixinho.
— A Nathalia não me leva nenhum pouco a sério.
— Vocês se conheceram?
— Nos falamos algumas vezes.
Respirei fundo, sentindo que meu dia seria mais difícil do que havia
imaginado, e juntamente com o problema do preço do petróleo; precisaria
encontrar uma forma de resolver um conflito que sequer existiria se Roberta
tivesse sido franca comigo.
— Verifica a posição da Haddock Motors — aconselhei, levantandome para ir de uma vez por todas para a minha sala. — Talvez precisemos
zerar a alavancagem.
— Eu resolvo a situação da HM, e você o problema com a miss
Google.
— Miss Google?
Leandro riu baixo, satisfeito pelo apelido tosco.
— Fale com ela para ver… a garota sabe a resposta de tudo. É meio
irritante.
Revirei os olhos e o deixei sozinho, ou não conseguiria fazer mais
nada porque seria alugado pelo falatório sem fim dele.
No início da tarde, deixei minha sala e desci para o primeiro piso que
estava parcialmente vazio.
A maior parte da equipe estava em horário de almoço, mas a pessoa
com quem precisava conversar estava sentada em sua mesa, dividida entre
digitar no computador e analisar os documentos espalhados.
Quando quebrei a distância entre nós, espalmei as mãos em cima da
madeira e seus olhos subiram para mim, dando um meio sorriso.
— No que posso ajudar, Renato?
— Não foi almoçar?
— Acabei de voltar… — Bianca suspirou, soltando as folhas e me
observando atentamente. — Nathalia não voltou para o escritório.
— Como sabe que vou perguntar por ela?
Bianca estalou a língua, sorrindo astuta.
— Roberta fez merda e deu um ultimato para vocês resolverem o
problema que ela causou… é meio óbvio. — Deu de ombros,
despreocupada.
Meneei a cabeça, concordando com a sua linha de raciocínio.
Bianca indicou que me sentasse e puxei uma cadeira, olhando-a com
calma. Os funcionários naquele piso estavam afastados demais para que
escutassem nossa conversa, por isso não me importei em levá-la para uma
das salas de reunião.
— Ela pretende voltar ao escritório hoje?
Bianca apertou os olhos nos meus, ponderando sua resposta.
— Não sem motivos… a maioria das reuniões dela hoje são externas.
Aquiesci.
Involuntariamente, mirei a tela do computador que estava aberta na
agenda de Nathalia, notando que com exceção de pequenos intervalos entre
um compromisso e outro, o único horário em que a garota estava disponível
para conversarmos seria depois do seu expediente.
Bianca não se importou com a minha curiosidade, ao contrário, virou a
tela para que eu pudesse ver melhor.
— Como pode ver… sem espaços para encaixes de última hora —
murmurou, em tom de advertência.
— Entendi. — Sorri sossegado, a loira parecia prestes a enfiar a caneta
que girava entre seus dedos nos meus olhos, caso eu ousasse pedir por um
ajuste na agenda da sua amiga. Todavia, outra coisa me veio em mente. —
Se não se importa em responder… por que não nos disse que ela pediria
demissão?
Bianca pareceu ter sido pega de surpresa pelo questionamento. As íris
escuras se arrastaram lentamente pelo meu rosto, buscando por algo e não
demorou a relaxar os ombros e abandonar a postura defensiva.
— Eu não sabia que ela ia pedir demissão. — Foi sincera. — Quando
nos falamos ontem, ainda era uma incerteza.
— Acredita que a discussão com Guilherme influenciou?
Ironicamente, soube que ele foi embora pouco tempo após discutir
com Nathalia, e se eu tivesse chegado cinco minutos antes, teria esbarrado
com ele no estacionamento. Pela bagunça que deixou no escritório antes de
sair, era como se tivesse vindo apenas para semear o caos, antes de retornar
para o Rio, onde deveria estar aplicando seus esforços.
Eu teria uma conversa com ele depois, mas no momento precisava me
situar no problema causado.
Minha intuição estava certa quanto a conversa que tive mais cedo com
Pedro. Roberta realmente estava escondendo algo e foi estupidez da parte
dela ter feito isso. Se eu soubesse que Nathalia estava em conflito com a
fusão, teria dado um jeito de me encontrar com ela semanas atrás para
chegarmos a um meio-termo, e não estaríamos nessa posição agora.
— A discussão não…, mas o fato de Roberta não ter a defendido, e ter
chamado a atenção dela por discutir com o Bastos na frente de todo mundo…
sim — disse Bianca, franca.
Mais do que eu esperava que fosse ser, afinal, ela não me conhecia e
não me devia qualquer explicação. Em nosso meio, uma informação nunca
era dada sem algo em troca.
Respirei fundo, observando a agitação que se aproximava conforme as
equipes retornavam do horário de almoço.
Então, no fim das contas, Roberta que fez merda e esperava que eu
resolvesse seu problema.
Levantei-me para voltar para a minha sala, sem pressa.
Analisei o rosto de Bianca, registrando todos os detalhes dele para que
pudesse pegar uma possível omissão para a pergunta que eu faria, e quando
tive certeza de que estava apto a interpretá-la, deixei que o questionamento
que me veio em mente minutos atrás escapasse:
— Por acaso, uma dessas reuniões externas que Nathalia tem hoje, é
uma entrevista?
Bianca não pareceu surpresa, talvez, já esperasse que eu questionasse
isso.
— E se for? — devolveu, esquivando-se com uma resposta que estava
na ponta da língua.
Contudo, não precisei que respondesse para saber que era uma
confirmação.
Acenei para um associado que passou por nós e deixou um embrulho
na mesa para ela, e antes que me afastasse para subir para a minha sala,
Bianca empurrou um cartão branco em minha direção.
Um sorriso escapou dos meus lábios ao reconhecer o nome no cartão
de visitas.
Nathalia Maia.
— Maia?
— Aqui, sim.
Compreendi a mensagem subentendida e apanhei o cartão, me
despedindo de Bianca com um aceno antes de voltar para o trabalho.
O mercado tinha acabado de fechar, quando desliguei o telefone e
Roberta entrou na minha sala. Seu semblante havia sido tomado por uma
serenidade atípica, e a doçura que seu sorriso transmitia não combinava
nenhum pouco com ela, o que tornava a sua presença na minha sala mais…
incomum.
Não que eu não imaginasse que fôssemos conviver com mais
frequência depois da fusão, mas não imaginava que no primeiro dia a teria
na minha sala depois do fechamento do mercado para uma conversa casual.
Quando parou atrás da poltrona em frente à minha mesa, soube que
sua visita não era amigável.
— Como foi seu primeiro dia? — sondou, diligente.
Inspirei profundamente, relaxando as costas no estofado e corri os
olhos pelo seu rosto. A pele marrom-escura ganhou algumas marcas de idade
nos últimos anos, as íris castanhas perderam o brilho inocente de quando
estudávamos juntos e o sorriso sempre presente e que parecia sincero,
parecia ser meticulosamente calculado para atender ao seu alter ego do
momento.
Não a julgava por ter endurecido nos últimos anos, era normal que
isso acontecesse quando se passava por tantas situações complicadas, como
ela havia passado. Mas não mudava o fato de que, atualmente, quando a
olhava e me lembrava da pessoa que conheci anos atrás, não sentia que era a
mesma que eu costumava considerar uma amiga.
Isso não me impediu de ir adiante em uma fusão com ela, afinal,
Roberta Faroni era uma profissional excelente e merecia todo o
reconhecimento que tinha, e nosso relacionamento não precisava ser como
na época da faculdade para definir se fecharíamos negócio. No entanto, era
estranho estar frente a frente com ela depois de tudo o que vivemos, e
simplesmente não reconhecer a pessoa que estava diante de mim.
O que me lembrava da conversa que precisava ter com ela, antes de
tomar qualquer atitude em relação a que teria com a sua garota na manhã
seguinte.
Nathalia havia concordado com um bate-papo antes da abertura do
mercado e eu ainda estava em dúvida sobre como abordá-la, principalmente,
após descobrir que ela não era favorável à minha presença.
Seria difícil convencê-la de que sua opinião seria valorizada – caso
permanecesse conosco –, sendo que eu estava precisando falar com ela
justamente por Roberta não ter escutado o que ela pensava. E depois da
minha conversa com Marc alguns minutos atrás, eu estava em dúvida se
convencer Nathalia a ficar seria o melhor para ela.
Roberta se sentou, entrelaçando as mãos em cima da mesa e me fitou,
atenta.
— Por que não me disse que Nathalia não estava de acordo? —
questionei, sem dar chance para que fingisse estar preocupada com a minha
adaptação.
Eu sabia que Roberta não queria realmente saber como havia sido o
meu primeiro dia, tampouco estava na minha sala para perder seu precioso
tempo com conversas casuais.
Ela retesou os ombros e puxou o ar, ganhando tempo para formular a
explicação que me devia.
— Pensei que mudaria de ideia quando a fusão fosse concluída e todos
estivessem aqui. — Sacudiu os ombros, fazendo pouco-caso da situação em
que nos colocou. — Ela estava se dando bem com o Leandro quando
cheguei… até o Guilherme aparecer.
Rolei os olhos, impaciente.
— Guilherme pode ter ajudado, mas não foi o motivo dela decidir
entregar o pedido de demissão.
— Não… ele não foi. Eu pisei na bola.
— Por que ela não é sócia? — questionei, calmamente, sem deixá-la
saber que eu estava ciente do que havia feito.
Fingir não saber e exigir por explicações, era a melhor forma de
descobrir as mentiras que estavam sendo contadas.
Roberta deu de ombros, como se isso não fosse importante.
— Ela ainda é muito nova para essa posição… precisa ter mais cascagrossa antes de ser promovida.
Senti um vinco em minha testa, diante da hipocrisia do seu
comentário. Não era como se eu conhecesse Nathalia e pudesse definir se ela
tinha capacidade ou não de ser uma sócia, mas pelos relatórios do último
ano, suas receitas e tudo o que sabia que fazia por Roberta desde que
começaram a trabalhar juntas… era um tanto injusto alegar que ela era
imatura. Se Roberta realmente acreditasse nisso, não teria delegado tantas
funções para a garota.
— Muito nova para ser sócia, mas não para gerenciar o escritório?
— Sim.
— Isso me soa injusto — comentei, franco.
Roberta aspirou o ar lentamente e deu de ombros, como se minha
opinião não importasse.
— Você não a conhece.
Sorri, concordando.
— Não, eu não conheço — murmurei, endireitando os ombros e
entrelaçando as mãos em cima do envelope que Marc havia enviado no
início da tarde. — Mas não preciso conhecer para saber que pelos números
dela, em qualquer outro escritório, seria sócia júnior, no mínimo.
— Qualquer escritório não é o meu — retrucou, altiva.
Assenti, não gostando muito da linha de raciocínio que meus
pensamentos estavam seguindo.
Minha atenção recaiu para a pequena pilha de arquivos que o
assistente do diretor financeiro deixou na minha sala, todos eram referentes
aos últimos doze meses de trabalho de Nathalia. Ela havia sido a responsável
por trazer clientes com portfólios significativos, liderava inúmeras divisões
internas, e nas avaliações anuais de clientes; era quem tinha as maiores notas
e uma pilha incontestável de avaliações positivas, vindas de clientes muito
satisfeitos com o seu desempenho.
Minha surpresa, após descobrir que ela sequer era sócia júnior do
escritório, se tornou uma desconfiança gritante quando liguei para Marc e ele
compartilhou a descoberta de que os clientes dela foram considerados na
carteira de Roberta — o que garantiu a Faroni seis por cento a mais no
quadro societário.
— Ela sabe que o percentual extra que você recebeu na fusão, deveria
ser dela? — interroguei, sem rodeios.
Pude reconhecer a surpresa perpassar por seus olhos, mas Roberta foi
rápida em disfarçar e manter a postura imperturbável.
— Do que…
— Não sou idiota, Roberta — cortei, olhando-a com firmeza. — Posso
ser complacente com muitas coisas, mas não nasci ontem.
— É um acordo nosso. Quando estiver pronta, as cotas serão
transferidas para ela.
Assenti vagarosamente, vendo-a se levantar para sair da sala.
— Essa não foi a minha pergunta — insisti. — Ela sabe?
Roberta se virou, impaciente pelo interrogatório. No entanto, se ela
queria que eu resolvesse a situação com Nathalia, eu precisava saber
exatamente o que enfrentaria quando me reunisse com a garota amanhã.
— Não importa.
— Vou tomar isso como uma confirmação de que ela não faz ideia.
Minha sócia massageou a têmpora esquerda levemente e sua mão livre
escorregou para dentro da bolsa, pegando um novo cigarro. Se estivéssemos
nos anos 2000 e fumar em ambientes fechados não fosse proibido
atualmente, eu não duvidaria de que ela teria o acendido dentro da sala.
Seus olhos vieram para o meu rosto, visivelmente impaciente por ter
sido colocada contra a parede.
— Vai conversar com ela ou não, Renato?
Assenti, silenciosamente.
— Sim. — Tranquilizei-a, vendo seus ombros relaxarem. Ela acenou
em agradecimento e se virou para sair da sala, mas antes que alcançasse a
porta, a chamei. — Mas te aconselho a repensar sobre os motivos da decisão
que ela tomou, Roberta. Você pode culpar o Guilherme, mas ele não é o
único responsável.
Roberta não respondeu, apenas acenou com a cabeça e me deu as
costas, desejando um bom descanso.
Quando bateu a porta e me devolveu o silêncio habitual, meus olhos
recaíram para a pilha de documentos que precisava analisar.
A fama de Nathalia a precedia.
Todos teciam elogios a ela — Guilherme era a única a exceção e, de
qualquer maneira, duvidava muito que Nathalia tivesse algo positivo para
falar sobre ele também.
Além disso, todos comentavam sobre como a garota sempre parecia
saber de tudo, e que tinha uma resposta na ponta da língua para qualquer
pergunta que fizessem.
Não podia me sentar para negociar com ela sem nenhuma informação
e, eu precisava encontrar uma forma de lhe explicar que sua mentora – a
mesma que me pediu para fazê-la ficar –, havia escondido informações
relevantes.
— Papai! — Matheus ergueu os braços pequenos em minha direção
assim que entrei na sala, e um sorriso escapou dos meus lábios ao vê-lo no
sofá.
A ponta do nariz e as bochechas avermelhadas denunciavam que a
febre havia retornado, mas seus olhos ainda brilhavam e o sorriso não
abandonou os seus lábios.
Quebrei a distância entre nós, abaixando-me na sua frente. Matheus
empurrou a manta para longe, se ajoelhou no sofá e suas mãos pequenas
capturaram o meu rosto, uma em cada bochecha, e bateu os cílios para mim.
— Como você está se sentindo, pequeno Hulk? — perguntei, sentindo
seus braços envolverem meus ombros e o cheiro familiar do seu perfume
invadir meus sentidos.
A sensação de estar em casa com os meus filhos sempre seria o
suficiente para aliviar o estresse do dia no escritório.
— Ainda com fébo — disse, manhoso.
Afastei-me, checando sua temperatura e notando que ela tinha
diminuído um pouco, comparada à quando falei com Mara mais cedo.
— Febre, filho — corrigi, ouvindo-o repetir a palavra corretamente.
— Você almoçou?
— Sim! — Sorriu esperto e se jogou no sofá, apanhando uma
almofada e colocando sobre o colo. — Sorvetinho?
Dei risada, afastando alguns fios teimosos que começavam a
atrapalhar sua visão, nem parecia que tinha cortado o seu cabelo a menos de
duas semanas.
— Sem sorvetinho.
O bico triplicou de tamanho e ele não me poupou do teatro, as
lágrimas surgiram e Matheus uniu as mãos em frente ao peito, usando toda a
sua meiguice para me convencer a fazer sua vontade.
E bem, eu não era dos mais difíceis de se convencer quando se tratava
dos meus filhos, e meu caçula era especialista em me submeter a todos os
seus caprichos.
— Nenhum pouquinho? — Uniu o polegar e indicador, sinalizando
uma pequena quantidade.
— Está negociando comigo? — Ri baixo, vendo por cima dos seus
ombros Mara nos observando com um sorriso terno.
— Sim!
Apertei os dedos em seu queixo levemente, piscando orgulhoso.
— Vou pensar no seu caso.
— Combinado!
Olhei em volta, buscando pelo Igor e ao não o ver em nenhum lugar,
retornei para Matheus.
— Cadê o seu irmão?
Matheus apontou para cima, sua atenção voltou para a televisão que
estava passando uma animação de super-heróis, e soube que nada que
dissesse ganharia sua concentração.
— Ele está adiantando um dever do colégio — falou Mara,
atravessando o arco que separava a cozinha da sala de estar. — Super
concentrado, fui chamar para descer e ele pediu vinte minutos.
Assenti, agradecido e retornei para Matheus, que com a maior
delicadeza do mundo, pediu para que eu saísse da frente da televisão.
Depois de conversar rapidamente com Mara sobre os garotos e ser
colocado a par de tudo o que havia acontecido ao longo do dia, subi para o
meu quarto para tomar um banho antes de jantar.
Quando desci, minutos depois, deixei que Mara fosse descansar e
fiquei incumbido de cuidar dos dois, não sem antes escutar uma dezena de
instruções. Era engraçado como, às vezes, a mulher parecia não se dar conta
de que desde sempre éramos apenas os garotos e eu.
Não existia ninguém no mundo que soubesse lidar com Igor e
Matheus melhor do que eu, e apesar de ter uma rotina puxada entre o
escritório e as viagens que precisava fazer a trabalho, me orgulhava do tipo
de pai que era para os meus filhos e estava fazendo o meu melhor para ser o
suficiente para os dois.
Eu tinha sorte por ter ajuda na maior parte do tempo, sequer teria
conseguido concluir a pós-graduação se meus pais não tivessem se
disponibilizado a cuidar de Igor durante as horas em que me dividia entre o
campus e o estágio. E até os meus amigos, que não conseguiam dividir o
mesmo cômodo que uma criança, se dispuseram a serem babás durante as
viagens que precisei fazer.
Não podia levar todos os créditos pelo trabalho, uma vez que ele se
tornava ligeiramente mais simples quando contava com tanto suporte e
recursos para auxiliar, mas isso não me fazia menos orgulhoso do meu
desempenho.
Apesar de hora ou outra, a culpa me atingir com brutalidade por sentir
que não tinha tempo suficiente para eles devido às escolhas que fiz na vida,
nunca me arrependeria de ter me tornado pai antes do planejado. Em
nenhum momento seria capaz de me arrepender por ter Igor e Matheus em
minha vida, mas não significava que não teria feito as coisas diferentes se
pudesse voltar no tempo.
E o aniversário de Igor que se aproximava, era um lembrete constante
das péssimas escolhas que fiz no auge da inconsequência jovem.
— Como assim meu bebê não quer uma festa de aniversário? — A
voz da minha mãe ecoou do outro lado da linha, quando atendi sua chamada
e a lembrei do que conversei mais cedo com o meu pai.
Meus olhos correram para a sala de estar, a temperatura havia caído
drasticamente naquela noite e os dois estavam embrulhados no sofá,
esperando que eu terminasse de esquentar o jantar que o cozinheiro
preparou.
— Foi uma decisão dele, mãe — falei, respirando profundamente ao
sentir o peito apertar com o remorso.
— Mas… ele ficou tão animado para isso uns meses atrás.
Apoiei as mãos no mármore da ilha, sem encarar nada em específico,
apenas refletindo sobre como explicaria para minha mãe que aquela decisão
havia sido tomada pela certeza de que outra vez, a genitora dele não estaria
presente.
Eu não me arrependia dos meus filhos, mas certamente remoeria até o
último dia da minha vida pela pessoa que acabou sendo responsável por
colocá-los no mundo.
Entre todas as escolhas estúpidas que fiz, aquela era a única que
sempre me assombraria.
— Tenho certeza de que você pode fazer alguma coisa com isso, mãe
— murmurei, desligando o forno que apitou e buscando por uma luva
térmica. — E isso não é uma autorização para insistir na ideia da festa. Sabe
melhor do que ninguém como Igor fica quando é pressionado.
Meu filho era parecido comigo nesse quesito, e quando jogado contra
a parede, tendia a se fechar e ficar mais introspectivo do que o habitual.
— Tudo por culpa daquela…
Minha mãe não concluiu o que diria, apenas deixou que um grunhido
raivoso escapasse. Eu já estava tão familiarizado com aquela conversa que
pude vislumbrar em minha mente seus punhos se fechando e o semblante
irritado que tomou seu rosto.
— Mãe… — repreendi, sentindo a atenção dos dois em mim. — Já
conversamos sobre isso.
— E você pode ter aceitado bem, Renato. Mas eu sou mãe e avó,
tenho todo o direito de ficar pau da vida com aquela mocréia!
Sorri, escutando sua voz carregada de superproteção.
— Ele ao menos escolheu um tema? — perguntou, chateada. — Posso
ao menos pedir ao Henri um bolinho personalizado?
Ri baixo, acostumado demais com seu drama para levá-lo a sério.
— Claro que pode, Amália. — Rolei os olhos, afastando um pouco o
celular para falar com o Igor que estava atento a minha conversa. — Harry
Potter ou Marvel? — questionei, ciente das suas duas paixões.
— Harry Potter — respondeu prontamente, virando-se para voltar a
assistir ao filme, mas não sem antes frisar: — Nada de Grifinória, por favor.
Minha mãe bufou ao fundo, resmungando baixinho:
— Foi um erro ingênuo… ele vai me lembrar disso sempre?
— Ele ficou ofendido.
Amália riu, divertida.
— Sorte desse pentelho que amo ele mais do que minha própria
vida… — Suspirou, sem me poupar de suas hipérboles. — Devo terminar o
livro ainda essa noite, faltam apenas dois capítulos.
— E como está indo?
— Ah… você não vai querer gastar seu tempo com isso, docinho.
— Eu adoraria, mãe — falei, sincero. — Sobre o que é dessa vez?
Não precisava estar na sua frente para saber do sorriso radiante que
tomou seu rosto. Nos minutos em que eu terminava de preparar o jantar,
escutei atentamente enquanto minha mãe detalhava cada mísero detalhe
sobre seu novo projeto. Hora ou outra, uma pergunta genuína escapava dos
meus lábios e isso só a deixava mais entusiasmada para falar.
Minha mãe era uma escritora de romances eróticos desde… sempre.
Ela se considerava uma romântica e safada incurável, e por isso, uniu suas
duas habilidades e as transformou na fórmula perfeita para uma carreira
incomparável.
Ter uma mãe que escrevia sobre amores épicos regados de erotismo
poderia atrapalhar a vida de qualquer adolescente, mas ao menos para mim,
sempre foi algo tão comum que as piadinhas de colegas nunca me afetaram.
Estava acostumado a saber de todos os detalhes por detrás das
histórias que criava, e sentia orgulho de tudo o que ela conquistou com o seu
trabalho.
— Thalita está inconformada que o livro vai ser publicado primeiro
no exterior… — Suspirou, cansada. — Mas faz parte, não vou te ocupar
mais com os meus devaneios.
Ignorei sua última frase, porque não importava quantas vezes eu
dissesse, minha mãe sempre repetia isso.
— Qual é a previsão de lançamento no Brasil?
— No segundo semestre, provavelmente em dezembro… — explicou,
empolgada. — Você poderia ir à sessão de autógrafos, né? Eu tenho certeza
de que esgotaremos todos os livros se você estiver do meu lado.
Uma risada baixa escapou dos meus lábios.
— Eu pensei que você me queria prestigiando seu trabalho, mas só
quer me usar para vender mais… — estalei a língua, fingindo ressentimento.
— O capitalismo realmente destrói famílias — lamentei teatralmente.
Minha mãe gargalhou e chamei os garotos para lavarem as mãos, não
demorou para que se sentassem na bancada e prendi Matheus na cadeira
mais alta, ele costumava ficar brincando enquanto comia e não duvidava que
acabasse se desequilibrando.
— O que posso fazer, docinho? Seu pai e eu estávamos inspirados
quando te fizemos. — Uma risada anasalada soou e ela prosseguiu: — Nada
mais justo do que me ajudar a vender alguns exemplares. Se soubesse a
quantidade de mensagens que recebo perguntando quando vou abrir
inscrições para uma nora…
Rolei os olhos, mais do que ciente de como suas leitoras eram.
Eu não usava as redes sociais, era um dos motivos para que Leandro
perturbasse o meu juízo diariamente. E bem, os comentários que o público
da minha mãe deixava nas fotos que compartilhava no seu perfil, eram o
suficiente para que meu amigo atazanasse minha paciência por todo o ano.
— Diga a elas que estou lisonjeado, mas não tenho interesse em abrir
um concurso cultural para isso.
Minha mãe riu.
— Pensando bem, se demorar mais um pouco para arrumar uma
namorada… eu mesma vou providenciar um programa de seleção — disse,
provocadora.
— Tenho certeza de que meu pai adoraria ficar no meu lugar —
devolvi.
Amália bufou, enciumada.
— Seu pai não é nem louco de olhar para outra mulher, Renato!
— Ótimo, estamos de acordo sobre a ideia ser totalmente insana, mãe.
— Servi uma porção generosa de salada para os dois, que esperavam
pacientemente por mim para começarem a comer. — Nos falamos depois.
Assim que confirmei que Matheus e Igor estavam dormindo, desci
para o meu escritório, sem tirar a babá eletrônica de perto de mim.
Igor completaria oito anos daqui a onze dias e não me preocupava
tanto, uma vez que ele dormia tranquilamente a noite inteira. Não era o
mesmo com Matheus — que tinha apenas dois anos e quatro meses, e
passava boa parte da noite se revirando na cama.
Cuidar de Igor enquanto estava na faculdade foi exaustivo, mas
Matheus conseguia me dar trabalho por dois. Desde que nasceu, minha
atenção precisou ser redobrada, porque ele simplesmente parecia viver
ligado na tomada vinte e quatro horas por dia. Nem no sono ele se acalmava,
o que, segundo a terapeuta, era normal para a sua idade.
Eu ainda me lembrava do pesadelo que havia sido quando ele chegou
na fase da dentição. Entre ser pai de dois garotos e CEO de um dos maiores
escritórios de gestão patrimonial da América Latina, não me sobrava muito
tempo para descanso, tampouco para colocar o sono em dia.
Não me lembrava de quando havia sido a última vez que consegui
dormir mais do que algumas poucas horas. No entanto, quando o Matheus
adoecia, me sentia culpado por não valorizar esses breves descansos, já que
ele ficava mais manhoso do que o normal.
Ao entrar no escritório, deixei o aparelho da babá eletrônica em cima
da mesa, assim escutaria caso ele resmungasse ou se levantasse da cama.
Servi uma dose de uísque com gelo e me sentei no sofá, buscando por um
dos arquivos que havia trazido para casa.
Não passava de dez da noite, os garotos tinham rotinas muito bemdefinidas e as seguiam sem desvios, e como eu sabia que meus amigos não
eram tão regrados assim, apanhei meu celular e disquei o número de Marc,
que não demorou para atender.
A música alta estourando os alto-falantes de onde estava, me obrigou a
afastar o aparelho da orelha e confirmar no calendário se, de fato, era
segunda-feira.
Eu não deveria me surpreender, mas não pude evitar que o comentário
escapasse.
— Numa segunda-feira? Sério?
A risada alta dele ecoou, conforme as batidas animadas ficavam mais
distantes enquanto saía de onde estava.
— Quem aposentou as chuteiras foi você, Trevisan… eu ainda sou
jovem e bonito pra caramba.
Rolei os olhos.
— Claro que sim, um pré-adolescente na puberdade.
Marc riu, sem se importar com o meu sarcasmo.
— Viemos na inauguração do bar do Joca — explicou, falando um
pouco mais alto para que sua voz sobressaísse a música. — Tá lotado pra
caralho.
Isso era ótimo, João Carlos vinha dando duro para que nada desse
errado na inauguração da sua nova filial, e eu ficava feliz em saber que a sua
ideia da época do colégio tinha dado certo. Eram sete bares no Brasil e três
estavam sediados na Argentina, Medellín e Cancún — o último havia sido
inaugurado a menos de um mês e eu estive presente, pouco antes de entrar
de férias com os meus filhos.
— Não vou me alongar, só queria saber se você encontrou algum
termo aditivo em nome da Roberta. — Esfreguei o espaço entre as
sobrancelhas, sentindo o esgotamento começar a me derrubar.
— Que tipo de aditivo?
— Um que garante à Nathalia o percentual que ela tem direito.
Marc respirou fundo e negou.
— Não, até a segunda análise que você me pediu hoje, eu sequer
sabia da manipulação nos números. Foi um trabalho bem-feito, os clientes
foram transferidos para a base da Roberta no exato momento em que a
equipe recolhia as informações para o cálculo final de valuation dos sócios,
e retornaram só no início da madrugada, após a checagem final da
auditoria — explicou, um pouco mais baixo para que alguém não escutasse.
Ótimo, a situação só melhorava!
— Nathalia pediu demissão — expliquei, sabendo que Marc além de
ser um dos melhores advogados corporativos, também era um curioso nato.
Muito me surpreendia que ainda não tivesse perguntado nada.
— Eu soube. — Isso não me surpreendeu. — Leandro me contou.
Essa informação também não.
Se existia alguém mais fofoqueiro do que Leandro, eu certamente
desconhecia. Era impossível manter qualquer coisa em segredo, após contar
para ele.
— Vocês vão tentar negociar a permanência dela?
— É o que Roberta quer que eu faça — murmurei, relaxando as costas
no estofado e encarando a cidade através dos vidros.
Minha rua era predominantemente ocupada por prédios residenciais de
alto-padrão e restaurantes luxuosos — responsáveis por tornar o bairro
movimentado. Eu não precisava me aproximar da varanda semiaberta para
ouvir o barulho de buzinas que ecoavam lá embaixo. E como estávamos a
menos de quinhentos metros da Av. Paulista, estava acostumado com a
bagunça da madrugada e sabia que só persistiria enquanto estivesse com as
janelas abertas.
— Mas…? — A pergunta de Marc me obrigou a colocar em voz alta o
pensamento que me acompanhava desde minha última conversa com
Roberta.
— Honestamente, não sei se permanecer no escritório vai ser bom
para ela.
— Por que diz isso? Ela me parece ser uma ótima profissional.
— Mas não sabe que Roberta está com o percentual que deveria ser
dela… — explanei, buscando por uma segunda opinião, e a de um advogado
era bem-vinda. — E saber que Roberta não só manipulou os números, como
não providenciou nenhum documento que assegure esse direito futuro dela,
me deixa com o pé atrás.
— Acredita que Roberta realmente teve a intenção de passar a perna
nela?
— O que a sua experiência te diz? — devolvi, sabendo que, no fim das
contas, meu raciocínio estava correto.
— Que ela tirou vantagem da confiança que a garota depositou nela.
— Marc nunca teve papas na língua para dar sua opinião, e como lidava com
fusões e aquisições diariamente, já tinha presenciado situações como essa.
— Posso providenciar um documento para isso, mas a Nathalia vai precisar
ficar sabendo de qualquer forma. É uma situação grave, pode gerar um
processo e colocar a CVM em cima de vocês.
— E a Roberta vai ter que concordar em deixar os seis por cento em
tesouraria.
— Exatamente.
— Ela não vai aceitar. Isso reduz o peso do voto dela.
— Como eu disse… a garota confiou demais. Amigos, amigos…
negócios à parte — recitou sombriamente. — O contrato ainda não foi
deferido em cartório, posso congelar a documentação por alguns dias, mas
vou precisar que tenha chegado em uma decisão até o fim do mês.
Assenti de maneira mecânica, sabendo que ele não poderia me ver.
— Amanhã vou conversar com ela e decido sobre como o ajuste vai
ser feito.
Afinal, posição societária era a única moeda que eu tinha para oferecer
pela sua permanência. Se Nathalia já estava fazendo entrevistas, isso
significava que seu movimento havia sido premeditado e ela sabia que assim
que sinalizasse a sua saída, teria opções para escolher.
Entregar a posição que lhe cabia, era a única coisa que eu sabia que
podia oferecer que sobressairia qualquer proposta que fizessem para ela.
Marc garantiu que pediria ao seu associado para que verificasse como
a transferência de Roberta para ela deveria ser feita, sem prejudicar o
contrato que já havia sido assinado e sem atrair a atenção indesejada dos
órgãos reguladores. Após alinharmos isso, despedi-me dele para que
retornasse ao bar de Joca.
Estava prestes a ligar para Roberta para alinharmos uma reunião cedo
– antes da que havia marcado com Nathalia –, quando escutei o choramingo
de Matheus e me levantei, fechando as janelas e caminhando apressado para
o quarto, antes que ele se levantasse no escuro e acabasse se machucando
por tropeçar em algo.
Dito e feito, assim que alcancei sua porta, o pequeno estava tentando
se desenrolar das cobertas com os olhos fechados. Capturei-o nos braços
antes que alcançasse o chão, e ele se aninhou no meu peito, voltando a
dormir quase que instantaneamente.
— Você sequer chegou a ficar minimamente curiosa com o que ele
queria? — questionou Bianca, sem tirar os olhos de mim conforme
atravessávamos o lobby do prédio.
No meio do caminho, acenei para as garotas da recepção com quem
tinha mais familiaridade, e seguimos pelo corredor que levava aos
elevadores do nosso bloco. O condomínio Belchior Plaza era composto por
quatro torres que se interligavam através de um imponente lobby. A entrada
de cada bloco possuía oito elevadores que funcionavam vinte e quatro horas
por dia, e uma equipe de segurança que checava as credenciais de cada
pessoa que passava, para validar suas permissões para perambularem por
ali.
Algumas das maiores empresas nacionais e multinacionais tinham
seus escritórios naquele condomínio, desde multinacional de tecnologia a
bancos de investimentos na Suíça. Era comum esbarrar hora ou outra com
colegas de profissão, e ser arrastada para uma rodada de conversas
intermináveis sobre o mercado financeiro.
E era por motivos assim que eu evitava sair do escritório.
Já me bastava passar cada segundo do dia acompanhando as
insanidades que as sardinhas[9]
faziam durante o operacional — já que de
uma hora para a outra virou febre comprar ações e investir na bolsa de
valores. Eu não queria ficar debatendo sobre isso até no meu pouco tempo
livre.
Não era como se eu abominasse a ideia de ter mais pessoas
investindo e pensando no longo prazo. Adoraria que isso realmente
acontecesse e que as pessoas estivessem se conscientizando sobre planejar o
futuro…, mas estava naquilo a tempo demais para saber que era apenas uma
onda passageira que deixaria muitos desavisados quebrados, e
amaldiçoando o mercado.
Como se nós fôssemos os responsáveis por eles terem colocado todas
as suas economias em investimentos que não conheciam, mas que
arriscaram porque foram instruídos por uma pessoa aleatória na internet que
alegava ser um guru financeiro e que lhe vendeu um curso, prometendo que
o faria se tornar milionário.
Por mais cruel que pudesse soar, me sentia até um pouquinho
satisfeita quando escutava um relato assim.
Não que eu torcesse para que pessoas com menos condições
quebrassem e perdessem suas economias, meu problema sempre seria com
os espertinhos de plantão que tentavam levar vantagem o tempo inteiro,
usando da ingenuidade dos desavisados para lucrar.
Cansei de escutar de alguns clientes que era um absurdo que
cobrássemos para cuidar de seus patrimônios, sendo que uma garota
gravava vídeos na internet gratuitamente os mandando depositar toda a sua
reserva de emergência em fundos imobiliários e em ações de empresas que
estavam em recuperação judicial.
Aparentemente, para esses clientes a opinião da garota que viralizou
com um vídeo de péssimo gosto e extremamente apelativo, era mais válido
do que a minha; que cresceu no mercado, estudou em uma das melhores
faculdades do mundo, se formou com honras e que estava na segunda
especialização na área — além de ser responsável por uma das carteiras
mais rentáveis do escritório e com o maior crescimento de portfólio.
Em dois anos deixei de ser uma garotinha mimada – como todos me
viam –, e usei cada segundo do meu tempo para me tornar uma profissional
excelente e com uma das maiores bases de clientes da cidade. Tudo bem
que ainda estava atrás de alguns sócios, minha carteira equivalia a… quinze
por cento de Renato? Mas com apenas 23 anos, eu podia afirmar que havia
conquistado algo, não?
Suspirei, absorta nos tweets que surgiam na tela do meu celular.
— Nathalia? — Bianca estalou os dedos na minha frente, atraindo
minha atenção e pisquei aturdida, virando o rosto para ela. — Escutou o que
eu falei?
— Sobre?
— Você estava pensando em trabalho, né? — acusou, espreitando os
olhos em mim. — Estamos falando da sua vida amorosa, e você pensando
em trabalho!
Uma risada baixinha escapou do fundo da minha garganta.
— Não existe uma vida amorosa para que a gente converse.
— Por que será, né? — retrucou, debochada. — Anda, senta aqui e
me conta a história direito…
Não tive tempo de me desvencilhar e correr para a minha sala. No
segundo seguinte, estava sendo arrastada para a copa e como se fosse minha
mãe, Bianca me obrigou a sentar e esperar enquanto pegava nossos cafés na
máquina expressa.
Mentalmente, comecei a repassar a agenda do dia. Encontraria com
Renato Trevisan em uma hora para escutar o que ele tinha para me dizer, e
depois precisaria correr para a Faria Lima para uma reunião com uma nova
gestora de investimentos que tinha um viés interessante para estar no nosso
radar nos próximos meses, e…
— Nathalia Maia de Bazán Gama. — Meu nome completo escapou
dos lábios de Bianca como um alerta de que me esganaria a qualquer
minuto. — Cinco minutos de descanso, tá?
Assenti, sabendo que para ela parecia que eu fazia de propósito, mas
juraria de pé junto que não era. Meu cérebro vivia ligado na tomada, eu
poderia ouvir tudo o que ela tinha para me dizer, registrar as informações
que me passava e ainda fazer comentários, ao mesmo tempo que
acompanhava as notícias que saltavam na tela do meu celular, conforme os
avisos de fechamento dos mercados asiáticos chegavam.
— O que foi? — perguntei, virando a tela para baixo e pegando a
caneca com o monograma do escritório pós-fusão.
As letras RCI estavam entrelaçadas de um jeito sofisticado e elegante,
e como eu havia ficado a frente da criação da nova identidade visual
juntamente com a equipe de marketing, não pude deixar de sentir um aperto
no peito ao me dar conta de que tinha me esforçado tanto para que tudo
ficasse perfeito — ainda que não fosse da minha vontade que a fusão
acontecesse —, e não estaria aqui nos próximos meses para desfrutar do
meu próprio trabalho.
— Por que você recusou o pedido dele? — questionou Bianca, me
fazendo erguer os olhos novamente para ela, e instintivamente, meus dedos
se fecharam com um pouco mais de pressão em volta da caneca. — Pensei
que estivesse gostando de ficar com o Gustavo.
— Gostando de transar com ele — corrigi, sentindo a pele sobre a
caneca aquecer. — Não significava que queria namorar com ele.
— Mas você é emocionada.
Outra risada escapou do fundo da minha garganta e concordei com
ela. Não me daria ao trabalho de negar aquilo que todos sabiam que era
verdade, e não me incomodava nenhum pouco de ser o tipo de pessoa que
se apaixonava rapidamente e se entregava de corpo e alma nas relações que
entrava.
Mas diferente do que minha amiga pensava, estar ficando com
Gustavo a mais tempo do que qualquer outro cara, não significava que
queria ter uma relação com ele.
Não parecia na maior parte do tempo, mas eu sabia ser desapegada.
A verdade era que sempre fui do tipo que gostava rápido demais e
desgostava em um estalar de dedos; me entediava com muita facilidade e
detestava me sentir na mesmice, sem nada que me surpreendesse no meio
do caminho.
E Gustavo era um bom ficante…, mas era só isso.
Não existia nada que o diferenciava de qualquer outro cara, e não era
um problema dele. Só significava que não estávamos na mesma sintonia.
Gustavo não ser “nada demais” para mim, não queria dizer que ele não seria
para outra pessoa.
— Olhe só… se não são as duas mulheres mais lindas e cruéis do
mercado financeiro!
Meu olhar se deslocou para a porta de vidro por onde Leandro
Salazar passava com um sorriso faceiro estampado nos lábios.
— Olhe só… se não é o cara mais mala do mercado financeiro —
cantarolou Bianca, implicando com ele.
Leandro não se importou, ao contrário, tomou isso como um elogio e
se aproximou da loira sentada na minha frente. Sua mão espalmou o ombro
dela com delicadeza e deixou um beijo estalado e demorado na sua
bochecha.
Espreitei os olhos, vendo Bianca se esforçar para esconder o esboço
de um sorriso que ameaçou repuxar seus lábios e desviei para o Salazar, que
se afastou dela para vir em minha direção.
O rosto fingindo puro e completo desprezo.
— Olhe só quem está aqui, uma cleputamaníaca.
Sorri para o apelido idiota, e entrei na sua brincadeira.
— Olhe só quem chegou das favelas da Faria Lima… — falei,
forçando a voz para ficar o mais nojenta que eu conseguia. — A caipiranha
da Faria Lima — desdenhei, mas não sem levantar e retribuir ao abraço
apertado que Leandro me deu.
Bianca revirou os olhos para nós dois, e senti o peito apertar um
pouquinho ao me dar conta de que na noite passada tinha me dado tão bem
com Leandro, ao ponto de que sentiria sua falta quando saísse do escritório.
Não estava nos meus planos encontrar com ele na noite passada, mas
por ironia do destino, Bianca e eu fomos convidadas pela minha amiga
Diana para a inauguração do bar do namorado dela, e coincidentemente ou
não, Leandro estava lá com Marc — o advogado que esteve à frente da
fusão e com quem eu tinha interagido muito nos últimos dois meses.
Entre uma bebida e outra, a conversa com Leandro fluiu e quando me
dei conta, estávamos competindo para descobrir quem aguentava beber
mais tequila, e contando segredos sórdidos que me arrependeria no dia
seguinte por ter compartilhado.
Ele era incrível, o tipo de pessoa que gostávamos assim que
colocávamos o olho, e depois de ontem, passei a entender por que todos que
o conheceram enchiam sua bola.
Leandro Salazar fazia jus à fama que tinha.
Mulherengo? Sim. A cada shot que virávamos, era uma cantada que
soltava para uma mulher aleatória. Educado e simpático? Ele poderia ser
nomeado o rei do carisma. Maluco? O próprio agente do caos e da
destruição. Bonito? Demais, ao ponto de ser irritante. Convencido? Leandro
disse em alto e bom som, depois da primeira garrafa de Don Julio, que
deveriam colocar uma escultura dele na frente do Palácio do Planalto e o
declarar como símbolo sexual da nação. Eu não tinha a menor dúvida do
quão atrevido ele poderia ser. Engraçado? Minhas bochechas ainda doíam
de tanto que gargalhei das asneiras que saíam da sua boca na noite passada.
Mas acima de tudo isso, o maior motivo para simpatizar com ele e
aceitar o cargo de ser sua primeira e única melhor amiga — ao qual fui
incumbida depois de uma quantidade sobre-humana de álcool —, era o fato
de que detestávamos a mesma pessoa.
Nada no mundo seria capaz de unir mais um grupo de pessoas, do
que o total desprezo por outra.
E Leandro Salazar se tornou meu novo melhor amigo depois de dar
toda a razão para o meu rancor por Guilherme Bastos, infelizmente, seu
sócio e um dos meus “superiores”.
Descobrir que Leandro sequer queria sua presença na fusão me
trouxe um conforto genuíno, porque me senti acolhida, de verdade. Perdi a
conta de quantas vezes levei minhas queixas sobre o Bastos para Roberta, e
ela me disse que estava sendo imatura, egoísta, mesquinha, mimada,
birrenta… e inúmeros outros adjetivos deprimentes.
Roberta quase me convenceu de que estava errada sobre tudo em
relação ao carioca.
Mas descobrir que um dos sócios fundadores o desprezava tanto
quanto eu, fez com que aquele sentimento de frustração que me dominava;
evaporasse.
Leandro era o tipo de pessoa com quem eu esperava trabalhar todos
os dias, ele era o cara que amenizava o clima quando as coisas estavam
ficando tensas e precisávamos disso no escritório.
Roberta tendia a explodir com todos e descarregar em cima do
primeiro que cruzasse seu caminho. Perdi a conta de quantas vezes fui seu
saco de pancadas para que ela não descontasse em cima de outra pessoa.
E eu… bem, costumava responder ao estresse com uma dose cavalar
de mais estresse.
Estava nervosa?
Por que não mais cinquenta reuniões na semana?
Sobrecarregada?
Por que não reavaliar todos os portfólios do escritório e traçar
mudanças de abordagem?
Esgotada?
Por que não aceitar negociar com um advogado uma fusão que eu
sequer queria que acontecesse?
Para todo e qualquer problema, minha solução sempre seria… mais
trabalho.
Preferia manter a mente ocupada do que surtar sem controle algum.
Meu problema só seria resolvido se colocasse a mão na massa e fosse atrás
da solução, descarregar em uma pessoa que não tinha nada a ver, não
ajudaria em nada. Só faria a lista de pessoas ressentidas comigo aumentar, e
eu não precisava disso.
Já tinha um catálogo interminável de indivíduos que me detestavam
sem sequer me conhecer, ou apenas porque trocaram duas palavras comigo
e me julgaram precipitadamente.
Gostava de acreditar que não me preocupava com o que pensavam de
mim…, mas não existia nada mais valioso nesse mundo do que uma
reputação. Não era à toa que existia todo um aparato jurídico para zelar por
isso. Se minha reputação não fosse boa, minha imagem seria manchada e
todos teriam um pé atrás comigo.
Mais do que já tinham.
E eu preferia que continuassem me vendo como a riquinha mimada,
arrogante, prepotente e todos os outros adjetivos que usavam para falar de
mim pelos corredores, do que como uma pessoa mal-educada, mesquinha e
narcisista — que era como falavam de Roberta nas suas costas.
— Sobre o que estamos falando? — perguntou Leandro, sentando-se
na cadeira livre entre nós duas, segurando a caneca com um sorriso largo,
genuinamente interessado.
Um grande fofoqueiro.
— Nathalia foi pedida em namoro — dedurou Bianca.
Se Leandro não tivesse se contido, teria cuspido seu café em cima da
mesa. Ele tossiu, aparentemente desprevenido para a informação que
Bianca soltou e seu rosto ganhou uma coloração avermelhada, o fazendo
parecer um camarão queimado.
— Namoro?
Revirei os olhos.
— Ela recusou — contou Bianca, narrando para Salazar tudo o que
eu tinha contado durante nosso trajeto do clube para o escritório.
Gustavo era um colega de faculdade, mas não frequentávamos o
mesmo curso. Ele ajudava com a mentoria dos veteranos de economia e
fazia mestrado, enquanto eu dava duro para atender todas as exigências do
professor Otto e finalizar a especialização em Comércio Exterior.
Acabamos nos encontrando por causa do meu orientador e saímos
algumas vezes, até que acabou rolando e ficamos.
Não era nada sério, sempre deixei muito claro que não me via em um
relacionamento tão cedo. Mas, aparentemente, Gustavo achou que seria o
responsável por mudar meus planos.
Leandro soltou um suspiro alto e teatral, visivelmente aliviado e
levou a mão ao peito, virando o rosto para mim.
— Graças a Deus, diabinha… — disse, alegre, e quase morri ao me
dar conta do que ele havia acabado de me chamar.
Ah… puta merda.
— Eu te contei da tatuagem? — Fechei os olhos, incapaz de ver a
expressão em seu rosto.
Sua risada ecoou, divertida.
E eu quis cavar um buraco e me esconder nele.
— Ahhh, não só contou, como também me mostrou.
Arregalei os olhos, precisando confirmar que ele não estava tirando
sarro da minha cara, mas Leandro parecia realmente saber sobre o que
estava falando. Bianca riu fraco, olhando-me divertida.
— Relaxa, amiga. Foi só uma foto.
— Nude?!
— Que horror, eu nunca pediria um nude seu. — Leandro se
defendeu, ofendido.
Apertei os lábios, indecisa sobre como processaria sua resposta.
— Hum… obrigada?
Ele sorriu, abandonando seu café em cima da mesa e me deu um
olhar calmante e sincero.
— Não que você não seja atraente, diabinha. Você é… — piscou para
mim, charmoso. — Mas eu não te vejo dessa forma.
— Hum… obrigada? — Ainda me sentia incerta se aquilo era
lisonjeiro ou ofensivo.
— De nada.
Bianca riu de novo, atraindo nossa atenção.
— Não tem a menor chance dessa amizade de vocês dar certo —
comentou, cética.
— Por quê? — indagamos em uníssono, igualmente insultados.
— Porque dividem o mesmo neurônio — falou Bianca, levantando-se
para deixar sua caneca na lava-louças. — De duas, uma, ou vão se amar ou
se odiar em menos de vinte e quatro horas de convivência.
Leandro dispensou seu comentário com um gesto descontraído,
estalando a língua.
— Eu descobri que a diabinha fez uma tatuagem de diabinha após
perder uma aposta, neném… — Sorriu faceiro, sem deixar de lado a merda
do apelido tosco. — Não tem a menor chance de nos tornarmos algo
diferente de melhores amigos para sempre. Já estou até planejando qual será
a tatuagem que vou apostar com ela.
Olhei para ele, incrédula.
— O que te faz pensar que me submeteria a essa loucura de novo?
Leandro sorriu preguiçosamente e se levantou, passando o braço
esquerdo sobre os meus ombros. O filho de uma mãe largou um beijo
estalado em minha testa e esfregou meu braço, antes de dizer:
— Porque como minha nova melhor amiga, você vai tatuar o meu
rosto na testa para todos saberem o quanto me adora.
Grunhi, começando a concluir que, na verdade, ele conseguia ser bem
irritante quando queria.
— Nos seus sonhos.
— Veremos, cleputamaníaca. — Piscou, muito seguro. — Se não se
importam, vou trabalhar… alguém precisa fazer alguma coisa nessa
empresa, né?
Arregalei os olhos, descrente da ousadia do filho da mãe.
Leandro se afastou, nos deixando sozinhas e quando sumiu do meu
campo de visão, virei para a Bianca para confirmar se ela também havia
participado da viagem insana que meu cérebro me levou.
Esse cara não podia ser real.
Bianca se limitou a revirar os olhos.
— Como eu disse… dou vinte e quatro horas de duração para essa
amizade.
Bufei, mandando-a para um lugar nada amigável, o que arrancou uma
risada dela, já que eu raramente falava palavrões.
— Mas, enfim… tem certeza de que não vai se arrepender da decisão
de dispensar o Gustavo? — perguntou, preocupada.
— Absoluta, meu bem.
— Mesmo?
Dei risada, achando graça do seu interrogatório.
— Quem te ouve falar assim, vai pensar que você gostava dele e
estava torcendo pela gente, viu? — comentei, cínica.
Bianca torceu os lábios em uma careta.
— Credo, tá repreendido! — Bateu três vezes na mesa de madeira. —
Detestava aquele cara… era um nojentinho elitista que queria te
monopolizar para ele, achei um abuso.
Sorri, reconhecendo o ciúme.
— Então, por que tanta insistência nesse assunto?
— Sei lá… meio que ele te fazia espairecer um pouco do trabalho. Me
preocupo com você, diabinha… — zombou, repetindo o apelido idiota.
Grunhi.
— Não me chama assim.
— Ah… então, aquele palhaço pode, e eu não?
Revirei os olhos para o seu ciúme e me levantei, porque sabia que se
continuasse sentada ali, um dos dois me faria perder o horário para o meu
compromisso, e diferente do que Bianca acreditava, eu realmente não tinha
muito tempo sobrando.
Por volta de 08h00, a maior parte dos funcionários da equipe de
research havia chegado e depois de um bate-papo rápido para alinharmos os
relatórios da semana, voltei para a cozinha apenas para confirmar se Bianca
tinha conseguido encontrar o que pedi.
Sem pressa, passei o café colombiano com o maior cuidado do
mundo, seguindo todas as instruções que minha avó me deu durante toda a
minha vida, e servi uma dose generosa em um copo térmico.
Diferente do que a maioria das pessoas acreditavam, minha família
não me tornou uma completa palerma para tarefas básicas de sobrevivência.
Ao contrário, cozinhar era uma atividade frequente na fazenda dos meus
avós em Medellín, e apesar de Antônio e Bianca alegarem que sou péssima
nisso, meu pai e meu avô adoravam tudo que eu preparava. Especialmente,
o meu café.
Como uma boa colombiana, minha avó acordava cedinho para
preparar o meu café da manhã, e meio que se tornou um hábito acompanhála — o que fez com que a bebida se tornasse a minha especialidade.
E bem, eu havia feito minhas pesquisas sobre a pessoa com quem iria
me reunir, não busquei só descobrir a sua reputação entre as pessoas que o
conheciam, mas o que ele costumava gostar também.
Meu pai sempre dizia que a melhor forma de entrar em uma reunião
de negócios, era saber mais sobre a outra parte do que ela sabia sobre a
gente. E apesar de alguns usarem esse pensamento para manipular outras
pessoas, eu preferia ser mais… gentil na minha abordagem.
Não me lembrava de metade do que Leandro e eu conversamos
depois da quarta garrafa de Don Julio, mas antes de chegarmos ao final da
primeira, sabia mais do que o suficiente sobre o Trevisan.
E se Renato era, de fato, um cafeinado como seu amigo afirmou, ele
descobriria naquela manhã que nenhum café que provou na sua vida inteira,
era melhor do que a receita especial de Ellen de Bazán.
— Cheiro bom… — Leandro suspirou atrás de mim, me dando um
baita susto.
Virei sobressaltada, largando o copo térmico em cima da bancada de
mármore e virei para ele, meus olhos correram pelo seu rosto e encontrei o
mesmo sorriso largo que nunca o abandonava.
Para um homem de quase trinta anos, Leandro não tinha muitas
marcas de idade no rosto, ao contrário, ele era vaidoso ao extremo. A barba
era bem aparada, seguindo todo o desenho assimétrico da sua mandíbula, as
íris avelãs faiscavam e ganhavam um tom quase esverdeado, e os fios
castanho-claro eram penteados de maneira alinhada para o lado esquerdo do
seu rosto, deixando-o bonito sem precisar de muito esforço.
Não me surpreendia sua fama de mulherengo, tampouco a quantidade
de mulheres que se jogavam nos seus braços depois de um mísero sorriso.
Os músculos definidos marcavam levemente a camisa branca que estava
dobrada até os cotovelos, e os dois botões abertos na gola traziam um ar
mais despojado, que combinava muito com ele.
Era o típico homem que acertava em tudo; sabia se vestir, como se
portar, tinha um ótimo senso de humor, uma resistência absurda para álcool,
era cheiroso e… tinha lábia.
Não apenas para conseguir alguém para dividir a cama, mas para
fazer amizade. Sequer lembrava do momento em que, depois de esbarrar
com ele, me senti confortável para falar abertamente sobre tudo, mas sabia
que isso não acontecia com facilidade.
Não me considerava uma pessoa tímida, mas costumava ser
reservada. Principalmente com pessoas que não conhecia, então sua lábia
merecia os créditos por esse feito.
— Tire o olho, não te pertence. — Estapeei sua mão quando ameaçou
pegar o copo quente.
O pateta fez beicinho e me olhou como uma criança que tinha
acabado de ter doce recusado.
— Para de ser egoísta, miss Google.
Revirei os olhos para o apelido. Leandro e eu nos conhecemos a
menos de dois dias e já tinha perdido a conta de quantos apelidos ganhei.
Miss Google porque, segundo ele, não existia nada que me
perguntassem que não soubesse responder. Ele já me chamava assim antes
mesmo de nos conhecermos pessoalmente, para provar que não levava
quase nada a sério, era a forma como me cumprimentou em todos os emails que trocamos nas últimas semanas.
E com esse em específico, não me importava. Eu realmente gostava
de saber sobre tudo, apesar de saber que isso era impossível. Mas ao menos,
eu tentava reter o máximo de informações possíveis para usar em algum
momento. Meu pai costumava dizer que a única coisa que ninguém poderia
tirar de nós, era o nosso conhecimento.
Dinheiro, reputação, status… tudo isso era volúvel.
Mas o que sabíamos, não.
O conhecimento ficava com a gente independente do que nos
acontecesse — doenças neurodegenerativas eram a única exceção nesse
caso.
Então, não ligava de ser chamada de sabichona. Eu ressignificava
isso para uma coisa mais positiva, afinal, estudei pra caramba e me esforcei
muito. Inteligência não seria uma ofensa.
— Não é seu, para de ser birrento. — Repeti o gesto anterior quando
o idiota fez menção a roubar o café da minha mão. — Tira os olhos.
— Se eu tirar, não enxergo!
Mordi as bochechas para conter a risada.
— Você tem quantos anos?
— Cinco, não sabia? — retrucou, infantilmente.
Revirei os olhos, pegando a tampa do copo e me afastando antes que
a criança no corpo de um homem adulto viesse atrás de mim, e
acabássemos causando um acidente. Queimadura de café quente era um
horror, ardia por vários dias — experiência própria.
— Soube que tem uma reunião com o Renatinho — comentou,
atraindo a minha atenção, não sem antes futricar o que tinha na sacola.
Leandro realmente não brincou, era uma criança no corpo de um
adulto.
— Ele pediu para falar comigo.
— Entendi. Leve em consideração tudo o que ele te disser, ok?
Franzi o cenho, estranhando a seriedade que tomou sua voz.
Talvez por só tê-lo visto em momentos descontraídos, soou esquisito
ouvir sua voz tão séria.
— Hã… ok.
De repente, o comentário de Leandro me fez sentir nervosa, como se
algo que não havia previsto estivesse prestes a me pegar.
Eu era ótima com probabilidades e riscos, era a pessoa que os
operadores buscavam quando queriam validar a aposta em um papel,
porque eu analisava todos os fatores dispostos no panorama, e raramente
errava em um risco que aceitava correr.
E eu usava essa habilidade para todas as áreas da minha vida, sempre
via todo o cenário e me assegurava de ter mais de uma saída de emergência,
caso precisasse de um escape rápido.
Por isso, quando Renato mandou um e-mail educado e ligeiramente
informal, questionando se existia a possibilidade de nos encontrarmos para
uma conversa antes da abertura dos mercados… pensei ter previsto todos os
assuntos possíveis.
A fusão…
Meus problemas anteriores com Guilherme…
A equipe de BackOffice que contratei para servir de apoio aos seus
sócios do antigo escritório…
Qualquer coisa que ele quisesse falar comigo, eu estava pronta para
responder sem hesitar.
Mas Leandro me fez pensar que tinha deixado algo passar, e para uma
pessoa que precisava estar constantemente em posição de controle,
conforme subia as escadas em direção ao segundo piso, notei que estava
ansiosa.
Não era de um jeito ruim, mas também não era bom.
Era… incerto.
A cada passo que dava no corredor longo, ocupado por dezenas de
portas pretas, contrastando com a madeira que cobria as paredes, me peguei
duvidando se havia realmente previsto todos os assuntos possíveis.
Roberta não tinha dito nada referente minha carta de demissão, e se a
conversa que Renato pretendia ter comigo fosse aquela balela sobre cortar
laços o quanto antes para não ocorrer o risco de conflito de interesse… juro
por qualquer divindade existente, que perderia a cabeça e o mandaria para a
merda.
Não duvidava que Roberta mandaria outra pessoa falar comigo sobre
agilizarmos a minha saída, caso fosse assim que eu desejasse seguir. No
entanto, eu tinha um compromisso com os clientes e os atenderia como
combinamos meses antes. Ela gostando ou não.
Hesitei na frente da última sala, sabia que ele ainda não havia
chegado e que estava dez minutos adiantada, mas… antes que me virasse
para voltar mais tarde, meus olhos colidiram com o que, certamente, era o
homem mais lindo do mundo em carne e osso.
Seus olhos estavam compenetrados em mim, as íris escuras
denunciavam um interesse que eu não soube dizer se era bom ou ruim, e
meio roboticamente, abri e fechei a boca para tentar dizer algo, mas
nenhum som escapou dos meus lábios.
O homem bonito deu um passo para frente, sua atenção não vacilou
por um mísero segundo, e precisei me agarrar em todo o meu autocontrole
para não deixar que minhas pernas trêmulas fraquejassem.
Não existia resquício de barba em seu rosto e, definitivamente, a
mulher responsável por colocá-lo nesse mundo precisava ser canonizada.
Impactada, cambaleei discretamente para trás, usando a porta atrás de
mim como apoio para a sensação que me atravessava. Era como se o chão
estivesse tremendo debaixo dos meus pés, e eu sabia que isso não era real.
Não estava acontecendo um terremoto, era apenas o efeito do olhar
profundo cravado ao meu.
Ele era… perturbador e intenso.
Engoli em seco, piscando para tentar resetar o meu cérebro para que
voltasse a funcionar como de costume, mas foi totalmente inútil. Como se
estivesse ciente da bagunça que eu estava, um esboço de sorriso repuxou o
canto esquerdo dos seus lábios, levando consigo o restante dos meus
neurônios que ainda funcionavam.
Guiada por pura intuição e tentando ganhar tempo para me recuperar,
estiquei a mão que segurava o copo térmico na sua direção e ergui o queixo,
tentando demonstrar alguma confiança.
Ele arqueou a sobrancelha, o sorriso se alongou em seus lábios e tive
sorte quando seu olhar caiu sobre o copo que fumegava pela pequena
passagem para o líquido, isso me permitiu entreabrir os lábios para
recuperar o fôlego que havia perdido.
Os fios castanhos em seu cabelo eram curtos e penteados
despretensiosamente, e, diferente de Leandro que gostava de se vestir mais
informal, o homem na minha frente ficava uma delícia de terno.
E eu fui ao inferno quando percebi quem ele era.
— Bom dia. — Consegui falar, sentindo minha voz soar
surpreendentemente firme. — Soube que gosta de café.
Ele demorou mais tempo do que o necessário para trazer seus olhos
de volta para os meus, detido em um ponto do meu rosto que não tive
sanidade para identificar e, quando seu olhar se enterrou ao meu… dei
graças ao universo por estar de saída daqui.
Seria uma tortura lidar com toda a intensidade que esse homem
exalava com um mero olhar.
— Suponho que seja a Nathalia — constatou, sua voz denunciando a
diversão que estava sentindo por me conhecer.
— E você, o famoso Renato — disse, contendo um suspiro ao sentir
meu corpo estremecer com o som grave e imponente que escapou dos seus
lábios ao dizer meu nome.
Para a minha desgraça particular, Renato deu um passo na minha
direção, obrigando-me a erguer o queixo para encará-lo. Eu tinha pouco
mais de 1,60m, e ainda assim, me senti uma formiguinha perto dele.
Renato era alto, com ombros largos e braços bem definidos, minha
mente criativa se dedicou a pintar um quadro mental de como seria o
restante e… balancei a cabeça, espantando a insanidade de dentro de mim.
Foco, Nathalia. Foco!
Eu tentei, com tudo de mim… juro que tentei.
Mas quando sua mão grande e quente cobriu a minha, aceitando de
bom grado a bebida oferecida, um arrepio brutal perpassou por minha
coluna e senti que estava perdendo a força nas pernas.
Nathalia entreabriu os lábios grossos e rosados, mantendo os olhos
grandes e castanhos nos meus.
Minha surpresa foi me dar conta de que eu nunca seria capaz de
imaginá-la corretamente.
Entre conversas formais por e-mail e o que escutava falarem sobre
ela, nunca passou pela minha cabeça que Nathalia fosse tão jovem. Sabia
que era mais nova do que Roberta e eu, e que estava no meio de uma
especialização de dois anos, mas, nem nos meus sonhos, esperava descobrir
que a mulher responsável por mais coisas do que eu podia contar, não
passava de uma menina.
Com um olhar doce e um sorriso gentil, Nathalia conseguiu me
fascinar pela segunda vez naquela semana, e ainda era terça-feira.
A primeira havia sido quando finalizei a análise dos seus relatórios, e
a segunda… naquele exato momento.
Seu cabelo castanho estava solto, iluminado por alguns fios dourados
que realçavam sua beleza; as bochechas ligeiramente coradas, alcançaram o
mesmo tom dos seus lábios e o nariz pequeno e arrebitado, esculpia seu
rosto e lhe dava uma atmosfera angelical.
Tão linda que, por um instante, considerei que fosse um anjo olhando
de volta para mim.
Atordoado, desviei a atenção para o copo que me ofereceu, sua mão
gelada sob a minha escorregou para longe e ela deu um meio sorriso,
genuíno o bastante para que seus cílios cerrassem e eu me visse sorrindo em
resposta.
— Supôs que eu gosto de café? — perguntei, descontraído, sentindo
o copo quente sob minha pele.
Nathalia sorriu presunçosa e deu de ombros.
— É o que eu faço.
— Descobre os gostos das pessoas com quem vai se reunir? —
investiguei, sem conter a diversão pela resposta audaciosa.
O que era irônico, uma vez que a sua voz era tão doce e melodiosa
quanto o canto de um pássaro.
Nathalia soltou uma risada fraca, muito segura de si.
— Na verdade, eu sei sobre coisas que as pessoas ainda vão descobrir
que gostam — respondeu, afiada e sem perder a astúcia.
Alcei a sobrancelha, voltando a encarar o café que tinha um cheiro
muito diferente do que eu estava acostumado.
— Café colombiano moído com uma lasca de canela e avelã —
elucidou, me fazendo compreender de onde estava vindo o aroma que não
pude identificar de imediato.
— Canela e avelã? Como tem certeza de que vou gostar? — inquiri,
desejando que ela continuasse falando.
Seu semblante não vacilou com a pergunta. Nathalia parecia muito
confiante de que seria capaz de fazer um apaixonado por café tradicional,
gostar de experimentar um cheio de frescura.
Ela sorriu prepotente, e ainda assim, seu olhar não perdia aquele
brilho doce.
— Porque é isso o que eu faço, e nunca erro. — Deu de ombros,
serena. — Mas não se acostume, foi uma cortesia por estarmos nos
conhecendo agora. Não faço café para você… nem para ninguém.
Uma risada baixa escapou do fundo da minha garganta e balancei a
cabeça, devido ao comentário. Dei um passo à frente, quebrando a pequena
distância que nos separava e Nathalia ergueu mais o queixo, as íris escuras
não vacilaram nem por um instante.
— Alguém já disse que você pode soar um pouco prepotente? —
Meu tom era amigável, não era uma crítica.
Nathalia pendeu a cabeça levemente para o lado e bateu os cílios
escuros e grossos de um jeito adorável, como se escutasse isso com muita
frequência. Serena, a garota apenas alargou o sorriso e disse:
— Eu diria que sou confiante.
E linda, eu acrescentaria.
Senti meus lábios se erguerem em um sorriso equivalente ao seu, por
puro instinto. A sacola da confeitaria francesa que ficava do outro lado da
cidade pesou em minha mão, como se quisesse me lembrar da sua
existência e a ofereci para Nathalia. E pela primeira vez desde que seu olhar
colidiu com o meu, pude reconhecer um resquício de perturbação em seu
rosto.
— Pra mim? — indagou, curiosa. Apenas acenei em silêncio, a vendo
desfazer o laço com cuidado e retirar uma caixa rosa com gravuras
douradas espalhadas por toda a embalagem. — Como…?
Dei de ombros, assim como ela havia feito segundos atrás e abri
minha porta, dando passagem para que Nathalia passasse por ela.
— Porque eu sempre sei sobre as coisas, é isso o que eu faço e nunca
erro — imitei-a, escutando a risada deliciosa que escapou dos seus lábios.
— Alguém já disse que você pode soar um pouco prepotente? —
devolveu a minha pergunta.
— Eu diria que sou confiante. — Repeti a sua resposta.
O sorriso que rasgou seus lábios, fez com que seus olhos quase se
fechassem. E se eu estava encantado com ela antes, agora estava
inteiramente fascinado. Nathalia era o tipo de pessoa que não sorria apenas
com os lábios, mas com os olhos. E se houvesse uma maneira para que eu
pudesse apreciar isso com mais frequência, não me importaria de repetir
diariamente todo o trajeto até a confeitaria para trazer os macarons que ela
gostava. Se fosse necessário, pegaria um voo para a França e compraria
diretamente da loja matriz.
— Vamos conversar dentro da minha sala.
Indiquei com um aceno sutil para que entrasse e ela me lançou um
último olhar, que seria capaz de colocar o homem mais resistente do mundo
de joelhos aos seus pés, antes de me dar as costas e passar por mim,
deixando um rastro do perfume floral no caminho.
— Devo me preocupar com as perguntas que andou fazendo sobre
mim? — perguntou Nathalia, assim que encostei a porta e atravessei a sala,
deixando minhas coisas na mesa e me desfiz do blazer que usava.
Ela estava no centro da sala, entre os dois sofás que ficavam
dispostos próximos da estante com livros, diplomas e prêmios que acumulei
na última década. Seu olhar curioso percorreu todo o espaço, como se fosse
a primeira vez que entrava ali e eu sabia que não havia sido, já que esteve à
frente de toda a reforma do escritório juntamente com o arquiteto. Ela que
definiu como cada sala seria, mas ainda assim, parecia fascinada com cada
detalhe.
— Preocupada com a sua reputação?
Nathalia estalou a língua e deu de ombros, sentando-se no sofá que
permitia que ela contemplasse toda a imensidão de concreto através dos
vidros; e aproveitei para abrir as persianas eletrônicas, que iluminaram a
sala conforme se erguiam, fazendo com que a luz da manhã invadisse o
espaço.
— Não, minha reputação é ótima.
Era mesmo.
Não houve uma pessoa com quem conversei nas últimas horas que
não teceu uma lista interminável de elogios a ela. A maioria ia além do
profissional, mas os inúmeros comentários sobre sua beleza, educação e
simpatia não fizeram jus ao que estava diante de mim.
Contudo, justificava o motivo para que apenas por pronunciar o seu
nome entre os operadores, sorrisos e olhares cobiçosos surgissem entre os
moleques. E além dos comentários sobre ela não sair com ninguém e ter
dispensado todos que arriscaram convidá-la, nenhum dos rapazes foi capaz
de me preparar para estar diante dela.
— Não tenho como negar isso.
Nathalia cruzou as pernas delicadamente, relaxando as costas na
poltrona e preguiçosamente arrastou sua mão pela calça bege de linho, sem
estampas. A blusa branca com alças finas e trançadas, sustentava os seios
cheios e um colar fino e dourado, enfeitava seu colo com um pequeno e
delicado pingente de pérola. A pele branca estava ligeiramente bronzeada e
as maçãs mantinham um pequeno rubor, que poderia ser fruto da
maquiagem quase imperceptível que usava.
— Então, mandaram você comprar meus macarons preferidos para
me convencer a mudar de ideia? — perguntou, curiosa.
Ocupei a poltrona de frente para ela e bebi um pouco do café,
sentindo o gosto excêntrico se espalhar e precisei conter o prazer que me
tomou ao constatar que, talvez, ela não estivesse tão errada.
Nathalia sorriu amplamente, em puro deleite.
— Eu sabia que ia gostar!
— Não confirmei nada.
— Não precisa, ficou explícito no seu rosto — comentou, travessa.
— Como eu disse, nunca erro.
Acenei, concluindo que talvez ela realmente soubesse do que falava e
depois de beber mais um pouco, abandonei o copo em cima da mesa de
centro e endireitei a postura, deixando o ar descontraído para trás.
— Bem, eu soube recentemente que você não estava de acordo com a
fusão. — Comecei optando por abrir o jogo com ela de uma vez. — Se eu
soubesse da sua recusa, não teria ido adiante sem falar contigo. Era
importante para mim e para o Leandro que todos os envolvidos estivessem
de acordo com a junção dos escritórios.
Nathalia entrelaçou as mãos pequenas e delicadas no colo, sem
desviar os olhos de mim, como se buscasse por uma mentira. Ela
esquadrinhou meu rosto, séria e sem sequer piscar. Quando finalizou sua
breve análise, apertou os lábios em um sorriso contido e assentiu
vagarosamente.
— Acredito em você.
— Acredita? — investiguei, buscando pela pegadinha em sua
resposta.
Nathalia deu de ombros, imperturbável.
— Por que você mentiria sobre isso? — retrucou, desiludida. — É a
sua empresa e já sabe que pedi demissão, seria estupidez e uma enorme
perda de tempo tentar enganar alguém que está de saída.
— Então, você decidiu pedir demissão por causa da fusão?
Minha pergunta não a pegou desprevenida, mas alguma coisa que não
soube identificar, pareceu assombrar Nathalia. Pude ver quando seus dedos
se apertaram levemente e o polegar esquerdo começou a girar a joia
delicada no anelar direito.
— Sei que pensam que é por birra…
— Não cogitei isso em momento algum — falei, sério e franco. —
Por que acha isso?
— Porque é o que todos estão dizendo. — Deu de ombros,
desgostosa. — Não é, mas eu… só acho que não tem lugar para mim aqui.
— Quem está dizendo isso?
— Não importa. — Seu olhar desviou do meu e ela soltou um suspiro
pesaroso, como se colocar aquelas palavras em voz alta tivesse um peso
maior do que eu podia imaginar. — Eu amo a RCI, mas… não me vejo
tendo um futuro aqui, sabe?
Anuí, compreendendo o que quis dizer e me senti particularmente
responsável por isso. Não era eu quem deveria ter lhe garantido seus
direitos pós-fusão, mas deveria ter questionado se Roberta havia feito
alguma oferta em troca da sua permanência. E não precisava questionar
para saber que isso não ocorreu.
O momento ideal para a promoção de um colaborador em um
escritório, era durante uma mudança drástica que faria com que todos os
processos fossem reajustados. Se Nathalia pretendia ter uma posição
relevante no escritório no futuro, precisava que o seu esforço tivesse sido
valorizado antes da assinatura do contrato. Com uma posição societária, um
cargo mais elevado… qualquer coisa.
No formato atual, ela havia sido reduzida a secretária da Roberta, o
que não condizia com as suas funções.
— E não estou dizendo isso na intenção de que você tome alguma
atitude e me faça uma oferta. — Antecipou qualquer coisa que eu pensasse
em dizer. — Estou segura da escolha que fiz.
— E o aviso prévio?
— Dei minha palavra aos clientes que me encontraria com eles após
as festas de fim de ano, não vou deixá-los na mão.
— Então, já aceitou alguma oferta de emprego?
Nathalia negou.
— Roberta não te contou? — perguntou, e não soube sobre o quê
exatamente ela estava se referindo, já que Roberta não contou várias coisas.
— Em maio, concluo a minha especialização, e existe a possibilidade de um
estágio de três meses em Nova Iorque.
— Com a Alpha?
— Não, com a Bentley & Hathaway.
— O concorrente do seu pai? — Franzi o cenho, confuso.
Nathalia sorriu, audaciosa.
— É a melhor forma de me desvincular do sobrenome dele, não
acha? — Riu baixinho.
Meneei a cabeça, compreendendo seu raciocínio.
Não faria sentido que ela se comprometesse com um escritório, sendo
que em alguns meses, ficaria ausente e, talvez, sequer retornasse para o
Brasil.
— Então, você ia pedir demissão de qualquer forma.
— Não… Roberta e eu tínhamos um acordo. Trabalhei nos últimos
dois anos mais do que qualquer funcionário aqui, sem folgas e intervalos,
finais de semana e feriado… para que quando chegasse a hora de ir para
Nova Iorque, a minha ausência fosse considerada férias. No fim do estágio,
eu retornaria para cá.
— Mesmo se te oferecessem uma vaga lá?
Nathalia assentiu, imperturbável.
— Como eu disse, não existe nada mais importante para mim do que
a minha palavra.
Sua resposta me pegou em cheio. A cada segundo de frente para ela,
seus números e resultados, eu ficava mais confuso com a completa
displicência da Roberta com a relação que as duas tinham.
Se queria tanto que Nathalia ficasse, por que não conversar
pessoalmente com ela? Por que me mandar fazer a garota mudar de ideia
sobre uma coisa que Roberta evitaria se a escutasse?
Sequer estava falando com Nathalia a mais de quinze minutos, e tinha
compreendido exatamente o que ela almejava.
Era raro encontrar um colaborador que fosse tão leal e dedicado;
qualquer escritório no mercado entraria em guerra para ter alguém assim, e
quando se tinha o sobrenome de Miguel Gama, era apenas um bônus.
— E se eu fizer uma oferta pela sua permanência? — interroguei.
— Você estaria fazendo isso só por eu ser filha do meu pai? —
devolveu, deixando o desconforto de quando citei o seu pai retornar.
Miguel Gama era um dos homens mais influentes na economia
global, a Alpha Capital Investiments era a responsável por administrar um
patrimônio equivalente ao PIB da China, suas operações ditavam para qual
lado o mercado seguiria. E não era exagero dizer que o homem era um
visionário em tudo o que fazia e uma referência para qualquer um que
trabalhava com finanças. Fora isso, ele tinha influência em diversos campos
da sociedade devido a sua credibilidade.
E pelo sentimento de frustração que correu nas íris de Nathalia, o
sobrenome de seu pai parecia mais um fardo do que uma benção.
— Não — assegurei, sendo sincero em minha resposta.
Passei a madrugada inteira tentando encontrar uma solução para a sua
permanência, e o seu sobrenome nunca foi um dos motivos para isso.
Nathalia ergueu o queixo e os seus olhos cravaram nos meus,
analíticos.
— Agradeço a oferta, mas…
— Vamos fazer dessa forma… — Ergui a mão, interrompendo a sua
iminente recusa. — Você ainda vai ficar no escritório por um mês, certo?
Me dê esse tempo para tentar fazer com que mude de ideia — pedi, sem
fugir do seu olhar —, se ao fim do seu aviso, ainda estiver segura da
decisão, aceito a sua demissão.
Um pequeno vinco surgiu em sua testa, tão sutil que eu não teria
notado se não estivesse tão focado nela. Nathalia não esperava pela minha
sugestão, e me questionei se ela realmente acreditava que a deixaria sair
daqui sem ao menos lutar pela sua permanência.
Eu valorizava as pessoas que se esforçavam pelos meus interesses, e
se não fosse a sua dedicação e o seu cuidado minucioso aos detalhes, talvez
eu não estivesse nesta sala; sentado de frente para ela e com um escritório
avaliado em alguns bilhões de patrimônio sob custódia.
Não ia permitir que perdêssemos uma colaboradora exemplar devido
a um desencontro de informações no meio do caminho.
Se existisse uma coisa, por mais difícil que fosse, que a fizesse
reconsiderar a sua decisão, eu concederia sem hesitar. Tanto porque ela
merecia, quanto por ser grato aos seus esforços.
Nathalia suspirou, descruzando as pernas e parecendo um pouco
menos fechada, seus ombros se curvaram para frente e ela sorriu doce.
— Tudo bem, Renato… — Escutá-la dizer o meu nome foi um dos
pontos altos do meu dia. Nunca pensei que pudesse soar tão gostoso na voz
de alguém, quanto na sua. — Mas mantenho o que eu disse lá fora. —
Apertou os olhos em mim, alargando o seu sorriso conforme o brilho
divertido retornava para o seu rosto. — Não preparo café para você.
Ri baixo, de acordo com sua condição.
— Posso preparar o café para você — retruquei, jocoso.
Nathalia mordeu a ponta língua, escondendo o sorriso e assentiu.
— Podemos negociar isso — disse, levantando-se para sair da minha
sala.
E, me dei conta apenas naquele segundo que eu poderia passar a
manhã inteira a escutando falar que não veria o tempo passando.
— Então, irá aceitar a minha oferta? — indaguei, levantando-me
também e ficando de frente para ela. A única coisa entre nós era a mesa de
centro que a mantinha a pouco mais de dois passos de distância de mim.
Nathalia assentiu.
— Vou te dar o tempo que pediu — prometeu, estendendo a mão e
não hesitei em capturá-la.
Ela arquejou, e a sua pele macia acariciou a minha com delicadeza.
De um jeito quase irracional, precisei conter o desejo instintivo de afagar
sua pele sedosa.
— Dou a minha palavra de que vou pensar na melhor solução.
Nathalia sorriu e deu um passo em minha direção, desviando do
móvel que nos separava e ficando a menos de um passo de distância.
— Acredito em você.
Meus dedos coçaram para afagar o seu rosto e retirar alguns fios
teimosos que estavam desalinhados, mas reprimi o instinto e apenas
mantive a sua mão pequena e delicada sob a minha.
Surpreendendo-me, Nathalia ficou na ponta dos pés e os seus lábios
tocaram a minha bochecha, depositando um beijo suave antes de se afastar e
me roubar o calor da sua mão.
— Tenha um bom dia, Renato — desejou cordialmente, antes de se
virar e sair da sala.
Ainda na porta, ela esbarrou com Leandro que estava prestes a entrar
e não deixei de notar que os olhos dele correram por todo o corpo da garota,
antes de enlaçar a sua cintura e puxá-la para um abraço apertado.
Franzi o cenho, incomodado com a intimidade entre os dois.
— Ei, cleputamaníaca.
— Oi meu bem, você não disse que ia trabalhar? — Nathalia
interrogou, sarcástica.
E me peguei questionando: em que momento nos últimos dois dias,
eles se tornaram grandes amigos?
Assisti de braços cruzados enquanto conversavam como se fossem
amigos há décadas. Quando o celular dela tocou, Nathalia murmurou que
precisava ir trabalhar e se despediu dele, não sem antes se virar para mim e
sorrir ao dizer:
— Obrigada pelos macarons.
Anuí em resposta, vendo-a sumir do meu campo de visão.
Leandro, no entanto, tomou o espaço que antes era ocupado por ela e
fechou a porta, caminhando em minha direção com um sorriso largo e
animado.
— Como foi a conversa?
— Quando vocês se tornaram tão íntimos? — Ignorei a sua pergunta,
já que a minha certamente era mais importante.
Leandro se jogou na poltrona em que Nathalia estava sentada minutos
atrás e encarou o copo térmico, espreitando os olhos nele como se fosse
algo do além.
— Então, o café era para você?
— Você não respondeu a minha pergunta.
Salazar estalou a língua, olhando-me com diversão.
— Não me diga que está com ciúmes de mim, Renatinho… sabe que a
nossa relação sempre vai ser mais importante para mim — provocou,
irônico.
Revirei os olhos, sentando-me e voltando a beber o café que Nathalia
havia trazido. A mistura excêntrica juntamente com o gosto forte do café
colombiano era uma combinação um tanto peculiar, e dentre todos os cafés
que experimentei na vida, aquele tinha o sabor mais marcante. Era
extraordinário.
— Estou me sentindo particularmente prejudicado nessa história…
por que você ganhou café e eu não? — inquiriu Leandro, fingindo ofensa.
Apoiei os cotovelos nos joelhos, encarando-o sério.
— Precisamos decidir o que vai acontecer com ela aqui no escritório.
— O que ela pediu?
— Nada — respondi, vendo-o franzir o cenho em confusão. — Ela
não esperava que fizéssemos uma proposta para ficar.
— Por que não?
— Se Roberta que é a mentora dela não fez… por que esperaria que
nós fizéssemos?
Leandro assentiu devagar, compreendendo a situação. E nos minutos
que seguiram, o coloquei a par de tudo o que conversei com Roberta e Marc
na noite passada.
Roberta Faroni era minha amiga desde o ensino médio — assim que
se mudou para São Paulo e passou a frequentar o mesmo colégio que eu.
Quando a época da faculdade chegou, ela dividiu uma casa comigo e os
meus amigos para que não morasse sozinha em Greenly Creek[10]
, mas
acabou nos deixando no terceiro ano, depois que descobriu que estava
grávida e precisou retornar para o Brasil — onde concluiu a graduação.
Alguns anos depois, nos reencontramos, e os dois já estavam com
filhos e escritórios bem-posicionados no mercado. Na época, Leandro e eu
oferecemos a possibilidade de uma fusão para que construíssemos nossos
nomes lado a lado – como planejamos antes de entrar na faculdade –, mas
ela insistiu que queria trilhar o caminho sozinha.
Não foi uma surpresa quando descobrimos sobre o golpe que tinha
sofrido do seu sócio. Ninguém comentava mais sobre boatos do que os
operadores do mercado, e o seu antigo sócio chegou a bater na nossa porta
oferecendo alguns clientes dela, em troca de uma cadeira na mesa.
Não faltaram alertas da minha parte para ela, mas Roberta os ignorou
e manteve a cobra em sua casa por mais dois anos, até que ele conseguisse
o momento ideal para dar o golpe. E com isso, se foi todo o patrimônio que
ela trabalhou duramente para construir.
Roberta sempre foi uma boa amiga, então quando isso aconteceu,
apesar de saber que tinha a alertado, ofereci uma cadeira para que se
juntasse a nós, mas o seu orgulho falou mais alto. Mesmo quebrada, sem
metade dos seus clientes, funcionários e uma dívida imensa, ela considerou
que a mão que estendi para ela era por pena — quando na verdade, era
apenas um reconhecimento pela profissional excepcional que sabia que ela
era.
E apesar de tudo, eu compreendia a origem do seu orgulho — uma
vez que diferente de mim e de Leandro que viemos de famílias com alto
poder aquisitivo, Roberta veio de baixo e lutou por cada coisa que
conquistou; conseguiu bolsas de estudo com o seu esforço e se firmou em
um mercado que era predominantemente ocupado por homens.
Eu estava ciente de toda a problemática do que era ser uma mulher no
mercado financeiro, de como elas eram oprimidas, subestimadas e
rechaçadas no menor erro. Por isso, sempre mantive a porta aberta para que
Roberta se juntasse a nós quando quisesse. Não foi uma surpresa quando
nos reencontramos em um evento, alguns meses atrás, e ela propôs que
conversássemos sobre a fusão.
Naquele dia, Roberta estava em uma posição um pouco melhor,
comparado à quando fiz a última oferta e recebi sua recusa — porque ela
era orgulhosa demais para negociar sem ter alguma vantagem. Só não
esperava que parte da posição que usou para conseguir uma fatia maior
como sócia fundadora, na verdade, pertencia a outra pessoa.
Como eu poderia dizer para a Nathalia que ela havia sido usada como
moeda de troca e sequer sabia? Que a mulher por quem deu duro para
reerguer a empresa, estava escondendo dela que tinha direito a ser dona
desse escritório também?
Eu queria muito não ter experiência nesse tipo de situação, mas tinha
até demais, e duvidava muito que Roberta cumpriria com o tal acordo que
havia alegado ter com Nathalia.
— O que o Marc tem a dizer sobre isso? — perguntou Leandro, assim
que terminei de explicar o nosso problema.
— Ele vai paralisar o registro da fusão por alguns dias… até que eu
decida o que faremos.
Leandro meneou a cabeça, não muito contente.
Por mais que não parecesse levar nada a sério, ele era um dos
melhores profissionais que eu conhecia. Não era apenas por ser o meu
amigo que o tinha como sócio, mas porque sabia que esse jeito zombeteiro
de levar a vida era apenas a superfície de um homem muito inteligente e
leal ao que acreditava.
— Se eu fosse você… contaria para ela a verdade e deixaria que as
duas resolvessem o problema entre si.
Eu havia cogitado aquela possibilidade, mas isso implicaria na
Nathalia saindo do escritório de qualquer jeito.
Dificilmente ela permaneceria em uma empresa onde a pessoa que
mais confiou passou a perna nela.
Eu queria estar errado quanto ao que vinha concluindo sobre a
Roberta…, mas, após conhecer a Nathalia e reconhecer a ingenuidade em
seus olhos, e perceber como estava abrindo mão de tudo porque não via um
futuro – sendo que possuía tanto direito quanto qualquer um de nós aqui
dentro –, me fez perceber que Roberta não foi sincera quanto ao acordo
verbal que alegou ter com a garota.
Nathalia não sabia de merda nenhuma.
Em que mundo ela estaria disposta a perder milhões em patrimônio
societário?
Tudo bem, eu tinha total conhecimento de que ela era herdeira de não
apenas um, mas de três dos maiores conglomerados do mundo — a Alpha
Capital Investiments, gestora de recursos do seu pai; o Grupo Marine
Seasons, uma cadeia de hotéis e resorts de luxo, que pertencia ao seu avô
Elias Gama, e a D’Bazán Companies, um conglomerado de grifes de
cosméticos, que pertencia a sua avó, Ellen de Bazán —, mas isso não
significava que ela estaria disposta a queimar tanto dinheiro por nada,
principalmente, após tanto esforço.
A única coisa que explicava a sua disposição para partir sem qualquer
briga ou exigência, era a certeza de que não tinha nada a perder. E no caso,
ela tinha muito.
— Todo mundo disse que ela vê Roberta como uma mentora… —
repeti o que escutei ao falar com a equipe financeira da RCI —, se ela
souber que foi traída, por que vai querer ficar aqui?
Sabia que ela tinha o direito de saber, mas não pretendia aparecer
com um problema sem a solução. Para cada dificuldade que Nathalia
encontrou durante as negociações da fusão, ela veio munida de três opções
de caminhos a seguir para contorná-lo.
Não era justo que eu simplesmente jogasse o conflito em seu colo e
deixasse que resolvesse sozinha, quando era tão responsável pelo que
aconteceu quanto Roberta.
— E se a Roberta entregar a parte que pertence a ela?
— Ela não vai aceitar. Isso reduz a posição dela para catorze e não é
esse o nosso maior problema.
— É o que ela tem direito — frisou Leandro, irritado. — E era o que
teria recebido se não tivesse manipulado informações.
— E isso já aconteceu, está registrado na comissão que demos vinte
por cento das nossas cotas para ela, alterar isso afetaria toda a estrutura
societária e nos colocaria sob vigilância da CVM.
Leandro bufou, incomodado.
— O que o Marc sugeriu?
— Ele vai se reunir com o José Luiz para encontrar uma alternativa.
Marc era o melhor advogado quando se tratava de fusões, aquisições,
acordos e audiências, mas o seu sócio era uma fera quando se tratava de
negociações societárias, fraude financeira, entre outros. Eu tinha certeza de
que José Luiz encontraria uma alternativa, e até que isso acontecesse, eu
precisava encontrar uma maneira de conquistar a confiança de Nathalia para
que ela ao menos considerasse a sua permanência, quando eu contasse o
que aconteceu nas suas costas.
— Entendi. Roberta ao menos vai pagar pelo problema que causou?
Assenti, relembrando da conversa que tive mais cedo ao telefone com
ela – logo após encontrar com o Marc –, e concordamos que ajustaríamos a
posição adicional como uma aquisição, ao qual seria paga mensalmente
para mim e Leandro como dividendos.
O termo de compromisso havia sido assinado antes que eu viesse para
o escritório, já que Roberta passaria o restante do mês fora do país,
acompanhando um cliente em algumas transações na Europa.
— Ainda bem que o diretor executivo é você — disse Leandro,
levantando-se para sair da minha sala. — Porque eu já estou com dor de
cabeça só de escutar… e não quero estar na sua pele quando a diabinha
descobrir o que aconteceu.
— Diabinha? — indaguei, confuso.
Ele sorriu.
— Sim, é um dos apelidos da Nathalia.
Respirei fundo, pinçando a ponte do nariz com os dedos e erguendo
os olhos para ele.
— Leandro, tenha um pouco mais de cuidado com a forma que se
dirige às garotas aqui, ok? — chamei sua atenção, sério. — Agora você
divide o escritório com mulheres, e como sócio fundador é um exemplo
para os outros rapazes.
Ele revirou os olhos, como se meu aviso fosse desnecessário. Tive
uma reunião com toda a nossa equipe antes de assinarmos a fusão,
ressaltando que piadas pejorativas e de segundas intenções deveriam ser
refreadas no novo escritório.
Quando estávamos em um ambiente tomado por testosterona, era
impossível de se controlar os comentários e brincadeiras, mas agora, onde
teríamos mulheres trabalhando ao nosso lado, era imprescindível que se
comportassem e respeitassem as suas colegas de trabalho. Eu não queria
lidar com queixas de assédio ou qualquer coisa do tipo, porque homens
adultos não souberam ter bom-senso.
— Fica em paz, eremita… a diabinha e eu somos melhores amigos. —
Piscou, me dando as costas e respirei fundo, controlando a necessidade de
questionar o motivo do apelido.
Como eu diria para ele que Nathalia estava fora dos limites sem soar
um completo idiota?
Deixando o incômodo de lado, me despedi do meu amigo e sócio,
fechando a porta e indo em direção a mesa para começar a trabalhar.
Fechei o macbook, vendo o meu orientador se aproximar com um
semblante fechado.
O cabelo grisalho, curto e bem penteado, os óculos redondos de
armação fina e a barba por fazer, se tornaram uma imagem recorrente nos
meus piores pesadelos, onde ele sempre me fazia sentir a pessoa mais
incompetente do mundo, devido aos trabalhos mirabolantes e a pressão que
colocava nas minhas costas com prazos relâmpagos.
Acompanhei enquanto alguns colegas saíam da sala, nos deixando a
sós e ergui o queixo, sem me deixar abalar pelo seu olhar rígido.
— Boa noite, prof. Becker. — Forcei um sorriso cordial, ao menos
para fingir que ele não me deixava a beira de ter um colapso nervoso.
Sempre fui uma ótima atriz. — Em que posso ajudar?
Tentei soar o mais inocente que pude, mesmo sabendo que só existia
um motivo para que ele tivesse esperado todos saírem para falar comigo.
O envelope fechado em suas mãos era a notícia que eu mais esperei
nos últimos dois anos, na mesma proporção de que era a que eu mais temia.
A abertura de inscrições para o estágio da Bentley & Hathaway.
Quando conheci a Roberta e decidi que precisava voltar para o Brasil,
meu pai foi totalmente contra. Não apenas por todo o colapso que o país
estava lidando com os protestos e o caos, devido à situação política que o
país vivia após o golpe que derrubou a presidente eleita; como também
porque eu tinha acabado de ser aprovada para uma grade exclusiva de
especialização, onde apenas quinze alunos foram selecionados graças aos
méritos acadêmicos e recomendações de professores.
Era um curso exclusivo, com os melhores professores não apenas de
Princeton, mas de algumas das maiores instituições de renome. O programa
contava com os dez melhores doutores nos assuntos que o curso englobava.
Era uma oportunidade única, que o meu pai não queria que eu
perdesse, não apenas por causa da exclusividade e renome que traria ao meu
currículo, mas porque garantia uma vantagem no programa de outono da
B&H — e, consequentemente, me aproximava do retorno para a Alpha, que
era o que ele mais queria.
Contudo, como a maioria das aulas aconteciam de forma remota
devido aos professores morarem em países diferentes, não foi difícil
convencer o reitor de que eu conseguiria dar conta de todas as tarefas do
programa, vivendo no Brasil. Como condição, eu precisava encontrar duas
vezes por semana com o Prof. Otto Becker, que avaliaria se eu estava
cumprindo com a grade curricular do programa, aplicaria as minhas provas
quinzenais e avaliaria os meus trabalhos acadêmicos, antes que fossem
apresentados aos professores titulares.
E o Becker vivia em uma linha tênue entre o ódio e a indiferença em
relação a mim. Eu nunca sabia definir qual era o viés que encontraria quando
conversava com ele, em alguns dias ele me considerava uma aluna
ligeiramente inteligente, e em outros a mais estúpida. A segunda opção era
mais comum de vir à tona e a inscrição para o estágio era a sua forma de me
punir, exigindo mais de mim do que dos meus colegas.
— O edital para o estágio foi disponibilizado — disse, entregando o
envelope lacrado e como se ele pudesse me queimar se o tocasse, levei mais
tempo que o necessário para pegá-lo de sua mão. — A inscrição segue o
padrão que conversamos: informações pessoais, cartas de referências de, no
mínimo, seis pessoas que trabalham com você e que atuam no mercado; uma
carta de intenção detalhando os seus pontos fortes e o porquê deveria ser
aceita…
Seus olhos recaíram no envelope amarelo conforme o abria e ele
coçou a barba, que em algum momento da sua vida, foi ruiva.
Desci a atenção para o arquivo, precisando conter o meu queixo para
que ele não caísse e estampasse o quanto estava assombrada, conforme
passava os olhos pelo último requisito para inscrição do projeto.
— Eles querem que eu crie um fundo de investimentos? — Arregalei
os olhos, sentindo o ar se esvair dos meus pulmões ao encarar o orientador.
— Em menos de um mês?
Becker indicou que eu virasse mais algumas páginas, e, ainda que eu
tentasse com muito esforço transparecer calmaria para que ele não me
considerasse uma mimada que vacilava na primeira dificuldade, não fui
capaz de esconder o nervosismo quando entendi que os documentos
restantes eram relatórios, contratos, estatuto social, balanços contábeis… e
mais uma dúzia de registros necessários para estudar a viabilidade de uma
empresa abrir capital na bolsa de valores.
Era a segunda exigência, ou seja, além de toda a documentação, cartas
de recomendação e carta de intenção, eu também precisava estudar, planejar
e executar um fundo de investimentos, e preparar uma empresa fictícia para
um IPO.
Seriam semanas infindáveis de cálculos de valuation, pesquisas de
mercado e uma série de outras tarefas que eu, definitivamente, não sabia
quando conseguiria tempo parar para me dedicar.
Engoli o desespero e, no automático, balancei para cima e para baixo
enquanto Otto frisava que eu precisava que tudo aquilo estivesse pronto
antes do dia dez de fevereiro, porque ainda que as inscrições encerrassem no
dia quinze; se quisesse ter uma chance real, precisava enviar antes do fim do
prazo.
— Tudo bem.
Otto estreitou os olhos, não parecendo colocar muita fé nas minhas
palavras.
— Você precisa dar o seu melhor se quiser a vaga nesse estágio, Srta.
Gama… o seu sobrenome não funcionará nisso.
Assenti, sentindo os meus ombros retesarem e um peso se instalar em
minhas costas. Nervosismo e frustração duelaram dentro de mim graças ao
comentário do meu orientador.
— Eu sei — soprei, amarga.
— Me traga um esboço na próxima semana — exigiu, não era um
pedido e com esboço; eu sabia que ele queria dizer: uma simulação dos
projetos em andamento, com gráficos e relatórios de desempenho. — Boa
semana, Srta. Gama.
Forcei um sorriso confiante, dando o meu melhor para convencê-lo de
que eu tinha tudo sob controle, ainda que estivesse sentindo as paredes se
fecharem ao meu redor e a minha respiração ficar carregada.
— Igualmente, Prof. Becker.
Assim que entrei no meu apartamento, abandonei a mochila em cima
da mesa e corri para a adega, buscando por um rótulo de vinho e servindo
uma taça caprichada. Conforme caminhava pelo apartamento, em direção a
escada que levaria para o meu quarto, me permiti agir como se não tivesse
um milhão de coisas para fazer em um tempo muito curto.
Corri os olhos pelo lugar, percebendo que a minha governanta havia
comprado novas flores e as espalhado no espaço que eu usava para meditar
— um hábito que acabei desenvolvendo por influência da minha mãe, depois
que ela criou um espaço apenas para isso no meu apartamento.
Entre ser uma neurocirurgiã renomada e uma mãe incrível, Tatiana
adorava brincar com decoração e sempre que vinha me visitar, mudava tudo
na minha casa.
Isso acontecia com tanta frequência que mal me dava ao trabalho de
me acostumar com os ambientes, porque sabia que quando menos esperasse,
ela apareceria aqui e no dia seguinte tudo estaria diferente. E honestamente?
Não me importava com isso.
Minha mãe se sentia culpada por morar longe de mim desde o
divórcio, e os seus pequenos surtos para deixar o meu apartamento mais
aconchegante era o seu jeito de cuidar de mim e se desculpar pela ausência,
mesmo que eu insistisse que não havia nada que precisasse se culpar.
Meus pais se divorciaram quando eu tinha dez anos, de forma
amigável e por decisão mútua. Eles estavam em momentos diferentes da
vida e apesar de ainda se amarem muito, tinham planos distintos sobre o que
almejavam para o futuro.
Quando Tatiana recebeu uma oferta para trabalhar em um hospital em
Boston, eles chegaram à conclusão de que não precisavam permanecer em
um casamento para continuar se amando e se respeitando. Eles se
apaixonaram na faculdade — quando eram apenas melhores amigos — e
durante todo o casamento, permaneceram sendo amigos e,
consequentemente, foram os melhores pais que uma criança poderia ter.
Eu fui o milagre dos dois, a minha mãe havia tentado engravidar
várias vezes e nunca deu certo, diversos tratamentos não funcionaram e
segundo ela, a sua fé me trouxe ao mundo. E por isso, ela se esforçava para
ser a melhor mãe que eu poderia querer.
Era bobagem da sua parte acreditar que me ressentiria por ela ter se
mudado para Boston e me deixado com o meu pai. Eu não era inocente,
sabia que a rotina de um cirurgião era ensandecida e que ficaria a maior
parte do tempo sozinha com uma babá. E eu nunca julgaria a minha mãe por
correr atrás da sua carreira.
Meu pai era o melhor do mundo, e amava passar as minhas tardes
depois do colégio na Alpha, acompanhando toda a movimentação do
mercado, os palavrões que eles soltavam quando algo acontecia; e era
divertido ver um bando de marmanjos se desdobrando para lembrar que
tinha uma garotinha acompanhando tudo o que eles faziam.
Fora isso, também pude viajar pelo mundo na companhia do meu
herói, enquanto o acompanhava nas suas viagens de trabalho.
Se eu tivesse ido com a minha mãe para Boston, nunca teria
descoberto a minha paixão pelo mercado financeiro, já que meu pai no início
era totalmente contra o meu envolvimento com o seu trabalho.
Não que ele não confiasse na minha capacidade, mas o mercado era
uma merda para as mulheres. Os homens nos viam como símbolos sexuais e
acessórios para captar cliente durante uma reunião. Éramos constantemente
desrespeitadas, subestimadas, constrangidas e jogadas de escanteio. Nossa
opinião era invalidada se não houvesse o selo de aprovação de um homem, e
eles se sentiam no direito de nos assediar — porque na cabecinha de merda
deles, se optávamos por trabalhar em um ambiente predominantemente
masculino, significava que queríamos a atenção deles.
Basicamente, ser mulher no mercado era um inferno e a última coisa
que meu pai desejava, era que eu lidasse com isso.
Miguel era superprotetor e se pudesse, me esconderia em uma redoma
impenetrável para que os problemas do mundo nunca me atingissem.
Convencê-lo de que eu podia dar conta dos julgamentos e das críticas foi
fácil, difícil mesmo era ter estômago para lidar com os olhares tortos, os
comentários ofensivos e os apelidos pejorativos.
Se me defendia, era censurada. Se ficava quieta, era criticada.
E para cada ofensa, desdém e piadinha, a minha resposta era continuar
me esforçando o triplo para mostrar que eu estava acima dos julgamentos.
Eu era totalmente ciente dos meus privilégios. Nasci em uma família
que me concedia a liberdade de não precisar trabalhar um único dia da
minha vida, mas isso não significava que eu era uma porta — que só
pensava em futilidades e não sabia a merda que era a realidade das pessoas
que não nasceram com o meu sobrenome.
E, infelizmente, minha conta bancária não mudava o fato de que para
ser levada a sério, eu precisava me esforçar dez vezes mais do que qualquer
outro, e que na minha situação, meu sobrenome mais me prejudicava do que
ajudava.
Eu trabalhava sem dias de descanso, sem intervalos… sequer me
recordava da última vez em que tive um horário de almoço que não tivesse
sido na frente de um computador ou em reuniões comerciais.
A pressão da inscrição do estágio não seria a primeira vez que
precisaria me desdobrar em mil para provar que sou capaz de conseguir algo
sem a influência do meu pai. Eu daria conta, mesmo que estivesse me
sentindo na beira do precipício da minha sanidade mental.
Suspirei, cansada.
Sem pressa, entrei no meu quarto e deixei a taça de vinho em uma
mesa de apoio para me despir. Com o corpo em frangalhos, caminhei para o
banheiro, liguei a torneira da banheira e espalhei sais de banho na água.
Eu só precisava de trinta minutos relaxando, antes mergulhar nos
relatórios que a Bentley & Hathaway enviou para a minha inscrição, e na
melhor das hipóteses, conseguiria até cochilar uma ou duas horas antes de
começar a minha rotina na manhã seguinte.
A música baixa criou uma atmosfera gostosa e afundei o corpo na
água morna, bebendo um gole de vinho e relaxando no apoio.
Minhas costas estalaram, reclamando pela ausência de intervalos ao
longo do dia e fechei os olhos, deixando que a voz de Lana Del Rey fosse a
única coisa que ecoasse em minha cabeça.
Sem lista de tarefas pendentes.
Sem e-mails que eu precisava responder.
Sem mensagens que se acumulavam a cada segundo.
Apenas a música preenchendo a minha mente.
Afastei as folhas espalhadas, procurando pelo telefone perdido que
não parava de vibrar. Pelo horário, eu sabia que apenas três pessoas
poderiam estar me ligando: Bianca, Antônio ou o mais provável: meu pai.
E como ele estaria em Pequim pelos próximos dois dias, não me
surpreendi quando encontrei o seu nome na tela do celular. A chamada no
FaceTime foi atendida prontamente e não pude conter o sorriso que rasgou
os meus lábios ao vê-lo.
Os fios castanhos estavam mais curtos do que na última vez que nos
falamos, a pele clara estava bronzeada pelo seu fim de semana na fazenda
dos meus avós e os olhos verdes me fitavam sem a seriedade que todos
costumavam encontrar.
— Eu deveria me preocupar por você estar acordada às três da
manhã? — perguntou, franzindo o cenho e tirei os óculos de leitura, o
abandonando em cima das folhas e me levantei, indo para a sala de estar e
me jogando no sofá branco.
— Nada demais, só cuidando de algumas coisas que o meu orientador
passou — falei, com um sorriso tranquilo.
Isso não convenceu o meu pai, ele me conhecia melhor do que
qualquer um e sabia quando estava mentindo.
— É a inscrição para o estágio da B&H?
Assenti, ouvindo o seu suspiro baixo.
Meu pai não concordava com a ideia de começar minha carreira em
outro escritório que não fosse a Alpha, mas ele respeitava e apoiava as
minhas escolhas acima de qualquer coisa. Por isso, tinha certeza de que
assim que soubesse da abertura das inscrições, ele me ligaria.
— Qual o nível de dificuldade?
— Nada que eu não dê conta.
— Eu não duvido de você, minha menina — disse, carinhoso. — Mas
soube que o prazo é bem apertado. É por isso que está acordada?
Concordei, virando o rosto para a mesa em que estava trabalhando
minutos atrás e quando voltei a olhar para a tela, meu pai me observava com
preocupação.
— Quando foi a última vez que dormiu uma noite inteira?
— Não se preocupe, papi… está tudo bem.
Ele riu, sem humor.
— Acha mesmo que mandar um pai não se preocupar vai surtir efeito,
fadinha? — indagou, e não pude esconder o sorriso ao ouvi-lo me chamar
pelo apelido de quando eu era criança. — O que posso fazer para ajudar?
Meu sorriso morreu e fechei a cara, olhando-o séria.
— Nada — frisei. — Você fez uma promessa, não se esqueça.
Miguel revirou os olhos e concordou, caminhando para a área externa
do seu quarto de hotel. Eram duas da tarde em Pequim, e meu pai tinha o
hábito de sempre me ligar ao menos duas vezes no dia para checar se estava
tudo bem, ou se eu precisava de alguma coisa.
— Cumpro com a minha palavra, fadinha.
Quis muito acreditar nisso, afinal, havia sido meu pai quem me
ensinou o quanto a nossa palavra valia. Mas o conhecia e sabia que ele não
media esforços para que eu tivesse as coisas que queria, e apesar de ter sido
muito clara com ele sobre não querer a sua interferência de forma alguma,
ainda tinha ressalvas.
Meu pai era próximo de Benjamin, CEO da Bentley & Hathaway, e eu
esperava que ele mantivesse a minha inscrição em segredo e não tentasse
ajudar. A última coisa que precisava era receber um empurrão da influência
dele para garantir minha vaga.
Primeiro, porque não era justo com os outros que se inscreveriam e
que queriam isso tanto quanto eu; segundo, porquê receber a sua ajuda seria
o mesmo que confirmar para todo mundo que eu não conseguia nada sem os
contatos dele.
— Papi… — suspirei, sentindo as pálpebras pesarem e o sono
começar a bater —, promete que não vai falar com o Benjamin sobre isso?
Ele se calou, provando que eu não estava tão errada na minha
desconfiança.
Encarei-o, quase suplicando para que atendesse o meu pedido e com
um suspiro descontente, ele acenou.
— Como você quiser, fadinha.
Sorri fraco, ainda incerta porque mesmo que ele me prometesse que
não iria interferir, não tinha certeza se, caso fosse aprovada, a insegurança
me abandonaria.
E se eu só fosse aceita porque viram na ficha quem era o meu pai?
— E como andam as coisas no escritório depois da fusão?
Prendi o lábio inferior entre os dentes, me dando conta de que ainda
não tinha contado para o meu pai sobre a decisão de pedir demissão. Havia
sido uma escolha tomada na hora do ressentimento por Roberta não ter
ficado do meu lado na discussão com Guilherme, e por ter tratado o meu
pedido por respeito da parte dele — principalmente, depois do que
aconteceu alguns meses atrás —, como se eu estivesse agindo como uma
criança birrenta e egoísta.
Afinal, se o novo sócio tinha o direito de subir o tom de voz comigo
na frente de todos os associados e me tratar como sua empregada, qual era a
necessidade de continuar ali?
— Foi a melhor decisão que poderia ter tomado, minha menina —
falou, me tranquilizando depois que terminei de explicar o que havia
acontecido, obviamente, excluindo detalhes que o fariam pegar o primeiro
voo para cá; apenas para acabar com a carreira do Guilherme. — Se não
sabem valorizar alguém que fez muito por eles, o próximo passo é ir em
frente sem olhar para trás.
Assenti, aliviada de saber que tinha o seu apoio.
— Mas ainda não vou voltar para a Alpha — declarei, o encarando
irredutível.
Papai riu, concordando.
— Esperarei pelo nosso acordo, fadinha.
— Isso vai demorar ainda.
— Não sei…
Revirei os olhos.
— Você ainda não vai se aposentar, Miguel Gama.
— Não, mas estou ficando velho, minha menina…
— Tá nada, deixa de besteira.
Meu pai sorriu e bebeu um pouco de uísque, relaxando na poltrona
atrás e voltou a me encarar através da tela do celular.
— Se aceita um conselho do seu velho pai… — disse, dramático. —
Por que não tira os próximos meses para descansar antes de voltar para
Nova Iorque? Não lembro de quando foi a última vez que você tirou férias.
Papai pode mandar um avião para te levar onde quiser…
Sorri, sentindo o peito aquecer com o seu cuidado.
— Ainda não tenho certeza se vou para o estágio, pai… existe um
processo seletivo. Só vou tomar uma decisão quando a minha ida for uma
certeza.
Miguel arqueou a sobrancelha, inconformado.
— Você tem um currículo invejável, se formou com honras em uma
das faculdades mais exigentes da Ivy League, se esforçou para se
especializar em várias áreas e reergueu sozinha um escritório quebrado,
Nathalia….
Meu pai quase nunca me chamava pelo meu nome, ou era sua fadinha
ou sua menina, mas quando estava me dando esporro ou puxando meus pés
para me manter estável e confiante, meu nome escapava dos seus lábios
como uma forma de demonstrar que falava sério.
— Se fosse no meu escritório… assim que colocasse os olhos no seu
currículo, você estaria na minha equipe.
— Você é meu pai, só diz isso para não me desanimar.
Ele estalou a língua, dispensando o meu comentário.
— Sou o seu maior fã, fadinha, e o homem mais orgulhoso do mundo
pela filha incrível que tenho a honra de amar e proteger. — Sorriu de canto,
passando a mão pela cabeça e com os olhos verdes fixos nos meus. — Mas
eu nunca mentiria para você.
Isso me confortou, eu detestava que escondessem coisas de mim ou
que falassem o que acreditavam que eu queria escutar. Meu pai depositava
muita fé em mim, mas nunca mentiu ou disse algo que não acreditava, só
para me agradar.
— E se isso te conforta um pouco… os candidatos são avaliados
primeiro pelos trabalhos que entregam e pelas cartas de recomendação, só
depois disso que as fichas pessoais são analisadas.
Suspirei aliviada, sentindo os ombros relaxarem.
Ninguém saberia que eu era sua filha até a última etapa, isso me dava
um pouco mais de confiança.
— Agora, por favor… durma, fadinha. Ou sua mãe vai acabar
batendo na sua porta com uma intervenção.
Ri baixinho, concordando.
— Tudo bem… obrigada, papi — falei, sincera. E ele sabia que não
era apenas por me acalmar que eu estava agradecendo, mas por tudo o que
sempre fez por mim.
Nenhum outro homem seria capaz de mover mundos e fundos por
mim sem se preocupar com as consequências, apenas ele.
— Qualquer coisa por você, minha menina. — Prometeu. — Amo
você.
— Amo você, papi.
Desviei a atenção dos gráficos derretendo e do banho de sangue que
havia preenchido a minha tela, e a direcionei para a porta que abriu e
permitiu que o meu sócio entrasse.
— Estou ofendido, Renatinho… você não me deu bom dia hoje —
reclamou Leandro, fechando a porta atrás de si e caminhando na minha
direção com um sorriso radiante estampado nos lábios.
Eu nunca entenderia qual havia sido o pecado que cometi em outras
vidas para que justo nessa, precisasse lidar com o Leandro diariamente.
Todo castigo era pouco perto disso.
Desci os olhos para o relógio no meu pulso, conferindo o horário e
percebi que passava de três da tarde. Estava tão concentrado no trabalho
que não tinha visto a hora passar, e se os papéis não estivessem sangrando
na tela, não duvidava que Leandro teria aparecido aqui horas atrás.
— Conversei com a diabinha — comentou, com um ar falsamente
casual.
Alcei a sobrancelha, abandonando o celular em cima da mesa e
deixando para responder Henrique Zimmermann em outro momento. Mirei
Leandro em sobreaviso, aparentemente, o meu alerta para que maneirasse
nos apelidos não tinha valido de nada.
— Pare de chamá-la assim.
Leandro estalou a língua, sorrindo pretencioso.
— Já está com ciúmes, Renatinho? — provocou, apertando os olhos.
— Pensei que demoraria mais tempo para isso acontecer.
O vinco na testa foi inevitável e sabendo que me arrependeria de dar
corda para ele, a pergunta escapou dos meus lábios:
— Do que está falando?
— Nathalia, não é óbvio? — Rolou os olhos, como se eu fosse uma
criança que estava aprendendo o básico. — Conheço você há anos, eremita,
sei quando alguma coisa está acontecendo.
Foi a minha vez de revirar os olhos.
Por que eu ainda esperava algo sério vindo dele?
— Não comece.
— Não comecei nada, foi você que quase me escalpelou ontem por
estar perto dela.
Leandro se levantou, caminhando para o bar do outro lado da sala e
serviu uma dose de uísque com gelo, virando todo o líquido de uma vez
antes de se servir novamente e me entregar um copo, oferecendo um brinde
silencioso.
— Eu esperava que você acabasse se dando conta disso rápido, mas,
não pensei que seria no primeiro encontro… — refletiu em voz alta,
voltando a relaxar na poltrona e aproximou o copo dos lábios, absorto. —
Acho que Gabi está certa, e esse lance de amor à primeira vista realmente
acontece fora dos livros que ela lê.
Pigarreei, repreendendo a brincadeira e tudo o que recebi de volta, foi
um sorriso cínico.
— Sempre soube que essa sua vida de monge te faria ser um boiola,
eremita…
Bebi o líquido âmbar em um gole, relaxando os ombros e me levantei
para esticar os ossos depois de tanto tempo sentado na frente do
computador.
— Sabe, em alguns momentos, me pergunto quantas pedras atirei na
cruz para precisar aturar você — murmurei, indisposto para lidar com as
suas piadinhas.
O dia estava sendo mais desafiante do que o habitual e a última coisa
que precisava, era que Leandro decidisse ver coisa onde não devia.
Seus olhos brilharam em êxtase, saber que conseguia me perturbar
era a sua maior diversão e Leandro tinha como missão de vida testar todos
os limites da minha paciência.
Dei as costas para ele e me aproximei da parede de vidro,
acompanhando a movimentação que acontecia lá embaixo.
A Av. Paulista estava agitada como todos os dias. As pessoas
caminhavam de um lado para o outro e pareciam formigas daqui de cima;
um helicóptero sobrevoou não muito distante, pousando no heliponto do
prédio vizinho. O clima mudou drasticamente comparado a como estava
naquela manhã. O céu nublado havia desaparecido e deu lugar a um sol que
era capaz de esquentar a minha pele mesmo através da vidraça.
— Sei, sei… aquele discurso de “não ignorar os sentimentos” era pura
balela, né? — zombou, atraindo a minha atenção para si e girei nos
calcanhares, escondendo uma mão no bolso e segurando a bebida com a
outra. — Vou precisar ter uma conversa com a Maria Júlia e contar que deu
um conselho de merda para ela, já que nem você segue.
Isso acabou me arrancando uma risada baixa. Lembrar da sua prima
sempre me causava certa diversão. Nunca pensei que aconselharia a Maria
Júlia sobre a sua vida amorosa, mas ficava feliz quando lembrava que a
ajudei de alguma forma com seus problemas, e que isso fez com que
deixasse as ressalvas de lado para entrar em uma relação com o jogador de
futebol que jurava detestar.
Era irônico como as palavras tinham o poder de se voltar contra a
gente quando menos esperávamos, e eu a usava como um lembrete diário de
nunca apostar contra as vontades do destino. Ele tinha um péssimo senso de
humor e adorava nos fazer engolir as nossas próprias palavras.
A prova disso era que a mulher que gritava aos quatro cantos do
mundo que nunca se envolveria com um jogador de futebol, estava em um
relacionamento com um dos melhores atletas da Europa e, inclusive, estava
de mudança para Madrid para ficar perto do namorado.
Antes que pudesse responder Leandro, uma batida ecoou e virei o
rosto a tempo de ver o pedaço de gente que correu na minha direção. O
sorriso que tomou os meus lábios foi involuntário, e pude me agachar a
tempo de ter os dois braços pequenos ao redor do meu pescoço, me
enlaçando em um abraço apertado e saudoso.
Quem visse de fora, pensaria que não nos víamos há dias, quando na
verdade eu tinha deixado ele com a sua babá pela manhã.
Levantei-me com Matheus no colo, agarrado a mim como um
pequeno bicho-preguiça. Seu rosto escondido na curva do meu pescoço e os
dedos minúsculos apertando e soltando o meu cabelo, puxando em um
hábito que tinha desde… sempre.
Afastei-me o suficiente para admirar o seu rosto, sentindo o peito
aquecer ao encontrar com o par de olhos verdes que me fitavam de volta.
Ele tinha melhorado naquela manhã e o fato de não ter tido febre de
madrugada, fez com que acordasse cheio de energia.
Enquanto a única coisa que Igor herdou da genitora foram os olhos
— e todo o restante era meu —, Matheus ficou com um pouco mais da
aparência de Flávia do que os olhos; os fios lisos e dourados cresciam
rápido demais e precisei arrastar os dedos em sua testa para afastá-los.
Eu precisava levá-lo para cortar o cabelo o quanto antes, da última
vez que passamos do prazo habitual, o pirralho usou a tesoura do irmão
para cortar as mechas que o incomodavam — o que resultou em um
desastre capilar. Ironicamente, foi o único momento desde que nasceu que o
seu cabelo demorou para crescer.
Enquanto o Igor era calmo, Matheus era uma força da natureza.
Nunca se cansava, sempre hiperativo, sorria para Deus e o mundo e…
amava tanto super-heróis que estava me visitando com a fantasia do
Homem-Aranha que compramos durante as férias na Disney algumas
semanas atrás.
— Papaaaai! — Suas mãos capturaram o meu rosto, uma de cada
lado da bochecha e um sorriso rasgou os seus lábios, evidenciando as
covinhas profundas.
— Que honra receber a visita de um super-herói… — meus dedos
alcançaram a sua barriga, fazendo cócegas e ele gargalhou em resposta, me
arrancando um sorriso ainda maior. — À que devo a visita?
Minha pergunta tinha sido direcionada para Mara que nos observava
da porta com um meio sorriso. Ela acenou para Leandro, que a
cumprimentou como se fossem velhos amigos.
— Ele estava meio chateado de ficar sozinho em casa e pediu para vir
te ver — explicou Mara.
Aquiesci, agradecido.
Fui muito claro quando a tranquilizei sobre o que deveria fazer nesse
tipo de situação. Quando a fusão foi decretada e a localização da sede do
escritório ficou definida, fiz questão de mudar para perto — dessa forma, eu
chegaria rapidamente neles, caso precisassem.
Meus filhos só tinham a mim e se precisasse largar todos os meus
compromissos do dia para dar o que necessitavam, seria o que eu faria, sem
hesitar.
— Qual foi o problema, pequeno-aranha? — Perguntei, olhando-o
com carinho e ele fez bico, bravo. Matheus me soltou para cruzar os braços
em frente ao peito, indignado.
— É Homem-Aranha, papai! — corrigiu.
Sorri, era inevitável que eu ficasse como um idiota a cada coisa que
ele falava para mim.
— Desculpe, Homem-Aranha — falei, segurando-o firme em meus
braços. — O que houve?
Se o seu bico anterior conseguia alcançar a vidraça atrás de mim, o
novo seria capaz de chegar ao continente vizinho.
Meu caçula tinha uma aptidão única para as artes dramáticas, e
quando as íris marejaram devido as lágrimas acumuladas, pensei que estava
pronto para o motivo que ele daria…, mas fui pego desprevenido ao escutar
o seu lamento:
— Fiquei com saudades! — disse, me fazendo perder a compostura.
Como um idiota refém dele, indiquei com os dedos que aproximasse
o rosto e Matheus colou a sua testa na minha, deixando um beijo na ponta
do meu nariz.
— Também senti a sua falta, Homem-Aranha — confidenciei,
ganhando um sorriso radiante em resposta.
Deixei um beijo na sua testa, e os seus braços se apertaram em volta
do meu pescoço novamente. Aproveitei a sua distração com a cidade atrás
de mim, para conversar com a sua babá.
— Docinho, papai? — pediu, manhoso, quando Mara terminou de me
contar sobre a manhã dele.
— Você almoçou? — Espreitei os olhos.
— Siiiim! — Vibrou, animado. — Bócolis, cenoura, abóbora… —
começou a listar tudo o que comeu no almoço, erguendo um dedo para cada
ingrediente que completou o seu prato. — Né, Dadá? — perguntou para a
mulher do outro lado da sala.
Mara assentiu, corroborando a história dele.
— Certo, e o que você quer? — perguntei, vendo-o refletir e me
aproximei da mesa, pegando o celular para enviar uma mensagem a um
cliente com quem teria reunião em uma hora.
Por sorte, ele tinha enviado mensagem alguns minutos atrás avisando
que seu avião atrasaria para decolar e acabaria se atrasando. Como Rodrigo
Werneck era mais do que um cliente, mas também um amigo de longa data,
sabia que não seria um problema para ele que me atrasasse um pouco para
nossa reunião — caso chegasse antes de mim.
— Titio, você vem? — Matheus perguntou para o Salazar, batendo os
cílios de um jeito teatral.
Leandro, com toda a delicadeza de um ogro, deu um peteleco na
ponta do nariz do Matheus e dispensou o convite.
— Não adianta fazer essa cara pra mim, pirralho… não sou boiola por
você igual o seu pai.
Meu filho tomou isso como um desafio e caprichou na expressão
pidona, unindo as duas mãos próximo ao queixo e ampliando o beiço que já
estava enorme; e para completar, adicionou mais lágrimas nos olhos para
intensificar sua chantagem.
Leandro torceu os lábios, virando o rosto para o lado oposto e fingiu
não se importar.
— Nem vem, pirralho… nem vem! — Saiu pisando duro, arrancando
uma risadinha travessa do meu filho.
— Mara, quer vir conosco? — convidei, vendo-a balançar a cabeça
em negação.
— Se importa se eu der uma volta no shopping? Preciso comprar
alguns lençóis de cama para os garotos.
Concordei, deixando que ficasse livre para fazer o que precisava.
Mara era, além de babá dos garotos, nossa governanta. Ela ficava
responsável por monitorar as moças que cuidavam da limpeza e das nossas
refeições, e apesar de eu insistir que poderia contratar mais pessoas – se
fosse necessário –, ela negava e dizia que fazia tarefas como aquela por
puro prazer.
— Docinho? — Matheus voltou a pedir quando desliguei o
computador, o brilho arteiro tomando seu rosto me arrancou um sorriso.
— Certo, só porque se comportou e tomou os remédios, ok?
— Ok!
Coloquei ele no chão para sairmos do escritório e ao reconhecer a sua
curiosidade pelo ambiente novo, dediquei alguns minutos para apresentar o
piso em que estávamos para ele.
Apesar de estudarem em tempo integral, era comum que
frequentassem o lugar em que eu trabalhava quando tinha reuniões até mais
tarde. Eu tentava manter os meus compromissos dentro do horário em que
eles estavam no colégio, mas às vezes acabava sendo inevitável. Então,
familiarizá-los com o espaço era importante para o caso de uma necessidade
futura.
Quando terminou de bisbilhotar uma das salas de reunião e girar na
poltrona, a sua atenção foi roubada pela mulher que caminhava na nossa
direção concentrada em algo no iPad.
Usando uma blusa de um ombro só, em um tom de terracota idêntico
ao cinto sobre a calça branca de linho que usava, Nathalia parecia muito
alheia ao que acontecia ao seu redor.
Matheus abandonou a poltrona que estava brincando e me pegando
totalmente desprevenido, passou por mim como um pequeno furacão e
agarrou as pernas da garota, como se a conhecesse a vida inteira.
— Naaaath! — cantarolou, eufórico.
O que eu perdi?
Nathalia, diferente de mim, não ficou surpresa pela alegria do meu
filho em vê-la. Ao contrário, o sorriso genuíno que se abriu nos seus lábios
fez com que seus olhos quase se fechassem quando ela se agachou na frente
dele, que não demorou a envolver o pescoço da garota com os braços.
Pisquei, confuso.
— Papai vai me levar pra comer docinho! — Matheus cochichou
audivelmente, o que fez com que a garota trouxesse o olhar na minha
direção.
E se pensei que o seu sorriso de segundos atrás havia sido um dos
mais lindos que pude presenciar, Nathalia provou que poderia se superar.
— Sério? — Ela voltou para o meu filho, a mão livre acariciou as
bochechas cheias dele, deixando o polegar contornar a maçã corada. — Seu
pai é um cara muito legal.
Meu filho assentiu, concordando com ela e abraçou a garota
novamente.
— Quando se conheceram? — Deixei que a pergunta que ocupava a
minha mente escapasse.
— Encontrei eles na recepção quando chegaram e fiquei conversando
um pouco com ele e a Mara… — explicou Nathalia, se desvencilhando de
Matheus e ficando de pé, a sua mão ainda estava entrelaçada pela do meu
filho, que não parecia disposto a soltar. — Espero que não se incomode.
Neguei, intrigado.
— Não se preocupe — assegurei, descendo para encarar o pirralho
que tentava bisbilhotar o iPad que Nathalia segurava. —A propósito, como
está o seu dia?
Não pude deixar de notar que ela parecia abatida e como não saí da
minha sala em nenhum momento desde que cheguei, não fazia ideia de
como estavam as coisas no primeiro piso.
— Tudo sob controle — garantiu, e os meus olhos saíram dela para
um homem que se aproximava acompanhado de Bianca.
— Nathalia, querida… — O homem de cabelos grisalhos chamou,
atraindo a atenção da morena que se virou, abrindo um pequeno sorriso em
resposta.
— Gregório, como está? — ela cumprimentou, e acompanhei a breve
conversa casual entre os dois.
Chamei Matheus para perto com um gesto de mão e contrariado, ele
soltou a Nathalia que ao terminar de responder o elogio do homem, indicou
que entrasse na sala que meu filho brincava minutos atrás.
Assim que Gregório adentrou a sala de vidro, Matheus chamou a
garota.
— Quer comer docinho, Nath?
Ela olhou para ele cheia de ternura e sorriu angelicalmente.
Nathalia inclinou os ombros para baixo, curvando-se o suficiente para
olhar nos olhos do meu filho e afagou o seu rosto com delicadeza.
— Eu adoraria, pequeno herói… — ela imitou o beicinho que ele fez,
me arrancando um sorriso de canto. — Não faz essa carinha que eu não
resisto! — pediu, deixando um beijo estalado na bochecha dele. — Fica
para a próxima, combinado?
Matheus apertou os olhos, levando os dedos para o queixo e bateu o
indicador levemente, fingindo pensar.
— Promete?
Nathalia ergueu o dedo mindinho e sorriu, encantadora.
— De dedinho.
Assisti com certo fascínio quando os dois entrelaçaram os dedos,
selando a promessa e ainda que uma parte de mim tenha sido tentada a
impedir que Nathalia se comprometesse dessa forma — porque eu sabia que
Matheus não esqueceria —, acabei me pegando tão hipnotizado pela
interação dos dois que não pude emitir uma única palavra.
Nathalia e ele beijaram os dorsos de suas mãos, selando a promessa e
ela endireitou a postura, me dando um meio sorriso.
— Nos vemos por aí.
Acenei, vendo-a sumir para dentro da sala.
Não demorou para que Bianca saísse, diferente da amiga, a loira não
parecia tão confortável e isso não passou despercebido.
Bianca fechou a porta atrás de si e me encarou de rabo de olho,
bufando audivelmente.
— Algum problema?
— Sim — respondeu, curta e grossa.
Sem esconder o descontentamento, a loira se virou na minha direção
e me enfrentou como uma leoa prestes a atacar o predador do seu filhote.
— Se vocês querem que Nathalia fique no escritório, saibam que
encher ela de trabalho não vai fazer com que isso aconteça, ok?
— Como assim?
— Pergunte para a Roberta — disse ácida e sorriu petulante —, ah…
espera aí, não dá. Porque ela foi para a Europa e jogou toda a agenda dela
em cima da Nathalia!
— Eu não sabia disso.
— Pois é! Fique sabendo que essa garota trabalha aqui feito maluca,
faz sozinha o trabalho de dez pessoas e ainda assim, é tratada como uma
cadela qualquer pelos seus sócios — denunciou, colérica. — Hoje ela não
conseguiu ter uma refeição decente desde que chegou! Uma hora ela vai
cair dura e partir dessa para melhor, e a culpa será de vocês!
Bianca não me deixou dizer nada e saiu pisando duro.
Encarei a sala, diferente das que ficavam no primeiro pavimento que
eram inteiramente envidraçadas, aquela era fechada por paredes seladas
acusticamente, impossibilitando ver e ouvir o que acontecia lá dentro.
— Papai? — Matheus chamou, me despertando da confusão interna e
peguei sua mão, descendo até a confeitaria que ficava no complexo de
alimentação do condomínio.
Rodrigo se levantou da poltrona assim que atravessei a porta.
Havia acabado de me despedir do meu filho e do segurança que tinha
vindo buscá-lo bem a tempo da chegada de Rodrigo.
— Henrique fez um bom trabalho com a reforma — comentou, assim
que nos cumprimentamos com um abraço rápido e me afastei, indicando
que me sentasse. — Alicia me disse que a garota responsável por isso foi
uma pedra no sapato dele.
Sorri, sabendo que estava se referindo a Nathalia.
— Ela é ótima no que faz. — Foi tudo o que falei.
— Preciso conhecer ela. Se tirou o Sr. Eu Sou Melhor Que Todo
Mundo do sério, já ganhou pontos comigo… se quiserem demiti-la no
futuro, ofereço um cargo na W&D. — Sorriu presunçoso.
Revirei os olhos.
Por ter estudado no mesmo lugar que Pedro, Leandro e eu, Rodrigo
acabou convivendo bastante com os filhos de Ada e Hugo Zimmermann.
Entre os cinco herdeiros do casal, éramos mais próximos de Pedro e não era
um exagero dizer que não simpatizávamos com o irmão mais velho do
nosso amigo.
Enquanto Leandro e Rodrigo não iam com a cara dele por sua
personalidade, meu problema com Henrique seria sempre devido à maneira
que agia com o próprio irmão, e como parecia disposto a insistir em uma
rixa que só existia na cabeça dele.
Eu não tive irmãos, mas tive os meus amigos.
Leandro, Marc, Pedro, Fabio e até mesmo Rodrigo estiveram ao meu
lado em muitas fases complicadas da minha vida nos últimos anos, e eu
sempre compraria as suas brigas como se fossem minhas.
— Deixe Henrique em paz — alertei Rodrigo, sabendo que as
implicâncias que Leandro e ele tinham com o arquiteto só faziam com que
ele descontasse mais ressentimento no irmão.
Rodrigo revirou os olhos, mas me peguei encarando o iPad que
estava do outro lado da mesa.
Era impossível não o reconhecer porque o aparelho parecia fazer
parte do corpo de Nathalia, o que significava que se ela o tinha esquecido
ali, era porque estava atarefada demais para ter notado que deixou algo para
trás quando saiu da sala.
Antes que pudesse pedir licença ao Werneck para ir atrás dela,
entregar o aparelho, uma batida leve e cautelosa ecoou atrás de mim e
murmurei para que entrassem, vendo a porta abrir vagarosamente e o rosto
angelical surgir pela fresta.
As bochechas rubras denunciavam o seu constrangimento e me
levantei, pegando o aparelho para poupá-la de atravessar a sala para buscálo.
Lancei um olhar de sobreaviso para Rodrigo, que esticou o pescoço
para descobrir quem era a dona do corpo escondido atrás da porta, e
retornei para perto de Nathalia estendendo o iPad que ela rapidamente
capturou, soprando um pedido de desculpas.
Estava prestes a deixá-la ir embora, porém, meus olhos notaram que
Nathalia estava pálida demais. Antes que girasse nos calcanhares e se
afastasse, minha mão capturou o seu pulso e isso foi o suficiente para que
ela perdesse a força do próprio corpo.
Sua mão livre se fechou no meu braço, buscando por sustentação e
pude sentir as suas palmas geladas e úmidas. Ela piscou atordoada, tentando
se recuperar da tontura e eu lembrei do que Bianca disse mais cedo, passava
das cinco da tarde e eu apostaria o que fosse, na certeza de que Nathalia
ainda não tinha comido.
— Você está bem? — A pergunta retórica serviu apenas para checar
se estava me escutando, já que o seu olhar parecia desfocado.
Nathalia soltou o meu braço e levou a mão para a têmpora esquerda,
pressionando a região e desenhando círculos, como se isso ajudasse a se
livrar da tontura.
— Renato? — Werneck chamou, fazendo menção a se levantar e o
olhei por cima dos ombros, sério.
— Conversamos na minha casa.
Não tinha sido uma sugestão. Rodrigo era um dos meus amigos mais
antigos e poderíamos ter a mesma conversa agendada para aquele horário,
mais tarde durante a partida de futebol que estava programada para
assistirmos.
— Eu estou… só preciso me sentar dois segundos. — Nathalia tentou
se desvencilhar e de nada adiantou.
Eu não precisava ser médico para saber que ela teve uma queda de
pressão.
Mesmo com o ar-condicionado potente ligado o tempo todo,
mantendo o escritório com uma temperatura confortável, o clima na cidade
ficou muito abafado depois do almoço, e se ela não comeu nada o dia
inteiro… era normal estar hipotensa.
— Você precisa comer alguma coisa — salientei, a encarando firme.
Com cuidado, meu braço enlaçou a sua cintura, apenas para servir de
sustentação para que pudesse andar e a guiei pelo corredor até minha sala,
conforme éramos seguidos por Rodrigo.
— Tudo bem com ela? — perguntou, dividido entre a curiosidade e
preocupação.
— Sim. Nos encontramos mais tarde — falei, dispensando o Werneck
que assentiu vagarosamente.
Seu olhar se moveu para Nathalia, que praticamente se escondeu atrás
de mim, envergonhada pela situação. Rodrigo deu um passo para o lado,
implicando com a garota e deu um sorriso largo.
— Você deve ser realmente importante… porque o filho da puta me
fez sair de Niterói para encontrar com ele e agora tá me chutando pra fora
feito cachorro molhado por sua causa…
— Rodrigo — rosnei, o fuzilando.
O filho da puta sorriu como se tivesse acabado de descobrir que o
Natal aconteceria naquela noite e quando o seu olhar retornou para
Nathalia, não foi difícil saber que Leandro já tinha corrido para falar
besteira para ele.
— Saia daqui agora.
Werneck ergueu as mãos, inocente.
— Não está mais aqui quem falou.
Ele nos deu as costas, me deixando sozinho com Nathalia e
ignorando completamente o babaca, meu olhar recaiu nela. Seu rosto inteiro
ficou vermelho e ela sequer foi capaz de me olhar.
— Ignore ele… o cérebro deixou de evoluir quando entrou na
puberdade — disse, a tranquilizando para que desconsiderasse a falta de
noção dos meus amigos.
Nathalia deixou uma risada escapar.
— Posso andar sozinha, Renato… foi só uma tontura, já passou.
Assenti, sem me afastar e indicando que ela continuasse andando,
enquanto discava o contato do restaurante dentro do prédio e pedia por
alguma coisa para que comesse.
— Tenho uma reunião em cinco minutos com o…
— Foi cancelada.
— Mas…
— Cancelada, Nathalia — declarei, irredutível.
Ela suspirou derrotada e concordou, afastando-se para entrar na
própria sala que eu só descobri naquele exato momento que ficava ao lado
da minha.
Eu não tinha visto Nathalia o dia inteiro, e ela estava apenas a uma
porta de distância de mim.
Assim que me sentei no sofá, escondi o rosto nas mãos,
envergonhada pela cena que acabei causando sem querer.
Pensei que a tontura passaria depois de beliscar um doce qualquer
que encontrei perdido na bolsa, mas o tablete de chocolate apenas piorou a
situação.
Minha noite foi péssima, passei a maior parte da madrugada tentando
me encontrar no meio de toda papelada que Otto me entregou, e não tinha
certeza se consegui dormir mais que trinta minutos; antes que precisasse
estar de pé para cumprir com os compromissos do dia.
Eu levava uma rotina rígida e tentava ao máximo não vacilar nela
porque sentia que tudo daria errado se pulasse alguma etapa do dia.
Então, todas as manhãs às 05h00, eu estava na academia do Niké para
o treino de funcional e musculação, às 06h30 na quadra de tênis para
encontrar com o instrutor e às 08h00 na aula de yoga; às 09h30 chegava ao
escritório, e depois disso minha agenda era resumida em reuniões com
clientes, com as equipes operacionais e administrativas, sócios júniores,
fornecedores, advogados, corretoras, gestoras e qualquer outro que julgasse
que merecia tomar cinco segundos do meu tempo escasso.
Naquela semana em especial, tudo estava mais desafiante.
Além do estresse com a inscrição, também precisava cumprir com a
agenda de Roberta; que decidiu acompanhar um cliente no processo de
transferência da operação dele para a Europa — de última hora.
A agenda da Roberta somada com a minha; mais o estresse pela
quantidade de coisas que eu precisava fazer; o pouco tempo que tinha
disponível e o esgotamento que minha mente vinha tendo a cada segundo,
me fizeram esquecer completamente que saí de casa sem comer nada —
com exceção de café puro e o pré-treino que meu personal sempre
preparava.
Senti quando Renato se abaixou na minha frente e quis ter coragem
de olhá-lo nos olhos e pedir desculpas, mas ainda me sentia humilhada por
não ter previsto que isso poderia acontecer. Minha mente estava tão
atarefada que se não tivesse esquecido do iPad na sala, não teria atrapalhado
a sua reunião e muito menos causado toda essa situação.
— Ei — chamou, a voz grave soando estranhamente pacífica. —
Olhe para mim.
Com extremo cuidado e gentileza, seus dedos envolveram os meus
pulsos e os afastou do meu rosto, permitindo que pudesse me ver. Ergui o
queixo, abrindo os olhos e encontrando as íris castanhas me analisando.
Renato estava perto demais, o suficiente para que eu pudesse correr
os olhos pelo seu rosto, esquadrinhando mentalmente cada detalhe dele;
desde a barba que começava a crescer, aos fios castanhos desgrenhados do
seu cabelo… que meus dedos coçaram para emaranhar.
Suspirei baixinho e os seus lábios se ergueram em um sorriso de
canto.
Como se fosse algo natural de se fazer, Renato esticou os dedos e
afastou uma mecha do meu cabelo para trás e meio hipnotizada, tudo o que
pude fazer foi acompanhar quando ele endireitou os ombros e cravou os
olhos nos meus, intenso e quente.
Ignorei o arrepio que atravessou o meu corpo, quando senti o toque
suave dos seus dedos na minha pele. Com muito custo, tentei me
desvencilhar da prisão que o seu olhar me mantinha, mas foi em vão.
— Quando foi a última vez que você comeu?
Pisquei, sentindo a região que ele tocava formigar e endireitei os
ombros, sabendo que Renato me julgaria como irresponsável se eu
respondesse que não lembrava.
Aconteceu tanta coisa em um único dia, que o meu cérebro esqueceu
de registrar quando havia sido a minha última refeição, e se eu não estivesse
muito enganada… foi no almoço de anteontem, quando Bianca segurou o
meu rosto e forçou um risoto na minha garganta.
Antes que eu respondesse Renato, alguém bateu na porta semiaberta e
ele virou na direção, reconhecendo o que era e murmurou que entrassem.
Não foi difícil notar que o homem mais velho que se aproximava do sofá
era um médico. Ele me deu um aceno gentil e se voltou para Renato que
explicou sobre meu pequeno mal-estar.
Os minutos seguintes correram para mim de forma mecânica, o
médico desconhecido fazia perguntas e me reservei ao direito de balançar a
cabeça em resposta ou grunhir algo incompreensível. Estava me sentindo
tão cansada que a simples tarefa básica de emitir algumas palavras parecia
exigir mais do que eu era capaz de executar.
Depois de recomendar vitaminas, descanso e uma boa alimentação, o
médico nos deixou a sós. Antes que saísse, Samantha surgiu na sala com
uma sacola que cheirava muito bem e que fez com que o meu estômago —
até então adormecido — roncasse em resposta.
Samantha me olhou duramente, como se eu estar passando mal fosse
um enorme inconveniente para ela e depois de largar a sacola com Renato,
nos deu as costas e se afastou.
Pelo horário, soube que a maioria dos funcionários tinha ido embora.
Eles costumavam ir poucos minutos após o fechamento do mercado e
passavam algumas horas no bar da esquina do prédio, antes de irem
descansar.
Renato fechou a porta depois da partida de Samantha e se aproximou,
deixando os itens de cozinha que ela trouxe em cima da mesa de centro. Fiz
menção a ajudá-lo com os papéis espalhados, mas ele me lançou um olhar
firme.
— Quietinha. — A ordem foi gentil, apesar do olhar duro.
Suspirei, tateando o sofá para capturar o meu celular e encontrei
dezesseis chamadas perdidas, todas de clientes da Roberta que estavam
desesperados pelo que aconteceu durante as negociações naquela tarde.
Os sauditas ferraram todo mundo com o movimento de duplicar o
preço do barril de petróleo, e ainda que a precificação elevada não fosse
durar muito tempo e que todos soubessem que, em breve, os traders
forçariam a queda de uma forma ou de outra, isso não impedia que outros
papéis sofressem. Praticamente todos os produtos negociados na bolsa de
valores dependiam do petróleo, era normal o mercado inteiro se estressar
com uma alta inesperada.
E Roberta não podia ter viajado em um momento pior.
Seus clientes eram ansiosos, viviam na zona de conforto com os seus
portfólios e no menor sinal de estresse, se descabelavam e pediam para que
as pequenas alavancagens nas carteiras fossem liquidadas. Era
desnecessário assumir um prejuízo por não saber aguardar o momento ideal,
mas 90% dos clientes dela eram o que costumamos chamar de mão de
alface.
E sem a presença da pessoa que os acalmava, sobrava tudo para mim.
— Você não consegue desligar por cinco minutos? — perguntou
Renato. Não havia repreensão na sua voz, apenas curiosidade.
Suspirei, bloqueando o aparelho quando o nome de outro cliente dela
surgiu na tela e o deixei de canto, percebendo que Renato tinha pedido um
jantar completo. No meu caso, seria um almoço-janta.
— Não — falei, sincera.
Meus olhos subiram para os seus, encontrando um meio sorriso
repleto de compreensão e ele indicou para a mesa de centro, que cheirava a
comida nordestina.
Meu estômago roncou vergonhosamente e pude reconhecer os pratos
que ele pediu no Caruru, um dos melhores restaurantes da cidade,
especialista em comida nordestina e que tinha uma de suas lojas na
cobertura da torre vizinha. O estabelecimento era do chefe baiano, Heitor
Tourinho, e o nome era uma referência ao carro-chefe da casa.
— Deduziu que eu gosto de comida nordestina por causa das
perguntas que andou fazendo por aí? — perguntei, ignorando o seu olhar
compenetrado em mim.
Renato era tão bonito que me perturbava. E parado a menos de cinco
centímetros de distância, me olhando de cima… era impossível não ser
intimidada por toda a imponência que ele exalava. Como se soubesse
exatamente o que causava nas pessoas, Renato abriu um meio sorriso e
balançou os ombros em resposta.
— Sou ótimo no que faço.
Acompanhei o seu sorriso, aceitando a mão que me ofereceu e
ignorando o arrepio que correu pelo meu corpo quando os seus dedos
envolveram o meu pulso.
Engoli o suspiro que ameaçou escapar e o acompanhei para nos
sentarmos nas almofadas que colocou perto da mesa.
— É o que você diz — impliquei, sorrindo fraco e permiti que
servisse o meu prato. — Não vai comer?
Renato endireitou os ombros e esticou a mão, aceitando o meu
convite, afinal, ele exagerou no pedido e eu jamais seria capaz de comer
aquilo tudo sozinha. Um gemido baixinho escapou do fundo da minha
garganta ao sentir o gosto do purê de mandioquinha, e empurrei o cuscuz
temperado para que experimentasse também.
— Meu avô costuma cozinhar sempre que vou para fazenda —
contei, soltando um suspiro e me desfiz dos saltos, sentindo o seu olhar
curioso. — A especialidade dele é o baião-de-dois.
— Ele é baiano, não é?
Assenti, não era estranho que soubessem quem eram os meus avós e
o meu pai, os três eram reconhecidos no meio e qualquer um que se
mantivesse minimamente bem-informado sobre as corporações mais
lucrativas saberia o básico sobre eles.
— Sim, viveu em Trancoso por alguns anos, mas se mudou depois
que se formou na WHU[11]
… — expliquei, distraída com as opções de
aperitivos.
Certo, ele definitivamente pediu comida demais.
— Você cresceu aqui? — questionou, intrigado —, digo, no Brasil.
Balancei a cabeça, bebericando um pouco da cachaça de jambu com
água tônica.
— Não. Mas vinha com frequência quando era criança,
acompanhando o meu pai e meu avô nas viagens de trabalho…, mas vivi a
maior parte do tempo entre Manhattan e Medellín. — Seu olhar não se
distanciou nem por um segundo, observando com certa diversão enquanto
eu descascava o pão caseiro. Odiava as rebarbas que ficavam neles e era
uma coisa que eu fazia no automático. — Só me mudei para cá quando
comecei a trabalhar com a Roberta.
— Como se conheceram?
Alcei a sobrancelha, achando graça na pergunta.
— Ela nunca te contou?
Renato acenou em negativa, descansando as costas no sofá atrás dele
e apertando os olhos no meu rosto, me dando a chance de contar a história,
se assim quisesse.
Nunca me considerei tímida, ao contrário, sempre fui boa em fazer
amizades depois de um certo tempo. Mas algo no olhar do Renato me
estimulava a continuar falando sem parar e precisei ponderar por alguns
segundos, antes de relaxar os ombros e explicar para ele como a minha vida
mudou drasticamente.
— Conheci ela através da Celine, tecnicamente…. um cara com
quem eu estava saindo na época era amigo do namorado da filha dela.
Tentei resumir o máximo de informações que pude, mas não
duvidava que ele estivesse disposto a passar a noite escutando cada detalhe
daquelas semanas insanas.
— Acabei indo ao churrasco de aniversário da Celine e nós
conversamos bastante, foi quando ela comentou comigo sobre a Roberta e o
que aconteceu com o escritório — expliquei, o observando acenar. — Na
época, eu estava passando uma temporada na cidade… e a Celine me
convidou para um jantar na casa dela. A Rô também estava lá e uma coisa
levou a outra, sabe?
Renato meneou a cabeça, compreendendo.
— Começou com um suporte enquanto ela se reunia com os clientes
que estavam prestes a sair do escritório, e meio que nos saímos bem
trabalhando juntas. Aí veio a oferta de trabalho e seguimos aos trancos e
barrancos até… agora.
Dei de ombros.
— Foi um bom trabalho — elogiou, sincero.
— Obrigada. — Sorri, contendo a timidez que me atingiu com o seu
elogio e aceitei quando ele empurrou a manteiga temperada. — Reerguer a
RCI foi uma das coisas mais incríveis e desafiantes que já pude fazer, fico
orgulhosa de tudo o que construímos nos últimos anos.
Ele sorriu fraco.
— E ainda assim, está disposta a abrir mão disso por causa da minha
presença.
Abri e fechei a boca, sem emitir um único ruído em resposta para o
comentário. Renato não conseguia ao menos fingir que não sabia que eu
estava pedindo demissão por causa da fusão com eles? Eu pensei que havia
sido convincente quando disse que apenas não me enxergava tendo futuro
aqui.
— Não necessariamente por sua causa — esclareci, o encarando com
sinceridade.
Renato não pareceu acreditar na minha resposta, e juraria por
qualquer coisa que não havia sido especificamente com ele.
Toda essa situação era uma junção de coisas que aconteceram nos
últimos vinte e quatro meses, que me levaram à conclusão de que para
Roberta, eu era apta para tudo dentro do escritório exceto para ter um lugar
na mesa com ela.
Eu não esperava que me colocasse como sócia-fundadora ou qualquer
coisa assim. Mas queria que ela garantisse que existiria um próximo degrau
que eu poderia subir quando chegasse a hora.
Se Renato quisesse sinceridade, já me sentia assim antes deles
começarem a falar com ela. A fusão e o comportamento que a Roberta
passou a ter depois que não a apoiei na decisão, me fizeram ter certeza de
que eu não estava sendo exagerada.
Para a Roberta, eu era ótima para gerenciar o escritório; atender os
seus clientes; resolver os seus problemas; administrar todas as equipes e
qualquer outra coisa que ela precisasse… exceto ser mais do que a sua
sombra.
E não sabia até que ponto essa situação era culpa dela e onde
começava a ser minha.
Afinal, se chegamos nesse estágio da relação… eu também tinha uma
parcela de responsabilidade. Permiti que ela me visse como uma pessoa que
estava ali apenas para tirar do seu caminho o que dificultava a sua escalada
ao topo — onde estava antes do golpe.
Meu erro sempre seria esperar que as pessoas agissem comigo como
eu agia com elas. Um dia, talvez, aprendesse a minha lição.
— Posso ser sincera? — perguntei, apoiando os cotovelos em cima
do vidro da mesa e segurei o queixo em uma das mãos.
— Sempre.
— Não posso lidar com o seu sócio.
Admitir aquilo para ele me deixava vulnerável, mas o que eu tinha a
perder? Já estava saindo de qualquer maneira.
Um vinco surgiu na testa de Renato, como se estivesse tentando
descobrir de quem eu estava falando e preferi esclarecer de uma vez por
todas o causador do meu desconforto:
— Guilherme Bastos.
— Suponho que seja um dos motivos para que você e o Leandro
tenham se dado bem — comentou, com um meio sorriso. Não existia
diversão no comentário, mas pude reconhecer uma faísca de aborrecimento.
Sorri fraco, assentindo.
— Leandro é um cara legal. Gosto dele… mas não suporto o combo
que vem junto com vocês na fusão.
Renato aspirou o ar, vagarosamente, processando o que falei. E não
me importaria se ele pensasse que era imaturidade da minha parte não
conseguir ficar no mesmo ambiente que aquele cara. Roberta dizia isso há
meses, e se tinha uma coisa que meus pais me ensinaram era que: não
existia nada no mundo que me colocaria em posição de aceitar o
inaceitável.
Se Guilherme não me respeitava e eles apoiavam as suas ações, o que
eu continuaria fazendo ali?
Estava para nascer o homem que levantaria o tom de voz comigo e
me humilharia na frente de outras pessoas, e eu aceitaria de bom grado.
Roberta podia ter se acostumado com essa cultura de merda dentro do
mercado; de ser constantemente provocada, assediada e ter um filho da puta
a mandando calar a boca…, mas eu não.
Que loucura seria se eu, após ter sido criada pelo meu pai como uma
rainha, permitisse que esse tipo de coisa me acontecesse?
— Soube do desentendimento que ocorreu na primeira reunião de
vocês — murmurou Renato, sem dar muita atenção ao seu prato.
Meus ombros enrijeceram instintivamente.
Não gostava de quando a pauta sobre aquele dia retornava, porque
todos me fizeram parecer louca.
— Desentendimento? — perguntei, mordaz. — É assim que chamam
o que ele fez?
Renato piscou, parecendo não compreender do que eu falava. A
confusão que perpassou nas íris castanhas me fizeram perceber uma coisa
que me pegou em cheio e me tirou do eixo.
Ele não sabia.
E se soubesse e ainda pudesse se fazer de desentendido daquela
forma, ele deveria ganhar um prêmio pela atuação.
— Você não sabe — concluí, sentindo-me melancólica.
Renato trouxe os olhos para mim, não muito contente por terem
omitido algo dele.
Uma risada sombria escapou do fundo da minha garganta e deixei os
talheres de lado. Meu apetite desapareceu.
— O que te contaram?
— Apenas do problema com as cláusulas do contrato que ele
modificou sem autorização; que vocês discutiram sobre isso e Guilherme se
excedeu e faltou com o respeito com você.
Bem, foi a minha vez de ficar chocada.
Afastei-me da mesa, sentindo o rosto queimar como se tivesse
acabado de ser estapeada. A sensação do meu estômago afundando, fez com
que o pouco que havia comido revirasse ali dentro. Balancei a cabeça, sem
conter as lágrimas que ameaçaram escapar dos meus olhos.
— Pelo visto, você fez uma fusão sem estar a par de tudo o que
aconteceu nos bastidores — comentei, ácida.
Uma parte de mim tentou lembrar que não era culpa dele. Se Renato
não sabia, como poderia fazer algo a respeito? Contudo, outra parte… uma
que tinha muito carinho por Roberta, me fez considerar que ele estivesse
apenas fingindo não saber do que aconteceu para conquistar a minha
confiança.
Não era possível que ela tivesse escondido isso dele. Eu pude ver nos
seus olhos a sua revolta, quando entrei na sua sala em pânico e contei o que
Guilherme havia feito. Ela olhou nos meus olhos e disse que cuidaria da
situação, e depois disso, passei a conversar sobre a fusão apenas com o
advogado deles.
Ela me enganou para garantir que a negociação fosse concluída?
— O que houve naquele dia, Nathalia? — perguntou Renato, a sua
voz ganhou uma entonação sombria.
Pude reconhecer a raiva contida por ter sido enganado e bem, eu
compartilhava dela porque me sentia igualmente tapeada.
E no meu caso era pior.
Roberta era minha amiga… quer dizer, eu acreditava que era.
Eu dormi na casa dela naquela noite porque não queria ficar sozinha
no meu apartamento e Bianca estava fora da cidade. Confiei na sua palavra
de que resolveria o problema, e fui convencida por ela de que se eu
prestasse queixa, isso marcaria a minha carreira de uma forma muito pior
do que ser filha do meu pai.
— Eu… — gaguejei, sem palavras —, perdi o apetite.
Senti o ar fugir dos pulmões e levei a mão até o estômago por
instinto, sentindo-o embrulhar.
Renato se levantou e contornou a mesa, como se soubesse que estava
me sentindo mal. Sua mão veio em minha direção e a aceitei, de forma
mecânica, permitindo que me guiasse para a sacada da sala.
O vento gelado da noite paulista bateu em meu rosto com violência,
pinicando a minha pele como pequenas agulhas invisíveis e abracei o meu
corpo, me encolhendo contra o parapeito. O frio foi contido quando o blazer
de Renato cobriu os meus ombros e engoli o nó que apertava a minha
garganta.
Inspirei o ar lentamente, sentindo a visão turva devido as lágrimas e o
soltei pelos lábios, repetindo mentalmente as instruções que o meu
professor de yoga recitava há meses na minha cabeça.
Passei a frequentar as aulas por recomendação de minha terapeuta
após a primeira crise de Burnout. Estava tão esgotada de lidar com os
problemas na RCI, que passei a ter crises de choro compulsivo ainda na
cama, quando o despertador tocava e me lembrava de tudo o que teria para
fazer no dia.
Foram meses infernais.
Vivia deprimida, doente e sem vontade de sair do quarto, mas me
forçava a levantar e a sorrir e acenar para tudo o que acontecia, pois,
precisava cumprir com a agenda.
Meus pais precisaram fazer uma intervenção com os meus amigos —
todos estavam preocupados com a minha saúde mental — e quando retornei
para o escritório com a promessa de que manteria uma rotina mais saudável,
a minha terapeuta sugeriu que começasse a praticar yoga.
Uma forma de alinhar a mente e o corpo para encontrar equilíbrio.
Funcionava na maior parte do tempo, apesar de não ter cumprido com a
parte da promessa de pegar mais leve na rotina, não tive crises outra vez. As
meditações ajudavam e apesar de exceder o meu limite… eu gostava de
trabalhar.
No entanto, descobrir que todos os limites que burlei para ajudar
Roberta a reconstruir a sua reputação que estava na merda, não valeram
para que ela ao menos me colocasse acima do interesse que tinha com
aquela fusão, me fez sentir uma completa estúpida.
Era isso o que eu era.
Uma risada escapou dos meus lábios, triste.
Talvez a quantidade de vezes que ela dizia que eu era ingênua ou
imatura demais para lidar com as coisas que aconteciam no mercado, na
realidade fossem uma forma de ver até que ponto ela podia me fazer de
idiota, sem que eu percebesse.
Idiota. Idiota. I-D-I-O-T-A.
— Você quer contar o que houve? — perguntou Renato, me
lembrando que ele ainda estava aguardando pela resposta.
Uma raiva desproporcional me atingiu, fazendo com que o sangue
esquentasse nas minhas veias. Eu sabia que me arrependeria por ter
descontado nele, mas não pude evitar.
— Por que você se importa? — indaguei, mordaz. — Não perca o seu
tempo com isso, estou de saída de qualquer jeito.
Não esperei para que me respondesse, porque não existia nada que
dissesse que me faria sentir pior do que estava me sentindo.
Se existia alguma parte de mim que cogitou ter sido impulsiva quanto
a decisão de sair do escritório, ela desapareceu. Por mais ridículo que fosse
da minha parte ainda me preocupar com a minha palavra, me vi aliviada em
saber que estava saindo daquele lugar em algumas semanas.
Antes que conseguisse atravessar as portas de vidro e retornar para
dentro da sala; para recolher as minhas coisas e ir embora, o meu pulso foi
capturado por uma mão grande e forte. O contato foi cuidadoso e calculado,
como se estivesse ponderando sobre todas as reações que eu poderia ter
com o seu toque.
Virei o rosto em sua direção, enraivecida.
— Tudo bem. Entendi que perdi algo no meio do caminho e que não
estou ciente de tudo o que ocorreu, mas se aconteceu alguma coisa que eu
precise saber… é nesse momento que você me diz, para que eu possa
resolver. — Renato me encarava sério, nenhum pouco contente com o rumo
que a conversa tomou. — O que o Guilherme fez?
— Pergunte para os seus sócios — rosnei.
Renato respirou fundo e afrouxou o aperto no meu pulso, olhando-me
derrotado.
— Estou pedindo para que você me conte, Nathalia.
Engoli as acusações que estavam entaladas na minha garganta, o
ressentimento que eu estava sentindo não era direcionado a ele e não era
justo que descontasse nele.
Senti os ombros relaxarem um pouco. Seu blazer ainda estava sobre
mim, me protegendo do vento gélido que assoprava ao nosso redor.
Renato estava com uma camisa branca com alguns botões abertos e
pensei que ele pudesse estar sentindo frio, mas a sua mão estava quente
contra a minha pele, aquecendo a região e causou um formigamento
indesejável.
— Depois que apresentei para ele todas as mudanças que deveriam
ser feitas no contrato por causa das cláusulas que adicionou, ele perdeu a
cabeça completamente — falei, erguendo o queixo para que Renato visse
nos meus olhos que eu estava contando a verdade.
Pelo visto, eu seria a primeira pessoa nessa negociação que lhe daria
essa cortesia.
— Primeiro, tentou me intimidar e quando não recuei, ele começou a
falar sobre o meu corpo, sobre a minha roupa, como deveria começar a me
vestir depois que a fusão fosse concluída. — Respirei fundo, vendo a sua
mandíbula endurecer e os seus olhos ganharam um brilho menos amigável.
— Acredite em mim, não foi a primeira vez que escutei esse tipo de merda,
aprendi a contornar de todas as maneiras que você pode imaginar. Mas
quando fiz menção a sair da sala… ele me puxou de volta pelo cabelo e me
jogou na parede, então, usou uma mão para segurar o meu rosto e…
Minha voz falhou.
Eu ainda sentia as mãos de Guilherme correndo pelo meu corpo, o
cheiro de vodca impregnada na sua pele e o embrulho que me acompanhou
naquela noite, quando os seus lábios roçaram nos meus. Não passaram de
dois segundos, eu consegui acertar meu joelho em um ponto entre suas
pernas que o deixou no chão gritando de dor enquanto corria para fora da
sala.
Mas os seus lábios estiveram nos meus contra a minha vontade e as
suas mãos tocaram o meu corpo, mesmo depois de ter ordenado que ele
parasse.
— Ele disse para a Roberta que eu dei a entender que queria aquilo…
que o provoquei. — As palavras saíram em um sopro rouco devido ao nó
que sufocava a minha garganta. — Eles disseram para você que tinha sido
por causa de um contrato, mas não foi.
— Você…
— Não denunciei? — interrompi a pergunta que sabia que ele faria.
Renato pareceu se arrepender quando percebeu o quanto isso me ofendeu.
— Olhe em volta, Renato. Posso te dar uma lista de quantas mulheres
conseguiram um emprego em outro escritório depois de denunciar um
homem por assédio.
Roberta fez questão de me lembrar de como as coisas nesse meio
eram uma merda. Seria sempre a palavra dele contra a minha, e as pessoas
sempre justificariam.
Ele tinha bebido demais.
Ele entendeu errado.
Ele nunca fez isso antes.
Será que você não sorriu demais?
Que roupa você estava usando?
Tem certeza de que você não pediu por isso?
Eu lidei com todos esses questionamentos vindo da Roberta e da
Celine quando me fizeram repetir mais de dez vezes o que aconteceu, na
tentativa de encontrarem o que motivou o comportamento dele.
Era tão enraizado que os homens fossem protegidos de acusações de
assédio, que as próprias mulheres eram as primeiras a questionarem a
vítima.
Renato soltou o meu pulso e me olhou culpado, e isso aplacou um
pouco a raiva. Ele não ia questionar, estava acreditando no que eu contei
sem exigir por mais detalhes.
— Eu não sabia — esclareceu, franco.
Engoli o nó que se instalou em minha garganta e balancei a cabeça,
aquiescendo.
— Percebi. — Forcei um sorriso, sem humor. — Se não se importa,
acho que vou para casa.
Renato assentiu, parecendo perdido nos próprios pensamentos com a
informação que joguei em seu colo.
Cansada e sem nenhum resquício da fome que estava sentindo
minutos atrás, dei as costas para ele, recolhi as minhas coisas e guardei os
documentos que costumava deixar no cofre da minha sala. Dei uma última
olhada para a varanda, encontrando-o parado, encarando o lugar em que eu
estive, perturbado.
Deixei o blazer em cima do sofá, sem me importar que ele ficasse na
sala sem a minha presença, e busquei pelo meu celular na bolsa, enviando
uma mensagem para Roberta avisando que precisávamos ter uma conversa
séria.
Eu aceitava muita merda, mas não toleraria que olhassem nos meus
olhos e mentissem para mim.
Não existia nenhuma justificativa que ela pudesse dar que me faria
sentir menos traída, mas eu precisava saber o que mais ela estava
escondendo de mim, e pelo visto, do seu novo sócio.
Aparentemente, Renato tinha acabado de se tornar o CEO de um
escritório que, pelo andar da carruagem, não duraria muito tempo.
De longe, acompanhei enquanto o cabeleireiro distraía Matheus para
cortar o seu cabelo e me virei para o garoto sentado à minha direita, absorto
com o Nintendo.
— Droga… — resmungou, frustrado. O aviso de game over preencheu
a tela e Igor me entregou o console, entediado do jogo. — Vovó disse que
vamos viajar no Carnaval — comentou.
— Você quer ir?
Igor pensou por um momento e me deu um sorriso de canto,
balançando a cabeça em confirmação.
Meus pais adquiriram uma nova propriedade em Miami e precisariam
estar na cidade em fevereiro, como o Carnaval aconteceria no segundo mês
do ano e a minha mãe detestava o caos que tomava o país, ela decidiu
aproveitar a viagem para passar um tempo com os garotos.
Na noite passada, discutimos sobre o assunto durante todo o jantar e
insisti que não era necessário. Mara viajaria para encontrar com os filhos, e
eu poderia trabalhar de casa durante alguns dias.
Mas segundo minha mãe, era inadmissível que ela permitisse que eu
passasse outro Carnaval em casa, rodeado de brinquedos espalhados pelo
chão e carregando duas crianças apagadas para os seus respectivos quartos.
Mal sabia ela que não me incomodava nenhum pouco com isso, ao contrário,
amava passar cada segundo do meu tempo livre com os meus filhos.
A cada dia que passava, eles cresciam e se tornavam mais
autossuficientes e se eu podia aproveitar essa fase em que me pediam
companhia para tudo, não era sacrifício algum estar com eles.
E sinceramente? Eu não sentia falta de nada.
A farra infindável do feriado foi algo que aproveitei durante toda a
época da faculdade. Eu sempre teria marcado na pele, as lembranças das
minhas breves aventuras irresponsáveis. Desde a cicatriz de queimadura por
uma água-viva na Austrália que marcava a minha panturrilha direita, até o
ombro deslocado depois de uma confusão na Tailândia; durante uma viagem
para comemorar que tínhamos sobrevivido as provas do penúltimo semestre.
E se minha mãe precisasse de mais evidências do quanto vivi a minha
juventude… bastava que desse uma olhada nos dois garotos que estavam sob
os meus cuidados.
Igor, era consequência de uma comemoração após o fim do período de
provas no penúltimo ano. E para piorar, como Leandro havia decidido pedir
a sua namorada — até aquele momento — em casamento, o consumo de
álcool extrapolou o habitual. O resultado daquela noite bateu na minha porta
meses depois, quando Flávia apareceu no quarto em que estávamos e me
informou que estava grávida de quase quatro meses.
E se meu primogênito não fosse o bastante, Matheus era a contraprova
de que misturar todos os rótulos de álcool durante uma despedida de solteiro
antecipada era uma péssima ideia.
Eu tinha conseguido cometer o mesmo erro duas vezes.
Então, aceitaria de bom grado a conclusão de que estava ficando velho
e que não tinha mais o menor pique para festejar no Carnaval, e se meus
filhos viajariam com os meus pais, eu dedicaria o tempo livre para colocar o
trabalho acumulado em ordem.
Problemas para resolver não me faltavam.
E por pensar em coisas que precisava lidar, o rosto de Nathalia
retornou a minha mente.
Ela esteve invadindo os meus pensamentos constantemente desde a
nossa última conversa. Não nos encontramos de novo pelos corredores do
escritório, já que ela avisou através de Bianca que trabalharia de casa pelo
resto da semana, pois, precisava colocar em ordem alguns projetos da
faculdade que precisava entregar. Contudo, não ter visto ela não significava
que havia me esquecido do que contou.
Eu viajaria para o Rio no meio da próxima semana e teria uma
conversa com Guilherme sobre o que descobri. Tentei conversar com a
Roberta nos últimos dias para cobrar uma explicação, mas foi inútil.
Ela tinha ajuda do fuso-horário e não fez questão de disfarçar que
estava me evitando desde a nossa última conversa pessoalmente.
— Papai! — chamou Matheus, me fazendo desviar a atenção do jogo
que Igor estava brincando.
O cabeleireiro terminava de aparar os fios loiros e os seus pés
chacoalharam no banco, empolgado. Eu queria poder dizer que a sua
animação era por se livrar dos fios que atrapalhavam a sua visão, mas aquilo
era porque sabia que depois daqui iriamos para o clube.
Todo fim de semana a programação era a mesma, não que isso fosse
ruim, o Niké era um clube privativo que ficava na zona sul da cidade. O
lugar era como uma pequena cidade; com o seu próprio shopping, academia,
quadras esportivas, bares e restaurantes, spa, salão de beleza, parque
aquático, campo de golfe, biblioteca e até mesmo uma praia artificial onde
era possível surfar em ondas projetadas. Tudo o que um cheque gordo anual
pudesse pagar estava disponível lá dentro, então, mesmo que
frequentássemos o complexo todos os finais de semana, era difícil cair na
mesmice com tantas opções.
Naquela manhã, por exemplo, estava marcada a nossa pelada semanal.
Eu e alguns amigos nos encontrávamos na quadra para jogar — os garotos
adoravam assistir, e como Igor era mais velho costumava jogar conosco.
Era um dos programas favoritos deles, principalmente do Matheus, já
que como era pequeno demais para entrar em campo conosco, ficava na
arquibancada com as mulheres dos meus amigos, sendo bajulado.
Quando estacionei o carro, meu caçula rapidamente se livrou do cinto
com a ajuda do irmão e mal tive tempo de abrir a porta, ele não demorou a
saltar para fora do carro, pronto para correr para dentro.
— Aqui não — frisei em alerta, lembrando que assim que saíssemos
do estacionamento ele estaria livre para correr por onde quisesse, mas não
podia contar com o bom senso de todas as pessoas que frequentavam o
clube.
Alguns pareciam acreditar que o saldo na conta bancária abria brechas
para que dirigissem feito loucos pelo complexo, sem se importar com as
crianças que também frequentavam o clube.
Durante todo o trajeto, escutei enquanto Igor contava sobre como
havia sido a sua semana. Não que eu já não soubesse, mas naquela manhã
ele estava mais falante do que o habitual e gostava de vê-lo assim.
Diferente do irmão que fazia amizade com todos que esbarrávamos;
sorrindo, cumprimentando e acenando para qualquer um que passava por nós
enquanto entrávamos no prédio principal, Igor mal conversava com os tios
dele.
Para Maya e Carol arrancarem algumas palavras, requeria muita
dedicação e força de vontade, às vezes ele parecia muito com o seu
padrinho, Pedro.
Assim que chegamos ao lobby do prédio, soltei a mão do furacão
louro e ele correu na direção do homem que conversava com o gerente do
clube, já que estava à frente das reformas que aconteciam no complexo.
— Pepeeeu! — Matheus chamou e meu amigo virou na nossa direção,
tendo tempo hábil de se abaixar e receber o abraço que o pequeno ofereceu.
— Bom dia, garoto — disse Pedro, dando algumas batidas leves nas
costas do meu filho.
Pedro não era dos mais empolgados quando lidava com crianças, mas
o seu problema não era com os meus filhos, e sim, com as pessoas em um
geral. Se existisse um planeta em que a interação com outras pessoas não
fosse necessária para o funcionamento das coisas, não tinha dúvidas de que
Pedro pagaria o que fosse para viver nele.
— Marc vai se atrasar — informou, depois que nos cumprimentamos e
ele bagunçou o cabelo de Igor, seu afilhado. — Parece que teve um
problema com uma remessa da fábrica.
— Consigo imaginar o problema. — Ri baixo, vendo os garotos se
afastarem para cumprimentarem Fabio e Carol que estavam na cafeteria do
lobby. — Cadê o Leandro?
Pedro indicou para a porta que levava ao restaurante principal do
clube, de onde eu estava, conseguia ver que algumas mesas estavam
ocupadas.
— Ele viu uma garota e saiu correndo para cumprimentar, não voltou
até agora.
Assenti, sabendo que aquilo era recorrente.
Leandro assumiu o papel de solteiro invicto após uma desilusão e
desde então, não podia ver um rabo de saia que estava atrás. Perdi a conta de
quantas vezes ele desapareceu pelo clube com uma mulher e voltou um
tempo depois com um sorriso largo estampado no rosto. Ele não precisava
dizer para que soubéssemos o que havia acontecido, conhecíamos muito bem
a criatura que chamamos de amigo.
— Vou entrar, os meninos ainda não tomaram café — avisei,
gesticulando para que os garotos voltassem para perto de mim.
Como saímos cedo de casa, eles não quiseram que eu preparasse o
café da manhã porque sabiam que viríamos para o clube. E eu não
reclamaria de terem recusado a minha tentativa de cozinhar, meu estoque de
formatos de desenhos nos pratos estava se esgotando e em breve, eu
precisaria repetir os desenhos com mel.
— Encontro vocês depois, preciso ajustar com o Marcel a reforma da
quadra de tênis e dos vestiários.
Anuí, dando as costas para ele.
— Por que não me contou isso antes? — meu pai perguntou, os olhos
verdes cravados em mim com uma fúria contida.
Miguel estava com raiva, ainda que a sua voz estivesse baixa e a
expressão fechada fosse comum, eu sabia que ele estava se controlando
muito para não perder a cabeça.
Sua raiva não era contra mim, mas com o que havia acabado de contar
e a sua pergunta me fez sentir estúpida por achar que dentre tantas pessoas,
meu pai seria alguém que me julgaria.
Leandro e Bianca sentados conosco na mesa permaneceram quietos, a
minha amiga estava por dentro de toda a história; tinha ficado mais
transtornada do que eu pela situação — já que tudo o que consegui fazer foi
ficar em pânico —, e Leandro não escondeu o lampejo de raiva ao me
escutar narrar a mesma coisa que contei ao Renato algumas noites atrás.
— Na hora só me senti… sei lá.
Envergonhada. Culpada. Enojada.
Engoli todas as palavras que simplificavam o que senti naquele dia e o
motivo para não ter contado para o meu pai o que aconteceu entre Guilherme
Bastos e eu. Uma parte de mim sabia que Miguel iria à guerra com o
desgraçado em minha defesa e temi o efeito dominó que isso poderia
desencadear.
Hipocrisia deveria ser o meu sobrenome.
Tinha falado tanto com Bianca sobre isso no passado, a incentivado a
lutar pela justiça do que aconteceu com ela… e no fim das contas, preferi
ficar quieta em prol da minha carreira. Tentei me convencer de que com
Guilherme em outro estado, não precisaríamos conviver e eu conseguiria
ignorar a sua presença quando necessário, mas revê-lo no início da semana e
lidar com o desaforo das suas palavras na frente de várias pessoas — por
algo que nós dois sabíamos que ele tinha feito —, foi o cúmulo para mim.
Escutar da boca da Roberta — que sabia exatamente o que houve —,
que eu deveria ser madura, esquecer e seguir em frente, atingiu todos os
limites do que eu era capaz de tolerar.
E descobrir que ela escondeu isso do Renato e do Leandro para não
prejudicar a sua preciosa fusão, mesmo depois de olhar nos meus olhos e
dizer que eles juraram que eu nunca mais lidaria com o Bastos — sendo que
sequer sabiam do problema —, fez com que a decisão de cumprir o aviso
prévio se tornasse um peso que, talvez, precisasse me livrar antes do
estipulado.
A visita surpresa de Miguel acabou sendo bem-vinda porque não eram
todas as pessoas que podiam contar com o melhor amigo no próprio pai.
Tive a sorte de conquistar bons amigos, que queriam o meu bem acima
de qualquer coisa e sempre estavam ali por mim, mas os meus pais sempre
seriam os primeiros a quem recorreria quando precisasse de ajuda para
resolver um dilema.
E explicar para o meu pai os motivos que estavam me fazendo cogitar
rasgar a minha palavra, incluía contar para ele exatamente o que contei para
Renato.
— Saia daquele lugar o quanto antes — disse, firme e sério. Não era
um conselho, era uma ordem de um pai preocupado. — Porque se esse tipo
de coisa se repetir e esse desgraçado ousar olhar para você, eu não respondo
pelos meus atos.
— Somos dois — declarou Leandro, uma veia saltou em sua testa e
ele respirou fundo. — Eu realmente não sabia disso, nunca contaram essa
parte da história.
Acenei para ele, murmurando que sabia disso.
Poderiam me acusar de ser ingênua, mas ninguém conseguiria fingir
com tanta veracidade a perturbação que o Renato demonstrou quando contei
o que aconteceu.
— O que Roberta disse para justificar? — perguntou Miguel, me
fazendo virar para ele.
— Que conversaríamos quando ela voltasse para o Brasil.
Dei de ombros, indiferente.
Não era como se naquela altura do campeonato me importasse com o
que ela queria dizer em sua defesa, não existia uma justificativa.
Leandro desviou a atenção para algo sobre os meus ombros e não
precisei virar para saber do que se tratava. Um arrepio correu em minha
nuca, causando um pequeno tremor em minha coluna. Apertei os dedos ao
redor do meu copo de suco, engolindo um suspiro.
Olhei para a Bianca em um questionamento silencioso e ela acenou,
confirmando que estava certa no que deduzi.
Ainda assim, virei a tempo de encontrar um serzinho minúsculo
correndo em nossa direção. Seu cabelo loiro foi cortado recentemente e ele
ficava uma gracinha quando sorria; seus olhinhos grandes e esverdeados se
tornavam apenas uma fenda e as covinhas em sua bochecha se destacavam,
cavando dois buracos profundos de cada lado do seu rosto e no queixo.
Sempre lidei com as crianças de funcionários da fazenda do meu avô
que costumavam se juntar a nós durante as refeições, e tinha a Laura, filha
da Roberta; o Luke, filho do Antônio; e os pequenos que eu apadrinhava no
orfanato. Só que Matheus era a criança mais alegre, sorridente e carinhosa
que esbarrei.
Ele, que estava indo direto para o Leandro, desviou o trajeto quando
me viu e correu para mim. Só tive tempo de girar o corpo na cadeira antes
que os meus braços estivessem ao seu redor e vice-versa.
— Nath! — vibrou, fazendo o meu coração ficar quentinho com o
carinho gratuito que ele emanava.
Como podia uma criança ser tão doce? Eu me sentia um pouco Felícia
quando essa coisinha sorria para mim.
— Oi, meu bem! — Meus lábios tocaram a sua bochecha gordinha e ri
fraco ao sentir os seus dedinhos agarrarem a minha nuca, impedindo que me
afastasse demais. — Como você está?
— Cortei o cabelo — contou, com um sorriso rasgando o seu rosto e
levei a mão livre para os fios cortados.
— Ficou lindo — elogiei, vendo os seus lábios se repuxarem ainda
mais para cima. Virei para o meu pai que observava a cena com certo
interesse e Matheus me acompanhou. — Pai, esse é o Matheus…. e bebê —
chamei o pequeno que olhou curioso —, esse é o meu pai, Miguel.
Os dois se entreolharam e quando o pequeno sorriu e estendeu a
mãozinha na direção de Miguel, o meu pai sorriu abertamente e aceitou o
cumprimento do garotinho.
Leandro, no entanto, revirou os olhos para a cena.
— Não caia na lábia dele — confidenciou para o homem ao seu lado.
— Ele é ótimo em usar esse rostinho fofo para conseguir o que quer.
Meu pai que encarava o filho caçula do Renato, desviou o olhar para
mim e sorriu nostálgico, como se esse comentário de Leandro o lembrasse
de alguma coisa.
— Ah… conheço muito bem esse tipo.
Sorri, vendo Miguel puxar assunto com Matheus como se os dois se
conhecessem a vida inteira, o pequeno não demorou a listar para o meu pai
todos os seus super-heróis favoritos e os poderes de cada um deles.
Meus olhos se moveram para Renato que observava a cena calado e
dei um meio sorriso em cumprimento. Não o via desde que conversamos na
minha sala; e como estava atarefada devido aos projetos de inscrição do
estágio, acabei optando por trabalhar de casa nos últimos dias.
Já o outro garoto ao seu lado me encarava com os olhos apertados e
desconfiados.
Mirei os dois, vendo que o pequeno era quase uma cópia do pai, até o
vinco na testa era idêntico, a única coisa que me impedia de ter certeza de
que ele era uma versão mirim do Renato, eram os olhos da mesma cor que o
do irmão.
Mas o cabelo castanho, os lábios cheios, a pequena covinha no queixo
e até a postura corporal eram semelhantes ao Renato. Os dois pareciam
intrigados com a interação entre Matheus e eu, e não soube dizer se isso era
bom ou ruim. Eu atravessei um limite?
— Ei, Renatinho… senta aqui com a gente! — Bianca convidou e
mordi as bochechas para evitar perguntar se ela tinha enlouquecido.
Não que me incomodasse com a presença de Renato, ao contrário,
estranhamente gostava de estar perto dele e de ser o alvo da sua atenção. E
esse era o problema. Eu não deveria gostar disso.
— Bom dia, Nathalia — cumprimentou, dando um passo na minha
direção e precisei erguer o queixo para olhar em seu rosto.
Péssima ideia, Nathalia… uma péssima ideia.
— Bom dia, Renato — respondi, assombrada com o quanto o filho de
uma mãe conseguia ficar lindo usando qualquer coisa.
A blusa de linho com mangas curtas ressaltava os músculos e o peito
visivelmente bem-definido… e era impressão minha, ou ele ficava ainda mais
bonito quando me encarava com aquele sorrisinho ridículo repuxando o
canto esquerdo dos seus lábios?
— Pai… — busquei por uma fuga para escapar do seu olhar e virei o
rosto, encontrando o meu pai com os olhos estreitos no homem na minha
frente —, esse é o Renato Trevisan. — Praticamente implorei mentalmente
para que Miguel não descarregasse em Renato a raiva pelo que contei
minutos atrás. — Renato… meu pai, Miguel Gama.
De onde eu estava sentada com Matheus ainda no colo, assisti os dois
conversarem amigavelmente e quando tive certeza de que o meu pai não
comentaria nada, virei para o outro garotinho que não tirava os olhos de
mim.
Diferente do irmão que sorria com facilidade, o outro permanecia de
cara amarrada e ressabiado, parecia um pouco mais cismado e introvertido
com quem não conhecia.
— Oi… — falei, simpática. — Você deve ser o Igor.
O fato de saber o seu nome pareceu surpreendê-lo, mas não o
suficiente para que respondesse o meu cumprimento. O garotinho escondeu
as mãos nos bolsos da sua bermuda e endureceu o olhar quando o irmão
voltou a me agarrar pelo pescoço. Talvez, ele sentisse ciúmes do Matheus e
não estivesse gostando da nossa proximidade, era comum que crianças
fossem um pouco possessivas com as coisas. Ao menos sabia que eu
costumava ser.
Se tinha ciúmes das minhas músicas preferidas, que dirá das pessoas
que eu gostava?
Essa possibilidade me arrancou um sorriso divertido e desci os olhos
para a camiseta branca que ele usava, por sorte, eu sabia reconhecer a
origem da estampa de óculos redondos e uma cicatriz pouco acima das
hastes. Afinal, que tipo de fã eu seria se não soubesse reconhecer a marca na
testa do garoto mais famoso do mundo?
— Você também gosta de Harry Potter, que legal!
Meu comentário pegou o garotinho desprevenido.
Seus ombros relaxaram um pouco e a cara amarrada se desfez e deu
lugar ao retorno do vinco na testa.
— Você gosta? — investigou, cético.
Certo… ele era uma criança bem desconfiada.
Estiquei a mão direita na sua direção, o incentivando a se aproximar e
ele assim fez, com cautela e arisco, seus olhos desceram para a minha mão e
ele encarou as palavras tatuadas delicadamente em meu pulso.
Lumos.
Meu melhor amigo, Antônio, que era tão fã de Harry Potter quanto eu,
tinha o contrafeitiço: Nox, tatuado no mesmo lugar. Fizemos a tatuagem
juntos assim que completei dezoito anos, durante uma viagem de carro pela
Costa Leste.
Antônio achou que a tatuagem combinava com a gente, já que
enquanto Lumos era um feitiço para acender a luz, Nox era o que apagava.
Ele acreditava que isso nos representava, eu era o pontinho brilhante de luz
na sua vida, e ele o de escuridão na minha. E de certa forma, um precisava
do outro para existir.
Eu não tinha muitas tatuagens e as que possuía eram discretas e
pequenas, mas aquela era de longe a minha preferida.
O pequeno reconheceu a referência e arrastou os olhos para o meu
rosto, finalmente deixando de lado o olhar arredio.
— Qual a sua casa? — questionou, curioso.
Sorri.
— Sonserina, obviamente.
Igor piscou, deixando de lado a desconfiança e se aproximou de uma
vez por todas de mim, sem soltar o meu pulso que ainda mostrava a pequena
tatuagem.
— Eu também! É a melhor casa.
— Concordo totalmente — falei, e me senti radiante quando
finalmente consegui arrancar um sorriso do pequeno.
Olhei por cima dos ombros para os três homens que nos observavam,
cada um com uma emoção diferente tomando o rosto.
Leandro parecia achar graça de algo e ao olhar para Renato, só faltou
gritar em alto e bom som: eu avisei!
Já meu pai sorria com curiosidade. Ele sofreu durante bons anos para
maratonar todos os filmes comigo — o que era recorrente, já que eu nunca
enjoaria deles —, e passou alguns perrengues quando o parque temático do
universo estreou em Orlando.
Eu tinha dezessete anos, era emancipada e tinha Antônio comigo na
viagem, mas isso não me impediu de arrastar meu pai para fora do quarto de
hotel e embarcar na pequena aventura.
E Renato… não soube distinguir se estava feliz com a interação ou
não. O homem era um mistério, quase nunca conseguia saber o que se
passava na sua mente e isso me tirava um pouco do eixo porquê… eu sempre
sabia tudo.
Minha melhor habilidade era entender o que a pessoa estava pensando
ou precisando, antes que ela colocasse em palavras, mas quando se tratava
de Renato… era um desafio.
— Vocês já comeram? — perguntei para ele, que desviou o seu olhar
para verificar o movimento ao nosso redor.
— Ainda não.
Olhei para o meu pai quando o seu celular tocou e ele pediu por um
minuto antes de se afastar. E com vinte e três anos de experiência, eu sabia
que quando retornasse seria para se despedir por causa de um compromisso
emergencial. Talvez, o motivo para que eu simplesmente não conseguisse
parar de trabalhar, era por ter visto de perto o quanto meu pai dava duro na
gestora.
Eu odiava quando escutava alguém falar que ele só chegou aonde
estava por causa do dinheiro dos meus avós. Não era justo. Não seria
hipócrita de falar que isso não abria portas para ótimas oportunidades, mas a
gestora ficava fora dos negócios da família e ele conseguiu por esforço
próprio.
Desde que me entendo por gente, meu pai trabalha incansavelmente,
sem dias de folga, indo para reuniões em vários lugares do mundo e eu era a
maior testemunha de toda sua dedicação.
Quantas vezes não adormeci no carro ainda em Manhattan, e acordei
horas depois do outro lado do mundo, em um quarto de hotel, com a
assistente do meu pai sentada próximo da cama, aguardando para me avisar
que ele tinha saído para uma reunião e que voltava logo?
Aonde meu pai ia, eu estava ao seu lado como parte da bagagem.
Então, quando Miguel me encarou por cima dos ombros, eu soube que
ele voltaria pedindo desculpas por precisar sair.
E não me ressentia por isso de maneira alguma. Apesar da rotina
exaustiva que levava, meu pai sempre se dedicou a me dar toda a atenção do
mundo quando estava comigo. Eu não tinha qualquer reclamação sobre a sua
presença na minha vida.
Meu pai esteve presente em cada aula de ballet e de tênis; me contava
histórias todas as noites antes de dormir, fazia questão de tomar café-damanhã todos os dias comigo, e eu passava o dia na Alpha depois de sair do
colégio, justamente para que não ficasse sozinha em casa com uma babá.
E era por isso que o amava mais do que tudo, porque diferente de
muitos casos que conhecia de amigas e pessoas com quem cresci, ele nunca
permitiu que a sua vida profissional fosse um pretexto para ser um pai
ausente.
Para o meu pai não existia ninguém acima de mim e, eu tinha certeza
de que independentemente do quanto aquela ligação fosse importante, no
menor sinal de que eu precisava dele; Miguel desligaria tudo e voltaria a me
dar toda a atenção.
Dei um sorriso de incentivo para que soubesse que estava tudo bem se
precisasse sair, poderíamos deixar a partida de tênis para outro dia e eu tinha
certeza de que encontraria outra pessoa para treinar comigo. Ele piscou em
resposta e voltou a encarar o jardim da varanda do restaurante, o que me
levou a encarar o Renato.
— Por que não ficam conosco para o brunch? — ofereci, sincera.
— Não quero atrapalhar o planejamento de vocês.
Dispensei o seu receio com um gesto delicado, virando para Igor, que
ainda me olhava de canto de olho, sem soltar o meu pulso.
— O que acha de tomar café comigo enquanto convencemos a Bianca
de todos os motivos que fazem a Sonserina ser a melhor casa de Hogwarts?
— perguntei, vendo-o olhar para a minha amiga que estava cochichando não
muito longe com Leandro.
— Ela é de qual casa?
— De nenhuma — resmungou Bianca. — Já falei um milhão de vezes
que isso é papo de nerd.
Igor olhou para ela com um meio sorriso divertido, como se estivesse
acostumado a escutar esse tipo de resposta. Bem, eu não podia dizer que
Bianca não lia, era o oposto disso, ela lia muito. Só que ela preferia
romances e dava prioridade àqueles que eram muito específicos na hora de
detalhar o amor entre o casal.
Obviamente, isso não era uma informação que cabia compartilhar com
a criança, mas foi o suficiente para que Igor deixasse o receio de lado e
puxasse uma cadeira para se sentar ao meu lado.
Virei o rosto para encarar Renato e sorri, vitoriosa.
— Como eu disse, se junte a nós.
Ele revirou os olhos com certa diversão e assentiu, chamando por um
dos garçons que veio rapidamente recolher os pedidos.
Estava a alguns minutos quieto, apreciando enquanto Igor falava sem
parar sobre seus livros preferidos com Nathalia.
Dividido entre choque e alegria, obriguei-me a interagir pouco com
os dois para não correr o risco de perfurar a bolha que os mantinha
distraídos, temendo que se o fizesse, Igor não falasse mais nada pelo
restante do dia.
Miguel havia se despedido de nós pouco tempo depois de desligar o
telefone; pediu um milhão de desculpas para a filha e prometeu compensála por desmarcarem a partida de tênis, e me peguei sorrindo ao perceber que
Nathalia realmente combinava com os praticantes do esporte.
Observei-a, notando como ficava atraente com aquela minissaia
branca e o top esportivo da mesma cor, deixando uma larga faixa de seu
abdômen a mostra. O cabelo estava preso e firme, não havia resquício de
maquiagem em seu rosto, e ainda assim, ela estava linda.
Nathalia possuía uma beleza natural, não precisava de muito para
estar deslumbrante e parecia ter muita noção disso. A postura confiante era
um claro sinal de como percebia que cativava olhares sem precisar de
esforço.
— Papai, podemos ir na piscina? — Matheus pediu, enquanto eu
cortava suas panquecas.
O principal motivo para que amassem frequentar o clube aos sábados
era pelo Waffle que serviam no brunch. Eu tinha tentado recriar a receita em
casa, mas foi um completo desastre quando me pediram para que usasse
minhas inexistentes habilidades artísticas para que ficassem no formato do
Mickey Mouse.
Depois daquele dia fatídico, com toda a gentileza e sinceridade que
apenas as crianças possuíam, meus filhos pediram para que eu nunca mais
cometesse a atrocidade de assassinar a imagem que eles tinham do rato da
Disney.
— Outro dia, ok? Você ainda não está cem por cento.
Apesar de não ter tido mais febres, Matheus ainda estava com a
imunidade baixa e eu precisava que estivesse totalmente recuperado para
deixá-lo aprontar pelo clube. Principalmente, porque ele era como um
peixe. Meu filho amava água e quando entrava na piscina, tirá-lo se tornava
uma missão quase impossível.
Ele concordou, obediente, e voltou a brigar contra o pedaço de
framboesa que escorregava do seu garfo a cada nova tentativa de apanhá-la.
Se não fosse tão teimoso e determinado a fazer sozinho, eu teria o ajudado;
mas na menor insinuação a isso, ele me olhava enfezado.
— E você? — A voz de Nathalia me fez virar o rosto em sua direção,
encontrando seu olhar divertido.
Leandro e Bianca nos deixaram sozinhos um pouco antes de Miguel
se despedir, alegaram que precisavam conversar em particular e não
voltaram mais. E se eu levasse em conta os flertes que vinham trocando nos
últimos dias, duvidava muito que os veria antes do início da partida.
— O que tem eu?
— Tudo contra ou a favor do garoto de testa rachada?
Sorri, balançando a cabeça.
— Completamente imparcial nessa questão.
Nathalia estalou a língua, brincalhona.
— Você tem cara de Corvinal ou Grifinória… — suspirou com pesar.
— Por que isso soou como uma ofensa? — perguntei, achando graça
como falou aquilo com a mesma entonação que Igor usou alguns dias atrás,
para frisar que não queria nada envolvendo a Grifinória em sua festa. —
Qual o problema de vocês com a tal Grifinória?
Nathalia deu de ombros.
— É a casa mais superestimada de Hogwarts — respondeu, como se
fosse óbvio. — Basicamente, bastava que mantivessem Harry Potter
respirando, e pronto… Dumbledore entregava a taça das casas para eles no
fim de todo ano letivo.
Sorri, encantado com a sua revolta.
— Bom, ele tinha o privilégio de ser o protagonista — argumentei,
em defesa do pobre garoto bruxo.
Não que eu fosse um expert no assunto, mas após ter assistido toda a
saga por no mínimo cinquenta vezes — apenas nos últimos dois anos em
que Igor se tornou um fissurado por ela —, talvez tivesse conseguido um
know-how[12]para dialogar sobre.
— E a Sonserina também não é a melhor das casas, certo? —
provoquei, vendo três pares de olhos me fitarem com idêntica indignação.
— Retire o que falou! — ordenou Nathalia.
— Não liga não, Nath… ele não sabe do que tá falando — disse Igor,
falsamente decepcionado.
Matheus balançou a cabeça em resposta — obviamente não porque
compreendia o debate que estava sendo instaurado, mas adorava ir na onda
do irmão quando a pauta era me fazer sentir um idoso.
— Papai… papai… — cantarolou o loirinho ao meu lado, me
encarando inconformado. — Bobinho!
Dei risada e balancei a cabeça, descrente da minha situação.
Aparentemente, eu estava em desvantagem e não sabia tanto sobre o
universo dos bruxos quanto acreditava.
— Sonserina é muito subestimada, não é formada só por vilões —
explicou Nathalia, bebendo um gole do seu suco de morango e me olhou
com um sorriso angelical.
Alcei a sobrancelha e cruzei os braços em frente ao corpo, relaxando
na cadeira ao encará-la.
— Voldemort? Bellatrix… sei lá o que? Draco Malfoy?
O último nome causou outra reação dramática dela.
— Draco era só um garoto que não tinha controle algum sobre as
próprias escolhas — defendeu com afinco.
— Não? — estimulei, querendo ver até onde ela se soltava.
Era bom vê-la tão relaxada ao meu lado, pensei que isso não
aconteceria de novo depois da conversa de alguns dias atrás, e do jeito
como o clima amigável se esvaiu rapidamente quando entramos no assunto
sobre Guilherme.
— Ele tem um passado triste, ok?
Igor concordou com ela, me fazendo soltar outra risada.
Definitivamente, eu poderia escutar os dois conversando sobre isso o
dia inteiro. Matheus pareceu dividido entre prestar atenção no debate dos
dois e em terminar a sua refeição, já que ele era o único que ainda estava
comendo.
— Papai, ajuda! — Finalmente pediu, me deixando cortar a massa em
alguns pequenos pedaços que facilitavam que pegasse com o garfo.
Não muito distante, acompanhei Pedro se aproximar da mesa em que
estávamos com um olhar confuso e ressabiado para a garota sentada ao meu
lado, em resposta enviei um pedido silencioso para que deixasse sua
grosseria de lado ao se dirigir a ela.
Não era como se ele fosse destratar Nathalia gratuitamente, mas eu
sabia como Pedro conseguia ser rude sem precisar de esforço, e diferente de
nossos amigos e suas mulheres — que estavam acostumadas com o seu
jeito há anos —, Nathalia não o conhecia e isso significava que
Zimmermann precisaria usar a cordialidade que eu sabia que tinha
aprendido. Afinal, ele não a poupava quando precisava usá-la para levar
uma mulher para a sua cama.
— Marc chegou — anunciou, ignorando a presença da morena ao
meu lado. Isso não passou despercebido pela Nathalia que desviou sua
atenção de Igor para ele, cerrando os olhos no rosto do engenheiro. — Você
ainda vem jogar?
Assenti em resposta e indiquei com a cabeça para ela.
— Cumprimente a Nathalia, Pedro — pedi, calmamente.
Pedro virou o rosto para ela e diferente do que eu esperava encontrar
— que era o sorriso simpático e doce de Nathalia —, ela o olhava meio fula
da vida.
— Zimmermann.
— Gama.
Certo, talvez eu tivesse perdido alguma coisa.
— Vocês se conhecem? — indaguei, afinal, havia falado sobre ela
nos últimos cinco dias, e em nenhum momento meu amigo deu a entender
que a conhecia.
— Infelizmente — disseram em uníssono.
Olhei de um para o outro, temendo que a resposta para a pergunta que
faria, envolvesse ela sendo um dos casos dele no clube. Não que eu me
importasse com quem Nathalia se relacionava, ela era uma mulher linda,
jovem e solteira. Mas definitivamente não me sentia confortável com a
ideia de qualquer um dos meus amigos ter estado com ela.
— Jogamos uma partida de tênis na Itália, alguns anos atrás —
explicou Nathalia, desgostosa.
Virei para o meu amigo.
— Foi ela que te deu uma surra na quadra?
Pedro fechou a cara, nada contente com o meu questionamento.
— Não.
— Foi sim. Supera, Zimmermann! — retrucou Nathalia, olhando-o
cheia de arrogância.
Assisti Pedro virar para encará-la e apertar a mandíbula, visivelmente
ofendido pela derrota.
Eu não estive presente naquela viagem de verão para a inauguração
do clube na Itália, Pedro havia sido o responsável pela construção do
complexo na cidade de Torino, e devido a alguns problemas no escritório,
Leandro e eu não conseguimos prestigiar o evento. Joca e Guto, amigos
nossos, estiveram presente e fizeram questão de detalhar como; após uma
competição digna de ser transmitida em campeonato de atletas de alta
performance, uma garota de pouco mais de um metro e meio; venceu Pedro
no esporte que ele mais amava.
Isso aconteceu… uns quatro anos atrás. E Pedro não superou aquela
derrota desde então.
— Me vença sem roubar, e nós conversamos sobre isso, Gama.
— Pois bem, se quiser, estou mais do que disposta a resolver isso de
uma vez por todas — disse ela, tão competitiva quanto ele.
Meus olhos foram de um para o outro, tentando acompanhar a
atmosfera densa que havia se instalado. Pedro era um péssimo perdedor, ou
as coisas funcionavam ao seu favor e da forma que queria, ou ele deixava
seu orgulho falar mais alto. Certamente, perder para uma garota miúda não
ajudava seu ego a permanecer intacto.
— Certo, certo, crianças… — chamei a atenção dos dois,
descontraído. — Não precisamos dessa rivalidade aqui.
Os dois fecharam a cara para mim, o que teria me arrancado uma
risada se não tivessem começado a se alfinetar outra vez. Foi divertido
acompanhar enquanto retrucavam sobre cada afirmação do outro. Enquanto
Pedro alegava que Nathalia apenas marcou o ponto da vitória porque
ultrapassou a linha, ela defendia que ele estava sendo estúpido por não
admitir que foi derrotado.
E como duas crianças mimadas, passaram os minutos que seguiram
ressaltando cada prêmio que ganharam durante os anos em que praticavam
o esporte.
Não pude deixar de me divertir quando Pedro puxou uma cadeira e se
sentou, olhando-a irritado.
— Você roubou, admita de uma vez por todas.
— Claro que não, Zimmermann. Tinha um juiz acompanhando o
jogo, ou você esqueceu disso?
— E ele era o seu instrutor!
— E um atleta profissional do esporte que nunca aceitaria que eu
burlasse uma regra!
— Não muda o fato de que você atravessou a faixa.
— Juro que se você continuar falando isso, ligo para o Ashford agora
mesmo e peço as câmeras de segurança da quadra naquele dia.
Aaron Ashford era um dos meus clientes mais antigos, um amigo da
época da faculdade e CEO do Niké Society — que possuía complexos
espalhados por várias cidades no mundo. Aaron era o único filho do
fundador do clube, e o responsável por administrar os negócios da família.
Não me surpreenderia se Nathalia tivesse seu número na discagem rápida,
uma vez que Miguel Gama era um dos associados mais antigos e um
conhecido do pai de Aaron.
— Vocês ainda lembram o dia exato que aconteceu? — perguntei,
preocupado com o nível de rivalidade entre eles.
Afinal, aquilo tinha acontecido há muito tempo, não havia
necessidade de se estranharem por um jogo bobo.
— Claro que sim — responderam, mordazes.
Ri fraco, balançando a cabeça.
— Olha, tudo bem, entendi que você não gosta de perder. Eu também
não, ok? — Nathalia sorriu para ele, um pouco mais pacífica. — Mas… eu
treino todos os dias desde que tinha seis anos de idade, não preciso roubar
nada para ganhar de você.
Se sua tentativa era apaziguar os ânimos, seu último comentário
repleto de provocação fez o oposto.
— Semana que vem, na quadra atrás do campo de golfe — rosnou
Pedro, caindo na armadilha que Nathalia havia preparado para ele.
Incrédulo, virei para o meu amigo sem acreditar que ele não percebeu
que foi manipulado para aceitar a revanche que ela premeditadamente
propôs.
— Combinado. — Seu olhar veio para mim com um sorriso arteiro,
ciente de que eu percebi o que fez. — Ele claramente é grifinório —
confidenciou.
Igor deu risada.
— Foi o que eu disse! — falou, extasiado por encontrar alguém que
falava a mesma língua que ele.
Pedro me encarou confuso.
— De que merda estão falando?
— Nem eu sei mais — confessei, sem conseguir esconder o sorriso
admirado ao ver Nathalia voltar a embarcar na conversa com Igor.
Aparentemente, a garota tinha alguma espécie de encanto, pois, em
apenas alguns minutos, arrancou mais palavras de Igor e de Pedro do que
qualquer outro que tentou.
Renato acabou me convidando para acompanhar a partida de futebol
e como meu compromisso do dia foi desmarcado, aceitei.
Leandro tinha me contado várias histórias sobre esse evento.
Aparentemente, a competitividade estava enraizada no grupo de
amigos e conforme acompanhava o jogo, compreendi o motivo para que
Leandro se divertisse tanto nele. Sua maior especialidade em campo era
gritar que seus amigos eram idosos e zombar de cada queixa depois que
marcava falta neles.
Ele era uma peste, pior do que aquelas crianças atentadas que
deixavam as babás arrancando os cabelos de estresse. E no seu caso, as
babás eram os seus amigos que comiam o pão que o diabo amassou na sua
mão.
— Ei, diabinha — falou, se jogando no espaço ao meu lado e levei a
mão livre para a testa, tentando me proteger do sol que parecia ter
confundido São Paulo com o Deserto do Saara.
Minha viseira estava com o Matheus que precisava dela mais do que
eu, o garoto era tão branquinho que mesmo depois de eu ter passado uma
quantidade absurda de protetor solar no seu corpo e rosto, ele ainda estava
com as bochechas vermelhas devido ao sol escaldante.
— Oi, criança — cumprimentei pela segunda vez no dia, vendo-o
tirar a camisa suada e jogar no degrau atrás de mim, deixando o abdômen
trincado exposto para que qualquer um visse.
Ri baixinho ao entender que ele se exibia propositalmente para a
Bianca — que estava do outro lado da arquibancada conversando com Marc
e Carol, alheia ao que o idiota fazia.
— Você realmente esqueceu de crescer depois que saiu do oitavo ano,
né?
Salazar virou o rosto para mim, dando seu melhor sorriso cafajeste e
jogou o braço pesado e musculoso sobre os meus ombros, puxando-me para
perto e deixando um beijo estalado em minha têmpora esquerda.
— Na verdade, foi no quinto.
— Isso faz muito sentido.
— Faz, né? — Suspirou, virando para a Bianca novamente, meio
ofendido por ela continuar o ignorando enquanto ele praticamente pousava
para uma revista de fisiculturismo ao meu lado.
Ri baixinho.
— Nem tenta — avisei, divertida.
Seu olhar veio na minha direção, confuso.
— Se ela está te evitando, é melhor deixar que ela perceba sozinha
que quer conversar contigo… — expliquei, com um meio sorriso —, vai por
mim, é assim que a Bianca funciona. Quanto mais ficar em cima, mais ela
vai fingir que não está te vendo.
Leandro bufou, descontente com o meu conselho.
E bem, conheci Bianca há alguns anos quando por obra do destino,
calhamos de estar no mesmo lugar quando uma mais precisava da outra.
Estive ao seu lado em tantas coisas, que sabia muito bem como sua cabeça
funcionava e não precisava que os dois me dissessem o que havia
acontecido entre eles, para saber que rolou algo além do que estavam me
contando.
— Vou fazer uma social na minha casa hoje — falou, mudando de
assunto. — Só com os meus amigos mais próximos.
Meneei a cabeça vagarosamente e virei o rosto para o campo, onde
Renato instruía Igor em um drible que ele tinha errado durante a partida. O
pequeno repetiu o movimento, seguindo as instruções do pai, e Marc
acabou o perdendo na marcação — resultando no gol do garoto.
Um sorriso divertido escapou dos meus lábios ao ver como o
advogado que parecia um armário loiro e cheio de músculos, foi driblado
por um garotinho pequeno, e não me fugiu a constatação de como Renato
parecia ser um pai incrível.
Meus olhos correram pela arquibancada outra vez, procurando por
uma figura diferente das três mulheres que eu havia sido apresentada antes
que eles entrassem em campo.
Maria Carolina, era a esposa de Fabio e prima do Leandro. Ela era
absurdamente bonita; de cabelos longos e castanho-claro, olhos azuis tão
cristalinos que pareciam quase cinzentos. Sua pele alva estava sofrendo
pelo calor excessivo daquela manhã, fazendo com que as maçãs das suas
bochechas ficassem rubras, e mesmo com um vestido curto de alças, não
parecia muito acostumada com o calor paulista. Leandro tinha me explicado
que Fabio e ela se dividiam entre um semestre no Brasil e outro nos Estados
Unidos, já que ela era a vice-presidente da Haddock Motors.
Maya Hernandez, era tão bonita quanto Carol, a pele marrom-clara
tinha resquícios de um bronzeado que, segundo ela, vinha das
comemorações de fim de ano na Grécia com Marc; e os cabelos pretos eram
longos, alcançando a cintura delgada. Com um par de olhos tão escuros
quanto os da Bianca e lábios grossos, Maya era linda. E se tornou a minha
favorita dentre as três, quando me contou que também praticava tênis e se
ofereceu para me encontrar em um dos meus treinos ao longo da semana.
Maya era advogada, assim como o namorado, e era sócia na firma
dele. Conversamos muito pouco sobre sua vida, mas ela me garantiu que
quando nos sentássemos para que me contasse sobre como conheceu o
advogado, eu precisaria de muitos shots de tequila para processar a loucura
que os envolvia.
Já a terceira mulher, não era namorada de nenhum dos amigos deles e
não conversou comigo em momento algum. No máximo deu um aceno de
cabeça quando Renato nos apresentou, e tudo o que eu sabia era que se
chamava Geovana, e que era a irmã do Gustavo — ou Guto, como pediu
para que o chamasse.
E levando em conta todas as vezes em que a loira com corpo de
modelo se aproximava de Renato, puxando assunto, sorrindo e o tocando
excessivamente, não foi difícil entender que a sua antipatia por mim se dava
pelo fato da mão dele não ter saído das minhas costas nem por um segundo,
antes de ir para o gramado com os amigos.
Suspirei, voltando a encarar Leandro que também dividia sua atenção
entre mim e Bianca.
— Precisa de conselhos sobre como fazer uma boa festa? —
perguntei, sorrindo de canto.
Seu olhar recaiu em meu rosto outra vez e ele bufou.
— Dá licença, sou o melhor no quesito festas! — Gabou-se, apoiando
os cotovelos no degrau atrás de nós e respirou fundo, soltando o ar devagar
para controlar os batimentos que ainda estavam agitados pela intensidade da
partida. — Mas quero saber se você quer que eu passe para te pegar.
Alcei a sobrancelha.
— Que forma inusitada de convidar alguém para uma festa.
— Não estou convidando, sua presença meio que é uma obrigação.
Somos amigos agora, esqueceu? — retrucou, presunçoso.
Estalei a língua.
— E o que te garante que não tenho compromissos?
— Falei com a Bianca antes, e ela disse que se depender de você, vai
passar o fim de semana inteiro trancada em casa estudando. — Deu de
ombros, como se os meus planos fossem descartáveis.
E eles não estavam errados. Apesar de ter ganhado um tempo livre
para me dedicar ao que precisava para a inscrição, ainda não estava nem
perto de chegar em um rascunho aceitável para levar ao Prof. Becker no
nosso encontro na terça-feira. Na verdade, se fosse ser franca… sequer
existia um esboço para que eu trabalhasse em cima.
Estava confusa com os balanços da empresa fictícia e toda vez que
analisava os documentos, me sentia ainda mais perdida. Nada ali fazia
sentido na minha cabeça, e eu não sabia definir se era porque realmente não
era para ter lógica — e talvez, fosse uma pegadinha na inscrição — ou se eu
estava tão cansada que não conseguia ver o que estava bem diante dos meus
olhos.
E levando em conta como as coisas andavam nos últimos dias, estava
começando a duvidar da minha capacidade de perceber o que os outros não
notavam.
— Sabe, não sei se você esqueceu…, mas eu estou no último semestre
da especialização — comentei, com um meio sorriso irônico.
De canto de olho, pude acompanhar enquanto o caçula de Renato
corria na minha direção e isso me fez tirar o foco do homem ao meu lado,
abrindo os braços para capturar o pacotinho loiro minúsculo que se
encaixou entre minhas pernas e enlaçou meu corpo, escondendo o rosto em
minha barriga.
— Tá muuuito calor! — resmungou, mole. A voz manhosa me
arrancou um sorriso e meus dedos mergulharam em seu cabelo liso,
ligeiramente úmido pelo suor que se acumulava devido a correria sem fim
ao redor da quadra. — Sorvetinho?
— Hum… seu pai disse que estava doente, você já está melhor? —
apertei os olhos nele quando pendeu a cabeça para trás e me encarou, as
bochechas vermelhas e os olhos verdes cintilando me ganharam sem
precisar de esforço.
Que criaturinha mais cruel e manipuladora…
— Siiiim!
Desviei os olhos dele para o campo, encontrando o olhar do pai do
garotinho fixo em nós dois. Renato ainda estava no gramado, ajudando o
filho mais velho a consertar os lances que tinha errado junto com Marc e
Pedro, mas alternava sua atenção entre Igor e Matheus com muita
dedicação, atento ao menor movimento do pequeno longe do seu cuidado.
Suspirei, voltando para Matheus e dei meu melhor sorriso.
— Vamos ver com seu pai, ok?
O pequeno sorriu, cheio de simpatia, meus dedos apertaram suas
bochechas gorduchas e deixei um beijo no seu cabelo, antes de liberá-lo
para descer em direção ao irmão que o chamou.
Virei o rosto para Leandro, que observava ao drama do pequeno em
silêncio e senti um vinco em minha testa ao encontrar um sorriso esquisito
dançando em seus lábios.
— O quê?
— Nada.
— Fala logo.
Leandro riu baixinho.
— Você leva jeito com crianças, cleputamaníaca.
Rolei os olhos para o apelido, ele teve o bom-senso de evitar usá-lo
durante toda a manhã na presença das crianças e do meu pai — o que eu
não pensei que fosse possível —, mas sua observação me fez dar um meio
sorriso.
— Não soube? — indaguei, piscando teatralmente. — Sou ótima em
fazer com que todos gostem de mim.
— Ah, é?
Estalei a língua, dando de ombros e me levantei, precisando sair um
pouco debaixo do sol antes que minha pele ficasse da cor de um camarão
queimado.
— Claro que sim. Todos gostam de mim…
— Todos?
Dei de ombros, sem me importar em soar prepotente. Não era como
se Leandro pudesse apontar o dedo para mim e me chamar de convencida,
quando ele era o egocentrismo em carne e osso.
— Sim. E se tiver alguém que não gosta… o problema está na pessoa,
não em mim. Eu sou um doce.
Salazar riu, meneando a cabeça. Olhei por cima dos ombros,
ponderando se valia a pena atravessar todo o campo para ir até o quiosque
mais próximo, estava começando a me arrepender por não ter trazido
biquíni. O clube tinha uma praia artificial e considerando o sol que estava,
era possível que com uma quantidade generosa de bronzeador, eu
conseguisse uma marquinha.
— Gosto desse raciocínio, diabinha — disse Leandro, e virei para ele
que encarava um ponto atrás de mim com certo entusiasmo.
Imitei-o, encontrando Renato com os olhos apertados em nós dois, o
que arrancou outra risada de Salazar. Engoli o suspiro que ameaçou escapar
da minha garganta e endireitei a postura, voltando para o homem sentado na
minha frente.
— Me envia o seu endereço — pedi, atraindo seu olhar de volta para
mim.
Tentei me convencer de que algumas horas de distração com pessoas
legais poderia me ajudar a desestressar e, consequentemente, relaxaria a
mente para que quando voltasse para casa, focasse no trabalho que
precisava finalizar.
— Envio por mensagem.
Assenti, pegando minha bolsa para dar uma volta. Eu precisava de
uma bebida para aplacar o calor.
— Mas já fique ciente de que não vou ficar muito tempo.
Leandro acenou, piscando para mim antes de se levantar e ir na
direção que Bianca estava conversando com as outras duas garotas.
Dei uma última olhada em volta, vendo quando a mulher loira e alta
atravessou o gramado e se aproximou de onde Renato estava com os filhos
dele. Meus lábios se repuxaram para cima ao vê-lo gargalhar de algo que o
caçula havia dito, antes de jogá-lo por cima dos seus ombros e correr atrás
da bola que Igor tinha chutado para Pedro.
Sinalizei para Bianca que daria uma volta e como sabia que ela estava
em boas mãos, não me preocupei em me afastar um pouco.
No trajeto para o bar, acabei encontrando algumas pessoas que
frequentavam o clube todos os finais de semana, e não deixei de pensar no
fato de que eu costumava estar ali sempre e nunca encontrei com qualquer
um deles.
Até Pedro Zimmermann, com quem esbarrei em uma partida que
disputamos anos atrás, havia sido na inauguração do complexo da Europa.
Aquele lugar era tão grande e dispunha de tanto espaço para uso dos sócios,
que era muito provável que nos esbarramos em algum momento e só não
prestamos atenção.
O nosso mundo era pequeno e, eventualmente, todos acabavam se
conhecendo.
Deixei minha bolsa em cima de um dos bancos de madeira em frente
ao quiosque na praia artificial, o lugar não estava muito cheio; com exceção
de algumas garotas tomando sol nas espreguiçadeiras e duas crianças
brincando na parte mais rasa sob supervisão das suas babás, era como se
fosse um dia qualquer.
— Marguerita? — perguntou o barman, sabendo que normalmente,
era o que eu costumava pedir quando aparecia por esse lado do clube.
— Por favor.
Apoiei os cotovelos em cima do balcão e enquanto acompanhava o
rapaz preparar minha bebida, ponderei se valia a pena checar o porta-malas
do meu carro. Eu costumava deixar uma mochila com alguns itens
emergenciais, uma vez que as pessoas viviam esbarrando em mim e
derrubando coisas na minha roupa… talvez, eu tivesse um biquíni perdido
em algum lugar.
De toda forma, o clube tinha uma loja onde eu poderia comprar uma
peça nova sem precisar ir até o estacionamento.
Eu só precisava definir se estava disposta a gastar mais algumas horas
aqui, ao invés de ir para casa e mergulhar na papelada que precisava
resolver.
— Quanto tempo não te vejo por aqui, princesinha… — Virei o rosto
ao sentir um homem se aproximar, sentando-se no banco vazio à minha
direita. Seu olhar escorregou pelo meu corpo sem discrição, antes de voltar
para o meu rosto. — Como vai?
Forcei um sorriso.
— Ótima.
Ele sorriu, soberbo. Com toda a falta de educação que acumulava em
seu corpo repleto de músculos e nenhum pingo de noção, Diogo pediu para
que o garoto do outro lado do balcão servisse uma cerveja alemã para ele
me acompanhar no meu drink.
Como se eu tivesse o convidado para isso.
— Não te vejo desde o jantar anual da Alpha… — Diogo puxou
assunto, apoiando sua mão no meu assento e inclinando o corpo na minha
direção.
— Se você não dissesse… nunca teria lembrado que nos vimos
naquela noite.
Ele não se incomodou com a minha acidez, ao contrário, quanto mais
desinteresse eu demonstrava… mais Diogo Fortunato parecia tomar meu
desprezo como incentivo para continuar enchendo minha paciência.
— Não seja tão cruel com o meu coração, princesinha…
Respirei fundo, bebendo um pouco do meu drink para não perder a
calma e enfiar cinco dedos no meio do seu rosto para que me deixasse em
paz. Diogo Fortunato era um pirralho que tinha acabado de completar 21
anos, e que sequer sabia disfarçar que o único interesse que tinha em mim,
era o acesso que eu poderia fornecer para os negócios da minha família.
Era muito fácil perceber quem estava perto porque gostava de mim, e
quem só se aproximava por causa do meu sobrenome.
E Diogo nunca escondeu que tudo o que queria era uma chance de se
sentar numa mesa com Elias Gama para conseguir os negócios do Marine.
Ele era tão estúpido, que uma pesquisa simples o faria descobrir que
eu não tinha qualquer acesso aos empreendimentos da minha família.
E ainda que ele conseguisse uma reunião com meu avô por minha
causa, isso nunca faria com que Elias assinasse com a sua empresa para as
obras de novos hotéis. Tanto Miguel quanto Elias tinham certo favoritismo
pelo trabalho de Pedro Zimmermann e uma longa relação de parceria com a
Zimmermann Arquitetura & Engenharia. Uma coisa que meu avô nunca
faria, era trocar o certo pelo duvidoso e todos conheciam a reputação dos
Fortunato.
Antes que o mandasse para a merda, senti um arrepio perpassar
minha coluna e um perfume familiar me envolver. O corpo grande e
musculoso atrás de mim, criou uma sombra que roubou a atenção do garoto
e não precisei me virar para saber quem era o responsável por isso.
— Interrompo? — indagou Renato, a voz não passando de um aviso
grave de que estava ciente do desconforto que o garoto me gerava.
O garçom se aproximou com a garrafa que ele pediu e observei com
certa diversão enquanto Diogo analisava o conflito em que se colocou. Pude
reconhecer quando cogitou responder Renato, mas, algo que não consegui
ver, por estar de costas para ele, fez com que o garoto recuasse e me
lançasse um último olhar, antes de murmurar:
— Nos vemos por aí, princesinha.
Revirei os olhos, bebendo mais um pouco da marguerita, sem perder
de vista enquanto o rapaz colocava o rabinho entre as pernas e se afastava.
Não demorou para que Renato surgisse na minha frente, ocupando o
lugar que ele estava e correndo seus olhos pelo meu rosto, buscando por
algo que não me dei ao trabalho de me atentar.
O motivo?
Meus olhos me traíram e foram fisgados pelo abdômen definido.
Lentamente, esquadrinhei cada centímetro de pele disponível; atenta a
maneira como os músculos pareciam ter sido desenhados por alguém muito
dedicado em criar o protótipo do homem perfeito.
Pisquei aturdida, arrastando a atenção para o seu rosto, sem deixar de
notar os bíceps definidos e as veias expostas por todo o seu braço.
Ah… puta merda.
Eu tinha um fraco por veias.
Engoli em seco, usando a bebida para disfarçar o quanto estava
desconcertada com a escultura diante de mim e bati os cílios repetidamente,
forçando os cantos dos meus lábios a arquearem para cima.
— Oi.
— Você sumiu. — Observou, sem tirar os olhos dos meus,
preocupado. — Aconteceu alguma coisa?
— Hã… não. Só fiquei com sede. — Ergui a taça pela metade e
aproveitei o movimento para pedir que o barman preparasse outra. Busquei
pelos filhos dele, mas não os encontrei em lugar algum. — Onde os outros
estão?
— Foram se trocar. Matheus e Bianca convenceram todos a virem
para a praia — explicou, sentando-se no banco ao meu lado e com uma
educação invejável, pediu por uma cerveja.
— Tenho certeza de que o pequeno foi muito convincente na hora de
pedir.
Um esboço de sorriso cobriu seus lábios e ele virou para mim,
acenando.
— Gostaria muito de saber de quem ele puxou isso.
— O rostinho bonito faz boa parte do trabalho — comentei,
engolindo o restante do comentário que passou pela minha cabeça.
Apostaria todo o dinheiro disponível na minha conta bancária, na
certeza de que o pai conseguia qualquer coisa que quisesse também.
Renato acenou e murmurou um agradecimento ao rapaz que deixou
nossas bebidas no balcão. Seu olhar retornou para mim e ele ergueu a
caneca de chopp, em um brinde silencioso e repeti seu gesto, girando o
corpo no balcão para ficar de frente para ele.
— Sabe o que eu estava pensando? — perguntei e ele incentivou que
prosseguisse: — Em como frequentamos o mesmo lugar e nunca nos
encontramos.
Apreciei com mais atenção que o recomendado quando seus ombros
balançaram, acompanhando a risada baixa e divertida que escapou dos seus
lábios.
— Eu estive pensando o mesmo… — confessou, voltando os olhos
escuros para os meus, a intensidade estava presente como sempre, causando
pequenos arrepios que se espalhavam em minha pele. — Onde você se
escondeu por todo esse tempo?
Não tive certeza se compreendi o que ele quis dizer, tampouco se era
algo que precisava de uma resposta da minha parte. Me pareceu mais um
questionamento que fez a si mesmo em voz alta.
No entanto, me arrancou outro sorriso e um rubor nas bochechas que
não eram bem-vindos.
— Eu poderia te fazer a mesma pergunta — respondeu Nathalia,
desviando o olhar para a trilha fechada, acompanhando meus filhos se
aproximarem com meus amigos. — Hum… a mãe deles está viajando? —
perguntou, curiosa.
Bem, sua dedução não era tão equivocada.
Flávia estava em algum lugar do mundo, eu só não me importava em
saber onde era e torcia para que não retornasse. Não faria diferença alguma
na vida dos meus filhos, e no que dependesse de mim, ela não chegaria
perto nunca mais.
Havia sido complacente com sua maneira de levar a maternidade por
muito tempo, mas isso só fez com que Igor fosse prejudicado pelas visitas
esporádicas e sumiços sem qualquer explicação. Quem esteve comigo nos
últimos anos sabia que Flávia nunca foi, de fato, uma mãe para Igor e
Matheus.
Colocá-los no mundo não a fez mãe deles, e eu duvidava muito que
tivesse qualquer interesse de exercer esse papel. Ela cansou de apontar o
dedo na minha cara e me acusar de ter estragado a sua vida e que, por isso,
eu não devia julgá-la pela forma como agia com os dois… e bem, ela estava
parcialmente certa.
Mas nunca pedi para que ela fosse uma mãe.
Ao contrário, sempre deixei a porta aberta para que saísse das nossas
vidas após o nascimento deles, acompanhei durante as duas gestações para
que não fosse irresponsável e permiti que vivesse sob o mesmo teto que eu.
Cedi mais do que qualquer pessoa poderia julgar tolerável.
E isso não a impediu de continuar bebendo durante os primeiros
meses de gestação do Igor — o que fez com que acabasse internada durante
os últimos três meses.
Flávia sequer esperou que ele completasse uma semana na UTI
Neonatal, antes de desaparecer com a desculpa de que não estava pronta
para lidar com um bebê. Ela retornou um ano depois, alegando que se
arrependeu e exigindo criar um vínculo com Igor… e isso durou dois dias.
Então, começou a largar o meu filho com a babá, enquanto usava a minha
casa como ponto de encontro com outros homens; a desaparecer no meio da
semana e voltar no início da seguinte, a beber e fumar na frente do meu
filho — e se eu não tivesse deixado seguranças e babás com eles, sequer
sabia o que poderia ter acontecido com Igor sob os cuidados dela.
E não era como se eu fosse inocente na história.
Afinal, mesmo sabendo o tipo de pessoa que ela era, fui tão estúpido
quanto qualquer homem que deixava o tesão falar mais alto, quando estava
sob a influência de álcool.
Ao menos com Matheus, ela foi minimamente responsável, com a
condição de continuar morando comigo durante toda a gestação. Flávia
permaneceu na linha, mas não tentou corrigir a sua relação com Igor.
Não, ela fez questão de ser uma filha da puta com ele em cada
oportunidade, aproveitando-se que eu não estava presente. Flávia repetiu o
ciclo após o nascimento de Matheus, e vez ou outra retornava, com a
desculpa de que tinha mudado, que queria se aproximar dos garotos e que
me processaria caso não permitisse.
E sob o peso de ser o homem responsável por tirar de uma mãe o
direito de ver os filhos, precisei abrir tantas exceções que quando tive a
chance de impedir que retornasse, era tarde demais. As consequências
ficaram e eu precisaria lidar com o remorso de não ter tido pulso firme e ter
cedido as suas chantagens.
— Digamos que sim — murmurei em resposta à pergunta de
Nathalia, reconhecendo seu olhar intrigado. — Diogo Fortunato… atrapalhei
algo?
Não pensei racionalmente quando me aproximei e interrompi a
conversa entre os dois. Quando os encontrei e percebi o desconforto de
Nathalia, apenas segui os instintos.
Mas pensando bem, eu poderia ter atrapalhado a interação entre eles,
e o que pensei ter sido desconforto fosse outra coisa.
— Ah… não, inclusive, obrigada. — Sorriu fraco, deixando a
marguerita em cima do balcão e olhou por cima dos ombros, acenando em
resposta para Leandro que a chamou. — É uma merda que ele só tenha
saído do meu pé porque você apareceu? Sim. Mas de toda forma… obrigada.
— Disponha — murmurei, vendo-a entreabrir os lábios para dizer
algo, mas pareceu se perder no raciocínio e apenas fisgou a carne entre os
dentes. — Soube que planejava jogar tênis hoje.
Ela balançou a cabeça, soltando um suspiro baixo.
— Sim, com o meu pai. Mas sabe como funciona o mercado…
Olhei ao redor e notei que não desmontaram a estrutura da
competição de beach tennis que ocorreu no início da semana.
De todos os esportes que eu praticava, aquele definitivamente não era
a minha especialidade, tampouco o meu preferido. Contudo, não seria o fim
do mundo tirar os longos anos de prática do fundo do armário e jogar com
ela.
— Que tal uma partida contra mim?
Seus lábios se rasgaram em um sorriso largo, fazendo com que uma
covinha surgisse na bochecha esquerda. Nathalia apertou os olhos nos
meus, desconfiada.
— Você sabe jogar?
— Claro, com quem acha que Pedro praticava?
Tudo bem que fazia uns… dez anos desde a última vez que pratiquei,
mas jogar tênis era como andar de bicicleta — não se esquecia totalmente,
apenas perdia um pouco da manha.
— Quando foi a última vez que entrou em uma partida, Renato? —
indagou, descendo do banco e apoiando um cotovelo no balcão.
Ela inclinou a cabeça e não pude conter o sorriso ao perceber como
meu nome soava muito melhor quando escapava dos lábios grossos e
rosados. Virei-me, inclinando os ombros em sua direção para sustentar o
seu olhar que faiscava pelo desafio imposto.
— Não me diga que está com medo de perder para mim, Nathalia…
— provoquei, minha voz baixa e rouca. — Prefere jogar contra o
Zimmermann?
Mentalmente, torci para que escolhesse jogar contra mim.
Gostava de ter aquele par de olhos grandes concentrados nos meus.
O vento forte ricocheteou entre nós, soprando com tanta violência
que uma mecha teimosa e mais curta de seu cabelo se soltou da amarração,
voando direto para o seu rosto e, outra vez, meu instinto falou mais alto e
minha mão foi em sua direção, devolvendo-a para trás da orelha.
Nathalia arquejou baixinho, suas íris cintilaram e precisei conter
dentro de mim o anseio para que meus dedos escorregassem em sua
bochecha. No entanto, a única coisa que pairava em minha cabeça era o
desejo quase compulsivo de sentir sua pele sob a minha.
Ela era tão macia quanto aparentava? Sua pele tinha o mesmo cheiro
do seu perfume?
Afastei-me, temendo que meu autocontrole estivesse por um fio e
desci os olhos para o seu peito que subia e descia, acelerado, em busca do
fôlego que ela perdeu em algum ponto da nossa conversa.
— Eu… Hã… você consegue buscar os equipamentos? — balbuciou,
dando um passo para trás e piscou, sem me olhar diretamente. Nathalia
bebeu o resto do seu drink antes de se virar para mim. — Vou me trocar.
Acenei, vendo-a pegar a bolsa e me dar as costas, caminhando
apressada para os vestiários.
Deixei as raquetes em cima de uma espreguiçadeira e me sentei no
espaço livre, trazendo Matheus para perto e, sem pressa, usei o guardanapo
para limpar o canto dos seus lábios que continha os resquícios do sorvete
que tomou.
— Satisfeito, pequeno Hulk? — perguntei, afastando os fios dourados
da sua testa e ele balançou a cabeça, agitado. — Você ainda vai comer? —
questionei, espreitando os olhos nele, desconfiado.
— Sim, papai!
Seus braços envolveram meus ombros e sorri, deixando um beijo em
seu cabelo.
Pela visão periférica, pude capturar o exato momento em que
Nathalia pisou na faixa de areia, atraindo alguns olhares dos homens que
estavam espalhados por ali, incluindo os meus amigos solteiros.
Ela trocou a roupa que usava por um biquíni — devido ao calor
maçante que fazia naquela tarde — e quase perdi o fôlego ao ver como a
peça não parecia cobrir muita pele.
O pedaço minúsculo de tecido contrastava com a sua pele clara, a
amarração da corda no vão entre os seios atraiu minha atenção para o busto
médio, e apesar de ser muito mais discreto do que o biquíni de outras
mulheres na praia, eu só conseguia ter olhos para ela. Felizmente, a
minissaia que usava, com uma fenda do lado esquerdo e semitransparente,
me impediu de ver mais ou, não tinha certeza se toda a minha força de
vontade seria o suficiente para me impedir de admirá-la.
As pernas torneadas denunciavam sua rotina de academia e antes que
eu pudesse recuperar o controle da minha mente e desviar os olhos, um
garoto atravessou meu campo de visão e parou em frente a Nathalia que deu
um sorriso largo e o envolveu em um abraço apertado.
Igor que estava distraído no Nintendo, desviou os olhos e os espreitou
naquela direção, voltando-se para mim com a sobrancelha arqueada.
— O que você precisa? — perguntei, engolindo o desconforto e
encarei o meu filho.
Igor balançou a cabeça e resmungou em resposta, volvendo sua
atenção para o console.
— Papai, posso entrar na água? — Matheus pediu, batendo
excessivamente os longos cílios.
— Daqui a pouco, tudo bem? — ofereci.
Eles tinham acabado de comer alguns aperitivos que pedimos no
quiosque e preferia que esperasse um pouco, antes de deixá-lo pular na
água.
— Quem é aquele? — indagou Leandro, parando ao meu lado
quando soltei meu caçula para que voltasse a brincar na areia com outras
duas garotinhas que estavam por ali.
Virei o rosto na direção que meu amigo encarava, percebendo que
Bianca estava com eles e cumprimentou o rapaz com um beijo no rosto. O
dito cujo permanecia com o braço ao redor da cintura de Nathalia. As duas
riram de algo que ele disse, e Leandro fechou a cara.
— Tenho certeza de que eu sou mais engraçado — resmungou,
enciumado.
Isso teria me arrancado uma risada, se não tivesse capturado o
momento em que o rapaz desceu sua mão para a bunda de Nathalia, coberta
pela saída de praia minúscula, e fechou os dedos na carne. O sangue em
minhas veias ferveu e acompanhei quando Nathalia arregalou os olhos,
estapeando o peito do cara, antes de balançar a cabeça e rir do que ele disse.
Eles eram amigos? E desde quando se tornou comum entre amigos
esse tipo de contato?
As íris castanhas buscaram por mim e ela me deu um meio sorriso,
balançou a cabeça em resposta para o rapaz e ficou na ponta dos pés para
deixar um beijo demorado em sua bochecha, antes de caminhar em nossa
direção.
— E então… ainda quer jogar? — indagou, alheia ao que tinha
acontecido. Leandro, no entanto, não nos poupou de evidenciar o
desconforto que sequer deveríamos ter sentido.
— Quem é aquele cara?
— Que cara? — ela se fez de desentendida.
— O que fechou a mão em você, e que deixou o meu eremita de
estimação a um passo de enfiar um soco nele — disse Leandro, apontando
para mim.
Filho da puta.
Cruzei os braços contra o meu peito, virando para ele com um olhar
que tinha certeza de que Leandro entenderia. Em resposta, o desgraçado
piscou e se afastou, indo em direção ao rapaz que ainda conversava com a
Bianca — e com toda a sua falta de noção e sutileza, entrou no meio dos
dois para estabelecer distância entre eles, em seguida, passou seu braço
sobre os ombros da loira.
Volvi para Nathalia, encontrando os olhos grandes me fitando e um
brilho espirituoso queimando nas íris, ela não precisava sorrir com os lábios
para que eu notasse sua diversão. Nunca pensei que pudesse encontrar
alguém que fosse tão expressiva apenas com um olhar, mas a cada segundo,
ela conseguia me mostrar como era uma raridade.
— Vamos? — chamou, indicando com o queixo para a quadra
improvisada e assenti, abrindo a garrafa de água para Igor antes de
acompanhá-la. — Mas… é sério, você sabe jogar? — averiguou,
implicante. — Não quero que me acuse de ter roubado no jogo, como o seu
amigo.
Olhei por cima da sua cabeça, vendo que Pedro estava ocupado
demais conversando com uma ruiva para se preocupar com o ego que
Nathalia feriu alguns anos atrás.
— Não se preocupe, sei aceitar uma possível derrota.
— Fico feliz em saber disso, mas coloque um pouco mais de fé em si
mesmo. — Sua mão pequena e macia afagou meu bíceps, suavemente,
antes de roubar uma raquete e a empunhar com maestria. — Sou melhor no
tênis de quadra do que na areia.
Alcei a sobrancelha, contagiado pela sua aura.
— Pensei que você se julgava a melhor no que fazia.
— E eu sou — retrucou, altiva. — Estava tentando não te deixar
muito nervoso, soube que é competitivo.
Desci o olhar para o seu rosto, afastando uma mecha teimosa do seu
cabelo e com uma naturalidade que não soube de onde veio, segurei seu
queixo entre meus dedos, fazendo um pouco de pressão para sustentar seu
olhar no meu.
— Você fala muito, anjo. — O apelido escapou dos meus lábios antes
que pudesse refreá-lo e não me importei em corrigir, eu duvidava muito que
qualquer outro pudesse fazer jus a ela.
Nathalia piscou, desviando o olhar para um ponto mais baixo do meu
rosto e ergueu os cantos dos lábios em um sorriso singelo, as unhas curtas
pressionaram minha pele com uma doçura incomparável; antes de se afastar
completamente, deixando a região onde tocou formigando.
— Pode sacar primeiro — avisou, arremessando a bola na minha
direção e me dando as costas para contornar a rede baixa.
Apesar de algumas pequenas diferenças de conceito e movimentação,
o beach tennis não era mais complicado do que o de quadra. E a cada set,
eu compreendia porquê Pedro não aceitava a derrota que sofreu na partida
contra ela.
Nathalia era excelente, jogava como uma profissional e eu tinha a
impressão de que ela não estava usando metade do seu potencial comigo,
uma vez que não era difícil notar que eu não praticava o esporte há uns bons
anos.
Depois de seis jogos – em que ela venceu quatro –, nos aproximamos
da rede para finalizar a partida. Nathalia esticou a mão em minha direção,
as bochechas vermelhas devido ao calor e o peito subindo e descendo,
agitado, por conta do esforço físico. Minha mão envolveu a sua, sutilmente,
em um aperto casual para parabenizá-la pela partida, mas quando Nathalia
sorriu para mim…
Eu, um homem com quase trinta anos nas costas – que teve mais
mulheres na cama do que podia contar –, me peguei sentindo o corpo
inteiro vacilar pelo sorriso doce e angelical de uma garota seis anos mais
nova.
— Foi um bom jogo — falei, baixo.
Nathalia acenou.
— Claro que foi, você leva jeito.
— Vou considerar um elogio… afinal, você joga muito bem —
elogiei, sincero. Ela alargou o sorriso e as íris brilharam em deleite.
Nathalia ao menos tinha noção de como era capaz de colocar
qualquer um de joelhos aos seus pés com aquele sorriso?
Ela meneou a cabeça, apertando mais seus dedos em minha mão,
adiando a quebra do contato físico e soltou um suspiro baixinho.
— Obrigada pela companhia.
— Quando precisar.
— Vou me lembrar disso no futuro.
Contrariado, soltei a sua mão e deixei que se afastasse, seguindo para
as espreguiçadeiras onde as outras garotas conversavam. Um funcionário do
clube se aproximou, recolhendo as raquetes para guardá-las e dei as costas
para a rede, seguindo de volta para o quiosque onde Igor e Matheus
estavam acompanhados de Fabio, enquanto beliscavam mais petiscos.
Se dependesse dos tios, eles comeriam o dia inteiro.
— Uma ótima partida — comentou Fabio, olhando-me de soslaio
enquanto eu lavava as mãos na entrada do quiosque. — Quase não deu para
notar que estava babando na garota.
Revirei os olhos.
— Não comece também.
— Apenas constatando um fato, meu amigo. — Sorriu enviesado e
passou a mão na cabeça lisa, notei uma nova tatuagem em seu peito,
contrastando sobre a pele marrom-escura e ele deu de ombros. — Não é
como se você estivesse disfarçando.
— Não existe nada que eu precise disfarçar.
— Então, está saindo com a garota?
— Não. — Fui sucinto. — E se eu estivesse, não estaria falando
sobre isso com você.
Ou com qualquer outro dos meus amigos.
Definitivamente, nunca fui o tipo de cara que contava vantagem. Não
começaria a ser assim com quase trinta anos nas costas e dois meninos que
me viam como um exemplo a seguir.
— Como foram as coisas na visita? — indaguei, me sentando ao lado
de Matheus e o ajudando com o copo enorme de suco de laranja que tentava
erguer para beber um gole. — Carol não me parecia muito empolgada —
mencionei, lembrando de ter percebido que os dois estavam um tanto
cabisbaixos quando chegamos.
Fabio e Maria Carolina estavam casados há dois anos, mas viviam
um relacionamento desde o primeiro ano da faculdade — onde se
conheceram. Entre idas e vindas, uma separação que durou quatro longos
anos e uma reconciliação digna de enredo dos livros da minha mãe; os dois
acabaram se cansando de escutar opiniões sobre a relação que tinham, e
decidiram se casar para que todos entendessem o quanto levavam o que
viviam juntos a sério.
Depois de meses vivendo uma lua-de-mel sem fim, eles chegaram na
fase em que queriam planejar o restante da vida e bem… Carol sempre quis
ser mãe. O choque, no entanto, foi quando descobriram que mesmo com
inúmeros tratamentos inovadores, eles não poderiam ter filhos. Ao menos,
pelo método tradicional.
Desde então, estudavam possibilidades — de inseminação artificial
em uma barriga de aluguel à adoção, de fato.
Eu evitava questionar demais, independente da decisão que
tomassem, sabia que quando ela fosse adotada; seríamos atualizados de
como nosso futuro sobrinho ou sobrinha entraria na nossa vida. Mas como
sabia que a visita que fizeram na tarde passada em um orfanato era
importante para a escolha que fariam, me vi tentado a descobrir se era um
passo em frente ou três passos para trás.
— Adotar uma criança é um processo mais complexo do que
pensamos — disse Fabio, baixo e entristecido. Tínhamos nos afastado um
pouco para que os meus filhos não escutassem, contudo, meus olhos
permaneciam atentos a eles. — Carol ainda não tem certeza, tem a
possibilidade da criança não se adaptar… e, segundo a conselheira, o fato de
não termos uma residência fixa pode ser um empecilho.
Franzi o cenho, afundando as mãos nos bolsos da bermuda e olhando
para ele.
— Carolina e você podem dar uma vida mais do que confortável para
uma criança, e a preocupação deles é o fato de viajarem a trabalho? —
perguntei, inconformado.
Fabio deu de ombros.
— É foda, mas, não estão errados — ponderou, resignado. — Tem
criança que passou por muita merda antes de chegar ali. Eles precisam de
estabilidade e mudar de país a cada três meses está bem longe disso.
Respirei fundo e, involuntariamente, meus olhos se moveram para o
Zimmermann que ainda conversava despreocupado com a ruiva. Talvez
Fabio estivesse certo. Algumas crianças passavam pelo inferno antes de
serem encaminhadas ao abrigo, e existiam os casos daquelas que sequer
chegaram a ir para um, mas precisaram de muito tempo para se adaptar à
nova realidade.
Pedro era um exemplo vivo disso.
A vida luxuosa e regada a privilégios que Ada ofereceu quando o
adotou, não impediu que crescesse cheio de receios e com os demônios do
seu passado atormentando a cada passo que dava.
Mas eu sabia que Fabio e Carol fariam muito mais pela criança que se
responsabilizassem, do que os Zimmermann quiseram fazer pelo Pedro.
— Entendo.
— Bom, de toda forma… um pouco de bebida financiada pelo
Leandro deve animá-la — falou, deixando um soco de leve no meu ombro
esquerdo. — Você vai?
Acenei, voltando a observar meus filhos que estavam discutindo
sobre o filme que assistiram mais cedo.
Sorri, agradecido ao universo por eles serem o melhor amigo um do
outro.
Toda vez que olhava para os dois, me sentia grato por ter tido a
chance de ser o responsável por zelar de duas crianças tão incríveis,
carinhosas, educadas e companheiras.
— Sim — murmurei em resposta ao Fabio, erguendo meu olhar para
a Nathalia que acabou sendo arremessada na água por Marc, arrancando
gargalhadas de Leandro e Maya.
— Algum sinal da Flávia? — meu amigo perguntou, mais baixo que
o habitual para garantir que os garotos não escutassem.
Meus ombros enrijeceram e o bom humor que eu vinha sustentando
desapareceu. Era sempre assim quando o nome dela escapava da boca de
alguém com os meus filhos por perto.
Eu nunca mais permitiria que ela se aproximasse deles, e garantiria
que Igor e Matheus não escutassem o seu nome também. Flávia era uma
mera página virada em nossas vidas.
— Não, e irá permanecer assim.
Fabio concordou.
Ele presenciou a última palhaçada que Flávia aprontou antes de
desaparecer pela milésima vez, e mesmo que eu já tivesse tomado a decisão
de não a deixar se aproximar novamente, meus amigos fizeram questão de
frisar o que pensavam sobre isso.
Se dependesse deles, eu teria mandado os advogados dela à merda e
impedido que tivesse retornado na primeira vez em que ressurgiu das
cinzas.
— Pai, podemos visitar a vovó? — Igor pediu, olhando-me por cima
dos ombros e aquiesci, me aproximando dos dois novamente.
Antes que pudesse prever, meus ombros foram envolvidos pelos
braços finos e firmes da mulher loira que correu em minha direção. O
cheiro familiar de Chanel n.º 5 invadiu meus sentidos e enlacei o seu corpo
para apertá-la contra mim, ao mesmo tempo que dobrava os joelhos para
que ela não precisasse ficar na ponta dos pés.
Correndo para dentro da casa, Matheus foi capturado pelo meu pai,
Eduardo, que o jogou por cima dos ombros e atacou sua barriga, enchendoo de cócegas e arrancando uma gargalhada alta dele.
— Como você está, docinho? — Amália, minha mãe, perguntou.
Ela se afastou o suficiente para que pudesse ver meu rosto e suas
mãos apertaram minhas bochechas, como se eu ainda tivesse dez anos de
idade. Mirei seu rosto, as poucas marcas de idade eram fruto de inúmeros
procedimentos estéticos que seguia como uma religião; os olhos castanhos
como os meus, a pequena marca de nascença no canto esquerdo do seu
queixo – próximo ao lábio inferior –, e o cabelo curto e loiro, sempre fariam
parte de um quadro enraizado em minha mente.
O homem que eu sou, sempre seria resultado de tudo o que Amália
Monteiro se dedicou a me ensinar desde que me colocou no mundo, e eu
tentava ao máximo repassar o que aprendi com ela para os meus filhos.
— Ótimo, e você?
— Estava morrendo de saudades! Acordei com uma dor estranha… aí
percebi que eu não via vocês há dias — reclamou, apertando a mão no
peito, dramática, e massageou a região como se ainda estivesse sentindo o
incômodo.
— Jantamos com vocês ontem, mãe.
— O que posso fazer? Sou uma mãe e uma vovó coruja! — Suspirou,
melodramática. — Como foi o dia de vocês no clube? Pelo visto, tomaram
um pouco de sol.
— Vovó, tem bolo de milho? — perguntou Igor, aproximando-se de
nós.
Seus olhos correram pelo jardim, a piscina estava coberta porque
minha mãe usaria o espaço para organizar a festa dele, e apesar de ter
insistido que não queria convidar outras pessoas além de Isabelle… Amália
ainda torcia para que ele milagrosamente mudasse de ideia.
— Claro que tem, pedi para a Jacira preparar assim que seu pai me
ligou avisando que viriam.
Seus dedos alisaram os fios castanhos de Igor que estavam
desgrenhados e ele acenou, virando para me olhar.
— Posso dormir aqui hoje?
— Hum…
— Claro que pode — minha mãe respondeu no meu lugar, piscando
travessa para ele, que sorriu abertamente e nos deu as costas, voltando para
dentro de casa.
— Pensei que você e meu pai tivessem planos de ir jantar com os
Zimmermann essa noite — comentei, olhando-a de soslaio e Amália revirou
os olhos.
— E escutar Hugo reclamar sobre como os filhos são ingratos pela
milésima vez? — resmungou, descontente. — Amo Ada, ela é minha
melhor amiga e sempre será…, mas não consigo passar mais que dois
minutos no mesmo ambiente que aquele velho amargurado que ela chama
de marido. Podemos remarcar.
— Mãe…
Ela dispensou o que eu diria com um gesto de mão e ficou ao meu
lado, entrelaçando seu braço no meu e me arrastando para dentro da casa
em que eu cresci.
— Isobel me contou que Leandro vai dar uma festa hoje, suponho
que o maluco tenha te convocado… não é sacrifício nenhum ficar com os
meus lindinhos… — Suspirou, sorrindo largamente ao ver meu pai sentado
no meio da sala de estar com Matheus agarrado em seus ombros, fazendo-o
de cavalinho. — E você precisa dar uma aliviada, quando foi a última vez
que saiu e se divertiu?
Franzi o cenho, confuso.
— Eu sempre me divirto.
— Claro que sim, docinho. Sei o quanto ama ficar com os garotos,
mas… estou falando de uma diversão mais… hã… digamos, adulta?
Abafei uma risada, nenhum pouco surpreso com o rumo da conversa.
Por ser escritora de romances eróticos, minha mãe nunca teve papas
na língua para conversar comigo sobre qualquer assunto. Conversas sobre
sexo eram recorrentes e nunca foram tratadas como um tabu pelos meus
pais, afinal, era tolice que agissem como se aquilo fosse um bicho de sete
cabeças, sendo que Amália participava de programas de televisão e dava
entrevistas falando sobre a importância de se debater sobre sexo.
Os únicos momentos em que ela era mais discreta, era quando os
meninos estavam por perto.
— Não falamos da minha vida… hã… adulta. — Imitei a careta que
ela fez, arrancando uma risada sua.
— Tudo bem, mas de todo jeito… aproveite uma noite de folga. Todo
mundo precisa disso, Renato. Isso não vai fazer de você um pai ruim, meu
amor. — Ela piscou para mim e virou o rosto a tempo de encontrarmos
Matheus tentando escalar a árvore que ficava no centro da sala de estar.
Toda a casa havia sido construída em volta dela e mesmo depois de
ter passado por uma reforma enquanto eu estava na faculdade, e os dois
viajavam pelo sudeste asiático para comemorar 20 anos de casamento; a
árvore se manteve presente e ganhou algumas companheiras, já que após
retornarem da Indonésia, Amália decidiu que encher a casa de plantas era
uma forma de limpar “energias ruins”.
— Matheus… — repreendi, vendo o brilho arteiro em seu rosto
quando virou para mim e ergueu as mãos, fingindo inocência.
— Soube que conheceu uma garota.
Ah… porra.
Respirei fundo, levando mais tempo que o habitual para encará-la,
tentando processar como explicaria que ela não deveria confiar em tudo que
meus amigos dizem.
Eu me perguntava o que havia feito de tão errado para que, dentre
tantas pessoas no mundo, tivesse me tornado amigo dos mais fofoqueiros.
— Quem te disse?
— Era um segredo? — Arqueou a sobrancelha, ofendida.
— Não, porque isso não é verdade.
— Então… você não conheceu uma garota?
Revirei os olhos, sentando-me preguiçosamente no encosto do sofá,
sem perder Matheus de vista, e voltando a encarar minha mãe.
— Sim, eu conheci…, mas não como deram a entender.
Amália arqueou a sobrancelha perfeitamente desenhada, como se isso
pudesse me instigar a abrir o jogo com ela e contar o que estava
acontecendo.
Bem, não havia nada que eu precisasse contar, porque meus amigos
eram um bando de crianças que dedicavam tanto tempo treinando os
músculos, que esqueciam de exercitar o bom senso.
— Você ficou interessado nela? — interrogou Amália, sem desviar a
atenção do meu rosto, buscando um sinal de omissão.
— Isso não vem ao caso.
— Não?
— Não, mãe — esclareci, firme.
Minha relação com Nathalia era estritamente profissional e não
existia a menor chance de passar disso.
Amália, entretanto, pareceu ponderar sobre algo que não estava
explícito no contexto e apertou os olhos, respirando duramente.
— Por acaso, o fato de você ser pai está te impedindo de investir na
tal garota? — Sua pergunta me pegou desprevenido.
— Mãe…
— Porque se for isso, eu juro que…
Interrompi antes que começasse a criar o enredo de um dos seus
livros em cima da minha situação. Eu sabia melhor do que ninguém como a
mente dela era criativa.
— Nós acabamos de nos conhecer, mãe — falei, cruzando os braços
em frente ao corpo e a encarando sério. — A última coisa que Nathalia e eu
pensamos, é em ultrapassar qualquer limite dentro do escritório.
— O nome dela é Nathalia? — Seus olhos brilharam, ignorando tudo
o que eu havia acabado de dizer.
— Sim, e como eu disse…
— Qual o sobrenome? Ela tem redes sociais? Onde a conheceu?
Pincei a ponte do nariz, refletindo sobre quantas pedras atirei na cruz
para lidar com uma mãe que fantasiava tanto com a ideia de me arrumar
uma esposa, que estava disposta a ignorar tudo o que acabei de explicar; e
um grupo de amigos que, sabendo exatamente como minha mãe pensava,
acharam que seria apropriado contar sobre Nathalia.
— Por que não a convida para jantar conosco amanhã?
— Mãe…
— O quê? Eu posso me comportar!
— Você escutou alguma coisa do que eu falei?
Amália revirou os olhos, gesticulando no ar como se apagasse
qualquer coisa dita antes.
— Ouvi você dizer que não pensa em “ultrapassar limites dentro do
escritório” … — engrossou a voz, tentando imitar a minha. — Pois bem,
estou oferecendo um ambiente neutro. Minha casa não é o escritório.
Santa Maria, mãe de Deus.
Eu não me considerava um homem religioso, mas em momentos
como aquele, precisava pedir auxílio a alguma entidade para lidar com as
sandices que envolviam as pessoas ao meu redor.
— Mãe.
— O quê?
— Eu disse que nossa relação é estritamente profissional — frisei,
olhando-a um pouco mais duro, para que entendesse que isso não era um
roteiro dos seus romances.
Minha mãe sorriu, doce e amorosa. Seus dedos vieram para o meu
rosto e o acariciaram. Com uma ternura que não condizia nenhum pouco
para o seu natural, Amália deixou um beijo em minha testa.
— Ah, docinho… — Suspirou, escorregando a mão para a minha
nuca e fazendo cafuné em meu cabelo. — Sua boca está dizendo uma coisa,
mas seus olhos estão dizendo o completo oposto — confidenciou,
afastando-se para me encarar. — Negue o quanto quiser, mas a garota
invadiu a sua cabeça e não vai sair tão cedo.
Contive a vontade de revirar os olhos novamente e apenas balancei a
cabeça, murmurando algo ininteligível, apenas para fazê-la deixar o assunto
de lado.
Mirei meu reflexo no espelho, ponderando sobre a roupa escolhida e
percebi que, talvez, estivesse arrumada demais para uma mera social.
Indecisa, tirei uma foto e enviei para Bianca para que ela desse uma
opinião. Não costumava me sentir insegura com o que usava, mas Leandro
sempre contrariava tudo o que pensava saber sobre ele, então… não tinha
certeza do que encontraria em sua casa.
E se eu estivesse indo pronta para um coquetel e chegando lá, me
deparasse com uma orgia?
Como Bianca tinha enviado mensagem minutos atrás, avisando que
havia chegado e que estava com Maya e Carol, supus que ela poderia me
dar um panorama melhor do que esperar.
Bianca:
isso é muito Nathalia.
Nathalia:
isso é uma ofensa?
Bianca:
claro que não… é um elogio.
desde quando fica insegura sobre o que vai vestir?
Eis a pergunta de um milhão de reais.
Nathalia:
não estou!
só queria confirmar para garantir
Soltei um suspiro baixo, inclinando a cabeça para o lado e dei uma
última olhada no espelho. Leandro ainda não tinha me retornado com o
endereço e aproveitei a indecisão para cobrá-lo. Ele começou a digitar
quase que no mesmo segundo, e voltei a mirar o meu reflexo.
Será que estava mostrando demais?
O cropped tinha alças finas e um recorte cavado no colo e… minha
atenção recaiu no celular, me tirando completamente da linha de raciocínio
quando encontrei a sua resposta.
Leandro:
um amigo meu vai passar para te pegar
Nathalia:
não precisa!
eu só pedi para me passar o endereço, cabeção!
Leandro:
digamos que ele insistiu muito
Nathalia:
ele quem?
Leandro:
O meu eremita favorito, ué…
quem mais seria?
Um vinco surgiu em minha testa e antes que o respondesse, Leandro
voltou a digitar.
Leandro:
comentei com ele que vc me devia uma rodada de tequila, e
chegamos na conclusão de que não valia a pena vc dirigir depois.
Nathalia:
sabe que eu poderia ir com um dos meus seguranças, né?
Leandro:
poderia, né? mas por ironia do destino, quando a neném me passou
seu endereço, percebi que vcs moram praticamente de frente um para o
outro… quem precisa de seguranças quando tem o Renatinho de motorista
particular?
Confusa com a primeira parte da mensagem, a destaquei antes de
perguntar:
Nathalia:
como assim?
Leandro:
isso mesmo que você leu
tenho quase certeza de que se vc aparecer na varanda
consegue ver o Renatinho no apartamento dele
que coincidência, né? coisa do destino!
Revirei os olhos, mas antes que o respondesse, um número inusitado
surgiu em minha tela e atendi, me dando conta de que apesar de ter seu
número nos contatos, não tinha falado com ele por mensagem até aquele
momento.
— Tenho certeza de que posso voltar para casa em segurança —
murmurei, tranquila.
Sua risada baixa e rouca soou do outro lado da linha e um arrepio
correu em minha coluna. Minha mão congelou no meio do caminho, o
batom pairando a poucos centímetros dos lábios, meio hipnotizada pelo som
gostoso que sacudiu os meus ossos.
— Não tenho a menor dúvida disso, mas estou perto e vou para o
mesmo lugar.
Soltei o ar que estava preso nos pulmões e deslizei o batom vermelho
pelos lábios, ponderando sobre a carona.
— Depende — falei, afastando-me do espelho para caminhar até a
sacada do meu quarto e olhei em volta.
A rua era ocupada por prédios enormes, não tinha certeza se Leandro
estava tão certo sobre a possibilidade de que eu pudesse ver Renato da
minha janela.
— De quê?
— Quão perto você está?
— Na sua calçada.
Franzi o cenho, empurrando o vidro para abrir a porta e rapidamente
quebrei a distância até o parapeito. Meus olhos desceram para a rua pouco
movimentada naquele horário e vi que ele falava sério.
Eu estava no 26
º andar e conseguia vê-lo recostado no carro preto estacionado na
portaria, e como se estivesse ciente da minha atenção, Renato olhou para
cima e acenou em cumprimento.
— Desça quando estiver pronta. Não tenha pressa.
Mordi as bochechas para controlar o sorriso que ameaçou escapar e
me afastei do parapeito, voltando para dentro do meu quarto.
— Tudo bem, desço em cinco minutos… — falei, atordoada —, e só
vou porque estou pensando no meio ambiente.
Sua risada ressoou, me arrancando o sorriso que tentei conter desde
que escutei sua voz na linha e entrei no meu closet, buscando por uma
sandália qualquer para que pudesse descer de uma vez.
— Ótimo, preservar o meio ambiente é importante.
Mordisquei a pontinha da língua, contendo a piadinha de quinta série
que ameaçou escapar e considerei seriamente que a convivência com
Leandro estivesse me fazendo voltar a ter quinze anos.
— Estou descendo, Sr. Motorista.
Acenei para o Sr. Francisco, o porteiro que ficava na guarita da
portaria e ele abriu a passagem para que eu saísse, dando de cara com o
projeto de deus grego em forma humana que desencostou do carro, com os
olhos fixos em mim; acompanhando todo o meu trajeto até chegar perto
dele.
— Boa noite — cumprimentei, dando um meio sorriso e por força do
hábito, minha mão se aninhou em seu ombro ao mesmo tempo que ele
inclinou o corpo para receber o beijo que deixei em sua bochecha.
Ignorei o arrepio que me atravessou quando sua mão tocou minhas
costas, e de um jeito suave, me guiou para perto dele. O cheiro do seu
perfume ficaria impregnado na minha pele, por menor que tivesse sido o
nosso contato, da mesma forma que permaneceria em minha mente por um
bom tempo, até que eu conseguisse me esquecer do aroma marcante.
— Boa noite.
Ele se afastou, mas sua mão não saiu das minhas costas, cobrindo a
parte exposta e me arrancando um suspiro baixinho quando seu polegar
acariciou o centro da minha coluna.
Renato desceu os olhos pelo meu corpo, esquadrinhando cada pedaço
disponível sem que precisasse se afastar e quando retornou para o meu
rosto, senti as pernas fraquejarem com o sorriso que deu.
— Você está linda.
O sorriso que estava tentando aprisionar, se libertou e tomou meus
lábios. Eu amava receber elogios, nunca entenderia as pessoas que ficavam
tímidas ou constrangidas quando eram elogiadas. Mas algo na maneira
como as palavras escorregaram da boca de Renato, fez com que um
sentimento diferente ressoasse dentro de mim. Não era como nas outras
vezes em que recebi elogios e apenas agradeci e segui em frente.
Seus olhos cravados em mim como se eu fosse a única pessoa no
mundo, sua mão grande cobrindo cada pedaço de pele desnuda e me
mantendo perto do seu corpo quente, o cheiro do seu perfume se mesclando
ao meu… criou um aroma único que me fez amar a combinação peculiar. E
também tinha o jeito como Renato parecia atento a cada respiração que eu
dava…
Meu peito inflou e o sorriso que estampou meu rosto poderia rasgar
minhas bochechas que doíam, e ainda não seria capaz de exprimir o que seu
elogio causou em mim.
— Você também — falei, sincera.
Com muito esforço, tentei me desvencilhar da prisão em que seu
olhar me mantinha e desci para o seu peito, a camisa social azul tinha três
botões abertos e as mangas curtas, dobradas despretensiosamente na altura
do cotovelo, dava um ar mais despojado que combinava com ele. Minha
mão livre se arrastou em seu peito e fechei um botão — com tanta
naturalidade, que só percebi o que havia feito quando era tarde demais.
Antes que fizesse menção a me afastar, Renato deu um passo para o
lado e abriu a porta do passageiro, me dando uma alternativa de fuga antes
que eu precisasse pedir desculpas pelo impulso. Murmurei algo
incompreensível em resposta e me abriguei no carro; começando a
considerar que eu deveria ter trazido uma jaqueta.
São Paulo tinha a habilidade de proporcionar todas as quatro estações
em uma única noite, e quando o vento gelado parou de ricochetear contra a
minha pele e o calor do estofado do carro aqueceu meu corpo, percebi que o
local onde a mão de Renato esteve segundos atrás estava formigando e
quente como o inferno.
Ele deu a volta e ocupou o banco do motorista, e aproveitei sua
distração enquanto dava partida para enviar mensagem para o meu pai,
assim ele deixaria um dos seguranças em alerta para quando fosse a hora de
ir me buscar.
Não pretendia ficar muito tempo — apenas alguns minutos para não
fazer desfeita ao convite de Leandro — e como a carona de Renato mudou
os planos que eu tinha em mente, e sabia que Salazar pretendia me fazer
beber com ele como uma revanche pela última noite, eu precisaria de
alguém para me buscar e me devolver para a minha cama, sã e salva.
— Não sabia que você morava aqui perto — comentei, quando nos
afastamos um pouco da rua. — Pensei que ficasse perto do escritório
antigo, como o Leandro.
— E ficava, mas quando acertamos a fusão… preferi me mudar para
perto — explicou, alternando sua atenção entre a avenida e eu. — Calhou
do Pedro ter finalizado a construção do condomínio na mesma época.
Assenti, lembrando do barulho insuportável de obra que me
acompanhou nos últimos dez meses.
— Coincidências… — suspirei, apertando o cinto de segurança que
tinha esquecido de prender e guardei meu celular, após receber a
confirmação do meu pai, juntamente com seu pedido para que eu me
divertisse. — Se arrepende de não ter tentado brigar um pouco para ficar na
Faria Lima?
Ele sorriu e meus olhos recaíram nos seus antebraços e nas veias que
saltavam, marcando a pele clara.
Renato parecia muito alheio a análise que eu fazia do seu corpo, o
que me forneceu tempo o suficiente para gravar na memória como os
músculos do seu braço eram tão bem definidos, que ele parecia ter sido
projetado e esculpido por um artista muito dedicado em criar a espécime
perfeita.
Nada nele era desproporcional.
Quanto mais buscava por um defeito, qualquer coisinha que pudesse
estar fora do limite de perfeição, menos eu encontrava.
O cheiro do seu perfume estava impregnado em cada mísero
centímetro do carro, desde o couro do estofado à minha roupa. E eu não
deveria ter gostado tanto, mas foi um pouco inevitável que isso acontecesse
quando meu cérebro associou o aroma ao monumento sentado ao meu lado.
Era a combinação ideal para fazer com que qualquer mulher se
submetesse a insanidades para garantir que conseguiria um pouco da sua
atenção.
Era desconcertante ficar perto de toda a intensidade que seu olhar
emanava, algo naqueles olhos me fisgava como nada nunca foi capaz, e me
fazia esquecer do fato de que ele era meu chefe, ao menos pelas semanas
que ainda teríamos juntos.
— Nenhum pouco — disse, seguro. — Precisávamos sair da bolha,
fico aliviado em descer para almoçar e não escutar discussões sobre o
mercado a cada passo que dou.
Sorri, balançando a cabeça e acompanhei quando sua mão livre se
aproximou do espaço que separava nossos bancos, trocando a temperatura
do ar-condicionado.
— Isso é ótimo. Ninguém suporta lidar com faria limers o tempo
todo… — impliquei, achando graça da careta que cobriu seu rosto.
— Faria limers?
Estalei a língua, inconformada que ele não sabia sobre a piadinha.
— Ninguém te atualiza dos memes internos?
Renato franziu o cenho, olhando-me de soslaio.
— Por que sinto que se negar, você vai me olhar como se tivesse uma
segunda cabeça saindo do meu pescoço? — indagou, parando no semáforo
fechado e virou o rosto para me encarar, aquele sorrisinho gostoso de canto
estava presente, distraindo-me por um segundo.
Pisquei, subindo o olhar e encontrando sua atenção em mim.
— Porque eu vou. — Virei o corpo, ficando um pouco mais à
vontade. — Tipo, em que caverna esteve se escondendo nos últimos meses?
O sorriso em seus lábios ganhou mais alguns milímetros e Renato
desviou para frente quando o farol abriu, pensativo.
— Não sou muito adepto a… como você disse? Memes?
Torci os lábios em uma careta.
— Falando desse jeito, você parece ter o dobro da sua idade.
— Ouço isso com frequência.
Alcei a sobrancelha.
— Tenho uma ideia do responsável por isso. Mas não se preocupe…
— busquei pelo celular, entrando em um dos inúmeros grupos que estava
como administradora. — Posso ser o seu Yoda dos memes, o que acha?
Minha oferta arrancou uma gargalhada dele que me roubou um
sorriso largo. O som reverberou pelos meus ossos, estremecendo tudo
dentro de mim e fazendo com que a sensação maluca de que meu estômago
estava infestado de borboletas retornasse.
Que clichê, Nathalia… que clichê!
Ignorei a repreensão do meu lado racional e adicionei Renato no
grupo mais tranquilo, apenas com Leandro, Bianca, Marc e eu. Havia sido
criado na inauguração do bar do Joca e sempre que víamos algo engraçada
em relação às nossas profissões, mandávamos para os outros verem ali.
— Yoda? — Renato virou para mim, sem perder o foco da direção e
riu baixo. — Você definitivamente não me parece uma fã de Star Wars.
Estalei a língua, fingindo ofensa.
— E por acaso existe um estereótipo de como deveria ser uma fã de
uma das franquias mais famosas do mundo? — Arqueei a sobrancelha,
mantendo a expressão ultrajada no rosto.
Renato sorriu, negando.
— Claro que não. Mas você não gosta de Star Wars — afirmou,
confiante. — Harry Potter? Eu acredito. Star Wars? Sem chance!
Foi a minha vez de rir, incrédula com a certeza que ele tinha sobre
aquilo.
— Não me diga que durante as suas pesquisas sobre mim, te
contaram os meus filmes preferidos. — Espreitei os olhos em seu rosto,
curiosa.
Sabia que não havia sido Bianca que conversou com ele sobre mim.
Minha amiga era muitas coisas, mas informante de pessoas que ela não
confiava e que sabia que eu não simpatizava, não era uma delas. E ainda
que agora eu gostasse um pouquinho de Renato, ele já sabia muito sobre
mim antes de nos conhecermos alguns dias atrás.
— Não, digamos que é intuição.
— E por que acha que a sua intuição está certa?
Ele deu de ombros, despreocupado.
— Porque não costumo errar — falou, piscando para mim antes de
voltar a dirigir.
Engoli em seco, sentindo o coração parar por meio milésimo de
segundo.
Golpe baixo!
Desviei a atenção para a rua na nossa frente para recobrar o juízo que
se perdeu, e isso me fez perceber que não prestei a menor atenção no
caminho que estávamos fazendo todo aquele tempo. Renato entrou em uma
rua larga, pouco movimentada por ser ocupada majoritariamente por
prédios residenciais gigantes e opulentos.
Acima de nossas cabeças, um avião passou e não precisei de muito
para saber que estávamos próximos do aeroporto e o Obelisco não tão
longe, me fez compreender que Leandro morava em Moema, o que
pensando bem… fazia sentido.
Era um bairro repleto de bares e restaurantes, algumas baladas
também ficavam na região e até clubes um pouco mais… digamos,
inusitados.
Não era o estilo de vida que eu levava, mas tinha certeza de que a
casa de swing que Antônio e Bianca me levaram uma vez, ficava nessa
região.
Eu ainda me recordava da quarta-feira do Ménage à Trois.
Não participamos de nenhuma ação dentro da casa e diferente do que
eu imaginava, tudo era muito discreto e comportado. Eu ainda não tinha
certeza se me sentia aliviada por não ter presenciado uma orgia, ou
decepcionada por descobrir que as coisas em ambientes como aquele não
eram exatamente como havia imaginado.
Para quem curtia a experiência de voyeur, bastava entrar em um dos
inúmeros corredores escuros da casa noturna; iluminado apenas por luzes
vermelho-neon que permitiam distinguir os corpos em meio a escuridão.
Na época, eu estava sofrendo por um término de namoro e por maior
que fosse minha curiosidade, tudo o que fiz foi terminar aquela noite no
balcão; conversando com um barman muito simpático e boca aberta, que
não me poupou dos detalhes sobre o que presenciou desde que começou a
trabalhar lá.
Pensando bem, levando em consideração o histórico do Leandro, não
seria extraordinário se eu tivesse esbarrado com ele naquela noite.
Esse pensamento me fez virar o rosto para o homem ao meu lado, que
manobrava o carro para deixá-lo na vaga de visitantes de um dos
condomínios.
Renato levava o mesmo estilo de vida do Salazar?
Podia ser muita ingenuidade da minha parte, mas ele não me parecia
ser o tipo de homem que transava com várias mulheres em uma única noite.
— O quê? — perguntou, confuso.
Ótimo, fiquei encarando ele. Ponto pra mim no quesito disfarce!
— Nada… só pensando.
— Sobre?
— Bobagem — menti, soltando o cinto e forçando um sorriso fraco,
torcendo para que ele não insistisse em descobrir a maluquice que se
passava na minha mente.
Do jeito que costumava ser linguaruda e falava sobre qualquer coisa,
não duvidava da minha capacidade de simplesmente virar para ele e soltar
que estava ponderando se ele era tão cretino quanto o seu melhor amigo.
Não que isso fosse da minha conta, óbvio. Eu sequer conviveria com
eles daqui a algumas semanas, mas minha curiosidade estava aguçada e eu
não gostava da sensação de ficar com uma pulga atrás da orelha.
Antes que eu tentasse descer do carro, Renato alcançou o meu lado e
abriu a porta, estendendo a mão para que eu a pegasse. Aceitei o apoio por
força do hábito e deixamos a vaga para trás, enquanto meus olhos corriam
pelo piso praticamente vazio. Era exclusivo para visitantes e como era
temporada de férias escolares, não seria estranho se boa parte dos inquilinos
estivessem viajando.
— Você costuma viajar bastante nessa cabecinha? — perguntou
Renato, atraindo minha atenção e virei para ele, encontrando-o parado em
frente a caixa de aço que descia para o andar em que estávamos.
No entanto, antes que conseguisse emitir qualquer resposta para o seu
questionamento, outra coisa acabou capturando meu foco. Mordi a parte
interna da bochecha, sem graça ao me dar conta daquilo e soltei sua mão,
dando um meio sorriso e acenando.
— Às vezes. Normalmente, quando tenho alguns assuntos pendentes.
Ele cruzou os braços em frente ao corpo, semicerrando os olhos e
inclinou um pouco a cabeça, concentrado em mim.
— Soube que o Becker é seu professor, imagino que ele não esteja
facilitando as coisas para você — comentou.
— Você o conhece?
— Ele esteve em todos os meus pesadelos durante a minha pósgraduação.
Ele riu fraco, escondendo as mãos nos bolsos da calça e balançou os
ombros, como se não fosse nada.
— Você fez pós? Quando?
Não pude esconder o assombro na minha voz, porque eu estava
querendo arrancar a cabeça do meu pescoço na maior parte do tempo com
as coisas que Otto me pedia, e constantemente sentia que não dava conta de
tudo que precisava entregar nos prazos insanos que ele estabelecia… e
Renato tinha dois garotinhos, uma lista considerável de clientes e um
escritório para gerenciar.
— Você dorme?
Senti um vinco surgir em minha testa, o que arrancou outra risada
dele.
— Acho que não tanto quanto você.
— Está tão na cara assim?
Ele estalou a língua, divertido.
— Bianca fez questão de me alertar sobre a sua rotina.
— Alertar ou te xingar?
Renato deu de ombros, tranquilo.
Conhecia minha amiga o suficiente para saber que Bianca estava
pouco se importando de Renato ser o seu chefe, se ela precisasse entrar em
minha defesa em qualquer situação, apontaria o dedo na cara dele e xingaria
suas gerações passadas e futuras.
Paciência não era uma das suas melhores qualidades e o que sobrava
em mim, faltava nela.
— Ela está certa em ficar preocupada com você. — Seus olhos foram
para a porta que se abriu e um senhor passou por ela, murmurando um
cumprimento robótico antes de passar por nós dois.
Renato indicou que eu entrasse primeiro, e não demorou a pedir
liberação para subir até o andar em que o Salazar morava. Quando as portas
se fecharam novamente, sua atenção recaiu sobre mim.
Bianca era uma grande de uma hipócrita, isso sim. Vivia dizendo que
eu não tinha uma rotina saudável, quando levava uma muito pior. Por mais
que tentasse esconder e agir como se tudo estivesse bem, eu sabia que fazia
muito tempo desde que ela teve uma noite de sono decente. E quando era a
minha vez de me preocupar, sempre escutava que estava exagerando.
— Mas em relação a pós… foi logo depois que voltei para o Brasil —
explicou, sua voz parecia repercutir nas paredes de aço com tanta
imponência; que aquela sensação de que tudo tremia ao redor voltou com
tudo. — Tive muita ajuda nisso.
Isso me lembrava sobre seu comentário em relação à mãe dos garotos
mais cedo. Tanto Leandro quanto ele foram extremamente evasivos quando
o assunto entrou em pauta, o que tornava simples deduzir que ela não era
presente…, mas também não tinha falecido, ao menos, não pela forma como
comentavam superficialmente sobre ela.
Desci os olhos para as suas mãos que seguravam a barra de aço atrás
dele e busquei qualquer resquício de marca de aliança.
Divorciado?
Isso também não, era o tipo de coisa que eu saberia por causa do
contrato da fusão e depois de ter lido aquele documento mais de trinta
vezes, legalmente o conhecia de cor e salteado.
— Isso é bom — murmurei, subindo para seu rosto e encontrando as
orbes escuras concentradas em mim. Ele era tão desconcertante. — E sim, o
Prof. Becker não está facilitando nenhum pouco… ainda não sei definir se
ele me odeia ou se apenas me detesta.
— Se ele exige a excelência, no mínimo, te admira.
Ri baixinho.
Não acho que isso seja verdade.
— Ele tem um jeito muito peculiar de demonstrar — resmunguei,
sem conseguir me afastar do seu olhar. — Engraçado… quando falei sobre
ele, Leandro não disse nada sobre terem estudado com ele.
Renato meneou a cabeça.
— Leandro escolheu outra área, principalmente, depois que o Becker
não o aceitou no curso.
— Otto não aceitou ele?
— Os dois tinham… divergências de opiniões sobre algumas coisas.
Espreitei os olhos, sentindo que existia algo por trás disso. O Prof.
Becker era um babaca na maior parte do tempo, mas nunca ouvi histórias de
alunos que foram rejeitados de cursar a sua disciplina. Na verdade, aquela
era a primeira.
— O que Leandro fez?
Renato achou graça na pergunta.
— Por que supõe que foi o Leandro quem fez algo?
Dei de ombros.
— Porque mesmo o conhecendo a pouco tempo… sei o suficiente
para imaginar que ele é o responsável.
Renato assentiu, de acordo com o meu raciocínio.
— Ele começou a sair com a neta do Becker.
— Nem precisa continuar, já até imagino… — fechei os olhos,
escondendo uma careta ao massagear o centro da testa. — Ele foi um idiota
com a garota?
Abri os olhos, encontrando o homem na minha frente com uma
expressão imperturbável no rosto, as íris brilhavam com uma certa
nostalgia, e isso não pareceu ser uma coisa que gostava de se lembrar.
— Ele estava em uma fase de merda. — Era o tipo de resposta que
não dizia nada e, ao mesmo tempo, falava tudo. — Hoje, ele se acertou com
a garota, mas na época o Becker não quis conversa.
Anuí, virando para as portas que se abriram na cobertura e a música
alta nos saudou. Não me surpreendia que estivesse tocando funk, Leandro
havia deixado seu gosto musical explícito quando nos encontramos no bar
do Joca e conforme caminhávamos pelo hall, minha mente se perdeu em
criar teorias sobre o que o Salazar poderia ter feito com a neta do meu
orientador.
Definitivamente, Leandro seria descartado da minha lista de cartas de
recomendações.
Paralisei no meio do caminho, o que atraiu Renato e soltei um suspiro
baixo.
— Você também está na lista de desafetos do Becker?
— Não.
Ótimo, isso me dava um nome para substituir na lista.
Contando com Roberta, eu tinha selecionado outros três sócios
seniores da firma que poderiam escrever as cartas de recomendação, e como
precisava de outra pessoa, preferia pedir para o Renato ao invés do
Leandro. Não sabia o quão rancoroso o Prof. Becker era, e como também
precisaria de uma carta dele, como meu orientador, preferia não o irritar
aparecendo com uma indicação do cara que feriu os sentimentos da sua
neta.
Se Renato quis saber o motivo por trás da minha pergunta, ele não
teve tempo de fazê-lo. Em um piscar de olhos, meu corpo havia sido
aprisionado por um par de braços excessivamente musculosos e um corpo
com três vezes o meu tamanho, que aproveitou nossa diferença de altura
para tirar os meus pés do chão.
Era um abraço de urso, com a delicadeza que apenas um brutamonte
cheio de testosterona correndo pelas veias seria capaz de proporcionar.
Seu cabelo loiro e curto pairou cobriu minha visão, e pude jurar que
senti os ossos da minha coluna estalarem com a pressão que fez ao me
esmagar contra ele. Arregalei os olhos, sentindo o ar fugir dos pulmões e
Renato se aproximou, falando algo para o amigo que rapidamente me
soltou.
No segundo seguinte, o braço de Renato estava ao meu redor,
amparando-me enquanto eu tentava recuperar o fôlego perdido.
— Você pode matar alguém assim… — ofeguei, sentindo os pulmões
lutarem para recuperar o ritmo normal —, alguém já falou isso antes?
Marc sorriu, murmurando um pedido de desculpas e levei a mão ao
peito, sentindo os meus órgãos internos lutarem para retornarem ao lugar de
origem.
— Acho que você deslocou minha coluna — brinquei, sentindo o
olhar preocupado de Renato em cima de mim.
Sua mão escorregou em minhas costas, parando próximo ao meio da
coluna e subindo novamente em um acalento gostoso.
— Já falei milhões de vezes que ele precisa tomar cuidado com a
gente — Maya reclamou, olhando para o namorado com uma falsa
repreensão. — Olha o nosso tamanho comparado ao seu!
Sorri, vendo como Marc era enorme — literalmente, um armário de
quase dois metros. Ao lado da namorada, ele parecia um cachorrinho
adestrado com o rabinho entre as pernas, aguardando pela ordem da sua
dona.
Mais engraçado do que vê-lo sendo dominado por uma mulher do
meu tamanho e que parecia uma minúscula ao seu lado, era saber que além
de ser o dono do maior escritório jurídico da cidade, e muito provavelmente
do país, ele também usava seus dotes empresariais em outros
empreendimentos.
Entre eles, uma rede de sex shop. E pelo que conversamos na última
reunião, que ocorreu no fim do ano passado, eu sabia que Marc também
estava investindo em uma fábrica especializada em produtos eróticos com o
seu sócio.
— Não tenho culpa que vocês parecem varetinhas — falou, jogando
o braço sobre os ombros da namorada e desceu o rosto na sua direção,
deixando um beijo no cabelo escuro da mulher.
Maya e eu reviramos os olhos para o seu comentário.
— Fica difícil competir com alguém que parece querer disputar com
os bodybuilders[13]
— resmunguei.
Como se estivesse ponderando sobre o que falei, Marc forçou os
músculos e as veias saltaram em sua pele, tal qual os atletas do
fisiculturismo faziam quando estavam expondo o físico para avaliação.
— Um pouquinho de bronzeador e você pode subir no palco do Mr.
Olympia[14] — brinquei, vendo o sorriso do loiro alargar e Maya balançou a
cabeça em negativa.
— Não dá ideia, Nath. Ou nos próximos meses, só o escutaremos
falar sobre isso — disse ela, pressionando os dedos nas têmporas como se
sentisse dor apenas por pensar na possibilidade.
Ergui os olhos para Renato, que me observava com um meio sorriso e
como se tivesse se dado conta de que ainda estava me segurando, sua mão
me abandonou e imediatamente senti falta da sensação gostosa dos seus
dedos escorregando em minha pele.
— Maya está certa. Marc é pior do que criança, e se qualquer um
aqui duvidar, ele vai entrar de cabeça nisso — alertou, e precisei olhar para
o loiro que fingia ofensa.
— Podem parar de falar sobre mim como se eu não estivesse aqui?
— Não — disseram os dois, em uníssono.
Um sentimento de familiaridade com a situação me atingiu, porque
eu me sentia da mesma forma. Bastava que alguém duvidasse da minha
capacidade em relação a algo, que eu movia céu e terra para provar que
estavam errados. Era um instinto meio involuntário e que me colocava em
enrascada na maior parte do tempo.
— É um horror quando fazem isso com a gente, né? — perguntei,
aproximando-me do loiro e batendo levemente nas suas costas.
Marc fez beicinho e precisei engolir a risada.
— Um horror, gatinha — lamentou, dramático. — Ainda bem que
agora tenho alguém que me entende… — suspirou e soltou a namorada para
me levar para perto. — Vem, vou te apresentar para pessoas muito mais
divertidas do que esses dois.
E como disse que faria, Marc me arrastou para dentro do apartamento
de Leandro e começou a me apresentar para cada pessoa que estava
presente e esbarrava conosco.
Afastei-me um pouco da dupla Guto e Tavinho, porque sentia minha
cabeça começar a latejar enquanto acompanhava a tagarelice dos dois.
Em dez minutos sentada conversando com eles, tive certeza de que
Leandro era um santo perto dos seus outros amigos.
Busquei por Bianca e a encontrei sentada no braço de uma das
poltronas, rindo de algo que uma loira falava e não passou despercebido que
hora ou outra, Leandro desviava a atenção para ela, atento a aproximação
nada discreta que um dos seus amigos tentava.
Apoiei as mãos no encosto do sofá, observando quando o ruivo,
sentado na poltrona em que Bianca se escorava, levou a mão ao braço dela e
capturou a atenção da minha amiga, que virou para ele e sorriu,
ligeiramente tímida.
Isso era inusitado, Bianca não era nada acanhada quando se tratava de
lidar com homens que estavam interessados nela.
No entanto, antes que minha amiga pudesse responder ao que o ruivo
perguntou, Salazar cruzou a sala e fingiu espantar algo que pairava ao redor
dela. Bianca virou o rosto para ele, um pequeno vinco se acomodou em sua
testa e como se soubesse exatamente o que havia acontecido, ela estreitou
os olhos.
— Você costuma ficar observando os seus amigos?
A voz que surgiu ao meu lado era fácil de reconhecer, o jeito
grosseiro e frio, as orbes tomadas por um julgamento silencioso e a
expressão fechada só podiam pertencer a uma pessoa que não aprendeu o
básico sobre interações humanas, e que parecia se dedicar a ser um
completo ogro na maior parte do tempo.
— Você costuma se meter onde não te chamaram? — retruquei, sem
precisar olhar em sua direção para saber que ele sequer poderia esboçar
uma reação diante do meu comentário.
Todavia, quando seu corpo parou ao meu lado e o copo de uísque
com gelo ocupou minha visão periférica, eu percebi que milagres poderiam
existir e que Pedro Zimmermann era capaz de ao menos tentar interagir
com outra pessoa. Ou os seus amigos o mandaram à merda e ele preferiu
perturbar a garota que estava sozinha.
Não o conhecia pessoalmente, sabia sobre a sua reputação de ser um
babaca com qualquer coisa que respirava, e que se comunicava com
palavras monossilábicas na maior parte do tempo. Mas apesar de Pedro
trabalhar nas obras das empresas da minha família, nossa única interação
havia sido através de uma partida durante a inauguração do Niké na Itália.
Logo, eu não podia afirmar que exageraram na descrição dele.
Pedro Zimmermann conseguia ser um completo otário.
E eu, definitivamente, não sabia como o meu pai podia gostar tanto
assim dele.
Seu silêncio ao meu lado, me incomodou. Eu preferia ter ficado
sozinha enquanto observava a pequena crise de ciúme que estava
presenciando, mas com ele acompanhando o que eu fazia, me senti
necessitada de falar algo para preencher o silêncio entre a gente.
O meu maior problema era que não estava ao lado do maior exemplo
de simpatia, o que tornava tudo ainda mais inconveniente.
Senti o olhar do Zimmermann em mim, mas não retribui a atenção.
Ele quem tinha se aproximado, então que fosse o responsável por dar início
ao diálogo. Da última vez em que tentei, acabamos numa quadra de tênis e
no fim do game, ele estava afirmando para Deus e o mundo que eu tinha
roubado dele.
Babaca!
— O que você quer, Zimmermann? — indaguei um tempo depois,
impaciente com o seu silêncio.
Pedro girou o corpo, ficando de frente para mim e fixou os olhos nos
meus, como se estivesse ponderando sobre como diria o que estava
pretendendo desde que se aproximou. Estava explícito que ele queria falar
algo e eu jurava por tudo o que existia, que se ele fosse insistir naquela
palhaçada sobre ter roubado o jogo, o arremessaria daquela cobertura.
— Quais são as suas intenções nisso, Gama?
É o quê?
— Minhas intenções? Do que você está falando?
Zimmermann cerrou os cílios, bebendo um pouco do seu uísque e
enrolando o máximo que podia para responder.
Ele deu um passo em minha direção e apoiou a mão livre no encosto
do sofá, inclinando o corpo para ficar da minha altura e pude ver o esboço
de um sorriso trilhar em seus lábios, mas não havia qualquer resquício de
diversão perpassando suas íris.
— Acho que você bebeu demais — murmurei, aliviada que ele estava
a quase um metro de distância.
Não era como se estivesse tentando me importunar como Guilherme
havia feito, era quase como se estivesse considerando sobre como poderia
me alertar em relação a algo, sem dizer especificamente o que queria.
E isso não fazia o menor sentido, uma vez que não existia nada que
eu estivesse fazendo que poderia incomodar o Sr. Quero tudo do meu jeito,
senão vou fazer birra igual uma criancinha mimada.
Pedro meneou a cabeça e olhou para algo nas minhas costas, isso
pareceu distraí-lo e minha curiosidade gritou em resposta, o que foi o
suficiente para que eu virasse na direção também.
Péssima ideia.
A careta descontente que surgiu em meu rosto foi involuntária, e
ainda que quisesse acreditar que seria capaz de contê-la em outra ocasião,
não colocaria a mão no fogo por isso.
Meus olhos recaíram nas duas pessoas na varanda, Renato tinha as
costas no parapeito e apesar de estar escutando atentamente o que a loira
falava, seus olhos estavam fixos em outra pessoa. Senti as bochechas
ruborizarem ao perceber que eu era o alvo da sua concentração.
Geovana levou a mão ao seu peito e isso atraiu a atenção de Renato, e
causou uma sensação incômoda no meu estômago, quando os dedos longos
da loira alcançaram a gola da camisa e abriram os dois botões que eu havia
fechado mais cedo, em frente ao meu prédio. Porém, antes que ela
avançasse no percurso, Renato segurou seu pulso e deu um meio sorriso,
murmurando algo que não pude compreender.
Calmamente, ele negou qualquer que tenha sido o convite feito pela
irmã de Guto.
Bufei, incomodada com aquilo e virei para Zimmermann, usando-o
como foco de distração. Porém, ele deslizou a atenção entre meu rosto e o
ponto atrás de nós dois, como se estivesse processando um cálculo
matemático e enfim, balançou a cabeça e cravou os olhos nos meus.
— Do que estávamos falando? — pigarreei, tentando ocupar a cabeça
com outra coisa que não fosse a cena acontecendo atrás de mim.
Entretanto, Pedro pareceu pescar algo pairando no ar que não fui
capaz de identificar e isso foi o bastante para que desse um passo para trás,
se afastando. Ele bebeu um gole longo do seu uísque e me deu outro meio
sorriso esquisito. Claramente, aquilo não era um hábito e ele parecia não
saber como sorrisos funcionavam. Sorrisos deveriam ser amigáveis, não
intimidantes.
— Boa noite, Gama.
Se estava desconcertada com a sua aproximação antes, a maneira
como acenou com a cabeça e deu as costas, fez com que um nó se
emaranhasse nos meus neurônios, deixando-me completamente perdida.
— Era só o que me faltava mesmo… — resmunguei baixinho,
levantando-me para retornar ao bar instalado do outro lado da sala,
precisando urgentemente de vinho para lidar com o desconforto que se
instalou no meu peito.
Abandonei a taça sobre o balcão, acompanhando quando Bianca
surgiu ao meu lado com um olhar preocupado.
— O que houve? — inquiriu, sem rodeios.
— O quê?
— Você está com a mesma cara de quando te dei Pérgola para beber
— falou, sorrindo de canto e a careta no meu rosto foi inevitável.
Estremeci, recordando da fatídica noite em que Bianca saiu do chalé
em que estávamos em Trancoso para buscar vinho, e apareceu horas depois
com uma garrafa comprada no posto de gasolina. Apesar de ter tentado com
muito afinco fingir que tinha gostado e não desperdiçar seu esforço de ter
saído naquela madrugada chuvosa… esconder o que se passava na cabeça
não era a minha melhor qualidade.
Ao contrário, quando algo me incomodava ficava perceptível e por
mais que tentasse, não conseguia disfarçar.
— O tal Zimmermann encheu seu saco? — perguntou, pronta para se
levantar e ir bater no engenheiro que estava sentado na varanda,
conversando com Renato.
Geovana desapareceu e não soube dizer se aquilo era bom.
Por que me incomodaria com alguém flertando com o Renato?
— Não… na verdade, eu estava terminando essa taça antes de ir
embora — falei, desviando o olhar para o cristal pela metade.
— Embora? — indagou Leandro, parando ao meu lado e apoiando os
cotovelos em cima do balcão, encarando-me com preocupação. — O que
houve? Por que essa cara de bunda?
Bufei.
— Não estou com cara de bunda.
— Está sim! Quem falou merda pra você?
— Ninguém. — Rolei os olhos e girei no banco, sentindo os dois
analisarem cada centímetro do meu rosto para buscar o que estava
escondendo. — Eu disse que viria, ficaria um pouco e depois iria embora…
lembram?
— Sim, mas ainda são… — seus olhos recaíram para o relógio em seu
pulso e Leandro franziu o cenho —, duas da manhã.
— Ou seja, fiquei quase três horas.
E não aguentava mais escutar as histórias dos seus amigos. Minha
mente estava me lembrando da pilha de documentos que precisaria analisar
quando chegasse em casa, e essa distração que voltava a cada cinco
minutos, me impedia de focar no que qualquer um deles dizia.
Tinha certeza de que as duas mulheres que deixei falando sozinhas,
enquanto observava Geovana inclinar o corpo sobre o do Renato e sussurrar
algo em seu ouvido, me achavam uma puta escrota que sequer prestou
atenção no que elas falaram por quase uma hora.
— Ainda nem tivemos tempo de abrir uma rodada de tequila —
argumentou Leandro, ocupando meu campo de visão e me impedindo de
acompanhar quando a loira retornou.
Era impressão minha ou o seu vestido ficou mais curto do que era
cinco minutos atrás?
— Podemos marcar para outro dia? — ofereci, dando um meio
sorriso. — Preciso voltar para casa e tenho que estar sóbria.
Apesar de ter bebido algumas taças de vinho, estava longe de ficar
bêbada e não podia garantir que continuaria assim depois de alguns shots.
Leandro pensou em retrucar, mas Joca o chamou e ele se afastou, me
deixando sozinha com Bianca, que estava mais do que atenta ao que eu
disse.
— Essa cara é por causa do trabalho ou por causa da irmã do Guto?
— interrogou, sem papas na língua.
Virei em sua direção, boquiaberta.
— Ficou tão na cara?
Seus lábios tingidos de batom vermelho se ergueram em um sorriso
largo, metido a sabe-tudo, e seus dedos capturaram uma mecha do meu
cabelo, enrolando-a no indicador e com cumplicidade, ela me fitou.
— Ah, bebê… — fez beicinho e usou a mão livre para acariciar
minha bochecha —, conheço esse olhar enciumado.
Ri, meio trêmula e nervosa com o rumo do assunto.
— Não comece.
— Com o quê? — Arqueou a sobrancelha, alargando o sorriso. —
Com os fatos? Porque eu estou segurando esse comentário desde o dia do
café.
— Que comentário?
Bianca deu de ombros e me soltou, endireitando a postura e buscando
pela sua taça de Gin, bebericando um gole antes de voltar a atenção para
mim.
— Esses olhinhos brilhando toda vez que olha para ele… — apontou
dois dedos em minha direção e sorriu marota —, presenciei isso mais vezes
do que posso contar, mas, definitivamente, não esperava que fosse surgir
com ele. Nisso você me pegou de surpresa.
Se estava perdida antes, naquele momento me peguei naufragando
em um oceano de confusão.
— Bianca…
Ela estalou a língua, interrompendo-me antes que tentasse argumentar
sobre a insanidade que estava falando.
— Me poupe e se poupe da tentativa de negar, bebê — disse,
abandonando a taça no balcão e me encarou com tranquilidade. — Você
nunca foi do tipo que mente, não comece agora.
Entreabri os lábios, tentando buscar por um argumento válido e me
dei conta de que era desnecessário, Bianca estava certa.
Nunca evitei admitir o que sentia, não começaria a fazer isso naquele
momento.
Mas o problema não era aceitar que estava sentindo ciúme do Renato,
ele era bonito e se não trabalhássemos juntos e por acaso, nos
encontrássemos em um evento qualquer, teríamos dado match de cara.
Era fácil falar com ele, e o homem exalava a energia de quem sabia
muito bem o que fazer com uma mulher na cama.
Pensando por esse lado, não seria tão difícil, uma vez que bastava um
olhar dele para que sentisse minha respiração oscilar e cada osso no meu
corpo bambear dentro de mim. Quando ele me tocava, mesmo que
sutilmente, sentia a pele queimar e o sangue virar lava em minhas veias.
Se ele fosse qualquer outro cara, tudo seria mais simples.
Mas Renato era… ele.
E tecnicamente, era o meu chefe pelas próximas semanas e, se
aceitasse sua oferta para permanecer no escritório, precisava levar em
consideração de que tinha uma regra muito rígida em relação a isso.
Ele não era o primeiro cara com quem trabalhava que me interessava,
nunca abri exceções e não começaria naquele momento.
— Você tá fritando seus neurônios, né? — Bia sorriu, compreensiva.
— Talvez.
— Tudo bem… o problema é a regra maluca?
— Não é maluca — defendi, ofendida. — E você nunca criticou essa
regra antes.
Bianca riu baixinho.
— Porque os outros caras eram babacas.
— E ele não?
Ela desviou os olhos e deu um meio sorriso.
— Bom, a Geovana está praticamente sentando no colo dele e
implorando para que olhe para ela, mas o cara não tira os olhos de você
nem por um segundo. Fora que só essa noite, o ouvi dispensar ela umas…
cinco vezes? — Bianca retornou para mim e me vi tentada a virar para
confirmar. — Isso é novidade.
Fisguei o lábio inferior, apertando os dentes contra a carne e batuquei
as unhas na base da taça, ouvindo o tilintar suave ressoar sobre a música do
Ferrugem que tocava ao fundo, encobrindo as conversas espalhadas pela
cobertura.
Tentei com muita determinação não virar na direção que Renato
estava, mas minha curiosidade aguçada falou mais alto e olhei para a
varanda. Meus olhos colidiram com as íris escuras e intensas, sentindo
aquele turbilhão de sensações percorrer minhas veias outra vez.
Forcei um meio sorriso e isso pareceu ser o suficiente para que ele
murmurasse algo para Joca, Pedro e Geovana, deixando-os sozinhos e
entrando na sala de estar. No caminho, ele acabou sendo interrompido por
um Leandro animado.
Volvi para a Bianca, soltando um suspiro.
— Ainda bem que meus dias ali estão contados.
Ela sorriu.
— Pensei que você tivesse concordado em escutar a proposta dele.
— Sim, mas não significa que ele possa me oferecer algo diferente do
que já tenho… — falei, aproximando a taça dos lábios e bebericando o
líquido, tentando conter o sentimento de melancolia que me atingia ao
pensar nisso. — Se fosse possível, Roberta teria feito.
Ou não, afinal, ela achou justo esconder dele os motivos reais dos
meus problemas com Guilherme. Talvez, fosse ingenuidade minha acreditar
que ela se interessava em qualquer coisa que não a beneficiaria.
— Bom, ele está se esforçando em encontrar uma alternativa — disse
Bianca, em defesa do Trevisan. — Por que ao invés de ficar contando os
dias para a sua possível saída, não foca em aproveitar o tempo que ainda
tem disponível?
Revirei os olhos.
Mal tive tempo de abrir a boca, e o corpo grande e cheiroso se sentou
no banco ao meu lado. Assisti Bianca se afastar sorrateiramente e nos
deixar sozinhos, o que me fez buscá-la para avisar que ainda a mataria.
Ridícula… ela nem disfarçou!
— Tudo bem? — perguntou Renato, atraindo minha atenção e voltei a
encará-lo.
— Tudo ótimo — rezinguei, descendo meus olhos para a taça e
estiquei o braço para alcançar a garrafa. — E com você?
Renato torceu os lábios e como se tivesse sido conjurada pela minha
pergunta, acompanhei quando Geovana se levantou e caminhou em passos
apertados em nossa direção. Ele também notou e não me passou
despercebido quando o descontentamento correu pelo seu rosto e,
instintivamente, Renato aproximou a sua banqueta da minha.
Isso me arrancou uma risada silenciosa.
— Noite difícil?
— Um pouco — confessou, baixo e descontente. — Aparentemente,
dizer que não estou interessado não é o suficiente.
Desviei para a garota que o mirava como se fosse uma presa que ela
estava caçando em meio a selva e retornei para Renato, que parecia estar
prestes a cavar um buraco no piso para fugir da irmã bêbada do seu amigo.
— Não ria — resmungou e roubou a garrafa da minha mão, esticando
para a taça e me servindo.
— Desculpa — pedi, mordendo a parte interna da bochecha para
conter o sorriso. — É que você fica engraçado quando está contra a parede.
Seus olhos subiram para os meus e ele meneou a cabeça, mas antes
que respondesse, Geovana parou na nossa frente e apoiou as mãos nos
joelhos dele.
— Rê… — cantarolou, sorrindo abertamente —, você se importa de
me dar uma carona para casa? — pediu, batendo os cílios longos e grossos.
— Guto achou uma companhia, então, você sabe…
Corri de um para o outro, acompanhando a interação e me questionei
se ela não conseguia perceber que Renato não estava interessado. Diferente
de dois amigos deles que não tiravam os olhos dela, desde que chegaram.
Renato franziu o cenho, ponderando sobre a resposta que daria
porque estava mais do que óbvio que o pedido de carona era apenas um
pretexto para saírem e, provavelmente, transarem.
Ela não disfarçou nada, os seios saltando do decote que parecia ter
ganhado alguns centímetros de profundidade desde a sua última ida ao
banheiro; o sorriso malicioso, os olhos azuis tomados por luxúria…
Geovana tinha todos os sinais de uma mulher que estava subindo pelas
paredes por causa de um homem.
O problema era que esse homem, era justamente o Renato.
E por incrível que fosse, ele realmente não parecia interessado na
oferta dela.
Pigarreei, atraindo sua atenção, e seus olhos se voltaram para mim
quase instantaneamente. Com um sorriso calculado, estendi minha mão em
sua direção, tocando seu ombro suavemente. Renato pareceu compreender o
que eu estava prestes a fazer. Seus dedos roçaram delicadamente minha pele
enquanto percorriam meu antebraço, arrepiando os pelos ao longo do
caminho até o ponto onde eu o segurava.
Com naturalidade, entrelaçamos nossas mãos, como se tivéssemos
essa intimidade todos os dias.
Geovana não ficou alheia àquilo.
— Hum… não me importo em dar uma carona, pensando bem, estou
cansada. — Levantei do banco e dei um passo em sua direção, o que fez
com que Renato envolvesse minha cintura e me levasse para perto dele.
Estremeci, sentindo o calor do seu corpo contra o meu, enquanto o
cretino me fitava um sorriso malicioso, balançando a cabeça em aprovação.
Para meu completo choque, seus lábios roçaram suavemente na curva do
meu pescoço, enviando arrepios pela minha espinha, e sua mão apertou
firmemente minha cintura, me colocando entre suas pernas e me usando
como um escudo entre ele e Geovana.
Aquilo forçou a loira a se afastar de uma vez por todas.
— Hã… você está com ele? — perguntou, desconfiada.
Se havia algo em que eu era especialista, era fingir ser namorada de
Antônio para livrá-lo de algumas ciladas em que se envolvia. Não seria tão
difícil fazer o mesmo com Renato, para ajudá-lo a se livrar da irmã do seu
amigo.
O que eu não esperava, no entanto, foi o que ele disse em seguida.
— Minha esposa — comunicou e agradeci mentalmente por estar
sendo amparada por ele, caso contrário, teria desmaiado. — Anjo… você já
conheceu a Geovana, certo?
Pisquei, perplexa.
— Esposa? — O assombro na pergunta de Geovana não era maior do
que o meu.
Voltei para Renato, tentando não arregalar os olhos e deixar sua
mentira perceptível e diferente do meu espanto, ele parecia muito
confortável com a ideia de ter se casado falsamente comigo para se livrar da
loira.
Ele sorriu, e meu coração deu um salto. Uma agitação fora do comum
se instalou em meu estômago e meus dedos se fecharam em torno do seu
pulso, apertando-o com força.
Renato piscou para mim, como quem pedia para que entrasse na
brincadeira.
Deus do céu, por que decidi tentar ajudar ele?
Quando meu pai me mandou tomar cuidado com o hábito de estender
a mão para as pessoas, não sinalizou sobre a possibilidade de alguém acabar
enfiando um anel invisível no meu dedo!
— É recente — falei, voltando para a Geovana e sorrindo ingênua —,
ainda não contamos para muitas pessoas.
Até porque a própria noiva acabou de descobrir que está casada…
Geovana semicerrou os olhos, não colocando muita fé na nossa
história. Seria estupidez da parte dela cair naquilo, por que não cogitei
alegar que Renato era gay? Não duvidava que Leandro e Marc viriam
rapidamente me ajudar a convencê-la — apenas pela diversão de tirar uma
com a cara do homem que me mantinha colada nele.
— Que estranho… Leandro não comentou nada.
— Pedimos segredo — disse Renato, imperturbável. Sua respiração
bateu em meu ombro e precisei segurar a minha para conter o suspiro que
ameaçou escapar. — Somos muito reservados com a nossa relação.
Cretino.
Eu vou matar ele!
— Ah! — Foi tudo o que Geovana conseguiu emitir em resposta. Seu
olhar voltou para mim de um jeito estranho e ela balançou a cabeça,
forçando um sorriso.
— Saímos em cinco minutos — avisei, afastando-me um pouco de
Renato, tentando fugir do seu calor. — Sabe… se ainda quiser a carona.
Geovana resmungou em resposta e nos deu as costas, caminhando
apressada para onde seu irmão estava prestes a transar ali mesmo com uma
ruiva que era amiga de não sei quem. Eram tantas pessoas que não consegui
guardar o nome de metade dos amigos deles, tampouco dos agregados que
vieram junto.
— Esposa? — falei, sem tirar o sorriso do rosto porque a garota
estava nos observando enquanto conversava com o irmão.
Renato riu baixo.
— Falei a primeira coisa que me veio em mente.
Minha cabeça girou no pescoço e o fitei, pasma.
— Um casamento foi a primeira coisa que passou pela sua cabeça?
— indaguei. — Você pulou, no mínimo, umas três etapas do nosso
relacionamento. E tenho certeza de que meu pai não aprovaria a nossa
relação depois de descobrir que nos casamos, sem a presença da minha
família.
Ele sorriu.
— Nosso relacionamento é um tanto incomum — brincou, apertando
seus dedos em minha cintura. Meu corpo, escorado em sua perna direita,
encontrou um certo conforto na aproximação repentina. — E a ordem dos
fatores, não alteram o produto final.
Uma risada escapou dos meus lábios, incrédula.
— Você é mais maluco do que eu imaginava, Trevisan…
— Foi o que fez você se apaixonar por mim, Sra. Trevisan —
implicou.
Engoli outra risada, meneando a cabeça e Geovana apareceu
novamente, com uma jaqueta de couro sobre os ombros e sua bolsa. Não
tinha certeza se ela queria mesmo a carona, mas provavelmente optou por
manter o seu pedido para não ficar na cara que estava se atirando em cima
de um homem “comprometido”.
— Vamos?
— Claro, só preciso me despedir da minha amiga — falei, mais para
Renato do que para Geovana. Ele acenou, me soltando e aproveitei para
caminhar na direção de Bianca que assistia tudo do sofá. — Estou indo
embora.
— E…?
— Não começa.
Bianca sorriu.
— Tudo bem, depois você me conta o que aconteceu. — Seus braços
me envolveram em um abraço maternal, apertado e cheio de carinho. — Só
não esquece de mandar mensagem quando chegar, ok?
Anuí, me afastando um pouco para encará-la.
— Você não quer ir também?
— Hum… vou ficar mais um pouco por aqui.
Certo….
— Tudo bem… — estalei a língua, soltando-a do meu aperto —,
conversamos sobre isso depois.
Bia aquiesceu, trocamos um olhar rápido e cheio de cumplicidade. As
duas prometendo avisar a outra que estava tudo certo antes de ir dormir. No
caso dela, essa mensagem seria enviada tarde porque eu tinha certeza de
que Leandro e ela teriam muito para “conversar” naquela noite.
Assim que me despedi do dono da casa e prometi que marcaríamos
um dia para que ele tivesse sua revanche com a tequila, caminhei para onde
Renato me aguardava e diante do olhar examinador da Geovana, seus dedos
enlaçaram os meus com precisão e sem permitir uma possível fuga. Minha
bolsa estava com ele, que a carregou por todo o trajeto até o carro no
estacionamento.
Geovana e Renato conversaram rapidamente, ela tentou puxar
assunto para preencher o silêncio constrangedor e para isso, trouxe à tona
algo que aconteceu quando eram bem mais novos, claramente na intenção
de me deixar de fora da conversa. Não era como se me importasse em
interagir, se antes estava desconcertada pelas investidas que ela havia dado
nele nas últimas horas, naquele momento estava refletindo sobre os motivos
para que ele não tivesse se interessado.
Afinal, Geovana era linda.
Alta, o cabelo loiro era natural e parecia que ela vivia na praia, corpo
esbelto, seios fartos, olhos claros… Geovana Taffarello era irritantemente
bonita. E pior, só faltava anunciar em um letreiro na sua testa que estava
louca por ele.
Franzi o cenho, virando para Renato e tentando desvendar o que
podia ter acontecido.
Talvez ele seja gay.
Isso justificaria muita coisa, não?
Os filhos e a ausência da mãe, seu evidente desinteresse na
Geovana…
Renato segurou a porta para que eu entrasse no carro e olhei para ele,
tentando concluir se estava certa no meu raciocínio.
Será?
— O quê? — perguntou, confuso.
— Nada.
Ele não pareceu acreditar e antes que insistisse, me escondi dentro do
carro, sob a vigilância constante da Geovana. Quando ele fechou a porta
para dar a volta, ela tomou isso como uma brecha para falar diretamente
comigo.
— Quanto tempo? — interrogou.
— Oi?
— Quanto tempo vocês estão juntos?
Ai meu Deus, ainda me faltava isso.
— Alguns meses.
— Estranho… — sibilou, semicerrando os olhos em mim pelo
retrovisor. — Porque meu irmão disse que Renato saiu com uma amiga dele
antes das festas de fim de ano.
Legal, não bastava ter me casado com ele… o homem sequer me
avisou que eu havia sido corna.
Virei para a loira, dando um meio sorriso.
— Demos um tempo por algumas semanas.
Renato abriu a porta, entrando no veículo e me olhou com um
questionamento do que estávamos conversando e apenas forcei um sorriso,
pegando minha bolsa e a depositando em meu colo como se fosse minha
proteção.
— Você ainda lembra onde eu moro, Rê? — perguntou, sem esconder
as segundas intenções nas palavras e quis revirar os olhos.
Era uma tentativa de deixar subentendido que ele esteve lá antes?
Dios mío… eu mereço!
— Claro, é a casa do Guto — disse ele, sem esconder o
descontentamento com a situação.
Engoli a risada que ameaçou escapar, uma parte do meu cérebro me
repreendeu por estar me divertindo com os foras que ele estava dando na
garota, mas antes que minha consciência pesasse e me sentisse culpada por
contribuir para um coração ressentido, a mão de Renato capturou a minha e
a manteve presa na sua.
Ótimo, esse aqui entrou mesmo no papel de casado.
Olhei para ele, tentando dizer que não era necessário que
incorporasse o seu personagem com tanta seriedade, mas Renato não me
olhou em nenhum momento. Vez ou outra, respondíamos o que Geovana
perguntava sobre nosso casamento falso — que ela achava que era
verdadeiro — e me dei conta de que, em algum ponto, nós realmente
embarcamos no teatro.
— E como foi o pedido de casamento? — perguntou Geovana,
curiosa.
Renato me encarou e parados no semáforo, me encontrei refém da
atenção dos dois que aguardavam minha resposta.
— Por que você não conta? — forcei um sorriso, nervosa.
Ele riu baixo, acariciando o dorso da minha mão fria.
— Prefiro ouvir da sua boca… — piscou, zombeteiro. Cretino! —
Você nunca deixa os detalhes de fora.
Espreitei os olhos em seu rosto, estarrecida com sua cara de pau. Eu
vinha me compadecendo das piadinhas que Leandro soltava para ele todo
dia, mas estava começando a acreditar que Renato merecia todas elas.
Ele quer detalhes? Pois bem, terá detalhes!
Arqueei a sobrancelha, em um questionamento se ele realmente
queria que eu desse vida ao nosso falso pedido de casamento. Tudo o que o
maldito cretino fez, foi sorrir em incentivo.
— Hum… — tentei pensar rápido, mas sob o olhar dos dois ficava
um pouco complicado. — Ele me levou para um chalé que comprou em
Rovaniemi… — Renato franziu o cenho, sem tirar os olhos da rua vazia —,
sabe como é, né? Eu sempre quis ver o céu durante uma aurora boreal e ele
sabia disso, então…
Torci para que isso fosse o suficiente, mas Geovana realmente queria
saber de tudo. Eu precisaria ser mais criativa. Ela morava muito longe? Nós
ficaríamos encrencados se a garota começasse a pedir para ver as fotos da
cerimônia falsa.
Pigarreei, tamborilando os dedos no porta-luvas.
— Enfim, quando recebemos o alerta de que naquela noite teria uma
aurora, subimos até a montanha que ficava ao lado da cabana e assistimos
enquanto o céu escurecia e as luzes começavam — pensei alto, distraída.
Quase podia ver a imagem do espetáculo nítido na minha mente e isso me
arrancou um sorriso bobo. — Eu estava tão distraída que não percebi o que
estava acontecendo, e quando virei… ele estava ali, ajoelhado e com uma
aliança.
Suspirei, fugindo da minha fantasia de adolescente e virando para a
loira que nos observava com certo ressentimento.
— Deve ter sido um pedido lindo.
— Foi — murmurei, sorrindo fraco e vi que Renato parou em frente a
um prédio luxuoso, sem desligar o motor.
Aquilo despertou Geovana dos próprios pensamentos e ela segurou
na maçaneta, nos dando um meio sorriso.
— Parabéns para os dois — desejou, nenhum pouco sincera.
Não a julgaria. Se estivesse interessada em Renato por tanto tempo e
soubesse que ele se casou com uma mulher do nada, também sentiria
vontade de chorar de ódio pelo meu azar. E essa certeza quase me
convenceu a contar para ela que tudo aquilo era brincadeira.
No entanto, algo dentro de mim repeliu esse instinto. Era melhor que
ela continuasse acreditando naquilo, assim não corríamos o risco de voltar a
insistir nele.
— Boa noite — dissemos juntos, vendo a garota sair do carro e nos
deixar, finalmente, a sós.
Acompanhamos enquanto Geovana entrava no prédio, sumindo pelos
portões de aço até que desaparecesse completamente do nosso campo de
visão.
— Aurora boreal na Finlândia?
Olhei para ele, sem graça.
— Você não me deu tempo de pensar.
— Isso me pareceu muito bem planejado.
Bufei, sem saber como dizer que havia sido milimetricamente
planejado porque era como eu sonhava que isso acontecesse, desde que
tinha treze anos e vi pela primeira vez um documentário passando na
televisão sobre os espetáculos que aconteciam ao Norte de alguns países
mais próximos do Ártico.
— Mais do que você usar uma desculpa qualquer para me colocar
como sua esposa? — interroguei, vendo-o dar partida no carro e sorrir de
canto.
— Foi improviso.
— Claro que foi. — Rolei os olhos, virando o rosto para a janela e
assistindo os prédios com as luzes apagadas ao nosso redor. — Por que não
quis sair com ela?
A pergunta escapou antes que pudesse pensar direito e torci para que
Renato a ignorasse.
— Porque não estava interessado nela — respondeu, simplesmente
—, mas voltando ao pedido de casamento.
— Esquece isso.
— Preciso de mais detalhes sobre como pedi você em casamento —
insistiu, me arrancando uma risada baixa.
E me dei conta de que nossas mãos ainda estavam entrelaçadas,
mesmo que Geovana não estivesse mais ali. Apesar de uma parte de mim
ter gritado para quebrar o contato, tudo parecia tão natural, confortável e…
certo, que não fui capaz de me afastar.
— Deixo para a sua imaginação.
A expressão que nublou o seu rosto me arrancou uma gargalhada
genuína.
— Isso não, seu cretino! — falei horrorizada, em meio a risada.
— Ah, então, seguimos com o romantismo?
— De preferência.
Ele meneou a cabeça, divertido.
— Certo, e você aceitou?
— Sim, mas antes você fez uma declaração extremamente melosa,
cheia de hipérboles, dizendo que eu sou a única mulher que você amou em
toda a sua vida… — impliquei, entrando na brincadeira de novo.
Era tão fácil se deixar levar por ele que chegava a ser assustador.
Infelizmente, a diversão havia chegado ao fim e meus olhos correram
pela portaria do meu prédio. A guarita ocupada pelo porteiro da madrugada
abriu uma pequena fresta para verificar quem havia parado ali. Assim que
me reconheceu, o Sr. Chico fechou a portinhola para nos proporcionar
privacidade.
Virei para Renato e soltei um suspiro baixo.
— Bom… foi um prazer ser casada com você por uma noite — falei,
soltando-me do cinto de segurança.
Renato sorriu, sem-vergonha.
— Foi um prazer tê-la como esposa, Sra. Trevisan.
A maneira como ele falou isso fez meu sorriso se ampliar. Um desejo
insano tomou conta de mim, me fazendo querer continuar ali com ele ou até
mesmo convidá-lo para subir ao meu apartamento e continuar conversando.
No entanto, eu sabia muito bem o que estava acontecendo entre nós e sabia
que se fizesse aquele convite, a última coisa que iríamos fazer seria
continuar conversando.
Não podia afirmar por ele, mas sentia meu coração se agitar no peito
e minha boca formigar, ansiando por sentir a pressão dos seus lábios contra
os meus.
Quando seu olhar recaiu em um ponto mais abaixo do meu rosto,
soube que não era a única pensando naquilo, e isso me deu a motivação que
precisava para esticar a mão até a maçaneta do carro e destravar a porta.
O pequeno clique da trava sendo aberta ecoou pelo veículo,
preenchendo o silêncio que nos embalava e Renato me libertou da prisão do
seu olhar, desviando para a porta semiaberta.
— Boa noite, falso esposo — cantarolei baixo, rouca e ligeiramente
febril.
Seu olhar retornou para mim, intenso, quente e voraz. O canto do seu
lábio inclinou para cima e ele meneou a cabeça, sua mão subiu em direção
ao meu rosto e afastou uma mecha que teimava em cair sobre minha
bochecha. Senti seu polegar se arrastar lentamente na minha pele, deixando
uma trilha de gasolina que não precisaria de muito para me incendiar.
Renato segurou suavemente meu queixo, mantendo a sua atenção
fixada em mim, antes de soprar perto demais:
— Boa noite, anjo.
O sorriso que me tomou foi involuntário, e eu, que nunca gostei de
apelidos, percebi que tinha acabado de descobrir o meu favorito.
Acompanhei atentamente enquanto Igor entrelaçava sua mão na de
Matheus, e os dois subiam juntos a escadaria do colégio.
Antes que atravessassem as portas de vidro, meu caçula olhou sobre
os ombros e me deu um sorriso largo, acenando em despedida. Retribuí o
gesto, apoiado no carro, enquanto os dois se encontravam com Isabelle e
finalmente entravam no prédio.
De relance, pude ver uma mulher loira se aproximar com um sorriso
estampado nos lábios tingidos com um batom rosado, e não demorou muito
para que seus dedos estivessem pressionados contra meu bíceps e seu
cabelo tingido fosse agitado pelo vento forte.
— Renato! — saudou Thalita, mãe de um dos colegas de classe do
Matheus, a conhecia devido às reuniões semestrais entre pais e professores.
Após nosso primeiro encontro na sala do meu filho, ela passou a
trazer o filho todas as manhãs — ele costumava vir acompanhado de uma
babá — e a iniciar conversas comigo. Eu reconhecia suas intenções, mas,
por mais que Thalita fosse uma mulher atraente, ela não era o meu tipo e,
além disso, era casada.
— Thalita.
Acenei brevemente, cruzando os braços em frente ao corpo e
desviando para as portas de entrada do prédio, era comum que antes de
entrar na sala, Matheus retornasse correndo para verificar se eu havia ido
embora, por isso, costumava aguardar até que os seguranças fechassem as
portas.
— Soube que a nova professora passou uma atividade em grupo para
as crianças… — comentou, atraindo minha atenção e meus olhos recaíram
nos seus, o tom de azul era profundo e dissimulado. — O que acha de
marcarmos uma tarde para que eles possam trabalhar nisso?
Relaxei os ombros, esboçando um fraco sorriso em resposta e
balançando a cabeça em afirmativa.
— Claro, vou alinhar com a Mara.
Uma pequena ruga surgiu na testa de Thalita e a decepção percorreu
as íris, sem qualquer disfarce. Este não era o seu plano inicial, e conhecia
muito bem esse jogo para saber que não existia nenhum interesse dela em,
de fato, auxiliar as crianças na atividade. Seu filho, Caique, havia
frequentado minha casa várias vezes, e sua babá deixou claro que a mãe não
era das mais presentes, e gastava boa parte do dia em aulas de pilates e
salões de beleza.
— Não acha melhor que nós auxiliemos eles?
Uma risada silenciosa escapou da minha garganta e pude ver quando
Leandro se aproximou, após dar um abraço apertado na adolescente que
tinha trazido. De onde estava, Gabriela acenou em minha direção e me
enviou um beijo. Ela estava atrasada, caso contrário teria corrido para me
dar um abraço apertado.
— Bom dia, Thalita — cantarolou Leandro, o sorriso jovial e sacana
estampado em seu rosto. — Como foi seu fim de semana?
Duvidava muito que ele estivesse interessado, mas isso não nos
poupou de escutar enquanto Thalita compartilhava conosco seu divórcio
recente. Não me passou despercebido como seu olhar correu para mim ao
anunciar a notícia, esperando por uma reação da minha parte.
Certo, ela ficou solteira…, mas isso não mudava nada.
Minha mente estava ocupada por um par de olhos castanhos que
reluziam com doçura quando sorria. Talvez, estivesse hipnotizado pela
maneira que o rosto de Nathalia se iluminava sempre que algo a divertia.
Era, de longe, uma das coisas mais lindas que presenciei em toda a minha
vida.
— Seja bem-vinda ao time de pessoas que não acreditam na
instituição do casamento — disse Leandro, matreiro. As íris buscaram por
mim, tomadas por cinismo. — Viu, Renatinho? Você só acredita nisso
porque ainda não teve o desprazer de se casar!
Rolei os olhos, ignorando a atenção exagerada de Thalita.
— Não me diga que você é um dos românticos, Renato… — ciciou
ela, cheia de interesse.
— Romantismo é o nome do meio do eremita. — Leandro bateu em
meu peito, atiçando a onça que estava a um passo de me atacar.
As orbes azuis me examinaram, repletos de expectativas.
Forcei um sorriso assassino ao meu amigo, não precisava dizer nada
para que Leandro Salazar soubesse que assim que estivéssemos a sós, corria
o sério risco de estar com os minutos de vida contados.
Isso não o impediu de continuar aporrinhando minha paciência, ao
contrário, o motivava a esticar os limites e ver até onde minha amizade
suportaria o seu senso de humor adolescente.
— Nunca imaginaria, Renato. — Ah, pronto.
— Não, é? Sempre falei que ele tinha cara de cafajeste. — O filho da
puta que escolhi para ser padrinho de Matheus passaria a manhã inteira
infernizando minha paz, se assim eu permitisse.
Por sorte, o destino calhou de agir ao meu favor e quando o sinal
anunciou o início das aulas, soube que meus filhos estavam em suas
respectivas salas e que poderia seguir meu caminho rumo ao escritório — já
que, diferente de Salazar, eu não gostaria de perder nem mais um minuto da
minha manhã na frente do colégio.
— Bom, se não se importam… — me afastei do carro, abrindo a porta
para ir embora —, preciso trabalhar. Tenha um ótimo dia, Thalita.
A mulher acenou em resposta, abrindo espaço para que eu pudesse
entrar no carro, e voltou-se para Leandro, que teria que lidar com as
consequências de sua brincadeira por alguns longos minutos. Pelo
retrovisor do carro, pude vislumbrar o desespero que se instalou em seu
rosto quando Thalita o arrastou em direção ao seu próprio carro, onde muito
provavelmente ele ficaria ocupado pelo restante da manhã.
Era justo que ele passasse um pouco de sufoco bem no início da
semana.
Contrariando o trajeto rotineiro, fiz o retorno e segui para a região sul
da cidade, lidando com um pequeno tráfego para chegar na pequena e
tradicional confeitaria francesa que conheci na semana passada.
Enquanto aguardava para ser atendido, aproveitei para me atualizar
do que aconteceu no mundo nas últimas horas, e não foi uma surpresa
perceber que os sauditas continuavam estressando o mercado com um novo
aumento nos barris de petróleo. No Brasil, a Petrobrás e outras privatizadas
vinham sofrendo com o movimento, e sem dúvida os papéis sangrariam ao
longo do dia.
Após recolher meu pedido com a atendente, retornei para o meu carro
e enviei uma mensagem ao diretor de compliance[15] para que
providenciasse um relatório das operações no último mês. No trajeto até o
escritório, recebi a informação de que o documento já estava pronto e em
posse da única pessoa que, aparentemente, conseguia ser mais controladora
do que eu.
Após encerrar a chamada com um dos meus maiores clientes e
reavaliarmos algumas posições no seu portfólio, boletei as operações que
zeraríamos naquele pregão e chequei com outro cliente quando poderíamos
conversar.
Sem pressa, deixei minha sala e acompanhei pelo painel da equipe de
operações, o banho de sangue em que os papéis estavam se afundando e os
olhares aflitos de alguns operadores, que eram jovens e inexperientes e
nunca haviam presenciado um dia tão caótico na bolsa. Fazia um tempo
desde o último estresse que causou algo parecido.
Durante toda a minha graduação, estagiei na mesa de operações de
uma gestora de recursos que ficava em Londres, o que me proporcionou a
chance de estar operando quando ocorreu a crise do subprime[16]
. Lá, aos
dezenove anos, assisti em primeira mão um dos maiores índices do mercado
de capitais despencar.
Foram incontáveis noites e madrugadas em claro, entre os estudos e
reestruturações de portfólios. O mundo inteiro acreditava que o mercado
não se recuperaria depois daquele dia, mas Wall Street se reergueu das
cinzas alguns anos depois, três vezes maior do que era quando entrou em
recessão.
Depois daquele susto, eu duvidava muito que qualquer outro desastre
sobressairia o que tinha sido ser um trader naqueles quatro longos anos.
Aquela movimentação dos sauditas era uma brincadeira de criança
mimada, eles esticariam para ver até onde o mercado os deixaria ir, e
quando ultrapassassem as margens, dezenas de sanções e medidas de
contenção fariam com que retrocedessem. No fim, o mercado ditaria qual
seria o preço final e eles acatariam para permanecer negociando com o resto
do mundo.
No entanto, não era ruim que os rapazes estivessem tensos.
A situação estar ligeiramente controlada não significava que algo de
ruim não pudesse acontecer. Nos últimos dias, vários investidores tiveram
prejuízos exorbitantes, e lidar com essa realidade não era algo fácil. Pelo
contrário, era extremamente estressante. Apesar de termos lastro em todos
os portfólios, todos os clientes sofreram algumas baixas que nossas
estratégias de proteção não foram capazes de conter.
No início da manhã, acompanhei as primeiras boletagens do dia,
instruindo os operadores em como deveriam liberar as ordens para que não
houvesse erros. Apenas quando tive certeza de que não havia chance de
pisarem na bola, deixei a sala de RV para trás e voltei para o segundo piso.
A porta ao lado da minha estava fechada, mas eu sabia que Nathalia
havia chegado, pois seu perfume permeava o corredor, revelando sua
presença a todos que passassem por ali.
Entrei na minha sala, apanhando a pequena sacola da confeitaria e em
poucos passos, fiquei em frente da porta escura. Meu punho fechado bateu
na madeira, aguardando por autorização para entrar e ela não demorou a vir,
entoada pela voz doce de sua proprietária.
Não perdi tempo em analisar o ambiente e logo concentrei minha
atenção na dona do perfume peculiar e afrodisíaco, sentada na poltrona
branca, girando uma caneta entre os dedos enquanto examinava alguns
documentos que segurava na outra mão.
Ela ergueu os olhos, curiosa.
Naquela manhã, seu rosto delicado estava adornado com óculos de
leitura, e seu cabelo, que normalmente ficava lindo solto, estava preso em
um nó por outra caneta.
— Oi! — cantarolou, sorrindo tão radiante quanto o sol que
atravessava os vidros da sala. — Dia difícil?
— Não quero ser portador de más notícias, mas provavelmente vai
piorar nas próximas horas — anunciei, sem esconder aquele fato dela.
Nathalia meneou a cabeça, compreensiva, e indicou que eu entrasse
de uma vez por todas. Fechei a porta e me aproximei, observando enquanto
ela recolhia os documentos e os ajustava de volta na pasta onde estavam
anteriormente. Ela retirou os óculos de leitura, deixando-os sobre a mesa, e
me olhou com curiosidade enquanto eu diminuía a distância entre nós.
— Como foi seu domingo? — perguntei, casualmente.
— Corrido — confessou, apontando a mesa de centro do outro lado
da sala e reconheci mais alguns documentos. — Mas, finalmente, consegui
um rascunho para o Prof. Becker… — comemorou, entrelaçando as mãos
sobre a mesa. — E o seu?
— Levei os garotos para visitar meu avô no interior — disse, dando
de ombros e voltando a encará-la. — Um domingo particularmente
tranquilo.
Nathalia sorriu, afável.
— Tenho certeza de que se divertiram, principalmente o pequeno —
falou, e não deveria ter gostado da maneira como o apelido carinhoso
escapou dos seus lábios, tampouco de como seus olhos brilharam ao
mencionar meus filhos.
Assenti, vasculhando sua mesa, buscando pelo documento que
precisava despachar para a equipe do compliance arquivar. Devido à fusão,
passaríamos por uma auditoria da CVM a qualquer momento, e queria
garantir que todas as operações foram conferidas e não teríamos problemas
com a fiscalização.
Nathalia esticou o braço em direção a uma pilha específica em sua
mesa e puxou um envelope. Seus olhos permaneceram fixos em mim
enquanto me oferecia o envelope e, com a outra mão, indicou que eu lhe
entregasse o que havia trazido.
— O quê?
— Me dê.
— Como sabe que trouxe algo para você? — Alcei a sobrancelha,
fingindo não saber do que ela estava falando.
Nathalia estalou a língua e suas íris brilharam, em pura euforia.
— Você conhece outra pessoa que ame tanto os macarons da
Pâtisserie Dauphiné? — indagou, apertando os olhos e fingindo
ressentimento. — Pensei que eu fosse a única na sua vida!
O beicinho que tomou seus lábios me fez sentir um desejo voraz de
prendê-los entre meus dentes, como forma de ensiná-la a não fazer aquilo
novamente, pois minha mente era facilmente manipulada por qualquer coisa
que ela fazia.
— Não se preocupe, você é a única — assegurei, estendendo a sacola
que havia escondido atrás do meu corpo.
Ela vibrou, entusiasmada, e soltou o documento que precisava da
minha assinatura. Aproveitei que estava ali e poderia resolver aquela
pendência em poucos minutos, e me sentei em uma das poltronas em frente
à mesa dela, verificando os inúmeros post-its que foram colados com
anotações feitas por uma letra muito delicada.
— Você não precisava ter feito isso — falei, sincero.
Era meu trabalho aquele tipo de análise e sabia que Nathalia estava
sobrecarregada.
— Isso é uma bronca?
— Não.
Ela suspirou, abrindo o embrulho delicado e desfazendo o laço em
torno da caixa, apenas para retirar um dos biscoitos. Assisti com certo
fascínio como seus olhos brilharam, em puro êxtase por estar comendo seu
doce favorito e um gemido baixinho escapou dos seus lábios ao morder um
pedaço.
— Sério, isso é a melhor coisa do mundo.
Certamente, não era melhor do que o som que escapou dos seus
lábios.
Nathalia se levantou e deu a volta na mesa, pegando um copo térmico
no meio do caminho e o colocou na minha frente, dando uma piscadela
cúmplice em resposta — antes de retornar para a sua poltrona.
Não precisei de uma explicação para saber que era outro café
colombiano com sua mistura excêntrica, meu paladar comemorou pela
iguaria e não pude evitar que o comentário escapasse dos meus lábios.
— Pensei que não faria café para mim.
Ela sorriu, buscando por outro macaron dentro da caixa e chacoalhou
os ombros.
— Sou inconstante — declarou, puxando outra pasta e empurrando
em minha direção. — Relatório de fechamento das indústrias Mazzini,
Rede Portela, ZAE e Grupo Aspen — falou, conforme me entregava a pasta
referente a cada uma das empresas pelas quais eu era responsável. —
Também fiz observações sobre possíveis alterações, não precisa levar em
consideração, mas…
— Desde que horas você está aqui? — interrompi, semicerrando os
olhos, preocupado.
— Hã… — ela virou o rosto para a tela do computador, checando o
horário e deu de ombros —, não muito.
— E analisou todos esses relatórios em pouco tempo? — insisti.
Nathalia sorriu, audaciosa.
— Sou ótima no que faço, esqueceu?
— Convencida também.
— Posso levar isso como um elogio — retrucou, voltando para a
pilha de relatórios em sua mesa. — Também verifiquei que o contrato ainda
não foi deferido em cartório. Aconteceu alguma coisa?
Abandonei os documentos, olhando-a com tranquilidade. Ainda não
sabia como dizer que Roberta tinha dado uma rasteira nela, e que era por
esse motivo que o contrato ainda não foi finalizado.
— Tudo sob controle, não se preocupe — prometi, porque sabia que
encontraria uma alternativa que não a prejudicasse.
Ok… continuando, também conversei com a equipe de compliance —
falou, recostando a poltrona para trás e me fitando com serenidade. — Eles
vão preparar um material de apoio para os operadores em conjunto com a
equipe de risco, caso ocorra um possível circuit breaker nos próximos dias.
Não era à toa que Roberta a chamou de excessivamente precavida,
apesar de não ser algo que pudéssemos descartar, duvidava muito que
aconteceria qualquer coisa nos próximos dias.
— É um bom plano.
— Claro que é, fui eu quem pensou nele.
Sorri, achando graça do seu convencimento.
— Você nunca consegue receber um elogio sem escancarar que está
ciente do quanto é incrível? — Arqueei a sobrancelha, intrigado.
Nathalia piscou.
Peguei-a desprevenida com meu questionamento? Aquilo seria um
milagre.
— Então, você me acha incrível? — Mudou de assunto, sorrindo
arteira.
— Essa não foi a minha pergunta.
— Mas foi a minha — retrucou, estalando a língua.
— Não teria me casado com você se não a achasse incrível —
devolvi, recordando da nossa mentira na madrugada de domingo.
Ainda lembrava do olhar horrorizado que ela me lançou quando
deixei que as palavras escapassem, e do sorriso ardiloso que cobriu seus
lábios quando entrou na mentira. Também recordava de como foi
extremamente específica ao contar para Geovana sobre o falso pedido de
casamento, o que não deixava dúvidas de que era algo que já estava em sua
mente.
Talvez, fosse um desejo seu?
Eu estava, no mínimo, intrigado com tudo que envolvia a Nathalia
Gama.
Ela era simplesmente fascinante, em cada detalhe.
Nathalia riu baixinho, concordando comigo.
— Bom, aproveitando que você tocou no assunto… — endireitou a
coluna e me encarou, um pouco mais séria. — Precisamos definir alguns
limites no trabalho, agora que estamos casados.
— Precisamos? — Fingi indignação —, isso é inesperado.
— Ah, claro, você pensou que poderia contar para todo mundo que é
casado comigo?
— Seria tolice minha não fazer isso.
Ela sorriu, dispensando minha afirmação com um gesto.
— Sabia que eu descobri que você me traiu?
— Nunca seria capaz disso.
— Vocês homens são todos iguais… — lamentou, dramática. — As
pessoas falam, Renato Trevisan. Sei muito bem que andou beijando outras
bocas enquanto estávamos dando um tempo.
A risada que escapou do fundo da minha garganta foi involuntária.
Nathalia era realmente uma joia rara.
— Não me diga que está com ciúmes, Sra. Trevisan.
Ela suspirou, bebendo um pouco do próprio café e me observando
por baixo dos cílios volumosos.
— Ciúmes? Nunca.
— Ótimo. Saiba que só tenho olhos para você — falei, recolhendo os
documentos que tinha vindo buscar.
Precisava retornar para a minha sala, ou corria o sério risco de passar
o resto da manhã refém do humor dessa mulher atrevida.
As bochechas de Nathalia ruborizaram. Suas mãos envolveram o
copo térmico e ela balançou a cabeça, como quem não acreditava nenhum
pouco nas minhas palavras.
— Você é pior do que o Leandro — comentou, estalando a língua.
Não soube definir se aquilo era um elogio ou uma ofensa.
— Desculpe, anjo… seja mais específica.
Nathalia semicerrou os olhos ao escutar o apelido que escapou
naturalmente, ele combinava tanto com ela que sequer precisei pensar muito
para que escapasse.
— Ele vai conquistando as pessoas pela risada… já você é mais
traiçoeiro.
— E por que isso seria ruim?
Ela soltou um suspiro, empurrando outro documento em minha
direção.
— Preciso que assine essa ordem para liberar um aumento de salário
para a Bianca. — Me aproximei da sua mesa, abrindo a pasta para verificar
do que se tratava.
O valor, no entanto, me pegou um tanto desprevenido.
— Nenhuma assistente administrativa recebe esse salário.
— Ela recebe. — Foi sucinta, esticando uma caneta para que eu
assinasse. — Como pode ver no demonstrativo, toda a diferença sai
diretamente do meu bolso.
Aquiesci, confirmando que ela falava a verdade. Todo o valor extra
que era pago para Bianca saía da receita da própria Nathalia, era o tipo de
operação que não traria nenhum prejuízo ao escritório, mas era um tanto
inusitado.
— Eu vou precisar saber o motivo disso?
Nathalia deu de ombros.
— Não é nada que precise se preocupar — disse, evasiva.
Deixei o copo térmico na mesa dela e peguei a caneta, passando os
olhos novamente pela ordem que estava prestes a ser enviada ao setor
financeiro.
— Se outras assistentes virem isso, terei problemas, Sra. Trevisan.
— Prometo que será um segredo protegido pelos nossos votos de
casamento.
Sorri, meneando a cabeça e rubricando o documento na linha
pontilhada, dando a ela um voto de confiança de que não precisaria me
preocupar com aquilo.
— Espero que isso não me traga problemas, mocinha.
— Pode deixar! — Piscou.
Anuí, devolvendo a pasta para ela, que me deu um sorriso genuíno de
agradecimento, o que me tranquilizou em relação ao motivo do salário
exorbitante que ela pagaria para sua amiga.
— Tenha um ótimo dia, esposo — cantarolou, divertida.
Hesitei na porta, segurando a maçaneta e virei para encará-la,
escondendo um sorriso.
— Igualmente, anjo.
Mal tive tempo de sair do banho, antes da porta do meu quarto ser
escancarada abruptamente.
O traste, que eu chamava de amigo, passou por ela sem qualquer
convite ou permissão para que o fizesse e olhou em volta, distraído,
enquanto eu saía do armário devidamente vestido.
— Boa noite, Leandro. — Forcei um sorriso nenhum pouco sincero.
— É sempre bom receber uma visita inesperada.
Ele revirou os olhos.
— Deixa disso, vim para ser atualizado sobre os acontecimentos de
sábado — disse, cruzando os braços em frente ao peito. — Pensa que não vi
o que rolou entre você e a diabinha?
— Não aconteceu nada.
— Conta outra, eremita! — Bufou, revoltado por ser deixado de fora
do assunto. — Como você deixou que eu descobrisse por outra pessoa que
meus dois melhores amigos se casaram?
— Dois melhores amigos? — Ergui a sobrancelha, sem conter o
desdém. — Você a conheceu na semana passada.
— E daí? Quer definir quanto tempo eu preciso conhecer alguém para
chamá-la de melhor amiga? — retrucou, infantilmente.
Às vezes, sinto que o universo me deu meus filhos para que eles
amenizassem as dores de cabeça que meus amigos me davam. Por mais
estranho que fosse, Igor e Matheus conseguiam ser menos imaturos do que
Leandro Salazar.
Pincei a ponte do nariz, clamando aos céus por paciência para lidar
com a espécime humana peculiar que colocaram em minha vida e voltei a
encará-lo, esperando pelo fim do seu drama mexicano.
— Acabou?
— Você já foi mais amigável, Renatinho… pensei que estaria mais
adepto a se encaixar nas normas sociais depois de se encantar pela diabinha
— provocou, recostando o corpo no batente da porta e dando um sorriso
astuto.
— Pare de chamá-la assim.
— Você está se mordendo de curiosidade para saber o motivo, né? —
devolveu.
Não gostei nenhum pouco da forma como seus olhos brilharam,
tentando a todo custo me instigar a fazer a pergunta que estava ansioso em
responder. Não daria aquele gosto a ele, tinha plena ciência de que Leandro
tornaria minha semana um inferno se permitisse que minha curiosidade
falasse mais alto.
— Do jeito que você é, não duvido que acabe soltando uma hora ou
outra, boca de sacola[17]
.
Salazar levou a mão ao peito, fingindo ofensa.
— Você subestima demais o meu talento em guardar segredos,
Renatinho.
Encarei-o, cético.
— Me diga um segredo que você guardou — exigi, cruzando os
braços em frente ao peito, respirando profundamente.
Ele refletiu por meio segundo, o suficiente para chegar à conclusão
de que, em mais de vinte anos de amizade, nunca houve um único dia em
que Leandro não apareceu com uma informação sobre um dos nossos
amigos, que deveria ter sido mantida em sigilo.
— Você é um fofoqueiro.
Ofendido, ele me fitou.
— Fofoqueiro não, respeita minha história, Renatinho. No máximo,
faço um serviço de utilidade pública.
— Utilidade pública? Sério mesmo? Para quem?
Salazar deu de ombros, impassível.
— A diabinha amou meu jeitinho de ser — zombou, me enervando
novamente por causa do apelido.
— Pare de chamá-la assim — rosnei, irritado.
— A boca é minha, chamo ela como eu quiser.
Porra, meu filho vai fazer oito anos e consegue ser mais maduro.
— Já aviso que vou ficar para jantar — anunciou, sumindo pelo
corredor.
— E quando que você não fica?
A risada do filho da puta reverberou pelo corredor, e pela mistura de
vozes que vinham do andar inferior, não me surpreenderia se Pedro e Marc
também estivessem na minha casa.
— Pai? — chamou Igor, antes que me afastasse da sua cama e o
encontrei segurando a barra da coberta, apertando-a entre os dedos
nervosamente. — Posso pedir uma coisa?
Franzi o cenho, estranhando a pergunta. Normalmente, ele fazia seus
pedidos sem hesitação, pois sabia que eu os atenderia, independentemente
do que fosse.
— Claro que pode.
Abaixei-me na sua frente e estendi a mão para afastar alguns fios de
sua testa. As pálpebras estavam pesadas de sono, pois eu o havia trazido
para cima depois que adormeceu no sofá. Sabia que Igor costumava ter um
sono pesado, o que tornava ainda mais estranho ele ter acordado.
— Do que você precisa? — incitei, olhando-o paciente.
Igor franziu o cenho, ponderando sobre seu pedido por alguns
segundos e como se chegasse numa decisão, trouxe seu olhar de volta para
mim antes de dar um meio sorriso.
— Pode convidar a Nathalia para o meu aniversário?
O pedido imprevisível me surpreendeu, estava esperando qualquer
coisa… exceto isso.
— Algum motivo específico para isso?
Temi a resposta mais do que seria capaz de explicar. Estava ciente de
que Nathalia havia encantado meus filhos da mesma forma que havia me
encantado, e não sabia se era uma boa ideia Igor e Matheus se apegarem a
ela.
Igor balançou os ombros, indiferente.
— Ela é legal — disse, simplesmente.
— Ela é. — Sorri, afagando sua bochecha.
Conhecia meu filho o suficiente para reconhecer quando estava
escondendo algo, e não era difícil notar que existia um outro motivo por
trás do seu pedido.
— É só por causa disso? — insisti, sem querer ferir seu espaço.
A terapeuta havia me aconselhado a permitir que Igor se sentisse
confortável para falar sobre o que estava sentindo quando estivesse pronto.
Insistir para que falasse comigo seria invadir seu espaço e, mesmo sendo
uma criança, ele precisava passar pelo processo de compreender suas
emoções por conta própria. Meu papel como pai era estar presente para
apoiá-lo e oferecer suporte, não o forçar a me contar todos os detalhes do
que estava acontecendo com ele.
Igor meneou a cabeça, me dando um sorriso fraco.
— Ela é muito legal — murmurou.
Anuí, de acordo com o seu pedido.
— Vou repassar o convite para ela — avisei, vendo o sorriso em seu
rosto ganhar alguns milímetros. — Mas tenha em mente que ela pode ter
outro compromisso, tudo bem?
Era importante que ele estivesse ciente de que existia a chance de
Nathalia ter outros planos que não envolviam a festa de aniversário de uma
criança que ela havia acabado de conhecer.
Igor assentiu.
— Tudo bem. Se não der… acontece.
Sorri fraco, deixando um beijo em seus cabelos.
— Volte a dormir, você acorda cedo amanhã.
Pressionei os dedos em minhas têmporas, girando em sentido horário
e rezando para que isso fizesse a latência incômoda diminuir um pouco.
Sentia como se minha cabeça fosse explodir a qualquer segundo; uma
veia no centro da testa não parava de pulsar e estava cogitando ligar para
minha mãe, a fim de descobrir se aquilo era normal ou se estava prestes a
ter um AVC no auge dos meus 23 anos.
A claridade incomodou minha visão e tateei a mesa sem abrir os
olhos, buscando pelo controle remoto e de forma mecânica, fechei as
cortinas e esperei que a escuridão das persianas preenchesse a sala.
Tinha cochilado duas… talvez, três horas naquela noite.
Graças ao Prof. Becker, que faltou cuspir na minha cara quando
entreguei o que havia preparado para a inscrição do estágio, minhas últimas
duas noites não foram dedicadas ao descanso. Ao contrário, quebrei minha
rotina para tentar encontrar o que fiz de errado para que o homem me
olhasse como se eu fosse o anticristo encarnado.
Quando a penumbra invadiu a sala, finalmente consegui abrir as
pálpebras e me livrar do desconforto causado pela claridade. Eu tinha me
acostumado tanto com as crises de enxaqueca que só naquele momento
percebi o quanto conhecia cada centímetro da sala, a ponto de me
movimentar sem depender de luz.
Enviei mensagem para a Bianca, pedindo que segurasse qualquer
ligação para minha sala por, no mínimo, cinco minutos. Eu precisava
apenas de míseros segundos para me recuperar e conseguir retornar para os
compromissos pendentes para o dia.
Uma batida ressoou na porta e, relutante, murmurei para que a pessoa
entrasse, enquanto me jogava no sofá e sentia alívio em minhas costas ao
trocar de posição.
— Você está dormindo, cleputamaníaca? — A pergunta de Leandro
me arrancaria uma risada em qualquer outra tarde, exceto naquela. Eu
sequer tinha forças para isso e minha cabeça doía por antecedência.
Se fosse possível, eu passaria o dia inteiro fazendo quimiossíntese.
— Fala baixo, por favor — pedi, quase em súplica, sentindo o som da
sua voz ecoar estridente na minha cabeça.
Não pude ver o rosto de Leandro, mas a pequena brecha que deixou
aberta na porta me permitiu visualizar o entorno do seu corpo, conforme
atravessava o espaço e se sentava ao meu lado. Sua mão buscou pelo meu
rosto, tateando minha testa para verificar se estava febril e ao finalizar seu
pseudo diagnóstico, me soltou.
— O que você está sentindo?
Quis sorrir ao reconhecer que ele praticamente assoprou a pergunta,
tentando ao máximo manter a voz baixa.
Não sabia por onde começar a explicar todos os sintomas, desde a
latência que me fazia querer arrancar a cabeça do meu próprio corpo, as
dores musculares; os pontos luminosos que piscavam e ardiam minha visão,
o enjoo e tontura devido ao desconforto… e a maldita veia que não parava
de pulsar.
Certo, certo… exagerei na cafeína, essa era a explicação mais
provável.
Nunca tive uma crise de enxaqueca tão forte em toda minha vida, e
pelo jeito que meu coração estava batendo fora de ritmo no peito; fazendo
com que minhas mãos tremessem ao passo que a pressão na cabeça se
intensificava, considerei um potencial AVC, infarte ou um derrame.
Era possível sofrer de derrame aos 23 anos?
Eu precisava urgentemente ligar para a minha mãe. Era em momentos
como esse que ter uma renomada neurocirurgiã na família valia de algo.
— Droga, diabinha… — resmungou Leandro, levantando-se ao
checar algo no celular. Sabia que ele precisava entrar em reunião com um
cliente, mas parecia tentado a ficar aqui comigo.
— Não se preocupe, isso é normal.
Não era, mas ele acabaria se atrasando para encontrar com o cliente
que eu sabia que estava aguardando em uma das salas de reunião. Bianca
tinha retornado minha mensagem anunciando que seguraria todas as
chamadas assim que deixasse o velho, dono de uma das maiores emissoras
do país, na sala para se encontrar com Leandro.
— O que você precisava? — perguntei, rouca, tentando com tudo de
mim manter meu cérebro ativo.
— Vai tomar no seu cu — retrucou, nervoso. — Você está quase
tendo um bebê cerebral, e está querendo saber de trabalho?
Franzi o cenho, confusa e irritada.
— Foi para isso que veio, não?
Leandro se calou e pareceu refletir sobre o que faria.
— Merda… como vou sair daqui e deixar você sozinha? Se você
morrer vai vir me assombrar, tenho certeza.
Uma risada escapou dos meus lábios e isso causou uma dor ainda
pior. Leandro se afastou, murmurando algo que não me dei ao trabalho de
registrar e segundos depois, minha sala foi tomada por dois brutamontes
vindo em minha direção.
Um, foi fácil de identificar sem que precisasse abrir os olhos. O
cheiro do seu perfume era tão marcante que soube o exato momento em que
ele se agachou na minha frente, seus dedos envolveram meus pulsos
delicadamente e ele afastou as mãos que cobriam o meu rosto na tentativa
de intensificar a escuridão.
— Ei, anjo… — chamou, tão baixo que precisei abrir os olhos para
confirmar se era realmente ele quem estava ali. — Você toma algum
remédio?
— Sim, mas ainda não fez efeito.
Aquela era a segunda crise do dia, e ainda faltavam algumas horas
para poder tomar outro comprimido.
— Como falei para o Leandro, só preciso de alguns minutos para me
recuperar — expliquei, sentindo uma irritabilidade incomum. Salazar não
estava no meu campo de visão, mesmo com a baixa iluminação pela porta
entreaberta, tudo estava embaçado. — Podem voltar ao trabalho, não se
preocupem.
— Deixa de ser orgulhosa, pirralha — retrucou Leandro —, não vai
morrer se aceitar que é um ser humano normal, e que precisa de ajuda como
todos os outros.
Bufei, nervosa.
— Leandro. — Renato repreendeu a provocação do amigo. — Pode ir
para a sua reunião, vou ficar com ela.
Pensei em retrucar, mas minha cabeça pulsou com tamanha violência,
que senti uma náusea incomum me atingir. Joguei o corpo para trás,
encarando o teto e por alguns segundos me concentrei em abrir e fechar os
olhos, na intenção de fugir dos pontos que cobriam minha visão.
Não consegui ouvir o que Leandro falou, mas senti meus tornozelos
serem capturados e meus pés foram liberados das sandálias que eu usava. A
porta foi fechada, devolvendo-me a escuridão e soltei um suspiro de alívio.
As salas eram vedadas acusticamente, o que impedia que as vozes que
ecoavam do piso inferior chegassem aqui em cima.
— São crises episódicas ou crônicas?
— Episódicas.
Renato murmurou em resposta e se afastou um pouco, não precisei
olhar na direção para saber que estava conversando com alguém ao
telefone. O fato de escutar o nome do seu amigo, Pedro Zimmermann,
atraiu minha atenção e virei em sua direção, encontrando-o próximo ao
frigobar, vasculhando o que tinha disponível ali.
Renato não demorou a retornar com uma garrafa de água e afastou o
celular da orelha para me questionar:
— Você comeu alguma coisa hoje?
Não precisei emitir uma resposta, ele identificou quase que
imediatamente e abriu a garrafa, indicando que bebesse tudo e com uma
calma invejável retornou ao frigobar, retirando alguns cubos de gelo dele.
— Isso realmente funciona? — A pergunta não foi feita para mim,
mas senti a latência diminuir consideravelmente quando após pedir licença,
Renato aproximou o cubo da têmpora que eu estava pressionando poucos
segundos antes.
Quase chorei de alívio, e não soube dizer se a dor tinha passado ou se
meu cérebro apenas se concentrou em outra coisa. De toda forma, aquilo
ajudou tanto que quando Renato fez menção a afastar a mão, meus dedos
envolveram seu pulso e deitei a cabeça no encosto, mantendo-o ali.
— Tudo bem, acho que funcionou — disse ele, para o Zimmermann.
— … não, ela disse que tomou o remédio.
Renato ouviu o que o amigo falou e depois de se despedir, voltou sua
atenção inteiramente para mim. Minutos depois, abri os olhos, sentindo-me
mais disposta a mantê-los abertos. Principalmente, após a diminuição dos
clarões que vinham me cegando. Suspirei, correndo os olhos pela sua
silhueta na escuridão, ciente da sua atenção cravada em mim.
— Obrigada — sussurrei, começando a me sentir sonolenta. Seus
dedos acariciando meu cabelo não ajudavam a me manter acordada.
— Não por isso — disse, descendo a mão para a minha bochecha e
deixando um afago gostoso na região, antes de capturar meu queixo e seus
lábios tocarem meu cabelo, depositando um beijo demorado ali. — Na
saúde e na doença, Sra. Trevisan.
Pude sentir meus lábios se erguerem em um sorriso fraco. A
sonolência e o cansaço que estava sentindo nos últimos dias somados ao
medicamento que tomei a pouco menos de uma hora; o afago carinhoso em
minha bochecha e o gelo amenizando a dor, resultaram no meu cérebro
começando a se desligar, gradativamente.
O polegar de Renato desenhava círculos em minha pele, arrastandoos como se fizesse aquilo sempre. Gostando do contato, meus dedos
envolveram o seu pulso, impedindo que ele se afastasse.
— Você é muito legal. — Pude escutar minha própria voz não passar
de um sopro debilitado pelo cansaço.
— Descanse, anjo — pediu e sem minha permissão, meu corpo
atendeu ao seu comando.
Minhas pálpebras pesavam uma tonelada, a dor cessou e a pressão
que me fazia sentir prestes a explodir, não estava presente quando recobrei a
consciência aos poucos.
Mas ainda existia uma mão acariciando meu rosto, a escuridão tinha
sido iluminada pela luz baixa de um iPad na mão do meu cavaleiro de
armadura branca, e senti a vergonha me nocautear ao perceber que, o
motivo para que Renato ainda estivesse me acariciando, era porque a minha
mão segurava seu pulso, impedindo-o de se afastar.
— Está se sentindo melhor? — perguntou, sem tirar os olhos da tela
que mexia com a mão livre.
Soltei seu pulso, constrangida.
Tudo ficou pior quando me dei conta de que estava com a cabeça em
cima de uma almofada macia em suas pernas, Renato manteve as luzes e
persianas fechadas, e devido a completa escuridão que vinha das janelas…
aí, merda.
— Que horas são?
Sentei-me tão rápido que a tontura me derrubou, obrigando-me a
deitar novamente. Aquilo ao menos arrancou uma risadinha do homem que
ficou zelando pelo meu sono. Renato esperou pacientemente que eu me
recuperasse e ao me sentar, olhei em volta na tentativa de me localizar.
Ok, ainda é a minha sala.
— Faltam quinze minutos para às sete.
Eu ia arrancar a cabeça da Bianca, deixei claro que seriam cinco
minutos de descanso. Onde ela estava com a cabeça para me deixar dormir
tanto?
— Merda, eu…
— Você precisava descansar. — Renato foi firme.
Tateei o sofá, buscando pelo controle e acendi uma das lâmpadas,
iluminando a sala parcialmente. A claridade ardeu meus olhos, mas não
demorei a me acostumar com ela. Levei a mão na nuca, massageando a
região para aliviar o músculo enrijecido e soltei um suspiro baixo, minha
cabeça parecia pesada e sabia que era efeito do remédio.
Tentei me esforçar em pensar nos compromissos que perdi e que
precisaria dar um jeito de encaixar pelos próximos dias, mas nem isso fui
capaz de fazer. Minha mente estava anestesiada e mal conseguia concluir
uma sinapse.
— A enxaqueca…?
— Passou — respondi, absorta. Renato se levantou, afastando-se do
sofá em que estávamos e quando retornou, me entregou uma garrafa de
água que aceitei prontamente. — Obrigada.
Renato sorriu e balançou os ombros como quem dizia que não havia
sido nada.
— Volto em cinco minutos e te deixo na sua casa — avisou, sereno.
— Não precisa, eu vim…
— Eu insisto. Você acabou de acordar e tomou um remédio forte…
não acho que seja uma boa ideia dirigir.
— Moro aqui do lado, não tem perigo algum.
Renato deu um passo para trás, a expressão preocupada não escondia
que ele pensava o oposto do que eu havia dito. Derrotada, acabei
concordando com a sua oferta e isso arrancou um meio sorriso dele, mas
ainda parecia incomodado com algo.
Óbvio que ele está, você fez o homem passar o dia inteiro zelando
pelo seu sono, sua idiota!
Meu cérebro acordou pronto para me constranger e quando Renato
passou pela porta e desapareceu no corredor, considerei ignorar que tinha
concordado em aceitar sua carona e descer correndo para o estacionamento.
A única coisa que me impediu, foi a vertigem que me devolveu ao sofá
quando tentei levantar.
Demorei alguns minutos para conseguir ficar de pé sem que as coisas
girassem ao meu redor, levei outros longos minutos no banheiro e quando
senti que estava menos parecida com um zumbi de The Walking Dead,
retornei para a sala onde Renato estava a minha espera.
— Posso pedir para virem me buscar — falei, sem graça por toda a
situação.
— Por que faria isso?
— Não quero te incomodar mais.
— Não me incomodou nenhum pouco — tranquilizou, esticando a
mão para que a pegasse. Não pensei direito, apenas aceitei sua oferta e
Renato alcançou minha bolsa no sofá, me guiando para fora da sala.
Como era rotineiro, naquele horário o escritório estava vazio no
primeiro andar. O mercado encerrava as seis da tarde e, no máximo trinta
minutos depois, todos tinham batido ponto. Os únicos que acabavam
esticando o expediente eram os sócios sêniores que precisavam lidar com
fuso-horários de seus clientes, vez ou outra.
Por isso, não encontramos com ninguém durante todo o trajeto para o
elevador e agradeci mentalmente por ter Renato segurando firmemente
minha mão, já que eu tinha me enganado e apesar de não sentir mais a
latência incômoda, ainda estava com sensibilidade as luzes.
— Me empresta a bolsa — pedi, meio agonizada, e ele rapidamente
me entregou. Assim que encontrei os óculos escuros e os coloquei, um
suspiro aliviado escapou e meus ombros relaxaram. — Muito melhor.
Subi os olhos para ele, encontrando seu cenho franzido e Renato
esticou a mão para segurar o elevador que se abriu, quieto. Não era um
daqueles silêncios incômodos; ao contrário, ele parecia estar segurando um
discurso enorme, e só não o soltou por saber que eu ainda estava com dor.
Busquei pelo meu celular, conferindo as notificações de e-mails,
mensagens e ligações perdidas, e bastou aquilo para que a latência
ameaçasse retornar com força total. Foi o suficiente para que Renato
esticasse a mão, em um pedido para que o entregasse.
— Você é muito mandão — resmunguei, fingindo chateação e
coloquei o celular em sua palma.
Ergui o queixo para encará-lo, agradecendo pelos óculos escuros
neutralizarem a luz excessivamente clara que pairava no teto, o que não me
impediu de reconhecer a diversão que correu por alguns segundos nos seus
olhos.
— E você uma teimosa.
— Isso é novidade para você? Pensei que tivessem te contado tudo
sobre mim.
Renato sorriu, meneando a cabeça.
— Você é uma caixinha de surpresas ambulante, Sra. Trevisan.
Ah… ainda seguiríamos na brincadeira do falso casamento?
Eu poderia me acostumar com aquilo, mesmo sabendo que não
deveria.
— E você é um ótimo esposo, Sr. Trevisan — confessei, tocando
gentilmente seu antebraço e girando o polegar na região, em um carinho
sincero. Estava agradecida por ele ter me ajudado naquela tarde. —
Desculpe se atrapalhei a sua agenda.
— Não se preocupe — falou, me tranquilizando e parecia honesto.
Não era como se ele realmente estivesse se importando com as coisas
que deixou de fazer por minha causa, e eu sabia que foram muitas. Se a
minha agenda ficou infernal desde que aquela fusão começou, a dele era
pior. Minha agenda ocupada não me impediu de dar uma pequena
bisbilhotada em seus compromissos da semana, e eu sabia que naquela
noite ele teria uma reunião importante com um cliente do agronegócio.
Ele pretendia me deixar em casa e depois voltar para o escritório?
Quando as portas se abriram, Renato me guiou para onde estacionou
seu carro, que por ironia ou não, estava na vaga ao lado do meu.
— Nem comece — disse, firme, e não tentei contrariá-lo na decisão
que tinha tomado. Ele abriu a porta do passageiro para mim, e esperou que
eu entrasse e colocasse o cinto.
Ele era o típico cavalheiro que eu pensei ter sido extinto na última
remessa de homens fabricados. Era uma raridade, o pomo de ouro no meio
de um oceano de balaços.
Não me lembrava de quando tinha sido a última vez que esbarrei com
aquela espécime, mas sabia que fazia muito tempo.
Renato contornou o carro e não demorou a dar partida, a música
baixa preencheu o silêncio confortável e bem-vindo, e poucos minutos
depois estávamos sendo atingidos por todo o barulho da Avenida Paulista.
Ambulâncias, buzinas, motos barulhentas, a gritaria, os metrôs indo
de um lado para o outro abaixo de nós; comerciantes de rua, pessoas
aproveitando o semáforo fechado para oferecer balas e doces.
Precisei afundar as costas no estofado bege e Renato empurrou outra
vez a garrafa de água em minha direção, que aceitei de boa vontade
enquanto buscava pelo comprimido que minha mãe havia receitado.
— Por que o Zimmermann? — indaguei, me lembrando de o ter
escutado falando com Pedro mais cedo no telefone.
— Ele sofre com enxaquecas desde que tinha quinze anos — disse,
alternando sua atenção entre a rua movimentada e eu. — Não prefere ir ao
hospital?
Sorri, achando a sua preocupação adorável.
— Não se incomode com isso — falei, sincera.
As pulsações latejantes não voltaram, era apenas a sensibilidade às
luzes e sons. O novo comprimido teria efeito em breve, mas os meus planos
de ir para a orientação e virar a madrugada trabalhando no IPO fictício
foram por água abaixo.
— Acho melhor contratarmos outra pessoa para ajudar você —
pensou alto, atraindo a minha atenção.
Ri baixinho.
— Não sei se você lembra, mas estou em aviso prévio.
Renato parou no semáforo ao lado da rua em que morávamos e
trouxe o olhar para mim, sorrindo de canto.
— Pensei que tivesse a sua palavra de que me daria a chance de te
fazer mudar de ideia.
Estalei a língua, fingindo ofensa.
— Ah, então é por isso que está cuidando de mim? — inquiri,
falsamente magoada. — E eu pensando que era puro cavalheirismo.
Renato riu.
— É o mínimo que posso fazer depois de nos casarmos.
Arqueei a sobrancelha e balancei a cabeça, ponderando.
— Então, o nosso casamento foi uma estratégia para me manter no
escritório?
— Como você descobriu? — devolveu, zombeteiro.
Suspirei teatralmente, vendo-o entrar na rua, calmamente.
— E eu pensando que tinha sido por amor.
Renato olhou para mim, dando de ombros.
— E quem disse que não foi?
— Você precisa se decidir, esposo. Foi por amor a mim ou aos
negócios? — interroguei, sem tirar os olhos dele, gostando de ver como um
pequeno, quase imperceptível, buraquinho surgia em sua bochecha quando
sorria.
Renato parou o carro na minha portaria e meio que no automático,
abri a janela e sinalizei para que o porteiro que liberasse sua entrada. O
processo era bem rápido, uma vez que ele estava comigo no veículo e
quando parou em uma das minhas vagas, voltei a encará-lo.
— E então?
— O quê?
— Não se faça de desentendido! — Revirei os olhos. — Ainda não
respondeu a minha pergunta.
— Você faz muitas perguntas.
— Faço? — indaguei, franzindo o cenho.
— Essa é uma.
— Tu as raison, bébé[18]— cantarolei distraída, livrando-me do cinto
de segurança.
— Você fala francês?
Sua surpresa me arrancou um sorriso, não contaram aquilo para ele?
— Fluentemente — disse, altiva.
— Que convencida.
— Estaria sendo se falasse que sou fluente em outras sete línguas e
que me saio bem em, no mínimo, outras três — retruquei, relaxando no
banco e o observando.
Viajei bastante quando era mais nova com o meu pai e sempre fui
muito curiosa. Entre alguns dias na Europa e umas semanas na Ásia,
precisei me manter ocupada enquanto ele se dedicava a todas as reuniões
que participava durante nossas estadias. Espanhol e português foram as
línguas que aprendi em casa, uma avó colombiana e um avô baiano me
proporcionaram uma experiência única, aprender o idioma se tornou meio
que uma obrigação para entender o que eles resmungavam quando estavam
irritados.
Morei a vida toda em Nova Iorque e passei boa parte do tempo no
escritório da Alpha, em Wall Street, logo, inglês era a minha língua
principal. Aprendi francês por conta da minha classe extracurricular no
colégio; italiano por pura curiosidade, mandarim a pedido do meu pai, que
acreditava que a China se tornaria uma grande potência e que era
importante aprender a língua deles; japonês, porque namorei um
intercambista por seis meses. Além disso, ainda entendia perfeitamente
russo, árabe e búlgaro — todos aprendidos por convivência com colegas
intercambistas.
Eu levava a sério o conselho do meu pai de aprender o máximo de
coisas possíveis, e gostava da ideia de saber me virar sozinha quando
viajava. Se a minha rotina não fosse tão difícil, tentaria aprender alemão —
que era a língua materna do meu melhor amigo.
— E eu me achando por me sair bem em quatro — falou Renato,
depois que terminei de listar minhas experiências. Não havia desdém em
sua voz, ao contrário, ele parecia admirado. — Búlgaro?
Dei risada, aquiescendo.
— Fiz amizade com uma intercambista que não entendia muito de
inglês, e como dividíamos o dormitório duas vezes por semana, uma de nós
precisou se ajustar para que a convivência desse certo — expliquei,
descendo do carro quando abriu a porta e me ofereceu a sua mão.
— Ela ficava no dormitório por dois dias?
Neguei.
— Eu que ficava. E bem, sabe o ditado que diz: os incomodados que
se retirem? — Virei para encará-lo conforme caminhávamos pelo
estacionamento até o elevador. — Pois bem, como a pessoa que estava
incomodada era eu, passei a tentar ao menos entender se Yordana estava me
xingando toda vez que resmungava.
Renato sorriu.
— E ela estava?
— Estava! — Arregalei os olhos, inconformada com a recordação. —
Dá para acreditar nisso? Uma pessoa não gostando da minha companhia!
Logo eu, que sou tão doce e amigável… — estalei a língua e fingi
chateação.
Ele revirou os olhos, divertido.
— Inaceitável.
— Exatamente. Sabe, foi ela que me fez perceber que se a pessoa não
gosta de mim, o problema está nela… não em mim, achei um absurdo
aquilo. — Afastei uma mecha de cabelo do ombro e chamei pelo elevador,
antes de voltar a olhar para ele e o encontrar segurando a risada. — O quê?
Renato meneou a cabeça, jocoso.
— Você é realmente inacreditável, Nathalia.
Sorri, tomando isso como um elogio.
— Eu sei… — suspirei, fingida —, é tão difícil carregar o fardo de
ser incrível em absolutamente tudo o que me proponho a fazer.
Renato caiu na risada, e amei o fato de que ele compreendeu o meu
senso de humor quebrado e que não estava levando a sério metade das
coisas que eu falava. Era um porre precisar esclarecer a cada frase que era
apenas uma brincadeira, e que eu não era uma babaca egocêntrica que
pensava que o mundo girava em torno do meu umbigo.
Quando as portas do elevador se abriram, girei nos calcanhares e virei
para Renato. Minha cabeça doía menos e isso me permitiu tirar os óculos de
sol para olhar em seus olhos, que estavam cravados em mim, carregados de
interesse.
— Quer subir? — ofereci, um pouco ansiosa.
Estava gostando de conversar com ele, e apesar de saber que havia
atrapalhado seus compromissos… me peguei sendo egoísta o suficiente
para desejar que ele aceitasse o convite.
Era estupidez da minha parte, ele teria uma reunião em menos de uma
hora e…
— Seria um prazer. — Sua resposta me arrancou um sorriso
entusiasmado e dei um passo para trás, esperando que ele entrasse.
Ignorei a sensação de formigamento que se instalou no meu ventre e
refém da sua atenção, liberei a nossa subida para o meu apartamento.
— Você ficava no dormitório duas vezes por semana? — perguntou
ele, retornando ao assunto anterior.
Assenti, virando para encará-lo.
— O campus ficava em New Jersey, e como eu morava com o meu
pai em Manhattan, era mais fácil ficar no dormitório nos dias em que
minhas aulas começavam de manhã — esclareci, lembrando-me de como
odiava as aulas matinais. — Como as outras começavam mais tarde, não era
um problema ir dirigindo.
Ele franziu o cenho, pensativo.
— Era uma boa viagem.
Dei de ombros, tranquila, e levei a minha atenção para o painel que
mostrava os andares se alternando conforme subíamos.
— Eu gosto de dirigir, me ajuda a colocar os pensamentos em ordem.
— Encarei-o, dando um meio sorriso. — Fora que, se eu optasse por morar
perto do campus, seria em um apartamento que os seguranças do meu pai
pudessem ficar também.
Miguel era um tanto neurótico em relação à minha segurança, e só
recentemente consegui uma folga da constante companhia de seus homens.
Na faculdade, a última coisa que eu precisava era ser seguida pelos dois
brutamontes por todo o campus. Já era o suficiente tê-los no meu encalço
no carro de trás.
— E também… na época, eu estava estagiando meio período na
Alpha.
Aquela informação o pegou desprevenido.
— Não sabia que tinha trabalhado lá.
Claro que não, isso nunca foi colocado no meu currículo. Fazia parte
da tentativa de não ser associada ao meu pai.
— Por quase um ano, em posições menores, óbvio…, mas não deu
muito certo.
— Quer falar sobre isso?
Olhei-o de relance, ciente de sua curiosidade e apreciando como
parecia disposto a deixá-la de lado, caso fosse um assunto desconfortável
para mim. Isso fazia toda a diferença, e era por coisas como aquela que me
sentia tão confortável ao seu lado.
Indiquei que me seguisse quando as portas se abriram e abandonamos
o elevador, entrando na minha casa. Meu corpo relaxou ao sentir o aroma
floral espalhado pelo ambiente. Era reconfortante chegar em casa e saber
que poderia me esconder do mundo, e que nada me atingiria ali dentro.
— Me dá dez minutos? — pedi, virando para ele que olhava em volta
com interesse. — Fique à vontade. Mi casa es tu casa.
Exatamente dez minutos depois, desci as escadas para o primeiro piso
e meu estômago roncou alto.
O cheiro de comida preencheu o lugar e não soube dizer se era
porque não tinha comido nada o dia inteiro, ou se porque estava cheirando
muito bem, mas me senti uma esfomeada.
Atrás da ilha e se dedicando em cortar alguns legumes, estava Renato
Trevisan, tecnicamente meu chefe — cozinhando para mim. As mangas de
sua camisa foram dobradas até os cotovelos e ele parecia ter se encontrado
na cozinha, pelo visto, mais do que eu era capaz.
Minha alimentação não era ruim, mas vinha dos restaurantes
espalhados pela rua em que moramos. O contato do bistrô francês ficava na
minha discagem rápida, e na maioria das vezes, bastava que eu enviasse
uma mensagem de cumprimento para que soubessem o que precisavam me
enviar.
Não que eu não soubesse cozinhar, minha abuelita não dormiria em
paz sem que tivesse certeza de que sabia me virar sozinha. Mas não era algo
que gostava de fazer, era muito esporádico, se em um belo dia acordasse
com o espírito da Paola Carosella vivendo dentro de mim, me dedicava em
passar longas horas preparando o que sentia vontade. Mas fazer isso todos
os dias? Imediatamente, me sentia estressada.
Eu seguia fielmente a política do meu avô: comida boa, era a que
estava pronta e que não precisava de mim para nada que não fosse comê-la.
O fato de Bianca e Antônio afirmarem que eu era uma péssima
cozinheira também não me incentivava muito.
— Espero que não se importe — falou, direcionando sua atenção para
mim. Seus olhos percorreram demoradamente todo o meu corpo, analisando
cada centímetro disponível antes de finalmente encontrarem os meus. —
Imagino que esteja com fome.
Sorri e acenei em confirmação, aproximando-me da ilha enquanto
observava com curiosidade o que ele havia feito.
— Não estava, mas graças a você… agora estou — confessei, sem
pensar direito em como aquela frase poderia ser facilmente usada em outro
contexto. E se fosse ser honesta, não era como se estivesse descartando
aquele pensamento. — Mas estou começando a sentir que estou abusando
da sua boa vontade.
Renato umedeceu os lábios, fixando seu olhar em minha boca e
apenas balançou a cabeça, como se quisesse dizer que não era nada. Soltei o
ar dos pulmões, libertando o lábio inferior que estava sendo pressionado
entre os dentes, e me apoiei no mármore frio, tentando identificar de onde
vinha aquele cheiro delicioso.
— Vinho? — Ofereci.
— Prefiro uísque, mas é uma boa também.
Anuí, afastando-me para servir uma dose para ele. Como eu tinha
tomado remédio, não poderia beber de qualquer maneira. E o mínimo que
podia fazer por Renato depois daquela tarde, era servir uma dose do melhor
escocês que eu tinha.
Não era a minha bebida favorita, mas era a preferida do meu pai e do
meu melhor amigo. Por isso, era comum ter um estoque em casa. Além
disso, recebi um presente especial de um cliente no Natal. Era um barril
exclusivo que continha apenas cinquenta garrafas, as quais estavam sendo
vendidas nos mercados por cerca de cinquenta mil dólares cada uma.
Meu cliente era o proprietário do condomínio comercial onde nosso
escritório estava localizado e, como um gesto de gratidão pela nova sede da
RCI, Pietro me presenteou com uma caixa fechada desse uísque. Segundo
ele, um mimo por mais um ano de excelentes resultados no seu portfólio e
pelo negócio milionário que o garantiria uma renda exorbitante por cinco
anos.
O que, pensando bem, não tinha mais certeza se era positivo, já que
estava em dúvida se o escritório sobreviveria ao primeiro ano.
Retornei para a cozinha, encontrando Renato fechando o forno e ri
baixinho. Se qualquer um me dissesse na semana passada que o veria
caminhando de um lado para o outro no meu apartamento, preparando meu
jantar como se frequentasse aquele ambiente todos os dias e o conhecesse
perfeitamente, não existia a menor chance de que eu acreditasse.
— Pensei que tivesse uma reunião no escritório — sondei,
empurrando o copo para ele e abandonei a garrafa em cima da ilha, me servi
com um pouco de água de coco.
— Não era importante.
— Era com o Moacir Portela… — retruquei, vendo seus olhos se
apertarem em mim.
— Então, você andou bisbilhotando minha agenda.
Sorri, inocente.
— Uma boa esposa fica por dentro dos compromissos do marido, não
é assim que manda a etiqueta? — pisquei, ligeira.
Renato apoiou os cotovelos sobre a bancada e bateu o indicador em
seu copo, deixando um sorriso escapar.
— Ainda não tive a chance de agradecer a ocasião com a Geovana.
— Não precisa agradecer, não foi nada. Mas, confesso que isso me
deixou curiosa.
— Sobre?
O motivo de não ter aceitado as investidas dela — falei diretamente,
sem rodeios. Não era ele quem sabia de tudo? Ele deveria saber que eu era
extremamente curiosa, e aquela história de simplesmente não estar
interessado não colava comigo. — O que aconteceu? Você não gosta de
loiras?
Ou de mulheres?
Era importante descobrir se existia a possibilidade de Renato jogar
para o time vizinho ou para os dois times.
Sua risada reverberou pelo espaço, e soube que não havia sido muito
discreta em esconder qual era a minha verdadeira intenção naquele
interrogatório. Precisei morder a parte interna da bochecha para conter o
sorrisinho estúpido que o som da sua gargalhada me roubou, e solvi um
pouco da minha bebida para disfarçar.
— Não, Nathalia… eu não sou gay, tampouco bissexual — disse,
achando graça na pergunta que, felizmente, não precisei fazer em voz alta.
— Mas eu não estaria julgando se fosse. — Precisei me defender,
afinal, eu não estava mesmo. Era apenas uma dúvida inocente.
— Como disse ontem, eu não estava interessado — murmurou,
tranquilo. — Infelizmente, Geovana é insistente, por mais transparente e
sincero que eu seja.
Anuí, compreensiva.
— Mas você também não é casado.
Merda… onde estou querendo chegar com esse interrogatório? É
culpa do remédio, tem que ser!
Renato não desviou o seu olhar do meu, e aquilo era mais
desconcertante do que qualquer coisa. Tentei me convencer de que era por
esse motivo que estava tão interessada em sua vida afetiva, ou pioraria
muito a minha situação.
— Não, eu não sou casado.
— Nem divorciado?
Ele soltou uma risada baixa, negando.
— Muito menos isso.
— Entendi… — estalei a língua, batucando as unhas no mármore,
ansiosa. — Em um rolo?
— Um rolo?
— É, tipo… uma crush?
Se antes ele parecia intrigado com a minha curiosidade, a última
pergunta o deixou completamente perdido. Quase como se não soubesse do
que eu estava falando.
— O que seria um crush?
Certo, certo… agora eu que estou confusa.
— Você não sabe o que é um crush? Sério, em que caverna você se
escondeu todos esses anos?
— Aparentemente, uma bem longe da sua.
Suspirei, sem acreditar.
— Você sabe que ainda é jovem, né? — impliquei, rindo baixinho. —
O meu pai sabe o que é um crush.
— Seu pai tem uma filha muito tagarela, tenho certeza de que foi ela
quem contou para ele — retrucou, zombeteiro.
Sorri, concordando.
— Mantenho ele atualizado, até Twitter ele criou para se comunicar
com os fãs.
— Leandro me contou, ele instaura o caos entre os garotos quando
posta algo…
Busquei meu celular, entrando no aplicativo e indo diretamente para o
perfil de Miguel Gama. A rede social era formada por bolhas de interesses,
desde adolescentes que queriam interagir com fãs de um determinado artista
à pessoas de áreas específicas que se reuniam para debater sobre certos
assuntos.
A bolha em que meu pai estava inserido, era carinhosamente
apelidada de Fintwit, onde investidores, especialistas, analistas e
profissionais do mercado financeiro, passavam o dia inteiro como fãs da
Beyoncé, quando não estavam aclamando a sua diva POP favorita; estavam
arrumando brigas desnecessárias com quem discordava dos seus caprichos.
Existia a parte polarizada, onde qualquer assunto virava uma
confusão sem fim, e a que meu pai ficava era uma zona neutra em que ele
soltava suas opiniões, e deixava que os malucos entrassem em guerra nas
respostas.
Para alguns, Miguel Gama era um gênio e para outros, um completo
louco. Uma coisa era fato, meu pai era o homem mais brilhante que eu
conhecia e não existia nada no mundo que mudaria aquilo.
Ri baixinho ao ver o último tweet dele, uma foto do presidente do
Banco Central norte-americano, acompanhado da legenda: poker face. Nos
comentários, inúmeros pseudo-especialistas se matavam para decifrar o que
meu pai quis dizer e qual era a mensagem subliminar naquele post.
Era uma recomendação para vender dólar? Um indicativo de subida
na taxa de juros americano?
Existia um milhão de teses surgindo na timeline e bastou que eu
entrasse na conversa com Miguel para ver sua última mensagem e descobrir
que ele estava apenas zombando da expressão do economista, que parecia
ter caído no sono durante uma das mais importantes reuniões no mercado
global.
Mostrei para Renato que caiu na risada comigo, enquanto líamos as
inúmeras avaliações e cálculos que eram feitos, um mais exagerado que o
outro, querendo se gabar e mostrar ao meu pai que entendiam de economia
tanto quanto ele.
— É assim o dia inteiro?
— Ele solta algo a cada dois dias e se diverte com o surto coletivo
que instaura.
Renato sorriu, voltando sua atenção para o risotto que estava
preparando.
— Miguel parece ser ótimo.
— Ele é o melhor — falei, soltando um suspiro e deixando o celular
de lado. — Mas… enfim, basicamente crush é uma forma de dizer que você
está interessado em alguém. Tipo uma quedinha, sabe? — perguntei e ele
balançou a cabeça, compreendendo. — Então, você tem um crush por
alguém? Sabe, não é querendo me gabar…, mas sou ótima quando se trata
de conselhos amorosos.
Mas visivelmente péssima no quesito: calar a boca.
Ele cravou os olhos em mim e riu fraco, como se expulsasse um
pensamento de sua mente.
— Você tinha comentado sobre Yordana não gostar de você —
murmurou, mudando de assunto.
Agradeci mentalmente por ele não estender, ou acabaria me
enrolando ainda mais com minha curiosidade. Entretanto, não pude evitar a
surpresa ao perceber que ele havia se lembrado do nome da minha colega
de quarto búlgara.
— Uma ousadia sem tamanho isso — falei, revoltada. — Olhe bem
para mim, sou uma pessoa adorável de se conviver! — me defendi. —
Sempre tenho assunto para conversar, posso falar tranquilamente sobre
vários temas simultaneamente, tenho um ótimo gosto para bebidas e
comidas, sou uma ótima companhia…
— E é muito modesta — completou.
— Exatamente, só vejo qualidades. — Ignorei a sua ironia, porque
não parecia uma provocação ou julgamento.
— Eu também.
— Por isso você se casou comigo na primeira oportunidade que teve.
Renato sorriu, bebendo um pouco do seu uísque, sem tirar os olhos de
mim.
— Digamos que é raro encontrar algo tão fascinante… eu precisava
garantir que ficaria só comigo — falou, com uma seriedade que me deixou
sem jeito.
Senti o rubor subir em minhas bochechas e esbocei um sorriso
tímido, bebendo um gole longo da água e torcendo para que ele estivesse
brincando, ou eu estaria muito encrencada.
— Então, sobre Yordana… — incentivou, voltando a sua atenção para
o risotto e tomei aquilo como uma brecha para fugir daquela onda de calor
que seu olhar enviou para o meu corpo.
Ouvir Nathalia falar e acompanhar a maneira como gesticulava
entusiasmada, cheia de opinião sobre diversos assuntos, segura da sua
personalidade e esbanjando bom humor e carisma, foi o ponto alto do meu
dia.
Poderia passar a noite inteira escutando tudo o que ela falava e não
ficaria entediado. A cada minuto, ela trazia uma informação completamente
nova e Leandro estava certo, a garota era um navegador ambulante. Não
houve um único assunto que eu entrasse, que Nathalia não estivesse
devidamente apta para debater.
Era tão simples ficar conversando com ela, sentado no tapete da sua
sala de estar, com apenas uma almofada a mantendo distante de mim e seu
sorriso dominando meus pensamentos… que sequer me dei conta do relógio
correndo e de como estava ficando tarde.
Por acaso, naquela noite, Igor e Matheus ficaram com os meus pais.
A festa de oito anos do meu primogênito aconteceria no sábado à tarde, e
minha mãe aproveitou que eu tinha uma reunião com um dos meus clientes
mais antigos, para dar folga a Mara e monopolizar os garotos por uma noite,
enquanto acertava os detalhes da comemoração de acordo com os desejos
de Igor.
No entanto, apesar de estar disponível para passar a madrugada
ouvindo Nathalia falar, eu sabia que era hora de me levantar e ir embora.
Passava das 23h00, e ela precisava descansar e ter uma noite completa de
sono.
— Tenho um convite para você — falei, atraindo sua atenção do
morango que ela estava mergulhando na tigela de arequipe[19]
, segundo ela,
sua maior obsessão.
As íris se acenderam em curiosidade, mas foram os lábios grossos e
rosados que me atraíram ao envolver um pedaço considerável da fruta
coberta pelo doce.
Não pude evitar que meus olhos acompanhassem o movimento, e não
ajudou nenhum pouco quando Nathalia lambeu o polegar que ficou sujo
com o doce de leite, sem tirar a porra dos olhos grandes e convidativos dos
meus.
Ela ao menos tinha noção de como era gostosa pra caralho?
— Qual? — perguntou, inocente.
E eu esqueci completamente do que falei para motivar sua pergunta.
Pisquei, atordoado, erguendo os olhos novamente para os seus e
tentando mantê-los fixos nas orbes castanhas que me miravam com uma
euforia intensa. Suas bochechas estavam coradas, assim como seus lábios;
os cílios cheios e curvados deixavam seu olhar penetrante e, ao mesmo
tempo, dócil. Era como ficar diante de um anjo, e ainda assim ser tentado
por algo que era sutil, mas estava ali, tão atraente e vivo que era capaz de
me aprisionar numa redoma sob seu domínio, sem chance de fuga.
Talvez o apelido que Leandro usava realmente fizesse jus a ela. Seus
lábios me tentavam e me faziam desejar os ter contra os meus, e eu
colocaria a mão no fogo pela certeza de que nunca desejei tanto sentir o
gosto de um beijo, quanto ansiava pelo dela.
Porra, era tão doce quanto o seu perfume?
Certamente, me deixaria tão viciado quanto. Seu cheiro estava
impregnado em cada maldito canto do apartamento, marcando território e
me impedindo de esquecer que ela estava a poucos passos de distância, e
ainda assim, extremamente distante.
Nathalia era apenas uma garota.
Com vinte e três anos, e um caminho inteiro para trilhar sozinha. Eu
não deveria me interessar por ela.
— Aniversário do Igor — murmurei, cravando os olhos nos seus,
evitando olhar demais para os seus lábios. — Ele pediu que você fosse
convidada, mas ele entenderá se…
— Estarei lá — interrompeu.
Sorri fraco.
— Ainda não falei que dia será.
— Não importa o dia, estarei lá — declarou, firme.
— Não precisa se sentir obrigada a…
Nathalia levou a mão ao peito, dramática.
— Agora estou começando a achar que você que não quer que eu
vá… — disse, semicerrando os olhos.
— Claro que não, mas se você tiver outro compromisso…
Afinal, Nathalia era jovem e não devem faltar rapazes querendo sair
com ela.
Ela estalou a língua, sorrindo travessa.
— Olha, você precisa parar de me olhar como se fosse muito mais
velho que eu, sabia? — Suspirou. — São… o quê? Seis anos? Nem é muita
coisa!
Sorri, achando graça na maneira como ela revirou os olhos.
E Nathalia estava certa, seis anos não eram muita coisa, mas existia
uma diferença enorme entre nossas expectativas de vida. Ela ainda
pretendia viajar, se especializar, trabalhar em outros escritórios e construir
seu nome. Eu tinha uma vida estável, dois meninos que dependiam
integralmente de mim e que demandavam muita atenção.
Era normal que concluísse que ela tinha uma vida social muito mais
agitada.
— Está falando sério sobre ir?
Nathalia franziu o cenho, confusa.
— Por que não estaria? Adoro festas de criança e o Igor é um amor
— falou, buscando outro morango e mordendo um pedaço, distraída. —
Mas se você prefere que nosso contato não ultrapasse os limites do
escritório, entendo. Se for o caso, pode dizer a ele que tive outro
compromisso.
Sorri, agradecido por ela se dispor a cobrir minhas costas.
— Não é um problema. Só pensei que você teria outros planos.
— Você se surpreenderia com a inexistência da minha vida social.
— Isso é ruim?
Ela ponderou, recostando no sofá e soltou um suspiro, virando para
me olhar com aquele sorriso repleto de atrevimento e doçura.
— Não. Aproveitei bastante na universidade… estive em todas as
festas que aconteceram dentro e fora do campus, passei alguns verões na
costa do mediterrâneo e… — deu de ombros —, acho que agora só estou
em outra vibe, sabe?
Eu compreendia perfeitamente.
Meus amigos se enganavam ao pensar que eu sentia falta da época
em que não precisava me preocupar se Matheus e Igor estavam na cama.
Era o contrário, aproveitei tanto quando era mais novo, que às vezes me
pegava pensando em como ainda estava vivo. Eu aproveitei muito o tempo
livre, e agora estava em outra fase da vida.
Era normal.
— Não que eu não tope sair de vez em quando, mas, hoje prefiro
programas mais tranquilos — explicou, repousando a cabeça no estofado e
mantendo os olhos em mim. — E você?
— O que tem eu?
— Passei as últimas duas horas contando toda a minha experiência
universitária… como foi a sua?
Sorri, ignorando a parte do meu cérebro que relembrou que eu
precisava sair antes que ficasse à vontade demais.
— Acho que foi tranquila.
Nathalia revirou os olhos, dispensando a falta de detalhes com um
gesto de mão.
— Conte outra! Leandro me disse que vocês dividiam uma casa, e
que quase foram presos por perturbação da ordem.
Uma risada escapou da minha garganta e balancei a cabeça,
dispensando aquela informação.
— Acredite em mim, nos comportávamos durante o período letivo. O
problema era quando ficávamos livres das maratonas de provas.
— Festas de fraternidade?
— Algumas. Mas as maiores irresponsabilidades foram durante as
viagens de recesso.
Ela arqueou a sobrancelha, cética.
— Qual foi a coisa mais insana que fizeram?
Poderia compartilhar com ela uma lista relativamente extensa e muito
comprometedora, alguns dos meus amigos perdiam o senso do limite e o
caos se instalava sempre que chegávamos na cidade de destino.
— Talvez, Tailândia.
Os olhos de Nathalia brilharam em puro êxtase, como se eu tivesse
acabado de oferecer doce para uma criança.
— A famosa viagem da Tailândia!
Senti uma ruga surgir na testa e meus ombros enrijecerem com uma
breve ideia do que meus amigos poderiam ter contado para ela.
— O que Leandro te disse?
— Não muito, mas a minha imaginação preencheu boa parte das
lacunas — disse, esticando a mão para pegar o copo de suco de laranja. —
Catorze mulheres e oito homens em uma casa isolada, durante as férias de
verão no Sudeste Asiático? — Estalou a língua, maliciosa. — Posso ter essa
carinha de anjo, mas eu sei como as coisas funcionam, querido.
Torci os lábios para conter a risada ao ver a expressão teatral que
tomou seu rosto.
— Certo… — ponderei, espreitando os olhos nela. — Seu melhor
amigo te contou sobre como o encontramos dois dias depois dormindo na
frente de um botequim numa vila, na cidade vizinha?
— Não!
— Pois é. Por causa dele, acabamos ficando na cidade e quase fomos
presos… bem, tecnicamente fomos. Foi quando o Marc interveio e, após
pagarmos pela nossa liberdade, a polícia tailandesa acabou nos liberando
sem registrar a queixa — contei, relembrando o sufoco que passamos
naquela noite na prisão.
Nathalia gargalhou, balançando a cabeça.
— Juro que não consigo imaginar o que vocês fizeram para serem
presos. — Girou o corpo em minha direção, interessada. — Vamos lá, me
conte tudo e não esconda nada.
— Eu não fiz nada.
— Eu acredito em você. Mas tenho certeza de que estava perto de
quem fez.
Sorri, concordando.
— Basicamente: bebemos demais, fizemos bagunça em uma casa
noturna, chamaram a polícia e Rodrigo achou que seria uma boa ideia
oferecer um cigarro de maconha para um policial.
— Maconha?
— Sim, e a cannabis é ilegal em todo o país.
Nathalia pareceu levar alguns segundos para processar, e quando
terminou de ligar todos os pontos, sua cabeça pendeu para trás e ela caiu na
risada.
— Está aí, uma coisa que eu não imaginaria nem em um milhão de
tentativas… Renato Trevisan, Leandro Salazar, Rodrigo Werneck e…
— Pedro.
Ela se engasgou.
— Definitivamente, nem depois do melhor baseado eu seria capaz de
imaginar isso! — sacudiu a cabeça, incrédula.
— Não foi você quem disse que não tínhamos uma diferença de idade
tão grande?
— Não temos. Mas não consigo imaginar vocês chapados de
maconha, está aí algo que eu pagaria para ver — disse, puxando uma
almofada para o colo.
Meus olhos correram por seu rosto, as bochechas vermelhas graças as
risadas, os lábios içados em um sorriso cativante e as bochechas com
covinhas profundas, deixando-a linda.
Ela era extraordinária.
— Mas e você? — indaguei, curioso. — Festas de fraternidade,
morou em Manhattan e na Colômbia…
Nathalia riu baixinho.
— Ei, isso é estereótipo — resmungou, fingindo ofensa.
— Qual parte?
— Da Colômbia, óbvio. — Revirou os olhos. — A fazenda dos meus
avós fica afastada da cidade, então, as únicas pessoas que eu convivia eram
os funcionários e os meus avós.
— Mas em Manhattan?
Suas bochechas coraram e ela acenou.
— Algumas vezes. Sou muito curiosa — esclareceu o que eu já sabia,
não era um fato inusitado. — Quando estava estressada com as provas,
Antônio e eu relaxávamos um pouco. Era bom, me ajudava a pensar melhor
e também ficava mais concentrada.
— Antônio?
— Sturzenecker — disse, e o sobrenome não foi difícil de reconhecer.
Era o COO do escritório de Nova Iorque da Alpha Capital. — Meu melhor
amigo.
Aquiesci.
— E quase foi presa, ou só eu me fodi por causa dos meus amigos?
Em um primeiro momento, tive certeza de que a resposta seria
negativa. Mas quando as bochechas dela ganharam um tom rosado violento,
soube que Nathalia me surpreenderia.
— Sim, mas não pela maconha.
— Perturbação da ordem?
Ela fechou os olhos e escondeu o rosto nas mãos, afundando o corpo
no estofado em que estava encostada.
Porra, ela conseguiu me deixar curioso.
— Esquece isso, não vou te contar o motivo.
— Ah, claro que vai.
Ela grunhiu, envergonhada.
— É constrangedor!
Merda, tinha conotação sexual.
Minha intuição gritou a resposta antes que pudesse solicitar uma
conclusão dela.
— Nunca imaginei que minha esposa tinha sido presa por atentado ao
pudor… — murmurei, fingindo assombro.
Nathalia arregalou os olhos, abriu e fechou a boca e soltou um
gritinho agoniado, antes de afundar a almofada no rosto e se esconder de
mim. Aquilo me arrancou uma risada genuína, que veio acompanhada do
desconforto irracional por ela ter estado com outro homem. O gosto amargo
desse pensamento não foi agradável.
— Não foi bem assim… o policial que exagerou demais.
Arqueei a sobrancelha, desconfiado.
— É o que todo culpado diz.
— A diferença é que eu sou a vítima aqui! — disse, em sua defesa.
Olhei para ela, não acreditando em seu argumento. — Era o último ano do
Antônio na Columbia, ele se formaria no fim do semestre e a fraternidade
decidiu dar uma festa em comemoração. Os garotos venceram o
campeonato naquela temporada e… enfim, dá para imaginar o caos que
aquele lugar virou, né?
Anuí, sem precisar de muito esforço para pensar nas coisas que
aconteciam depois dos jogos universitários, apesar de eu não ter tido o
menor interesse nos esportes durante a estadia na universidade, tive amigos
que faziam parte das equipes e consequentemente, estive presente nas
comemorações.
— Enfim, quis ir para casa… e o cara com quem eu estava saindo
quis dar uma volta no Central Park, já que Antônio e eu morávamos do
outro, e pensei que nada de pior poderia acontecer…
— Estou ficando preocupado com o rumo dessa história.
Ela riu, dispensando meu receio com um gesto delicado.
— Nada que precise se preocupar — tranquilizou —, ele disse que
queria se sentar e conversar um pouco e… alerta de spoiler: não teve
nenhuma conversa. Ele me beijou, e um guarda apareceu e nos levou para a
delegacia por “atentado ao pudor”.
Cruzei os braços em frente ao peito, desconfiado.
— Por causa de um beijo?
— Sim, como eu disse… sou a vítima nessa história — resmungou,
batendo os cílios de um jeito quase angelical.
— Essa conta não fecha.
Ela sorriu, exageradamente inocente.
— Estávamos devidamente vestidos, se essa é a sua dúvida. —
Esticou a mão para buscar outro morango e o aproximou dos lábios grossos,
mas antes de mordê-lo trouxe o olhar na minha direção. — E as nossas
mãos não estavam em lugares inapropriados.
— Então, o policial te prendeu por um beijo?
— Sim, um absurdo, né?
Espreitei os olhos nela.
— Onde você estava sentada?
— Não era no banco… — murmurou, tão baixo que só a escutei
porque estava muito concentrado nela.
Nathalia arregalou os olhos, se dando conta de que falou demais e me
olhou horrorizada, checando se escutei.
Minha atenção estava cravada em seu rosto e quando percebeu, ela
deslizou o corpo no tapete igual uma criança quando era flagrada
aprontando.
— Nunca imaginaria.
— Você participou de uma orgia! — acusou.
— E você fez sexo no meio de uma praça.
Suas bochechas ficaram dolorosamente vermelhas. Ela escondeu o
rosto nas mãos, não antes de soltar uma gargalhada deliciosa.
— Que desastre de conversa — ciciou, balançando a cabeça,
incrédula. — Preciso tomar cuidado com você.
— Comigo?
— Claro, eu costumo tagarelar assim quando estou bêbada. E
adivinhe só? Eu não bebi nadinha e, ainda assim, te contei algo
comprometedor.
Sorri, bebendo o restante do uísque no meu copo.
— Isso é um bom sinal.
Nathalia voltou a se sentar ereta, apoiando um braço no sofá branco e
me fitou, um pouco mais séria.
— É?
— Claro, até a semana passada, você me odiava — provoquei.
Uma careta adorável cobriu seu rosto lindo.
— Não odiava não.
— Segundo a Bianca, foi por isso que você pediu demissão —
brinquei, vendo-a revirar os olhos.
O constrangimento que estava sentindo se esvaiu e deu lugar ao
retorno do seu sorriso divertido.
— Certo, e quem garante que ainda não te odeio? — provocou,
prendendo o lábio inferior entre os dentes e bateu os cílios, capturando
totalmente minha atenção.
— Seria uma tragédia para o nosso casamento — lamentei.
— Ele não vai durar tanto, né? — resmungou, desviando o olhar para
um ponto sobre meus ombros. — Nunca pensei que me divorciaria aos
vinte e três anos… podemos continuar casados até meu aniversário?
Prometo que não vou tentar arrancar seu dinheiro até lá.
Ela sorriu.
Linda pra caralho.
Dei risada.
E me dei conta de que estava completamente fascinado por aquela
garota.
— Por quanto tempo você quiser — falei, sincero.
Meus olhos recaíram nos lábios grossos, umedecidos pela fruta que
havia mordido e senti a boca formigar em estímulo, ansiando pela
descoberta de qual seria o seu gosto. Uma mecha mais curta do seu cabelo
escorregou do coque que havia o prendido e, por instinto, minha mão a
alcançou e empurrou para afastá-la do seu rosto.
Nathalia acompanhou o movimento impensado em silêncio, um
arquejo escapou da sua garganta e quando me olhou sob os cílios grossos,
soube que eu tinha ultrapassado um limite rígido.
Não dela, mas meu.
Pude ouvir sua respiração falhar, o seu cheiro doce estava mais
perceptível que nunca e tudo o que meu cérebro conseguiu registrar antes
de se perder nela, foi em como suas pupilas expandiram ao olhar nos meus
olhos.
Engoli em seco, sua pele macia acariciou meus dedos sutilmente, eu
mal estava tocando nela e conseguia sentir todo meu corpo queimar em
resposta. Ansiando, imaginando e necessitando senti-la sob mim. Como
seria o som do seu gemido?
— É uma oferta arriscada — ela disse em um sussurro, sem se
afastar.
E… droga, eu estava mais do que disposto a pagar o preço que fosse
por aquilo. Algo nela me dizia que valeria a pena, não importando o que
fosse perdido no meio do caminho.
Nathalia soltou um sorrisinho nervoso e piscou, saindo do transe. Ela
se afastou, colocando uma outra mecha atrás da orelha e endireitou a
postura. Sua mão capturou o copo e ela bebeu um longo gole, perturbada.
Não tanto quanto eu, mas o suficiente para me lembrar que era a hora
de ir embora.
Respirei fundo, sentindo um vinco surgir na minha testa e balancei a
cabeça, dispersando o pensamento indesejado que invadiu minha mente.
— Bom… você está se sentindo melhor? — perguntei, optando por
resolver o outro assunto pendente amanhã no escritório.
Não tinha certeza se minha oferta pela sua permanência seria uma
opção viável naquele exato momento, uma vez que estávamos muito longe
de tocar no assunto sobre trabalho.
Nathalia ergueu o rosto, ligeiramente confusa. Ela tateou a mesa de
centro, buscando seu celular e se deparou com o horário.
— Ah… — Nathalia abandonou o aparelho e se levantou, acenando
em concordância. — Certo, certo — balbuciou, indecisa do que fazer a
seguir e tornou a me olhar, como se buscasse por uma instrução.
Isso foi estranhamente doce e interessante de se apreciar.
Aquele olhar pretencioso que sustentava como uma máscara na maior
parte do tempo não estava presente, e vendo-a tão tranquila e confortável,
eu poderia afirmar sem a menor sombra de dúvidas de que ela conseguiu
ficar mais encantadora do que nunca.
— Hum… você já vai?
Ela queria que eu ficasse? Porque se pedisse, não tinha certeza se
seria capaz de recusar.
— Acho melhor deixar você descansar.
Nathalia assentiu, entrelaçando as mãos em frente ao corpo e me deu
um meio sorriso.
— Tudo bem, se importa em esperar enquanto busco um casaco? —
questionou, sem me dar chance de responder, antes de correr para a escada
que ficava próxima à parede de vidro que dividia a sala de estar da varanda.
Desviei a atenção para o painel repleto de polaroids presas com
grampos delicados e caminhei em passos lentos para perto, correndo os
olhos por cada imagem.
Nathalia estava presente na maioria das fotos, cada uma delas datada
e parecendo contar uma história única de sua vida. A mais antiga, de dois
anos atrás, mostrava Nathalia sendo abraçada por Bianca e sentada em cima
de uma caixa de papelão. Provavelmente, era de quando ela se mudou para
São Paulo. Na foto ao lado, um homem de cabelos escuros segurava uma
garrafa de vinho, e Nathalia estava montada em suas costas. Pelo ângulo da
foto, os dois estavam na varanda do apartamento.
Existia mais de uma centena de memórias registradas ali, toda a
parede era dedicada àquelas lembranças. Observei a última polaroid, vendo
Nathalia sorrir abertamente para o fotógrafo. Atrás dela, dois idosos
também sorriam enquanto a abraçavam. No colo de Nathalia, havia um…
coelho? O cenário de fundo era desconhecido, parecia ter sido capturado em
outro lugar, e pela data, era véspera de Ano Novo.
— Na fazenda dos meus avós — falou, surgindo ao meu lado e me
encontrando vendo seu mural de memórias. — Ellen e Elias — apontou
para os dois com um sorriso amoroso estampado nos lábios —, e esse é o
Pulga.
Uma risadinha escapou quando me apresentou para o coelho de
orelhas longas e caídas, ele parecia uma bola de pelo rechonchuda no colo
dela e tinha um semblante melancólico.
— Seu coelho?
Ela virou para mim e sorriu.
— Meu avô é… digamos que criativo quando se trata de presentes. —
Deu de ombros. — Quando precisei me afastar do escritório por algumas
semanas, ele achou que um bichinho me ajudaria a ficar melhor —
murmurou —, algumas pessoas ganham cachorros ou gatos, Elias me deu
um coelho.
— Por algum motivo específico?
Nathalia estalou a língua.
— Quando eu tinha uns quatro ou cinco anos, pedi para o meu pai me
dar um coelho e a resposta foi um grande… não. — Fez beicinho, fingida.
— Meu avô quis realizar meu sonho de infância, mas não fazia sentido o
trazer para viver em um apartamento.
— Então, ele fica na fazenda.
Ela anuiu, soltando um suspiro baixo e seus olhos percorreram as
fotos, divertindo-se com as lembranças que guardava.
— Esse aqui foi o meu primeiro e único cachorro — contou,
indicando uma foto de pouco mais de um ano, onde ela estava abraçada
com um Golden Retriever que parecia idoso e debilitado. — O nome dele
era Brisa, faleceu no ano retrasado com dezesseis anos. Depois disso, acho
que peguei trauma de ter outro bichinho e meu avô achou que um coelho
seria melhor do que outro cão.
— Sinto muito.
Ela dispensou com um gesto, soltando um muxoxo melancólico.
— Acontece. Ele viveu bastante. — Seu olhar retornou para mim. —
Seus filhos nunca te pediram um cachorrinho?
— Todo dia — confessei, guardando as mãos nos bolsos para aplacar
o anseio recorrente de tocá-la. — Mas concordamos que por enquanto é
melhor esperar. Se depender do Matheus, teremos um zoológico em casa.
Nathalia riu, concordando.
— É melhor mesmo, quando eu tinha a idade dele era indecisa. —
Desviou o olhar para o celular e abriu a galeria de fotos, buscando por um
álbum específico. — Esse é o Andrômeda. — Mostrou a foto de um cavalo
de pelugem tão escura e bem cuidada que cintilava contra a luz do sol. —
Meu pai me deu quando eu tinha seis e comecei a praticar hipismo. Essa
aqui é a Órion — disse, mostrando a imagem de um outro cavalo, de
pelugem marrom —, ganhei uns meses depois porque insisti que o
Andrômeda estava triste por ficar sozinho.
Ela se virou para mim, travessa.
— Hoje, meus avós são responsáveis por oito cavalos, quatro
tartarugas, nove galinhas, duas vacas e… eu também sou madrinha de uma
girafa e de uma onça que vivem em um santuário na África do Sul. —
Estalou a língua, rindo baixinho e foi mostrando as fotos dos animais
conforme me contava o nome de cada um.
Os cavalos receberam nomes de constelações e a família de
tartarugas, foram nomeadas como as tartarugas-ninjas — segundo Nathalia,
a ideia inicial contava apenas com uma, mas quando o filhote se sentiu
sozinho, ela insistiu que precisava de irmãos fazendo companhia para
Donatello; e assim surgiram Leonardo, Michelangelo e Raphael.
— Seu pai não conseguia te dizer não? — perguntei, assombrado.
— Ninguém consegue dizer não para mim — disse, muito segura
daquilo, parecia que ela realmente acreditava que não existia a chance de
não conseguir algo. — No fim, sempre consigo o que quero.
— Você é perigosa.
Ela prendeu a pontinha da língua nos dentes e deu de ombros.
Nathalia era, de fato, uma mulher perigosa. E ela estava terrivelmente
certa na afirmação sobre sempre conseguir o que queria. Não tinha a menor
dúvida de que, se me pedisse algo, eu seria incapaz de recusar.
— Prefiro acreditar que sou obstinada, mas se quiser me chamar de
mimada, também não é um problema.
— Costumam te chamar assim com frequência?
Ela anuiu.
— Quase sempre vem de pessoas que mal convivem comigo, e que
me chamam assim só porque não aceito migalhas — falou, recostando o
corpo no pilar atrás dela. — Não vejo isso como um defeito, mas uma
qualidade. Se meus pais nunca mediram esforços para que eu tivesse o que
queria, por que deveria me contentar com o mínimo de outras pessoas?
— Seria ótimo se mais pessoas pensassem assim.
— Eu também acho… — afastou-se da coluna e sorriu, audaciosa. —
O mundo seria um lugar muito melhor com mais pessoas parecidas comigo.
— Sua autoestima é admirável, Sra. Trevisan.
O seu sorriso cresceu, fazendo com que seus olhos se fechassem e seu
rosto se iluminasse, em puro arrebatamento.
Merda, se toda vez que a chamasse daquele jeito, Nathalia me olhasse
assim, me veria compelido a levar aquela mentira adiante e, talvez,
acabasse se tornando uma verdade.
— Faço o que posso para me manter incrível, falso esposo…, mas
confesso que, de vez em quando, é bem difícil ser eu.
Uma risada fraca escapou da minha garganta e minha mão alcançou
seu rosto, segurando levemente o queixo delicado e mantendo seu olhar
preso ao meu.
— Você é uma pequena encantadora de homens, Sra. Trevisan —
confessei, hipnotizado pelo seu sorriso. — Se eu não tomar cuidado, perco a
noção do tempo e não vou embora.
Para a minha desgraça, Nathalia prendeu o lábio inferior entre os
dentes e inspirou lentamente, as pupilas se expandiram e ela não vacilou
nem por um instante, invadindo minha mente sem precisar de qualquer
esforço.
— Não me importaria se você ficasse.
Porra.
— Nathalia…
Ela sorriu, meneando a cabeça e libertou seu rosto do meu aperto,
dando um passo para o lado e saindo de perto, antes que minha
racionalidade fosse para a casa do caralho.
Nathalia me deu as costas, caminhando para fora do apartamento e a
segui, mantendo alguns passos de distância entre nós dois. Precisava
daquilo para colocar os pensamentos em ordem, ou colocaria tudo em risco
por não pensar direito.
As portas do elevador se abriram e Nathalia indicou que entrássemos,
liberando a descida para o estacionamento e encostando o corpo na parede
de aço, escondendo as próprias mãos no bolso do seu moletom. Ela me
esquadrinhou, compenetrada.
— Obrigada — disse, baixinho. — Pela companhia, sabe?
— Eu que agradeço.
Aquela havia sido, de longe, uma das melhores noites que tive em
muito tempo.
Adorava passar as minhas noites com os meus filhos, eles eram a
melhor parte de mim e o motivo para que eu fosse o homem que me tornei,
e cada minuto com os dois era incomparável. As noites que compartilhava
com meus amigos também eram especiais; com meus pais, eram
maravilhosas. Com outras mulheres, eram noites casuais e sem qualquer
significado.
Mas aquela noite…
Nunca imaginei que ficar sentado no meio da sala de estar de uma
mulher, escutando-a compartilhar comigo cada pensamento que invadia sua
mente; enquanto desfrutava de um bom uísque e a assistia se esbaldando
com o seu doce preferido… fosse se tornar meu programa favorito.
Definitivamente, eu poderia passar outras noites na sua sala, ouvindo cada
palavra que saía dos seus lábios.
Nathalia inspirou profundamente, sem desviar os olhos por um
mísero segundo, e não tive dúvidas de que ela continuaria submetendo
minha mente ao seu encanto, mesmo após nos despedirmos.
Um lado meu, quase primitivo, e que há muito tempo estava
adormecido, parecia extremamente estimulado por algo em Nathalia.
Talvez fossem os olhos grandes cravados em mim, os lábios cheios e
rosados entreabertos; prontos para serem possuídos pelos meus. Quem sabe
fosse o cheiro do seu perfume impregnado na minha roupa, ou a sensação
dela se arrepiando com um simples toque em sua bochecha…
Porra.
Ela era realmente uma diaba.
Se eu não tivesse identificado o receio e a insegurança duelando com
o desejo em suas íris, certamente estaria com o seu corpo sob o meu há
muito tempo.
— Boa noite, Renato — disse, dando um passo em minha direção
quando as portas se abriram no estacionamento.
Ela estava a poucos centímetros, bastava um passo e seu corpo estaria
pressionado no meu e a teria sob meu domínio.
Um resquício de coragem pareceu vencer a disputa que acontecia em
sua mente, e isso a deu coragem para quebrar a distância entre nós dois;
suas mãos espalmaram meu peito e ela ficou na ponta dos pés, por instinto,
inclinei o corpo em sua direção.
Seus lábios doces tocaram minha bochecha e minhas mãos
encontraram seu próprio caminho — uma esmagou a cintura delgada, e a
outra mergulhou em seu cabelo, apertando a sua nuca.
Seu cheiro me nocauteou e minha mente fez questão de me deixar
ciente de que bastava mover apenas um pouco o rosto, para que eu pudesse
saciar a minha fome dela.
Nathalia, no entanto, agiu mais rápido e se afastou, dando um passo
para trás e sorrindo levemente, em despedida.
— Boa noite, anjo.
Ou diaba, aquilo parecia combinar com ela também.
— Você não me contou o que aconteceu aqui naquele dia — disse
Bianca, jogando-se na minha cama enquanto eu terminava de retocar meu
batom.
Desviei a atenção para ela, mirando-a pelo reflexo do espelho e
revirei os olhos, ignorando seu olhar cheio de malícia.
— Não começa…
— Com o quê? Com a parte em que você fugiu de mim a semana
inteira como o diabo foge da cruz… só para não falarmos do que rolou
entre você e o Renato no sábado?
Dei risada, incrédula com o quanto ela começou a ficar curiosa sobre
a minha vida afetiva nos últimos dias. Sua “amizade” com Leandro não
andava fazendo bem para ela, porque agora ele estava transformando minha
melhor amiga em uma fofoqueira como ele.
— Por que acha que rolou algo?
— Ué! — Estalou a língua, como se fosse besteira da minha parte
questionar aquilo. — A sensação que eu tive quando olhei para vocês, é que
faltava isso aqui… — uniu o indicador com o polegar, sem deixar espaço
entre eles —, para começarem a tirar as roupas e foder na frente de todo
mundo.
Senti as bochechas esquentarem e me afastei do espelho, dando uma
última olhada no reflexo e aprovando o resultado. Tinha ido ao salão na
noite passada e Janine retocou minhas mechas e cortou as pontinhas —
quase nada, sequer dava para notar, segundo a Bianca —, mas foi o
suficiente para me fazer sentir uma mulher revigorada.
Eu estava estranhamente entusiasmada para ir ao aniversário do Igor,
seria uma distração bem-vinda, após uma semana que conseguiu se
consolidar como uma das piores da minha vida.
Mais de uma vez, estive a ponto de sair dos trilhos com os operadores
e na maioria das vezes, não por algo que fizeram — mas por puro estresse
da minha parte, o que me fez terminar a semana me sentindo um lixo. Além
disso, passei boa parte do tempo alternando entre reuniões externas e
internas, com gestoras e corretoras.
Provavelmente, passei mais tempo na Faria Lima naquela semana, do
que em qualquer outra, e apenas isso deixava tudo péssimo. Lidar com os
operadores que trabalhavam conosco era uma coisa, os que vieram com
Renato e Leandro na fusão se adaptaram ao estilo da nossa equipe ou pelo
menos fingiam quando eu estava por perto…, mas os que viviam no
epicentro do capitalismo paulistano e se consideravam os suprassumos do
mercado de capitais? Dios mío, eu preferiria arrancar minhas próprias
orelhas a precisar escutá-los falando sobre qualquer coisa.
Não existia nada mais detestável e intragável no mundo do que
traders, e quando conviviam com os colegas que eram tão narcisistas
quanto eles, qualquer resquício de existência de bons neurônios nos seus
cérebros se esvaía completamente.
Eles se colocavam em uma bolha e acreditavam estar acima de tudo e
todos, e um encontro em especial naquela semana me deixou
energeticamente desestabilizada.
— Planeta Terra chamando Nathalia Gama… você ainda está aqui? —
Bianca estalou os dedos em frente ao meu rosto e pisquei. — O que foi?
— Nada. Só estava pensando.
— Conte uma novidade, Barbie Malibu. Sua cabeça não para nunca,
como pode? — Revirou os olhos e se sentou na poltrona, correndo a
atenção por todo o meu corpo e sorriu em aprovação para o que viu. —
Qual o problema, Mia Colucci da Av. Paulista?
Bufei para o apelido e me sentei na cama, sentindo o olhar atento da
minha amiga sobre mim. Bianca nem sequer tentava disfarçar sua
preocupação. Quando não estava reclamando em voz alta sobre como me
considerava uma neurótica viciada em trabalho, ela sacudia meus ombros e
tentava me alimentar à força.
Como se ela fosse o maior exemplo de rotina saudável.
— Como está a Adelaide? — perguntei, interessada.
Já fazia um tempo desde a minha última visita ao hospital, e mesmo
que eu constantemente insistisse para que Bianca me mantivesse atualizada,
eu sabia que ela omitia muitas coisas para evitar minha interferência.
— Está bem, na medida do possível.
— O que os médicos disseram? — insisti, reconhecendo a omissão
em suas palavras e na maneira como desviou o olhar.
Bianca podia acreditar que me enganava, mas estava muito longe
disso. Não era como se eu tivesse um superpoder que me permitia saber
quando as pessoas estavam escondendo coisas, mas eu era ótima em ler
expressões faciais e detectar sinais de mentira. Com os meus amigos, era
ainda mais simples.
— Estão estudando a possibilidade de trocar os medicamentos… —
Deu de ombros, como se não fosse nada e eu sabia que não era bem assim.
Na última vez em que optaram por uma mudança no tratamento, Adelaide
sofreu com os efeitos colaterais. — Também estão cogitando uma mudança
na quimioterapia.
Acenei, sentindo um aperto na garganta ao ver seus olhos se
encherem de lágrimas. Aquele assunto era extremamente delicado para
Bianca, e eu me sentia a pior amiga do mundo por não poder fazer nada
para ajudá-la a lidar com aquele sentimento que a consumia por dentro.
— Entendi. Posso pedir para a minha mãe…
Não tive tempo de prosseguir, ela me interrompeu.
— Não começa. Você já fez demais.
Não era como eu via as coisas.
De que adiantava tanto dinheiro, se eu não conseguia encontrar uma
alternativa para ajudar a minha amiga?
— Mas Bia, a minha mãe conhece um oncologista que…
— Não, Nathalia — disse, ríspida. Seus ombros enrijeceram e acenei,
me calando. — Vocês já fizeram muito.
— Tudo bem — resmunguei, amuada. Aquela era uma batalha que eu
poderia travar outro dia. — Como estão as coisas com Leandro?
Minha pergunta melhorou o seu humor, uma risada sarcástica
escapou de seus lábios e Bianca balançou a cabeça, como se aquilo fosse
uma grande piada para ela.
— Leandro é só um pau amigo, não se preocupe. Nunca vai passar
disso.
— Hã… ok. — Forcei um sorriso, me resguardando ao direito de não
dar uma opinião, ou de comentar sobre o brilho em seus olhos ao escutar o
nome dele. — Vocês estão saindo com outras pessoas?
— Não.
— Então, é um lance exclusivo?
Bianca franziu o cenho, pensativa.
Pelo visto, eles não conversaram sobre os detalhes do que estavam
tendo nos últimos dias, e eu não me surpreendia nenhum pouco. Bianca
nunca foi das mais abertas ao diálogo, e mesmo conhecendo Leandro a
pouco tempo, sabia que ele era o tipo de pessoa que desviava de toda
conversa séria com uma piadinha.
— Tudo o que sei é que isso é apenas sexo e nunca vai passar disso
— falou, simplesmente.
— Certo, certo…
— Você está fugindo do que perguntei — acusou, cerrando os olhos
nos meus. — Renato veio na sua casa e só foi embora no início da
madrugada, segundo o Chico.
— Interrogou o meu porteiro sobre a hora que ele saiu daqui? —
Arregalei os olhos, incrédula.
— Claro, você não me contou nada!
A risada que me escapou foi involuntária diante daquele surto de
loucura dela. O que Leandro estava fazendo com a minha amiga que vivia
batendo na tecla de que não perdia seu tempo cuidando da vida das
pessoas?
— Porque não aconteceu nada.
— Sei, sei… — Revirou os olhos, fingindo tédio. — Ficaram
sozinhos por quase seis horas… tricotando, né?
Apertei os lábios, contendo outra risada e balancei a cabeça, sentindo
os ombros relaxarem juntamente com os dela. Bianca pareceu mais
confortável com o assunto girando em torno do meu encontro com Renato,
e como eu a preferia falando ao invés de fechada em sua concha, não me
importei de contar exatamente o que aconteceu no início da semana.
— Para a tristeza da sua fanfic, não aconteceu nada. — Sorri,
capturando meu celular e checando a mensagem mais recente.
Era Renato, mandando o endereço do lugar em que aconteceria a
comemoração.
Renato:
Quer uma carona?
Nathalia:
não precisa, obrigada!
nos vemos lá *emoji de beijo*
Voltei meus olhos para Bianca, e a encontrei me observando como se
eu fosse uma peça rara em exposição. Um sorrisinho cínico brincou em seus
lábios.
— Era ele?
— Ele?
— Renato.
— Como…?
Ela riu, dando de ombros.
— Você ficou sorrindo igual uma idiota para o celular, só podia ser
ele… até porque não sei de nenhum outro cara que você esteja interessada
— argumentou, muito confiante de que estava certa.
— Não estou interessada em Renato — menti, miseravelmente.
Nem eu acreditei no que falei.
— Sei, sei… — murmurou, digitando em seu celular e, em seguida,
retornou para mim como uma criança que havia acabado de aprontar e seria
flagrada antes do esperado. — Vou fingir que acredito, e enfim, se não
aconteceu nada… tenho certeza de que foi por sua culpa.
— Hã… desculpa?
Bianca saiu da poltrona, parecendo animada com o que estava prestes
a contar e se jogou ao meu lado, empurrando-me e quase me arremessando
no chão no processo.
— Você não é sonsa, Nathalia… não se faça — ordenou, firme. — O
homem só falta abanar o rabo toda vez que você aparece, ou que o seu
nome é citado na conversa. — Estapeou minha testa de leve. — Ontem? Ele
literalmente ficou parado na frente da sala de operações escutando a
conversa dos garotos, só porque estavam falando de você.
Mordi as bochechas para conter o sorrisinho que ameaçou escapar ao
ouvir suas observações.
— Ele é legal.
— E gostoso.
— Isso também.
— Também?
Grunhi, aflita.
Precisei me jogar na cama, afundando as costas no colchão para
extravasar o sentimento agonizante que queimava em minhas veias desde o
início da semana.
Se eu fosse ser honesta, admitiria que ele estava presente desde que
esbarrei com Renato no corredor da RCI e seus olhos intensos e
penetrantes, invadiram minha mente e passaram a perturbar cada
pensamento que cruzava com o ponto em que ele se alojou no meu cérebro.
Não era justo.
Renato era lindo, inteligente, simpático, gentil e mais uma dúzia de
adjetivos que o acompanhavam, mas trabalhava na mesma área que eu. E
ainda que abdicasse da minha regra de não me envolver com pessoas que
trabalhavam no mercado, ele ainda era o meu chefe. E graças à fusão,
continuaria sendo — se eu decidisse ficar na RCI.
Eu não seria a garota estúpida que se interessava pelo chefe, não
mesmo! Eu deixaria esse clichê para os livros que a Bianca gostava de ler.
— Não sou uma mocinha dos seus romances, ok? — falei, cortando
qualquer esperança que estivesse começando a crescer dentro dela. — Não
vou me apaixonar perdidamente por ele.
Ela riu.
— Você acabou de falar como toda mocinha dos livros que leio —
zombou, balançando a cabeça. — Deixa eu te contar o plot twist da história,
gata! Você não só vai, como eu apostei o meu cu na certeza de que isso não
vai demorar muito tempo.
— Apostou com quem?
— Leandro.
Meus lábios se abriram e fecharam, tentando emitir alguma resposta
plausível para aquela informação, mas simplesmente não existia nada que
pudesse dizer que fosse capaz de expressar a minha indignação com aquilo.
— Por que eu insisto em ser amiga de vocês? — lamentei, fingida.
— Você escolheu isso quando me selecionou para o seu PAUP.
— PAUP?
— Programa Adote Um Pobre.
Ah, pronto.
— Você vai começar a abreviar as coisas como o Leandro também?
— Achei inovador.
Encarei o teto excessivamente branco do meu quarto por um tempo.
Eu não me considerava uma pessoa religiosa, mas comecei a me questionar
se vivi alguma vida antes dessa… e se isso aconteceu, seriam os meus
amigos o carma por um crime hediondo que cometi?
— Vamos, Barbie — disse, me chamando pelo apelido ridículo.
Ela realmente se daria bem com Leandro, os dois eram ótimos no
quesito apelidos aleatórios e, talvez, ela devesse ficar no escritório depois
que eu saísse…
— Levanta! Você precisa ir para o aniversário do seu enteado…
— Bianca!
Ela gargalhou diante do grito que ecoou no cômodo e atravessou a
porta correndo, fugindo do travesseiro que arremessei na sua direção.
Meus olhos esquadrinharam a fachada da enorme casa, bem no meio
do Jardim Europa, que ocupava toda a esquina.
Na calçada paralela, existia uma paróquia e acompanhei quando uma
mulher usando um vestido de noiva saiu do carro, com um sorriso radiante
estampado nos lábios. Enquanto esperávamos o semáforo abrir, Bianca e eu
observamos a mulher caminhar ao lado de seu pai em direção à entrada da
igreja. Um sorriso escapou dos meus lábios ao ouvir a marcha nupcial
começar a tocar.
— Que fofo, o pai dela já está chorando antes mesmo de entrarem —
comentou Bianca. A assessora da noiva entregou um lenço para que o
homem mais velho enxugasse suas lágrimas. — Parece o seu pai, uma
versão pocket…, mas ele seria assim te levando para o altar.
Gargalhei, incrédula com a associação que ela fez.
— Apesar de que, do jeito que Miguel é… não tenho certeza se
Renatinho sobreviveria até o casamento — prosseguiu, alimentando a
história que as vozes da sua cabeça estavam criando.
— Bianca! — repreendi pela milésima vez, o que arrancou outra
risada dela. — Para com isso, ok? — pedi, sentindo-me um pouco nervosa.
— Parar de planejar o seu casamento, ou de dizer que seu pai vai te
deixar viúva antes da cerimônia só porque o Renato ousou achar que era
digno da menininha dele? — implicou, e eu quis esganar ela.
— Com os dois.
— Ok, ok… quer fingir que a gente não sabe como a história acaba?
Faremos desse jeito… todo mundo adora uma mocinha que paga com a
língua.
Sua ironia me arrancou uma risada sombria.
Não me considerava uma pessoa rancorosa, mas acreditava na teoria
de pagar tudo na mesma moeda. E eu sabia que, em algum momento,
Bianca estaria na minha posição e seria a minha vez de ficar fazendo
piadinha da sua desgraça.
— Por que não admite que está interessada nele?
— Meu Deus, você engoliu uma vitrola hoje?
— Não, só quero saber porque você está agindo diferente do que
estou acostumada — rebateu, espreitando os olhos em mim. — Quando está
interessada em um cara, mesmo que um tiquinho de nada, você fala sobre
isso abertamente, para qualquer um que quiser escutar. Por que com o
Renato é diferente?
Respirei fundo, apertando os dedos no volante e odiando que o
semáforo estivesse demorando tanto para abrir.
— Porque não é tão simples.
— Não? Vocês até se casaram!
— Leve isso como uma brincadeira — resmunguei, a olhando de
soslaio. — Sempre fiz isso com o Antônio.
— Aham, mas você não olha para o Stuz como se ele fosse um
sorvete no meio do deserto — retrucou, infantilmente. — Seus olhos
chegam a brilhar quando vê o Renatinho.
Grunhi, nervosa.
— Para com isso, Bianca.
— Tá certo… agora preciso mentir na nossa amizade?
— Jesus, você não tem mais o que fazer não? — perguntei, me
virando para ela, consternada. — Pensei que Leandro estivesse te mantendo
ocupada.
Bianca fez uma careta, incomodada com o rumo do assunto.
Ela ergueu as duas mãos, rendendo-se e declarando a derrota. O
semáforo abriu e aproveitei para buscar uma vaga, dando sorte de encontrar
uma naquela rua. Estacionei o carro na lateral da casa, sem me importar
com a pequena distância até a entrada — porque a cada cem metros, existia
uma guarita com segurança observando a movimentação nas ruas.
O Jardim Europa era um bairro residencial muito parecido com um
condomínio privado, a diferença era que ficava no meio da cidade e as
mansões imponentes dividiam a localização privilegiada com algumas lojas
de luxo, como a concessionária da Haddock Motors que estava no início da
rua em que os pais de Renato moravam.
— Leandro vem encontrar com a gente — avisou Bianca, soltando-se
do cinto e acenei, vendo o dito cujo sair de dentro da casa e olhar em volta,
buscando por nós duas.
Em minutos, estávamos dentro da propriedade que havia sido
inteiramente decorada para a festa. Logo na entrada do jardim, havia
pêndulos que lembravam as velas que flutuavam durante os jantares de
Hogwarts no Salão Principal. As árvores foram decoradas com fios
luminosos, deixando um brilho mágico e misterioso por entre os galhos e na
lateral da casa, foi instalado um arco de musgo que abria passagem para os
fundos, onde estava acontecendo a festa.
— Pensei que Renato tivesse dito que seria algo simples. — Bianca
olhou em volta, assombrada. — Na minha família, quando dizemos isso é
porque só vai ter um bolo comprado de última hora na padaria.
Na frente da passagem, havia um homem alto, forte e cheio de
enchimento na roupa, com barba e cabelos longos. Se não conhecesse os
filmes de cor e salteado, daria os parabéns ao maquiador dele, pois
lembrava demais o personagem Hagrid.
Leandro riu, sua mão tocou gentilmente as costas da loira e ele a
conduziu pelo corredor, sem se afastar, e aquilo despertou minha
curiosidade.
— Isso é o que Amália Monteiro considera simples — falou,
divertido. Leandro me olhou por cima dos ombros e sorriu. — Ela está
ansiosa para te conhecer, diabinha.
Quê?
— Por quê?
Ele deu de ombros, inocente.
Pensei em dar meia volta e reavaliar tudo o que fiz na última semana,
para saber o que havia feito para que a mãe de Renato quisesse me
conhecer. Contudo, não tive chance de completar o raciocínio, antes que
pudesse me preparar, uma criaturinha loira — com menos de um metro de
altura, bochechas gordinhas e um sorriso fácil — correu em minha direção.
Meu coração inflou dolorosamente no peito ao vê-lo usando uma
versão para o seu tamanho do uniforme da sonserina. Sequer precisei pensar
antes de agachar e abrir os braços, sendo envolvida por um abraço tão
apertado, carinhoso e sincero, que me arrancou um sorriso involuntário.
O cheirinho infantil de Matheus era gostoso e ele era tão doce e
meigo que não pude conter o instinto de apertá-lo contra o meu corpo, me
recusando a romper o contato.
— Naaaath! — cantarolou, eufórico.
Seus bracinhos se apertaram ao meu redor, segurando-o firme, voltei
a ficar de pé — com o pequeno agarrado em mim como se fôssemos apenas
um.
— Como você está, meu bem?
Matheus se afastou — sem me soltar completamente — e usou uma
mão para indicar que eu me aproximasse. Fiz o que ele pediu e meu sorriso
triplicou de tamanho quando o pequeno afagou minha bochecha, colou sua
testa na minha e me deu um beijinho de esquimó.
Eu me derreti inteira, perdendo todo o equilíbrio emocional que ainda
tinha e me peguei refém daquele pacotinho minúsculo.
— Você tá bonita! — elogiou, doce.
— Olhe só quem fala… — fiz cócegas, arrancando uma gargalhada
gostosa.
Matheus jogou o corpo para trás, contorcendo-se em meus braços e
apenas naquele momento, me dei conta de que éramos o alvo da atenção de
algumas pessoas.
Uma, em particular, conquistou o meu foco.
Renato observava a cena próximo ao bar, ao seu lado estavam Pedro
Zimmermann e Marc Menezes — que também me encaravam. Mas meus
olhos só conseguiram se concentrar no pai do garotinho no meu colo.
Não soube dizer se ele estava feliz em me ver, mas era visível que
ficou perturbado com algo que me envolvia. Tímida, esbocei um sorriso
fraco e volvi a olhar para Matheus, que analisava com curiosidade o colar
no meu pescoço. Era um escapulário que minha abuelita me deu de
presente quando tinha a idade do Igor.
Segundo ela, o colar me manteria protegida. E ainda que não fosse
religiosa, gostava de usá-lo com frequência porque sabia que significava
que minha avó estava sempre comigo, ainda que estivesse em outro país.
— Posso? — Matheus pediu, apontando para um dos medalhões.
Eram dois colares finos de ouro, delicados e feitos exclusivamente
para a minha bisavó; que passou para a Ellen e, em seguida, para mim.
Acenei em resposta e Matheus sorriu, esticando os dedinhos para capturar a
peça com o maior cuidado do mundo e aproximá-la dos seus olhos.
Renato, que parecia assombrado, deu alguns passos em nossa direção
e o choque foi substituído por aquele semblante imperturbável de sempre.
Ele sorriu ao quebrar a distância entre nós e se voltou para a criança.
— Filho, por que não volta a brincar? — perguntou, atraindo a
atenção do pequeno. Matheus olhou do pai para mim, levou dois dedinhos
para o queixo e fingiu pensar.
Para o meu completo pânico, o pequeno indicou com a mão para que
o pai se aproximasse e Renato, assim como eu, hipnotizado pelo garotinho,
não calculou muito bem aquele movimento. O rosto de Renato ficou a
poucos centímetros do meu, sua mão alcançou minhas costas quando me
desequilibrei com o susto e os dedos acariciaram a minha pele, me
tranquilizando.
Certo, certo… então, ele estava ciente da aproximação. Apenas eu me
senti tão afetada?
Engoli em seco, assistindo o pequeno segurar o rosto do pai entre
suas mãos e sussurrar algo em seu ouvido. Apreciei com certo fascínio seu
perfil, tão perto do meu campo de visão que pude confirmar de perto que
ele era perfeito.
Droga, quem afirmou que perfeição não existia e que era uma mera
criação do mundo capitalista, nunca esbarrou com esse homem.
Tinha certeza de que mudariam de ideia.
Renato e Matheus viraram o rosto na minha direção, me golpeando
em dose dupla com seus sorrisos.
Merda, merda, merda.
— No chão, Nath — pediu, balançando os pés e pisquei, fugindo do
olhar de Renato e atendendo ao pedido do pequeno.
Matheus piscou e deixou um beijo na pontinha do meu nariz, antes de
me dar as costas e correr para o brinquedo inflável que tinha ali.
Arrebatada pela doçura do danadinho, levei a mão ao peito e
endireitei a postura, ficando de frente para o pai dele.
— Esse garoto é a coisa mais preciosa que já conheci — falei, tocada.
Renato era um bom pai, não precisava conhecê-lo há anos para ter
certeza daquilo, bastava olhar para os seus filhos. Extremamente gentis,
educados e inteligentes. Eram réplicas em miniatura do homem que estava
diante de mim.
— Você está linda — disse, os olhos presos nos meus, emanando
aquela intensidade que transformava meus ossos em gelatina e fazia o chão
vibrar sob os meus pés.
O sorriso que dançou em meus lábios escapou contra a minha
vontade e para disfarçar, mirei meu próprio corpo e passei as mãos pelo
meu vestido, dando de ombros, tímida demais.
Não estava tão arrumada, não havia necessidade, era apenas o
aniversário de uma criança. Por esse motivo, optei por um vestido vermelho
e liso, de alças finas que se amarravam nos meus ombros com laços. Não
era tão curto ou decotado, nada muito refinado… era simples. Nada demais,
e ele parecia ter achado incrível.
— Cortou o cabelo?
— Hã… sim. — Sua observação me pegou desprevenida e quase
procurei Bianca para mostrar que, diferente do que ela alegou, dava para
notar a diferença no corte. — E obrigada pelo elogio.
Foi um movimento automático, mas dei um passo em sua direção e
toquei levemente seu peito, aproximando o rosto do seu e deixando um
beijo em sua bochecha. Sua mão, que agarrava minha cintura, apertou
minha carne e me guiou para perto. Senti sua respiração bater no meu
ombro desnudo e Renato deixou um beijo na minha pele. Foi um gesto tão
natural que só notei porque senti todo meu corpo corresponder.
Afundei as unhas em seu peito, ignorando o arrepio violento que
correu por toda minha coluna e dei um passo para trás, ganhando alguma
distância do seu calor e intensidade.
Seus olhos recaíram nos meus lábios e demorou alguns longos
segundos para se afastarem; quando ele deixou um beijo em minha testa,
pude ver por cima dos seus ombros, Geovana nos observando e isso me
levou a dar outro passo para perto. Aquilo não durou muito, logo uma
mulher loira surgiu no meu campo de visão.
Ela usava um vestido branco de apenas um ombro e que alcançava
seus joelhos, os olhos castanhos vibraram ao me fitar e a mulher sorriu
largamente.
— Sinto muito por isso — cochichou Renato, esmagando minha
cintura em sua mão.
Antes que pudesse questionar o motivo para ter dito aquilo, ele foi
empurrado para longe como se fosse um saco de lixo, e meus ombros foram
capturados pela mulher alegre. Em um piscar de olhos, fui esmagada em
seu abraço apertado enquanto recebia uma centena de elogios que mal pude
acompanhar.
— Mãe… — repreendeu Renato, fazendo com que as coisas ficassem
um pouco mais claras para mim.
Agora tudo faz mais sentido.
— Calado, Renato. Preciso vender para aquela atirada que ela é
minha nora, já que meu filho se casou e eu não fui convidada. — A mãe de
Renato capturou meu rosto carinhosamente e me deu um sorriso. — Você é
a famosa Nathalia!
— Famosa?
— Meus bebês falaram muito sobre você nos últimos dias —
confidenciou e olhei para Renato, que escondeu as mãos nos bolsos e
indicou para onde Leandro, Pedro e Marc estavam.
Ah… bebês? A mãe de Renato esqueceu de notar que eles tinham três
vezes o tamanho dela?
— Espero que tenham dito apenas as coisas boas.
— Duvido que existam coisas ruins. — Sorriu ternamente. —
Embora eu tenha me sentido um pouco ressentida por descobrir através de
outra pessoa que vocês se casaram…
Franzi o cenho, confusa.
— Quem te contou?
— Geovana. — Revirou os olhos. — Aquela mocreia acha que se
forçar simpatia comigo, vai conquistar o meu filho — resmungou, fazendo
uma careta que não durou muito, logo estava sorrindo novamente. — Nem
os meus lindinhos ela conseguiu cativar.
Mordi a parte interna das bochechas para conter a risada. A mulher
era o carisma em pessoa e superaberta, o completo oposto do seu filho, que
era indecifrável. Ela também era muito bonita, o que explicava de onde
vinha a beleza de Renato. Se esbarrasse com ela no clube, nunca acreditaria
que era mãe de um homem de quase trinta anos.
Olhei para Renato pedindo socorro, afinal, a mãe dele realmente
acreditava mesmo que nós tínhamos casado?
Ele sorriu, aproximando-se e a sua mão afagou minhas costas
novamente, seu polegar desenhou círculos em minha pele e seus olhos se
fixaram em sua mãe.
— Nathalia, essa é a minha mãe, Amália Monteiro.
— Prefiro sogra — tossiu Amália, discreta como uma escola de
samba em pleno desfile, me arrancando uma risada genuína. — Mas Lia
também serve — disse, sem tanta empolgação.
Sorri, erguendo o rosto para Renato, que revirou os olhos para ela,
mas também tinha um esboço de sorriso estampado nos lábios.
— É um prazer te conhecer, Lia — falei, voltando para ela e
encontrando sua atenção pulando de um para o outro, extasiada. — Soube
que é escritora.
Amália dispensou aquilo com um gesto repleto de modéstia.
— Uma das minhas mil e uma utilidades. Mas vamos falar de você,
ok? — pediu, esticando a mão para que a pegasse —, me deixe te
apresentar para os outros.
— Mãe…
Ela revirou os olhos.
— Não sou tonta, meu filho, sei que é uma mentira para tirar a
xexelenta do seu pé… — cochichou para que apenas nós a ouvíssemos —,
mas será que eu posso aproveitar que tenho uma nora por algumas horas?
Era oficial, eu amava a mãe de Renato.
Olhei para ele, piscando em resposta para que soubesse que por mim
estava tudo bem e Renato acenou — me deixando acompanhar Amália no
desfile que ela preparou para me apresentar.
Depois de conhecer as mães de Leandro e Pedro, atravessei o jardim
e me aproximei da piscina coberta por um tablado de madeira.
Sentado entre algumas almofadas e conversando com uma garotinha
de cabelos castanhos, encontrei Igor usando o uniforme da sonserina. Os
olhos verdes subiram na minha direção e ele pareceu genuinamente
surpreso com a minha presença, quase como se não esperasse que eu fosse
aparecer.
— Ei, aniversariante! — saudei, me agachando na sua frente com a
caixa do presente que Renato tinha ido buscar no meu carro. — Oi — falei
com a garotinha.
— Sou a Isabelle.
— E eu, a Nathalia.
Isabelle apertou os olhos, me analisando.
— Você é a melhor amiga dele?
Quis sorrir com o tom enciumado que usou na pergunta, aquilo trouxe
uma lembrança de quando eu tinha a sua idade e qualquer garota chegava
perto do Antônio.
— Acho que esse é o seu cargo, não?
Isabelle olhou para ele que ainda me observava como se fosse um
fantasma na sua frente, quando os olhos escuros voltaram para mim, ela
concordou.
— Sim.
Sorri, afagando sua bochecha para que ela se acalmasse. Não julgaria
a pirralha, eu fui implacável com qualquer um que ameaçasse colocar em
risco minha amizade com meu melhor amigo.
Isabelle relaxou, me deu um sorriso educado e murmurou que ia falar
com a avó dela, nos deixando sozinhos.
Volvi para Igor, e o garoto sequer piscava.
— Tudo bem? — perguntei e ele balançou a cabeça, concordando.
Não era como se estivesse desconfiado, como quando nos conhecemos…,
mas ele parecia perturbado, igual o pai dele, quando me viu mais cedo. —
Posso me sentar do seu lado?
Igor assentiu, abrindo espaço e me sentei em cima de uma almofada,
colocando a caixa perto dele.
— Estamos bem?
— Achei que você não viria — confessou, baixinho.
— Por que eu perderia o seu aniversário?
Minha pergunta teve um efeito diferente do que pensei que teria. Seu
rosto foi tomado por melancolia e ele deu de ombros, desviando a atenção
para o embrulho que eu havia trazido.
— Posso abrir?
Ri baixinho.
— Claro que pode, é seu.
Meus dedos acariciaram seu cabelo, acompanhando enquanto o
pequeno tomava o maior cuidado do mundo para abrir a embalagem. Não
tinha certeza se acertei na escolha, mas como sabia que Igor gostava de
Harry Potter, pedi para a assistente do meu pai em Londres providenciar a
compra e o envio de três itens colecionáveis. Renato comentou no início da
semana que Igor gostava de LEGO, e apesar de existir a chance dele já ter
aquilo, estava curiosa para saber se eu tinha acertado.
A primeira caixa continha um jogo com mais de seis mil peças que
recriavam toda a estrutura do Castelo de Hogwarts, a segunda era o
Expresso e a terceira, recriava a cena em que A Toca era atacada pelos
Comensais da Morte.
Pelo brilho que tomou o rosto de Igor, percebi que acertei em cheio
no presente. Em um instante, seus braços me envolveram e ele me apertou
em um abraço tão inesperado e firme que me pegou de surpresa. Minhas
mãos pairaram ao redor dele, momentaneamente congeladas. Estava
acostumada com esse gesto vindo de Matheus, mas não de Igor.
— Obrigado — sussurrou, próximo ao meu ouvido. Ele não se
afastou, tampouco partiu o abraço. Aquilo me deu o incentivo que precisava
para envolvê-lo no meu próprio, apertando-o contra mim.
— De nada, meu bem. — Afaguei suas costas com carinho, sentindo
um aperto estranho no peito.
Quase com uma necessidade visceral de colocar tanto ele quanto o
irmão em um potinho, e protegê-los de qualquer um que tentasse os ferir.
Deixei um beijo em seu cabelo e segurei seu rosto nas minhas mãos, com
carinho.
Era totalmente genuíno. Existia algo em Igor e Matheus que me
cativava e me fazia sentir um amor por eles que eu não sabia explicar,
tampouco colocar em palavras.
— Feliz aniversário, meu bem — cantarolei, empolgada.
Mentalmente, torci para que o que estivesse o incomodando pudesse
ser deixado de lado para que comemorasse a sua festa.
Amália havia preparado tudo com muito carinho, e depois de ser
apresentada para inúmeras pessoas; não foi difícil notar que nenhuma delas
era a mãe dos garotos. O que talvez explicasse muita coisa sobre o seu jeito
mais retraído e desconfiado.
— Obrigado, Nathalia.
— Pode me chamar de Nath, que tal?
O pequeno desviou os olhos dos meus, pensando um pouco e cravou
os olhos na tatuagem no meu pulso. A mesma que o incitou a conversar
comigo no clube alguns dias atrás.
— Ok.
Apesar de não ter sorrido, percebi que a melancolia sumiu do seu
olhar e isso melhorou o meu dia.
Principalmente, quando Igor voltou a me esmagar em um abraço
tímido, mas bem apertado.
Bastou meio segundo de desconcentração para que recebesse uma
bronca de Igor por ter colocado a peça errada no quebra-cabeça.
— É ali no canto, pai. — Apontou para o lado oposto em que estava
trabalhando.
— Sim, Sr. chefe.
Ele sorriu fraco, voltando a se concentrar no tabuleiro.
Faltavam apenas algumas peças para finalizarmos um trabalho de
quase duas semanas, e como o feriado de aniversário da cidade nos
presenteou com uma chuva ininterrupta desde o início da madrugada, a
programação do dia contava com a preguiça de Matheus — que estava
jogado no sofá desde que acordou, hora dormindo e noutra brincando com
seus bonecos de heróis —, e a animação de Igor que estava dedicado a
terminar aquele jogo, apenas para poder começar um dos brinquedos que
Nathalia deu de presente.
Afastei-me da mesa na varanda, deixando-o se localizar no que
deveria fazer e me aproximei do vidro, observando a movimentação da
cidade lá embaixo. Meu celular tocou várias vezes, me obrigando a ler o
texto que meu amigo enviou.
Leandro:
A viagem ficou marcada para o dia 09!
Marque na sua parede, ou onde quer que sua
cultura nômade te diga para agendar compromissos,
homem das cavernas!
Revirei os olhos, ignorando a sequência de fotos que o idiota me
enviou. Bianca e ele estavam fora da cidade, acompanhando Gabriela em
um evento sobre livros que não me esforcei para prestar atenção, uma vez
que estava concentrado na interação entre Igor e Nathalia na festa do meu
filho.
Renato:
O que te faz pensar que vou gastar meu
feriado de carnaval viajando com você?
A resposta veio de imediato:
Leandro:
Comigo?
Queria acreditar que você se empolgaria
para viajar apenas comigo, eremita.
Masssssss nós dois sabemos que só uma
coisa poderia te convencer, agora que não
sou mais prioridade na sua vida.
Não tive tempo de responder.
Leandro enviou seis imagens com capturas de tela da sua conversa
com… Nathalia. Desde ele perturbando a paz da garota com suas besteiras,
até o convite propriamente dito, que ela recusou; mas aceitou duas imagens
depois.
Leandro estava errado. Descobrir que Nathalia iria só me faria querer
ficar na cidade, longe de toda a perturbação que aquela mulher trazia para a
minha mente.
Não era como se meu desejo fosse fugir dela, era o contrário. Mas
Nathalia deixou claro para Deus e o mundo que não se envolvia com
ninguém com quem trabalhava, e eu estava ciente de que não era capaz de
disfarçar meu interesse nela. E entre correr o risco de deixá-la
desconfortável e me distanciar, eu preferia manter um espaço seguro entre
nós dois.
Renato:
Façam uma boa viagem, Salazar.
Leandro:
Isso significa que vc não vai?
Renato:
Exatamente
Leandro:
Então, está me dizendo que não vai nem
tentar se aproximar da diabinha?
Renato:
Pare de chamar ela assim.
Leandro:
Certo… vou chamar o Guto, ele estava interessado
nela…. talvez tope a viagem
Renato:
Ela por acaso te pediu por isso?
Leandro:
Não, mas estou indo com a Bianca e
pretendo passar algumas horas ocupado
Não vou deixar a minha BFF sozinha
Então, se vc não quer ir fazer companhia
pra ela, eu arrumo outro
Apertei o aparelho entre os dedos, irritado com o jeito simplista que
Leandro enxergava as coisas.
Ele ao menos tinha ideia de que se déssemos um passo em falso,
poderíamos colocar em risco a oferta que eu vinha preparando para
apresentar para Nathalia e, consequentemente, a sua permanência na
empresa?
Sem pensar, enviei uma confirmação de que ele podia contar comigo.
Eu estava determinado a manter uma distância segura dela, garantindo que
Nathalia não suspeitasse nem por um segundo que minha oferta tinha
qualquer conexão com meu interesse pessoal por ela.
Aquilo era algo que nunca aconteceria.
Eu levava meu trabalho muito a sério e lutava pelos funcionários que
acreditava que faziam sentido para a firma, se não confiasse no seu
potencial e no quão longe ela poderia chegar, nunca pensaria em colocar um
cargo daquele porte em suas mãos.
Não precisei conhecê-la profundamente para saber que Nathalia era
orgulhosa demais. Se ela não trabalhava na empresa do pai por não querer
que vissem sua carreira como algo amparado em Miguel, eu tinha certeza
de que recusaria o cargo de Diretora de Operações, caso soubesse dos
pensamentos que passavam pela minha cabeça sempre que ela sorria para
mim.
Estava prestes a devolver o celular para a mesa, disposto a ignorar
Leandro e suas implicâncias, mas meus olhos capturaram uma notificação
peculiar que surgiu entre as mensagens mais recentes. Intrigado, abri a
conversa com Nathalia e esperei que terminasse de digitar a mensagem que
seguiu o seu cumprimento.
Nathalia:
pode me ajudar em uma questão?
Renato:
Claro, do que precisa?
Nathalia encaminhou três anexos e começou a gravar um áudio,
aguardei pacientemente que terminasse enquanto entregava ao Igor as peças
que ele me pedia.
Nos minutos seguintes, me dividi entre auxiliar o meu filho com a
montagem do tabuleiro e examinar os gráficos do relatório que ela enviou
— que consistia em um extrato de performance de um fundo de
investimentos. Busquei pela gestora responsável, mas não identifiquei
nenhuma informação sobre, apenas os dados de desempenho.
Não era um fundo ruim, ao contrário, era excelente. Muito melhor do
que qualquer outro disponível no mercado atualmente, mas o seu problema
estava justamente nas posições alavancadas em ativos alternativos, como:
cannabis e urânio — e o maior conflito nisso, era a volatilidade dos ativos,
não as proporções em si.
— Pai, pode pegar água, por favor? — pediu Igor e acenei,
entregando a última peça para ele e me afastei, aproveitando para escutar o
áudio que Nathalia enviou.
Minha surpresa, foi descobrir que o fundo não era de uma gestora
ativa, mas que havia sido criado pela própria Nathalia para a inscrição no
estágio da Bentley & Hathaway. Nos três áudios seguintes, Nathalia
discorreu sobre os fundamentos que usou para selecionar as posições e
proporções. Sua voz estava arrastada e sonolenta, o que indicava que não
tinha dormido bem naquela noite.
— Vou fazer uma ligação — avisei, quando entreguei a água que Igor
me pediu.
Ele assentiu, pouco ligando para a minha ausência e voltou a se
concentrar no quebra-cabeça, faltava menos de vinte peças para que
acabasse e uma das caixas de LEGO estava apoiada na cadeira ao lado,
esperando para que começássemos a montá-lo.
Afastei-me um pouco, o suficiente para não atrapalhar seu foco e
disquei o número de Nathalia que não demorou para atender.
— Atrapalhei o seu feriado, não foi? — lamentou, culpada.
Sorri, gostando do som da sua voz.
— Não sei se você olhou pela janela, mas não há muito o que fazer
com o tempo desse jeito — comentei, divertido.
Nathalia pediu por um minuto, como se precisasse confirmar o que eu
disse e acompanhei a movimentação ao fundo. Um palavrão baixinho
escapou dos seus lábios e me arrancou outro sorriso.
— Você dormiu?
— Acho que desmaiei em algum ponto da madrugada — confessou,
cansada. — O Prof. Becker me odeia e não me poupa da sua crueldade.
— Ele não te odeia.
— Tenho minhas dúvidas… — resmungou, ressentida. — Me
desculpe por te atrapalhar, sério.
— Não atrapalhou, e você fez um bom trabalho. Excelente, na
verdade — elogiei, sincero. — O único problema é que com essas
proporções, o fundo vai ficar refém das legislações sobre a venda dos
alternativos… é incerto, sabe? Se optar por manter elas, vai precisar de um
colchão gordo para amortecer, em caso de queda. Fora as implicações sobre
o urânio; as tensões no Leste Europeu e no Oriente Médio, a questão entre
China e Taiwan… é um ativo volátil.
O urânio era uma excelente fonte de energia, mas precisávamos levar
em conta as complicações globais que trazia para o mundo, devido às
relações tensas entre alguns países. Era o tipo de elemento que se fosse
manuseado de forma indevida, causaria uma crise global e o fundo seria
drasticamente afetado.
A única opção que eu conseguia oferecer para que ela diminuísse o
risco, consistia em diminuirmos drasticamente a posição — o que afetaria
os fundamentos do seu projeto.
Seu suspiro frustrado soou na linha e virei o rosto para a sala,
escutando o chamado de Matheus para que o ajudasse com o controle
remoto.
— Vamos fazer assim… o que você acha de vir aqui? Podemos
trabalhar em uma alternativa para manter as posições.
— Hã… — avaliou, incerta. — Não vai te atrapalhar?
— Não, Nathalia.
Ela não estava aqui, mas de alguma maneira, pude visualizar na
minha mente seus lábios sendo esmagados pelos dentes, enquanto ela
refletia sobre as opções que tinha.
— Tem certeza?
— Absoluta.
Ela estalou a língua e suspirou, derrotada.
— Ok, que horas posso ir?
— Quando você quiser.
Igor e Matheus ficaram animados quando eu disse que Nathalia
estava a caminho. Após desligar o interfone, encontrei os dois escondidos
atrás de uma coluna, curiosos e bisbilhotando a ligação.
— Ela chegou? — questionou Matheus, sem esconder a ansiedade.
— Sim, mas lembram do que conversamos?
Os dois concordaram e expliquei a eles que a visita de Nathalia era
exclusivamente para ajudá-la com o trabalho. Eles pareceram entender. No
entanto, a empolgação que demonstraram desde o momento em que o
interfone tocou me fez suspeitar de que talvez não tivesse sido uma boa
ideia convidar Nathalia para vir até minha casa.
Como passei uma senha de acesso para ela subir, não demorou muito
para que a porta da caixa de elevador se abrisse e eu observasse Matheus e
Igor virarem seus pescoços na direção dela. Matheus foi o primeiro a reagir,
descendo do sofá e correndo em direção a Nathalia, que se abaixou para
receber o abraço apertado dele.
Sorri, admirado em como Nathalia conseguiu se dar bem com os
meus filhos com tanta facilidade. Não me surpreendia que Matheus
estivesse tão íntimo, era assim que ele agia com quase todo mundo. Mas a
devoção direcionada especialmente a ela, era inesperada.
— Oi, meu bem — cantarolou ela, segurando o rosto do meu caçula e
deixando um beijo demorado em sua bochecha. — Que pijama mais fofo!
Matheus sorriu, olhando em minha direção como se fosse uma
resposta ao pedido que fiz mais cedo — quando sugeri que ele trocasse a
peça que parecia uma fantasia do Hulk. Algumas partes do tecido eram
estofadas, dando mais volume para simular os músculos do herói e ele
adorou tanto, que não queria tirar do corpo.
Nathalia estava sem maquiagem, o que confirmou seu cansaço.
Usando apenas um conjunto de moletom cinza e botas de camurça, ela
conseguia ficar incrivelmente linda.
— Oi — falou, acenando ao passar por mim antes de ser arrastada
por Matheus para a sala de estar. Mal tive tempo de pegar a sua mochila,
antes que estivesse sendo apresentada para todos os bonecos dele.
Eram apenas dez da manhã, a chuva implacável não dava trégua, mas
mesmo assim, Nathalia não hesitou em atravessar a rua que nos separava.
Como dei folga para Mara e as outras funcionárias que normalmente
trabalhavam aqui durante o dia, éramos apenas nós quatro em casa.
Igor, que estava em silêncio, desviou o olhar para mim, parecendo
indeciso sobre como agir. Mesmo que estivesse feliz com a presença de
Nathalia na festa, pude perceber que ele considerou a possibilidade de ela
não aparecer, mesmo depois de eu ter dito que ela havia aceitado o convite.
Observei a surpresa nos olhos de Igor quando Nathalia chegou
acompanhada por Leandro e Bianca, e eles passaram um bom tempo
conversando durante a festa, o que o deixou feliz. No entanto, como
Nathalia acabou indo embora cedo, não demorou para que ele voltasse a
ficar cabisbaixo.
Era bom saber que meus filhos gostavam dela, mas estava
preocupado com o quanto estavam apreciando a presença de Nathalia na
vida deles. Não queria que a vissem de outra maneira que não fosse como
uma amiga.
— Filho, você pode mostrar para ela depois, tudo bem? —
interrompi, quando Matheus quis arrastar Nathalia para conhecer o seu
quarto.
Ele fez beicinho, chateado.
— Sem chantagem, pequeno Hulk. — Cruzei os braços, o olhando
firme.
Nathalia alternou sua atenção entre nós e sorriu, entretida.
— Mas papai…
— Outro dia. Ela veio aqui para outra coisa, lembra?
Derrotado, Matheus jogou a cabeça para trás e soltou a mão dela,
caminhando dramaticamente para o sofá e se jogando nele, o que arrancou
uma risada de Nathalia.
— Que gracinha! — Suspirou, fazendo carinho no cabelo de Igor e
deixou um beijo em sua testa, o cumprimentando. Isso amoleceu um pouco
a tentativa dele de agir com indiferença, e um pequeno sorriso surgiu em
seu rosto. — Você é um pai muito resistente, eu não seria capaz de recusar.
Nathalia apontou para Matheus que permanecia me encarando com
um bico que alcançaria a Austrália, e que eu estava muito familiarizado. Era
refém daquela chantagem há anos, tive tempo de criar alguma resistência.
Como Igor e eu tínhamos terminado o quebra-cabeça naquele meio
tempo, liberamos a mesa da varanda para que Nathalia pudesse espalhar as
coisas que tinha trazido. E os garotos se ocuparam na sala com um filme da
Marvel e uma salada de frutas.
— O que você pensa sobre hedge em dólar? — perguntei, encarando
o gráfico no simulador do iPad dela.
— É o que os fundos consagrados fazem, logo, todos os meus
concorrentes vão usar essa estratégia… — explicou, rascunhando um
cálculo de valuation que estava trabalhando. — A posição em cannabis
representa 5% do fundo, e eu preciso proteger ao menos 70% disso… sem
construir o hedge em cima do dólar.
— Commodities[20]?
— Tradicional demais.
Engoli uma risada.
— Tradicional é bom.
— É, mas não é nada extraordinário… — disse, erguendo o olhar para
mim, frustrada. — Se me destacar por algo que é mediano, ainda vão dizer
que cheguei ali por causa do meu pai.
Franzi o cenho, sentindo os ombros enrijecerem com a mágoa em seu
comentário. Não me parecia ser um pensamento dela, mas algo que
implantaram em sua cabeça.
— Quem disse isso?
— Becker não precisou falar explicitamente para que eu entendesse a
mensagem que quis passar — lamentou, melancólica.
Tive alguma experiência com o Prof. Becker e ele, de fato, tinha o
hábito de minar a confiança dos seus alunos. Especialmente aqueles que já
eram privilegiados por uma vasta herança. Ele era o tipo de professor que
nunca cedia elogios; nada nunca era ótimo e tudo parecia mais do mesmo.
Eu precisei quebrar a cabeça para apresentar uma tese que o velho julgasse
acima da média, e apesar de dizer que era sua maneira de preparar os alunos
para um mundo competitivo; eu não tinha certeza se era o efeito que estava
causando em Nathalia.
Ela lidava constantemente com pessoas menosprezando sua
inteligência por causa do dinheiro que carregava com o sobrenome de sua
família. Ouvir do seu orientador, que deveria apoiá-la e oferecer suporte
durante aquele processo, que poderiam escolhê-la apenas por causa de
Miguel, não me parecia a forma certa de motivá-la.
— É um trabalho excelente, Nathalia.
Seu olhar subiu para o meu e ela sorriu, melancólica.
— Não precisa mentir, sério. Até você achou que era de uma gestora
ativa… é mais do mesmo.
Neguei, a olhando sério.
— Claro que não. Perguntei porque queria colocar no meu radar para
acompanhar, não porque pensei que era mais do mesmo. Você escutou
alguma coisa do que eu disse?
Porque elogiei seu trabalho por longos minutos antes de desligarmos
a chamada, e ela merecia cada uma daquelas palavras.
Era um trabalho excelente, fora da curva e revolucionário. Nenhum
fundo ficava isento de apresentar problemas, era por isso que existia o
índice de volatilidade. A única diferença entre o dela e os outros, era que o
risco estava muito alto — o que não era ruim, mas faria com que precisasse
de muito mais tempo para provar que aquilo funcionava no longo prazo.
E ela não tinha esse tempo, o prazo para entrega se encerrava em
duas semanas.
— Olhe… não estou dizendo que não funciona, Nathalia — falei,
alternando a página para que ela visse a simulação no prazo de seis meses, o
fundo operaria bem naquele período e geraria bons lucros; o que tornaria as
perdas irrelevantes. O risco estava no período após aqueles meses. —
Podemos estressar o fundo, simular alguns conflitos e ver como ele reage…
— Não tenho tempo hábil para isso.
— Por que não se afasta do escritório essa semana? — Ofereci. —
Posso desmarcar algumas reuniões para te ajudar.
Ela arregalou os olhos, incrédula.
— Não precisa, sério.
— Faço questão — insisti, com firmeza. — Você precisa de tempo e
de ajuda. Eu sei que você se vê como uma mulher capaz de mil e uma
coisas, mas todos precisamos de apoio em algum momento. Não adianta
auxiliar todo mundo e, quando você mesma precisa, se recusar a aceitar que
precisa de ajuda também. Acredite ou não, você ainda não é uma deusa
superpoderosa.
Nathalia me olhou, fazendo beicinho e levou a mão ao peito, fingida.
— Eu sei que não sou…, mas ainda dói reconhecer isso.
Sorri, segurando seu queixo para manter sua atenção em mim.
— Você não vai para o escritório essa semana.
— Mas tenho…
— Não importa — interrompi, sereno. — Se houver uma demanda
urgente, assumo no seu lugar. Qualquer outro compromisso, pode e será
remarcado para depois que você entregar a sua inscrição.
Ela arqueou a sobrancelha.
— Você está considerando que vou ficar no escritório, ou é impressão
minha?
— Você vai.
O sorriso travesso se abriu em seus lábios e Nathalia não fugiu do
meu toque, ao contrário, seu corpo se aproximou e seus lábios tocaram
minha bochecha, tão sutil e delicadamente que não fui capaz de prever que
seria atingido por aquilo.
— Obrigada, de verdade.
Acenei, perturbado.
— Não precisa me agradecer — falei, rouco e embriagado pelo seu
perfume.
Seu rosto estava a poucos centímetros do meu, conseguia sentir sua
respiração batendo em minha pele… merda, ela estava perto demais.
Nathalia sorriu de um jeito adorável e tocou meu ombro, acariciando a
região com naturalidade.
— Claro que preciso, você está sendo um anjo na minha vida.
E você uma diaba na minha.
Balancei a cabeça, soltando seu queixo do meu aperto e ganhando
distância dela, antes que fizesse uma besteira.
Nathalia virou o rosto para os papéis espalhados na mesa e me
concentrei em encontrar uma alternativa para o seu problema.
Leandro:
Futebol + cerveja por minha conta, bora?
Encarei a mensagem, notando que passava das 19h00 de domingo e
eu tinha perdido a noção do tempo ao longo do dia.
Nos últimos três dias, Nathalia cancelou seus compromissos no
escritório, como havia a instruído, e passou a frequentar minha casa todas
as noites. Assim que eu saía do escritório, ia até o prédio onde ela morava
para buscá-la, e no início da madrugada a acompanhava de volta para sua
casa, com a promessa de buscá-la novamente no início da noite seguinte.
Precisei cancelar algumas reuniões ao longo da semana para chegar
em casa mais cedo, e conseguimos fazer os ajustes necessários nos detalhes
mais críticos a tempo do prazo final do Becker. No sábado, dedicamos o dia
inteiro ao trabalho e conseguimos concluir a parte mais desafiadora do
projeto. O que nos permitiu encerrar a noite com uma rodada de
hambúrgueres caseiros — ideia de Matheus.
Nathalia foi embora no meio da madrugada e passei para buscá-la
assim que acordou naquela manhã de domingo, e desde então vínhamos
trabalhando nas simulações de crises — com pequenas pausas no meio do
caminho, para que os garotos pudessem ser distraídos.
Renato:
Fica para outro dia.
Leandro:
POR ACASO, VOCÊ TEM OUTRO COMPROMISSO?
Renato:
Somos casados?
Não me lembro de precisar te dar satisfação
Leandro:
Que horror, Renatinho…
Você já foi mais gentil comigo
Quem é que tá fazendo a sua cabeça?
Ignorei a mensagem do babaca, voltando a me concentrar no gráfico
que Nathalia estava manipulando, tão concentrada que mal piscava. Seu
foco foi deixado de lado quando seu celular tocou estridente, assustando-a.
Matheus e Igor, que estavam assistindo um desenho, se viraram para
checar se estava tudo bem, devido ao gritinho que escapou dos lábios dela.
— Merda… desculpa! — pediu, afastando as inúmeras folhas para
procurar o aparelho, encontrando-o embaixo de uma pasta.
O nome do Leandro estampado na tela me fez revirar os olhos.
Nathalia pediu licença e atendeu a chamada, fazendo uma careta
quando foi atropelada por Leandro. Não pude escutar nada além de algumas
palavras soltas, mas foi o suficiente para saber que o boca aberta estava
reclamando de mim.
Nathalia colocou a chamada no viva-voz, permitindo que eu
escutasse o que era dito.
— Acredita nisso, Miss Google? Ele simplesmente recusou passar a
noite de domingo comigo, depois de anos me dedicando a essa relação. Eu
fui jogado de escanteio e…
— Você anda muito carente, Leandro — Nathalia o cortou, segurando
a risada. — Por que não liga para a Bianca?
— Ela tem outro compromisso. Um cara. Acredita nisso? Ela me
trocou por outro cara!
Alcei a sobrancelha, notando o ciúme em sua indignação.
— Sinto muito, meu bem. Mas vocês definiram que isso era só uma
amizade colorida, não foi? Sem exclusividade.
— Não estou com ciúmes — defendeu, austero. — Só acho que
qualquer programa comigo é muito melhor do que com qualquer outra
pessoa. E Bianca não é o ponto aqui, e sim, aquele desgraçado eremita que
eu chamo de amigo!
Nathalia me olhou com diversão, mas antes que pudesse responder
qualquer coisa, Matheus foi mais rápido.
— Titiooooo! — gritou, empolgado.
Leandro ficou quieto, por cerca de um minuto. O maior tempo em
toda a sua vida que ele conseguiu ficar calado.
— Você está com o eremita? — perguntou, como se quisesse
confirmar. Nathalia abriu a boca para responder, mas não teve tempo. —
Renatinho, como você ousa me trocar por essa cleputamaníaca?
Nathalia arregalou os olhos, tirando do viva-voz e aproximando o
aparelho do ouvido, escutando o que meu amigo havia terminado de dizer.
— Leandro, você sabia que tem crianças aqui?
Ele disse algo que fez as bochechas dela ruborizarem e Nathalia
soprou um palavrão, antes de desligar o telefone.
— Ele realmente tem trinta anos?
Pincei a ponte do nariz, apertando levemente e ignorando as inúmeras
mensagens que começaram a chegar no meu celular, uma notificação atrás
da outra… todas de um ser desocupado que me fazia questionar todos os
pecados que cometi.
— Me faço essa pergunta todos os dias — resmunguei, colocando o
celular no modo avião. — Estão com fome? — questionei, diretamente para
os garotos.
— Pizza? — pediu Matheus.
Olhei para Igor que acenou em confirmação. Era tradição que
comessem pizza em alguns domingos, já que no decorrer da semana, a
alimentação deles era regrada. Volvi para Nathalia, a encontrando nos
observando com um meio sorriso.
— Topa uma pizza?
Ela sabia que não existia a menor chance de eu deixá-la sair daqui
sem comer, tivemos aquela mesma discussão nas últimas três noites e eu saí
vitorioso em todas.
— Tudo bem.
Acenei, me afastando da varanda para fazer os pedidos.
Leandro ainda tagarelava no meu ouvido, enquanto eu subia de volta
para o meu apartamento com as duas pizzas que deixaram na portaria.
— Você pode guardar segredos de qualquer um, menos de mim,
eremita!
Senhor, o que eu fiz para merecer tamanha punição?
— Leandro… não enche a minha paciência.
— Renatinho, pelo amor… você sabe o quanto adoro uma notícia em
primeira mão. Por que quando avisou que a diabinha não ia trabalhar no
restante da semana, não me disse que ela estaria na sua casa?
Revirei os olhos, encarando o painel para verificar se faltava muito
para chegar no ponto do prédio em que eu perdia o sinal. Mas para a minha
desgraça, naquela noite, as redes telefônicas estavam em ordem o suficiente
para que a chamada sequer falhasse quando passei pelo 15º andar.
— Porque não achei que fosse necessário compartilhar isso com
você.
— Como não, caralho? Eu estava falando para você viajar com a
gente no Carnaval e você: preciso manter a minha relação com ela
profissional. — Enrouqueceu a voz para me imitar. — E agora eu descubro
não por você ou por ela, mas pelo meu pirralho de estimação que estavam
juntos esse tempo todo?
— Não estamos juntos.
— Estão sim, caralho! Ela te pegou pelas bolas, admite de uma vez
por todas.
— Leandro…
— Tá legal, mas depois você vai me contar quando foi que isso
aconteceu.
— Você é pior que uma velha fofoqueira.
— Não sou fofoqueiro, sou um historiador de fatos relevantes para o
meu entretenimento pessoal… — argumentou. — Inclusive, enquanto você e
a neném me abandonavam, eu acabei comprando três arquivos de exposed
de uma pessoa que eu nem conheço em um perfil de fofocas.
Rolei os olhos, incomodado com a demora do elevador naquela noite.
— Por que você não vai em um bar… e faz o que sempre fez?
— Não estou a fim.
— Não está?
— Não.
Aquela informação me surpreendeu.
— Isso tem algo a ver com a Bianca e o tal cara que ela saiu? —
perguntei, intrigado.
— Ah, vai pra merda. Não quero falar com você também.
E dito isso, ele desligou o telefone na minha cara.
Se eu soubesse que bastava tocar no assunto para que Leandro me
deixasse em paz, teria feito muito tempo atrás.
Enviei uma mensagem para o babaca, avisando que se quisesse, ele
poderia vir ficar conosco e as portas do elevador se abriram, me
presenteando com uma Nathalia estirada no chão, com a ponta da língua de
fora e um olho fechado — enquanto o outro acompanhava Matheus
correndo ao seu redor de capa, em uma luta de superpoderes imaginários
com Igor.
Parei no meio do caminho, assistindo ao confronto dos dois para
vingarem a “morte” da Nathalia com um vilão imaginário e ela olhou para
mim, sorrindo divertida e fez sinal de positivo, indicando que tudo ficou
sob controle na minha ausência.
Sorri, vendo Matheus usar seus “poderes” para curá-la e a trazer de
volta para a vida. Deixei os três sozinhos, caminhando para a cozinha e
escutando o diálogo da aventura que estavam vivendo.
Igor e Matheus continuaram no conflito, pulando de um sofá para o
outro e Nathalia veio em minha direção, tentando pegar algumas coisas para
me ajudar.
— Fico feliz que você ressuscitou.
Ela riu, deixando o suco em cima da mesa.
— Eu também, já pensou como seria horrível eu morrer tão jovem?
— Uma tragédia.
— Você ficaria triste, não é? — piscou, audaciosa.
— Nenhum pouco.
— Que mentira! Você seria o que ficaria mais devastado.
— Não tenho certeza, acho que o seu melhor amigo disputaria
comigo.
Ela riu, assentindo.
— Não precisa ficar com ciúmes, você também é meu amigo, ok?
Meu sorriso morreu, definitivamente não era o tipo de denominação
que eu queria que ela usasse para me encaixar em sua vida, e só me dei
conta daquilo quando a palavra saiu dos seus lábios.
— É isso o que vocês chamam de friendzone? — perguntei, fingindo
ofensa.
Nathalia riu, recordando da nossa conversa da noite passada.
Não era como se eu fosse completamente alheio ao que acontecia no
mundo, mas por ficar longe das redes sociais, meio que perdia algumas
gírias que eram usadas nelas. Quando Nathalia comentou que Leandro
estava entrando na friendzone, ela passou alguns longos minutos me
explicando o conceito da palavra, todavia, depois de sentir na pele o
desgosto que aquela denominação trazia; me vi tentado a ligar para Leandro
e aceitar a cerveja que me ofereceu.
— Mais ou menos — murmurou Nathalia, distraída.
Era oficial, eu estava na merda.
Chamei os meninos para lavarem as mãos e não demorou para que
nos encontrassem na sala de jantar, se espalhando pela mesa. A disputa
havia sido por quem ficaria ao lado de Nathalia e Matheus acabou saindo
vitorioso, sentando-se na cadeira com um sorriso largo.
— Nath, podemos ver filme depois? — perguntou Igor.
Ela sorriu, ternamente.
— Claro, qual?
— Harry Potter — disse Igor.
— Pequenos espiões — contrapôs Matheus.
Nathalia desviou a atenção de um para o outro e soltou um suspiro,
indecisa.
— São duas ótimas opções, não é, Renato? — perguntou, jogando a
decisão para o meu colo.
Meus filhos viraram para mim, esperando pela minha opinião.
Entretanto, me dedicava em ensinar os dois a resolverem seus conflitos
sozinhos e, no máximo, ficava entre eles como um mediador.
E no fim, eram eles que decidiam como as coisas aconteceriam.
Aquele método funcionava para tudo.
— Vocês decidem.
Matheus olhou para o irmão que disparou o seu argumento:
— Pequenos espiões é chato.
— Você já viu Harry Potter um montão de vezes! — retrucou
Matheus.
— Porque é um filme bom.
— Pequenos espiões também.
Nathalia moveu o olhar de um para o outro, antes de trazer para mim.
— Isso vai funcionar? — sussurrou e acenei, confirmando.
— Dê alguns minutos que eles se entendem.
Foram duas fatias de pizza, uma taça de sorvete para cada e cerca de
uma hora depois, estávamos sentados na sala acompanhando a abertura de
Pequenos Espiões 3, uma escolha em consenso dos dois.
Matheus e Igor espalharam várias almofadas no tapete, deixando um
balde de pipoca entre eles e não desviaram os olhos da televisão.
— Eles são tão calminhos e educados — disse ela, se aninhando no
sofá ao meu lado, pegando um punhado de pipoca. — Sempre decidem tudo
assim?
— Sempre. Tento ensiná-los a defenderem as próprias vontades, e
aceitarem quando não conseguem ganhar o que querem… — falei,
escutando a risada dos dois para algo que aconteceu na cena. — É uma
vitória justa, normalmente, quem ganha é o Igor e sempre assistimos Harry
Potter.
Ela balançou a cabeça devagar, refletindo sobre algo.
— A genitora…?
Engoli em seco, dando de ombros.
— Nunca se interessou em fazer parte da vida deles.
Nathalia meneou a cabeça, compreendendo.
— Sinto muito.
— Pelo quê?
— Por isso. Sei lá… — sussurrou, obrigando-me a inclinar o corpo
em sua direção para a ouvir por cima dos efeitos especiais do filme. — Não
deve ter sido fácil explicar isso para eles.
Ela estava certa, não foi. E o resultado era a mudança drástica de
comportamento que Igor teve no último ano, e mesmo tentando muito adiar
o inevitável, depois da última “visita” de Flávia… a conversa precisou
acontecer. Para Matheus, pouco importava. Ele era pequeno demais e pouco
compreendia sobre o que significava a ausência dela. Mas Igor entendia e
sentia a rejeição todos os dias, por mais que eu explicasse que não tinha
nada a ver com ele.
Meu filho era perfeito. Eu que havia feito besteira e escolhi a pior
pessoa para colocá-lo no mundo.
Olhei para Nathalia e sem pensar muito bem no que estava fazendo,
mergulhei os dedos em seu cabelo e a trouxe para perto, deixando um beijo
em sua testa, grato por sua compreensão. Sabia que ela estava curiosa para
fazer mais perguntas, mas tinha entendido que não era um assunto do qual
eu gostava de conversar.
— Você é incrível — confessei, deixando que as palavras que se
fixavam na minha mente a cada contato com ela escapassem.
Ela soltou uma risadinha, seus dedos apertaram meu pulso e ela
ergueu o queixo, nivelando seu rosto e mantendo-se tão perto que seu nariz
quase roçava no meu.
— Você também — sussurrou, sua respiração acariciando meu rosto.
Porra.
Por um instante, perdi o rumo.
Nathalia não se afastou, parecia tão ansiosa que não encontrei
qualquer receio nas íris. Ela queria aquilo? Porque eu estava fantasiando
com esse momento desde que coloquei os olhos nela.
Sua mão livre se aninhou na minha perna, apertando delicadamente e
ela inclinou o rosto, permitindo que seus lábios roçassem nos meus.
Senti a boca secar, o sangue correu por todo meu corpo, espalhando
uma descarga de adrenalina que me fez desistir de todos os cuidados que
vinha tendo, apenas para sentir o gosto dos seus lábios.
— Papaaaai! — chamou Matheus, tirando-me do transe e virei o
rosto na direção, encontrando a lambança que ele tinha feito ao derrubar
suco no tapete.
Nathalia foi a primeira a reagir, se levantando. Levei alguns segundos
para me recuperar do que quase aconteceu, sentindo todo o meu corpo ser
tomado pela frustração de ter sido interrompido, justamente quando estava
prestes a conseguir o que mais desejei nas últimas semanas.
Porém, me levantei para limpar a pequena bagunça que Matheus
havia feito.
Distraída, esforcei-me para prestar atenção no que Frederico dizia.
Porém, tudo o que registrei era que ele estava na minha frente, gesticulando
e falando sem intervalos.
Eu o adorava, de verdade, com todo o meu coração.
Entretanto, meu cérebro só conseguia se concentrar na falta de
retorno do Prof. Becker — que duas horas atrás enviou um e-mail para
avisar que havia finalizado a análise do meu trabalho, e que retornaria com
um feedback até o fim do dia.
Estava orgulhosa do que consegui fazer com o pouco tempo que tive.
Foram vários dias me dedicando ao desempenho do fundo para fazêlo funcionar em todos os cenários. Renato me incentivou a testar cada
hipótese, por mais remota que pudesse ser, para garantir que saberíamos
como o portfólio reagiria em resposta. Estava tudo certo, consegui o
embasamento que precisava para provar que tinha feito um ótimo trabalho;
tínhamos um gráfico de longo prazo para apresentar, uma boa tese de defesa
e era algo inovador dentro do mercado de capitais.
Não teria conseguido sem o apoio de Renato, era um fato. E não seria
estúpida de não reconhecer isso.
Ele mexeu com a minha cabeça de todas as formas possíveis; me
questionou de cada centavo fictício que estava investido, o motivo de cada
aplicação, de cada posição vendida… até que a resposta fluísse pelos meus
lábios sem qualquer hesitação.
A verdade era que eu me sentia mais do que orgulhosa, nunca fiquei
tão confiante na entrega de um projeto quanto estava em relação àquele.
Se ainda assim, o Prof. Becker encontrasse defeitos… eu,
educadamente, ignoraria seus comentários críticos e enviaria a minha
inscrição para a Bentley & Hathaway de qualquer maneira. Sabia que tinha
feito o meu melhor e se não fosse o que eles queriam… tudo bem, que a
vaga ficasse com outra pessoa.
— Você concorda? — perguntou Fred, atraindo minha atenção e
pisquei, aturdida.
Apertei a caneca de café quente e voltei para ele, encarando-o com
um meio sorriso.
— Claro.
O sorriso que estampou seu rosto foi radiante.
Fred era uma graça, as bochechas rechonchudas, os olhos pequenos e
o fato de ter a minha altura; contribuía para que parecesse um castor de
desenho animado. Ele era um doce de pessoa e eu nunca entenderia o
motivo das outras pessoas fazerem piada com o seu jeitinho.
Ele venerava as mulheres e apesar de, às vezes, ser um pouco
exagerado em suas reações emocionais, Fred tinha um coração altruísta, era
leal e muito divertido.
Segundo ele, eu era sua conselheira. Não existia nada que aquele
homem fizesse na vida, que não passasse por mim antes.
— Ótimo. Às seis da tarde funciona para você?
— Hã… espera, o quê?
Fred revirou os olhos, sem perceber que eu não havia prestado a
menor atenção. A culpa me atingiu, ele sempre foi muito atencioso comigo
e eu deveria ter escutado o que tinha dito, mas meu cérebro simplesmente
não conseguiu se concentrar no que ele dizia.
E a culpa era toda do Prof. Becker!
Por que avisar que enviaria um feedback até o fim do dia? Não seria
mais prático ter entrado em contato com o retorno pronto? Realmente
precisava me deixar aflita por horas?
— A sessão no spa, sabe… para irmos atrás da Cinthia?
Ahh…
— Fred, você realmente acha que ir aos mesmos lugares que a
Cinthia frequenta, é uma boa ideia? — perguntei, lembrando-me de como o
assunto tinha iniciado.
Frederico teve uma relação conturbada com uma nutricionista que
conheceu no elevador do prédio há pouco mais de um ano e meio. Ele se
encantou tanto pela mulher que se dedicou a fazer dieta e emagrecer, apenas
para continuar convivendo com ela até criar coragem para chamá-la para
um encontro.
Eu achava aquilo fofo e meio assustador.
No entanto, a nutricionista achou adorável e isso os enfiou numa
relação intensa por quase quatro meses. Cinthia queria se casar e ter filhos.
Fred entrou em pânico e achou que era rápido demais. Eles deram um
tempo e durante uma conferência de nutricionistas na Argentina, Cinthia
reencontrou com um caso antigo e os dois tiveram uma noite. Quando ela
retornou, um mês depois, com a minha ajuda e de Olívia — uma amiga e
ex-sócia do escritório —, Fred preparou uma surpresa para pedi-la em
casamento e finalmente ceder e oferecer o relacionamento que ela tanto
queria.
O problema? Cinthia tinha acabado de descobrir que estava grávida
de outro. E bem, tudo acabou naquela noite.
De um jeito tão dramático e desastroso quanto começou.
— Não, mas é que… — ele se calou, e meu peito se comprimiu ao ver
seus olhos marejarem. — Eu ainda a amo, Nathalia.
Senti um nó na garganta e soltei um suspiro, tomada pela melancolia
de toda aquela situação.
Sobre os ombros de Fred, pude acompanhar Renato atravessando o
escritório e entrar na cozinha em que eu estava conversando com meu
amigo.
Seus olhos cravaram nos meus e um sorriso simpático se ergueu em
seus lábios. Retribui ao cumprimento e encarei meu amigo, ponderando
sobre como poderia o aconselhar.
— Boa tarde, Fred.
— Boa tarde, Renatinho — disse, movendo os olhos para o homem
alto e musculoso que parou ao meu lado para preparar seu café. — Acho
que você pode me dar um conselho.
Renato serviu um café expresso e girou nos calcanhares, recostando o
corpo no gabinete em que eu estava escorada e me deu um meio sorriso,
erguendo a sua xícara em um brinde silencioso, antes de se virar para o
homem pequeno na nossa frente.
— Claro, do que precisa?
Apreciei como ele parecia saber a cilada em que se colocou, mas não
se esquivou do pedido de ajuda de Frederico.
Nos minutos que decorreram, Renato escutou com riqueza de
detalhes tudo o que aconteceu entre Cinthia e Fred, balançando a cabeça
para mostrar que ainda estava escutando. Encarei Frederico, soltando um
suspiro baixinho e Renato pareceu reconhecer que meu café era
colombiano, já que enquanto Fred andava de um lado para o outro — de
costas para nós dois, narrando tudo o que aconteceu —, ele gesticulou para
que trocássemos nossa bebida.
— Sem chance.
— Só um gole.
— Não.
— Quase nada, você vai negar mesmo?
Empurrei o cotovelo contra sua costela, ignorando seu sussurro
próximo ao meu ouvido e a forma como meus pelos se eriçaram.
— Trago macarons para você amanhã — prometeu.
Mas foi o sorriso divertido estampado nos seus lábios que me fez
ceder para a troca — que ele prontamente aceitou.
— O que você acha, Renato? — perguntou Fred, virando-se para nós
dois e endireitamos a postura, como duas crianças que foram flagradas pelo
professor fofocando no meio da explicação.
— Acho que deveria ir atrás dela.
— Renato! — repreendi, horrorizada. — Você não pode incentivar
isso, é insanidade.
— Não acho — retrucou, abandonando a caneca que me pertencia em
cima do gabinete e cruzando os braços, olhando-me com certo fascínio. —
Se você quer uma coisa, precisa ir adiante e pegá-la. Frederico quer ficar
com a Cinthia, não quer? — perguntou, sem olhar para ele.
Pude ouvir Fred concordar, mas não consegui desviar minha atenção
de Renato.
— Mas não é só porque ele quer algo, que significa que pode invadir
o espaço da Cinthia.
— Ele não vai invadir, vai apenas bater na porta e pedir para que ela
fique com ele.
— Depois que ele terminou com ela.
— O homem estava abalado, tomou uma atitude impensada, não foi,
Fred? — questionou, sem desviar os olhos de mim.
— Foi, mas…
Frederico não teve tempo de falar, porque me senti particularmente
atacada com aquela conversa e sequer soube identificar o motivo.
— Não é porque você quer uma coisa, que pode conseguir ela em um
estalar de dedos.
— Quem disse que não?
Respirei fundo, girando o corpo para ele e inclinei um pouco a
cabeça, analisando-o com atenção.
— Existem vários motivos para não apoiar isso, um deles é que
Frederico quer ir atrás dela no local de trabalho! O que vai acontecer com a
reputação da Cinthia se o virem se declarando na frente de todo mundo?
— Não sei… que tem um cara completamente louco por ela?
— Claro que não, vão usar isso para descredibilizar ela.
— E por que ela se importaria com o que as pessoas diriam?
Engoli em seco, sem saber o que responder.
Por que começamos aquela discussão para início de conversa?
— Hum… ainda estamos falando sobre mim? — indagou Fred,
atraindo nossa atenção e viramos o rosto para encará-lo.
— Sim — dissemos em uníssono.
Não tinha certeza sobre aquilo, mas Renato deu um sorriso em
resposta e se afastou, batendo levemente nas costas de Fred e caminhando
com ele para fora da cozinha, deixando-me sozinha.
No meio do caminho, o filho da mãe me olhou por cima dos ombros e
piscou, arrancando-me o fôlego enquanto se afastava e continuava dando
péssimos conselhos para Frederico.
Senti um vinco surgir em minha testa e apertei os lábios, confusa com
o que havia acabado de acontecer.
Que merda tinha sido aquela?
Após uma reunião com os rapazes da mesa de operações, sai da sala e
chequei o meu e-mail pela enésima vez, percebendo que o Prof. Becker
ainda não havia retornado com o maldito feedback.
Aquilo me deixava angustiada, mas mantive meu nervosismo apenas
para mim, administrando todos os compromissos do dia com uma falsa
calmaria que não condizia com a realidade.
Para qualquer pessoa que visse de fora, eu era uma pessoa cheia de
autoconfiança — quase prepotente, na maior parte do tempo. Mas na real,
viver dentro da minha cabeça era um inferno.
Pensando o tempo inteiro…
Tentando a cada instante…
Planejando o próximo passo e calculando todas as alternativas para
que eu pudesse sair vitoriosa das situações em que acabava me colocando.
Quando era mais nova, meu maior problema era a constante
comparação com as outras pessoas. Cresci apreendendo que todos eram
valorizados pelos seus esforços, exceto eu… logo, o problema estava em
mim, não na sociedade. Passei a parar de falar com os outros sobre o que
me incomodava, porque todos sempre tinham uma opinião, que consistia
em mais críticas e comentários desnecessários.
“Pobre garota rica, com um pai tão reconhecido que ela não
consegue entrar em um lugar sem que saibam de quem é filha.”
“Coitadinha da Nathalia, precisa se esforçar para ser respeitada
porque nasceu em berço de ouro.”
Fora inúmeras indiretas que reduziam meus problemas e inseguranças
a coisas supérfluas e fúteis. Tudo bem, eu tinha noção de que existiam
pessoas no mundo com situações muito mais complicadas do que a minha.
Nunca fui alienada, sempre tive ciência de todos os privilégios que
me acompanhavam apenas por existir e carregar meu sobrenome.
O mundo tinha inúmeros problemas, infinitamente maiores que os
meus, mas não significava que o dinheiro me tornava imune a ser uma
pessoa como qualquer outra: com sentimentos, ambições e desejos próprios.
Eu não tinha o direito de me sentir mal pelas coisas que aconteciam
comigo?
Aparentemente, não.
Por isso, para qualquer um que visse de fora, eu me considerava a
pessoa mais incrível que já pisou no planeta Terra. Não existia ninguém
acima de mim, nenhuma outra conseguia ser tão fantástica.
Mesmo que na minha cabeça, não fosse bem assim que as coisas
funcionassem.
No fim, meio que era assim que o mundo funcionava.
Todo mundo fingia alguma coisa. Demonstrar insegurança era o
mesmo que expor suas fraquezas para todos passarem por cima, e no mundo
em que eu estava inserida, aquilo era inaceitável.
— Ei, cleputamaníaca.
Parei no corredor, girando nos calcanhares e encontrei Leandro com
uma mochila nas costas, saindo de sua sala com um capacete de
motociclista na mão.
— Oi, criatura desocupada — cumprimentei, segurando a maçaneta
da minha porta e franzindo o cenho ao examiná-lo. — Entrou na crise da
meia-idade?
Salazar estava usando calça jeans e jaqueta de couro.
Definitivamente, não me lembrava de um único momento nas últimas
semanas que o tivesse visto usando qualquer coisa diferente do esporte fino
tradicional, e quando cerrei os olhos nos óculos escuros presos na gola da
sua camisa, cogitei seriamente que o coitado estivesse enlouquecendo.
— Por quê?
— Hã… — Calei a boca, sem saber se deveria dar corda para
Leandro. Ele tinha a habilidade de nunca ficar quieto e eu precisava
resolver algumas pendências antes de ir embora. — Nada. Curiosidade…
estilo novo, uh?
Leandro revirou os olhos e esquecendo completamente que estava de
saída, praticamente me rebocou para dentro da sala e fechou a porta.
— Preciso de uma opinião.
— Estou ocupada.
— Não vai demorar quase nada.
— Claro, claro… — suspirei, caminhando para a mesa e deixei os
documentos que carregava em cima de uma pilha que ainda precisava ser
analisada. Girei nos calcanhares, voltando a olhar para ele e cruzei os
braços, recostando o corpo na mesa. — O que houve?
Leandro atravessou a sala, despreocupado, como se frequentasse
aquele lugar tantas vezes que se sentia confortável e em casa. Quando
alcançou o bar, serviu duas doses de uísque puro e se aproximou,
oferecendo-me para que o acompanhasse.
O tilintar dos cristais preencheu minha sala e espreitei os olhos nele,
bebendo um pouco do líquido âmbar e sentindo minha garganta esquentar
com o gosto forte.
— Quem morreu? — insisti, vendo-o virar seu copo de uma única
vez e roubar o meu para repetir a ação.
— Bianca está saindo com alguém?
Sua pergunta me pegou desprevenida.
Pisquei duas vezes, na tentativa de confirmar se ele realmente estava
parado na minha frente para fazer aquela pergunta. Mais duas, para
processar que Leandro estava com ciúmes… e precisei beliscar meu próprio
braço para conter a risada que ameaçou escapar do fundo da minha
garganta.
Pigarreei, mordendo as bochechas e inspirei lentamente, dando um
meio sorriso.
— Por que a preocupação, meu bem?
— É só uma pergunta: sim ou não?
Inclinei a cabeça, olhando-o com certo fascínio. A sua respiração
oscilou devido a apreensão; uma pequena veia saltou bem no centro da sua
testa, e toda a pose de comediante havia se esvaído.
Ele realmente estava incomodado com a ideia de Bianca estar saindo
com outra pessoa? Isso era um tanto… inusitado.
— Não sei.
— Ah, para com isso. Sei que você sabe, faz parte do benefício de
melhores amigas. Vocês se sentam e fofocam sobre a vida amorosa, não é?
Estapeei seu ombro, fingindo irritação.
— Isso é estereótipo!
— Mas eu menti?
Bufei, cruzando os braços em frente ao corpo, sem conseguir
acreditar no que estava diante de mim.
— Não, Leandro, ela não está saindo com ninguém.
— Conta outra, essa não cola.
Franzi o cenho, sem entender sua resposta.
— Por que eu mentiria?
— Porque sua amiga todos os dias sai para almoçar com alguém, às
vezes… como hoje, por exemplo, nem volta para o trabalho — disse,
enciumado.
E a clareza me atingiu como um raio, ao compreender o motivo de
toda a confusão que estava ocupando a cabecinha de vento do homem na
minha frente.
Bianca não contou para ele que a mãe dela tinha câncer e estava
internada em um hospital a duas quadras daqui?
Porque era com a mãe que Bianca almoçava todos os dias.
Em algumas tardes, Adelaide ficava um pouco mais debilitada e era
quando minha amiga não retornava. Ela tinha autorização para se afastar
por quanto tempo precisasse, afinal, eu conseguia dar conta das coisas no
escritório e preferia que Bianca ficasse onde realmente precisavam dela.
Naquela tarde em especial, a mãe da minha amiga tinha piorado
drasticamente.
Pedi para que Bianca me mantivesse informada sobre o estado de
Adelaide, e pretendia ir visitá-la depois do meu compromisso com Renato
— com quem tinha um jantar marcado.
Tecnicamente, aquela era a minha última semana no escritório e
como Renato passaria os próximos dias no Rio de Janeiro, marcamos para
conversar naquela noite.
Mas antes, eu precisava ir para uma entrevista na Faria Lima — e
Leandro estava prestes a me deixar muito atrasada.
— Como eu disse… ela não está com ninguém. — Dei as costas para
ele, recolhendo minhas coisas e jogando tudo na bolsa. — Não se preocupe.
— Não estou preocupado.
Ri fraco, olhando-o por baixo dos cílios e acenei, compreensiva.
Tudo bem, ele estava em negação, fazia parte.
— Você vai sair? — perguntou, mudando de assunto ao me ver fechar
a bolsa e vestir o casaco.
— Tenho uma entrevista na Green Asset.
Minha resposta fez com que Leandro, que estava caminhando de
volta ao bar para servir uma nova dose de uísque, girasse nos calcanhares.
Ele enrijeceu os ombros, descontente com a informação.
— Green Asset? Por que você faria entrevista com aquele bando de
pau no cu?
— Hã… você se esqueceu que estou de aviso prévio?
Leandro revirou os olhos e se jogou no sofá, relaxadamente, ele
descansou os braços no encosto do estofado e me encarou.
— Pensei que tínhamos passado dessa fase. Renatinho não resolveu
essa merda?
— Hum… primeiro: deixei claro que o meu aviso não era uma
condição negociável — falei, erguendo um dedo para frisar aquele ponto.
— Segundo: não falei com o Renato ainda, isso ficou marcado para hoje à
noite.
Interessado na segunda informação, Leandro sorriu sardônico e
meneou a cabeça, refletindo.
— Então, você e Renatinho estão se encontrando bastante depois do
expediente, uh?
Meus ombros enrijeceram e apesar de saber que era pura implicância
de Leandro, foi meio inevitável que me sentisse atacada por aquele
comentário.
— Não do jeito que você está pensando.
— Ei, relaxa, diabinha! Não estou apontando o dedo para ninguém,
quero mais é que vocês se acertem… como é que a Gabi fala mesmo? —
perguntou, desviando seu olhar para a estante de livros, pensativo. — Sou o
shipper número 01 de vocês… tá vendo esse rostinho lindo aqui? —
apontou para si. — Soube que isso rolaria desde que botei os olhos em
você.
Ah pronto, era só o que me faltava.
— Você precisa parar de beber em horário de expediente. Sabia que
ainda são… — chequei o celular para confirmar o horário: —, duas e meia
da tarde de uma segunda-feira?
Leandro bebeu um gole do uísque que ainda restava no copo e me
deu um meio sorriso, despreocupado.
— Neste exato momento, em Londres, é happy hour.
O seu tom de voz soou mais amargo do que jocoso, como era de
praxe. Havia alguma coisa o incomodando, e ainda que estivesse muito
atrasada para chegar no meu compromisso, me sentiria péssima se saísse
daqui com Leandro virando um copo atrás do outro, e pilotando uma moto
depois.
Consternada, abandonei a bolsa e o casaco na poltrona e caminhei em
sua direção, empurrando algumas almofadas e me aconchegando no espaço
ao seu lado.
— Você quer conversar sobre o que está te incomodando?
Ele torceu os lábios, chateado.
— Não, deixa pra lá… — resmungou, quase como uma criança
birrenta. — Ei, você e o Renatinho…
Joguei uma almofada na sua cara, calando-o antes que continuasse
falando groselha e me levantei para retornar à programação do meu dia.
Leandro, no entanto, me impediu de ir adiante e puxou meu braço com
delicadeza, fazendo com que me sentasse outra vez.
— O que é, praga? — perguntei, irritadiça.
— Ei, você fala direito comigo, sua fedelha. Eu sou mais velho que
você!
— Ah, pronto! — Bufei. — Você vai admitir que está com ciúmes da
Bianca para que eu possa te mandar ir falar com ela, ou eu posso ir para o
meu compromisso?
— Você é uma péssima amiga.
— E você é uma criancinha mimada.
— Olha quem fala!
— O quê? — perguntei, ofendida.
— Ué, você e o Renato nesse nem come e nem sai de cima há dias, é
o quê?
Franzi o cenho, sem entender aonde Leandro queria chegar com
aquela pergunta. Renato e eu vínhamos construindo uma amizade legal, mas
era apenas isso.
Amizade.
Estava interessada nele? Sim, seria estúpida se não estivesse. Ficava
balançada com qualquer coisa que ele fazia? Isso também! Sentia o chão
tremer sob os meus pés quando suas mãos me tocavam? Sim, e adorava que
ele sempre encontrava um pretexto para fazer aquilo, fosse para me
amparar, acalmar, me manter concentrada nele ou apenas para afastar um
mísero fio de cabelo que estava em meu rosto. Fiquei a madrugada toda
lembrando de como os seus lábios roçaram nos meus? Sim, e se Matheus
não tivesse derrubado o suco… eu não tinha certeza do que poderia ter
acontecido.
Mas era amizade.
Tipo, era aquilo que eu podia oferecer para ele.
Renato era meu chefe.
Um pedaço de mal caminho ambulante…, mas meu superior.
E eu não seria a garota que dormia com o chefe.
Não, não, não.
Sem chance.
Não havia nenhuma mísera probabilidade disso acontecer, eu não me
permitiria. Por mais que quisesse muito… simplesmente, não!
— Queimei seus neurônios? — Leandro indagou, divertido.
— Vai pra merda.
Ele gargalhou.
Filho de uma…
Sua sorte era que adorei sua mãe, caso contrário, Isobel estaria sendo
xingada de todos os palavrões existentes por ter sido a responsável por
colocar aquele energúmeno no mundo.
— É uma merda, né? — questionou, deitando a cabeça no encosto e
encarando o teto, reflexivo.
— Gostar de alguém? — precisei confirmar, vendo-o acenar em
resposta. — Acho que o problema não é gostar de outra pessoa, mas lidar
com os riscos de apostar no sentimento, sabe?
Leandro me olhou, meio distante.
— Por que o risco é dar merda pra caralho?
— Sim — confessei, sincera.
Desci os olhos para as minhas mãos, percebendo que estava
esmagando os dedos, inquieta.
Eu precisava concordar com Leandro, era uma merda me sentir
daquele jeito.
— Você está gostando dele, não é? — inquiriu, baixinho e confidente.
Não deveria, mas precisava conversar com alguém sobre o que vinha
sentindo nos últimos dias, e com todo o problema que Bianca estava
passando com a mãe dela… não queria perturbá-la com uma coisa tão boba.
— Um pouquinho.
— Ele é um filho da puta. — Riu, balançando a cabeça. — Não estou
surpreso, sério. Do mesmo jeito que não fiquei quando percebi que ele
estava de quatro por você.
Sorri, achando graça em como ele era linguarudo. Como podia ser um
manager tão requisitado, com clientes que requeriam o máximo de
confidencialidade, sendo que não conseguia guardar um segredo do próprio
amigo?
— Você é muito boca aberta.
Ele sorriu.
— A convivência com Renatinho está surtindo efeito, estão até
usando as mesmas palavras para falar comigo… — rolou os olhos, rindo
baixinho. — E em minha defesa, ele nunca me disse que era um segredo.
— Entendi.
Apertei minhas mãos, massageando a região por puro hábito para
aplacar o nervosismo.
— Estar gostando do eremita é algo ruim?
— Sim.
— Por quê?
Engoli em seco, sem saber como explicar para o Leandro o meu
ponto naquela história.
As pessoas sempre alegavam que era um motivo bobo e sem sentido.
Mas aquele comentário vinha de homens na maior parte das vezes e para
eles, aquele tipo de situação era sempre amenizada.
Se descobrissem que Renato e eu tivemos qualquer contato, por
menor que fosse, além do profissional… ele seria um herói para todos os
homens que trabalhavam conosco. O homem que conseguiu o que nenhum
outro foi capaz. Do jeito que as coisas andavam, ele seria enaltecido e uma
estátua seria colocada em sua homenagem no meio do escritório.
E eu seria a vadia que estava esperando apenas por um homem com
um cargo mais alto aparecer para abrir as pernas.
Não tinha a menor dúvida de que seria assim, era como as coisas
funcionavam no nosso meio.
Quantas mulheres eu assisti perderem o emprego porque dormiram
com um cara que trabalhava com elas? Não cabia em uma mão. E apesar de
não ser tão próxima ou conhecer a maioria delas, as notícias rodavam em
grupos de WhatsApp, na Fintwit e em várias outras redes. Elas ficavam
marcadas e todo mundo ficava sabendo sobre o que aconteceu; o assunto
era a pauta principal das conversas por semanas — até que deixassem de
lado porque uma nova garota foi exposta.
Os homens? Ganhavam promoções e mais clientes.
E as mulheres? Mesmo depois que o assunto esfriava, a carreira ia
para lama.
De todas que eu fiquei sabendo, desde que comecei a trabalhar na
RCI, apenas três voltaram a trabalhar na Faria Lima, mas nenhuma retornou
para o mercado financeiro. Todas elas precisaram mudar de área para poder
continuar trabalhando. O motivo? Depois que seus colegas souberam que
elas transaram com um; todos os outros passaram a acreditar que podiam
conseguir o mesmo. E entre assédios e ridicularizações, elas acabavam
optando por mudar o segmento de trabalho.
— É coisa minha — falei, simplesmente. — Só não é o que eu quero
para mim, sabe?
Leandro meneou a cabeça e para a minha surpresa, seu rosto foi
tomado por compreensão.
— Tenho certeza de que vai dar um jeito de resolver isso — disse, me
dando um sorriso reconfortante. — Você sempre sabe a resposta de tudo,
por isso é minha Miss Google.
Sorri, sentindo seus dedos encaixarem na minha nuca e Leandro me
puxou para perto, deixando um beijo demorado na minha testa. Soltei um
suspiro, me aninhando ao seu lado e deitando a cabeça em seu ombro, me
desfazendo das sandálias e erguendo as pernas para apoiá-las na mesa de
centro.
— Sabe, se você gosta da Bianca…
— É para encontrar a resposta do seu problema, não do meu —
resmungou, apertando seus dedos no meu braço.
Ri baixo.
— Mas eu sempre resolvo os problemas de todo mundo, é parte do
meu trabalho, esqueceu?
— Deve ser por isso que parece prestes a ter um AVC todos os dias
— retrucou, pegando uma mexa do meu cabelo e puxando, por pura
implicância. — Por que não para de tentar ajudar os outros um pouco e foca
em você?
— Ai! — Levei a mão ao peito, fingindo sentir dor e virei o rosto em
sua direção, olhando-o com falsa mágoa. — Não precisa bater também.
Ele sorriu, enrugando o nariz de um jeito fofo e bagunçou meu
cabelo, como se eu fosse um cachorro.
— Até que você é legalzinha, pirralha.
Engoli uma risada, afastando-me dele para me levantar e sair do
escritório. Talvez ainda desse tempo de chegar na Faria Lima.
— A gente sabe que você não vive mais sem mim, caipiranha. —
Pisquei, apanhando minhas coisas e conferindo no aplicativo quanto tempo
demoraria para chegar ao prédio da Green.
Antes que eu alcançasse a porta, Leandro me chamou.
Ainda esparramado no sofá, com os braços cruzados em frente ao
peito e um sorrisinho irônico, o filho da mãe decidiu me provocar.
— Sabe que está perdendo tempo e poluindo o meio ambiente indo
nessa reunião, né? — Sorriu, atrevido. — Independente de como a noite de
hoje acabar, você vai continuar na empresa — assegurou. — Renato não se
tornou o empresário que é, desistindo do que quer… e ele não vai desistir de
ter você aqui. Seja inteligente e poupe o seu tempo.
— Por que não vai ver se eu estou na esquina, Leandro?
Ele riu e o meu corpo colidiu com outro, grande, forte e
extraordinariamente cheiroso, que enlaçou a minha cintura e me impediu de
ir ao encontro do chão devido ao impacto.
Não precisei erguer o rosto para saber quem era, conseguiria
identificá-lo a um enorme raio de distância, mas ainda assim, subi meu
olhar na sua direção e esbocei o melhor sorriso que tinha.
— Ei… você!
Renato sorriu, apertando seus dedos em minha carne e com cuidado,
me soltou e tomou alguma distância, me fazendo sentir falta de quando
estava mais perto.
Que droga, por que era tão bom ficar perto dele?
— Já está saindo?
— Ela tem uma entrevista de emprego! — o fofoqueiro gritou, nos
fazendo olhar em sua direção. Leandro correu seus olhos por nós dois e
sorriu. — Você não contou ao seu marido, gatinha?
Inspirei o ar profundamente e ignorei o idiota, voltando para Renato,
que me observava com um pequeno vinco na testa.
— Não é novidade para você.
Ele acenou, concordando.
— Posso saber quem está tentando roubar você de mim? — indagou,
guardando suas mãos nos bolsos e erguendo levemente os ombros, tentando
fingir casualidade.
Sua pergunta, apesar de estar se referindo a minha vida profissional,
me atingiu em um ponto muito particular e me arrancou um sorriso tolo,
hipnotizado.
— Não se preocupe, querido, você ainda tem espaço reservado no
meu coração — brinquei, tentando disfarçar a forma como ele me deixava
desalinhada.
Renato apertou a mandíbula e, sutilmente, inclinou a cabeça para o
lado, esquadrinhando todo o meu corpo e subindo em uma lentidão
dolorosa, como se estivesse guardando cada detalhe e fosse a primeira vez
que me via naquele dia.
Era a primeira em que estávamos sozinhos, longe dos olhos dos
funcionários ou de um dos sócios sêniores.
— Me sinto uma tocha olímpica aqui — disse Leandro, despertandome para a realidade e virei em sua direção, dividida entre agradecer por me
lembrar de sua existência ou odiá-lo por ser tão… ele.
Leandro e Renato se entreolharam, e não soube identificar qual era a
mensagem que estava sendo trocada entre eles, tampouco tinha tempo para
tentar adivinhar. Precisava sair em dois minutos, se quisesse chegar
minimamente no horário.
— Você está com pressa? — perguntou Renato, voltando a me olhar e
mordi a pontinha da língua, contendo a resposta que estava prestes a
escapar.
— Do que precisa?
Leandro se afastou, abrindo a varanda da sala como se estivesse na
dele, aparentemente, sentindo-se muito confortável no meu espaço.
Renato deu um passo para perto, erguendo uma mão e a apoiando no
batente da porta, acima da minha cabeça.
— De você.
Ah, merda.
Merda, merda, merda.
Deixei que as minhas costas tocassem a ombreira da porta, sentindo
os joelhos fraquejarem e a minha respiração perder o ritmo, ao processar
suas palavras.
Engoli em seco, me odiando por não manter a boca fechada.
— Seja mais específico. — Por favor, não seja. — Do que precisa?
Um calor fora do normal se instalou entre minhas coxas, fazendo com
que meu ventre se contorcesse. Aquela sensação de que o chão estava
tremendo retornou, e por mais que uma parte do meu consciente me
mandasse correr para longe dele, um outro pedaço estava instigado a
permanecer e ver até onde Renato era capaz de ir.
Seus lábios se repuxaram em um sorriso enviesado que colapsou
meus neurônios que ainda funcionavam. Sua mão, que repousava sobre
mim, alcançou meu rosto. Seu polegar roçou no meu lábio inferior e
precisei engolir um arquejo, afundando as unhas na palma da mão livre.
— Não se preocupe — disse, imperturbável. — Tenha uma ótima
entrevista, Sra. Trevisan.
Suspirei, odiando que ele se afastou.
— Você quer mesmo que eu tenha uma ótima entrevista?
Renato deu de ombros, tranquilo.
— Gostaria que você não fosse, mas isso não importa, certo? —
contrapôs, pacífico.
— Não — confirmei, apertando a bolsa que estava em minha outra
mão e forcei um sorriso. — Nos vemos à noite?
— Pego você às nove.
Assenti, tocando seu bíceps e apertando fraco, antes de dar as costas
para ele e caminhar para fora do escritório, implorando aos meus pulmões e
pernas, que voltassem a funcionar como deveriam.
Exatamente às 21h00, o Sr. Chico interfonou avisando que Renato
estava entrando na garagem do meu prédio.
Aos tropeços, deixei a porta destrancada e voltei para dentro do
quarto para terminar de me arrumar.
Eu estava muito atrasada.
Enviei uma mensagem oferecendo que nos encontrássemos no
restaurante, mas Renato deixou claro que não era um problema e que
esperaria o tempo que fosse necessário. Por esse motivo, havia o instruído a
subir para o meu apartamento, assim não ficaria aguardando na rua.
A entrevista com o head hunter[21] da Green durou mais do que eu
esperava e isso acabou me estressando um pouco. O único motivo para que
eu tivesse aceitado participar havia sido por educação — já que tinha sido
uma recomendação da Olívia e fiquei desconfortável em dizer que não
estava interessada em ouvir outras propostas.
Eu já tinha descartado sete e conhecia todo o discurso que usariam.
Todas as propostas exigiam um comprometimento da minha parte que
prejudicaria a minha ida para Nova Iorque no segundo semestre. E eu
estava começando a considerar que, talvez, meu pai estivesse certo. Era
melhor aproveitar aquele período longe da RCI para recarregar a bateria
antes de voltar para Manhattan.
O problema era que, por mais que passar alguns meses com os meus
avós fosse muito tentador, eu gostava do agito da minha rotina e sentiria
falta disso. Tinha certeza de que enlouqueceria se ficasse muito tempo sem
fazer nada.
Minha demora na Green, no entanto, não significava que havia sido
uma reunião produtiva, o oposto disso. Toda a primeira hora girou em torno
do recrutador me interrogando sobre o meu pai, sobre como era ser filha de
uma lenda do mercado e crescer com os seus ensinamentos.
Nada sobre o que eu fiz desde que me graduei, ou sobre as minhas
formações e experiências profissionais anteriores.
Apenas Miguel Gama, e em como era ter crescido sob o mesmo teto
que ele.
Fiquei tão frustrada que demorei mais tempo do que o necessário para
sair do estacionamento, porque acabei sendo tomada por um choro
ininterrupto que escapou sem controle nenhum. E no fim, estava tão
cansada que cogitei oferecer ao Renato que adiássemos a reunião daquela
noite.
Meu humor não estava dos melhores e temi não ser uma boa
companhia. Ainda assim, coloquei um vestido básico que ficava bonito no
meu corpo e não era tão curto; separei um sobretudo bege devido ao vento
que ricocheteava as minhas janelas e procurei entre as prateleiras do meu
armário um calçado específico. Para facilitar minha vida, a sandália da
Jimmy Choo estava no ponto mais alto e acabei precisando me pendurar no
móvel para conseguir pegá-la.
Renato chamou pelo meu nome, deixando que eu soubesse que tinha
entrado e pedi por mais alguns segundos. Se não tivesse pegado um fluxo
tão intenso na volta para casa, teria chegado uma hora antes e não estaria
atrasada, mas o universo não estava colaborando comigo naquele dia.
Minutos depois, encontrei Renato em frente a escadaria, aguardando
por mim e… merda, aquilo era injusto demais.
— Oi — soprei, zonza por todo o monumento diante de mim.
Como podia um homem ficar tão lindo com tão pouco?
Seus olhos esquadrinharam cada centímetro do meu corpo, seguindo
o percurso lentamente até os meus pés e subindo novamente para o meu
rosto. Ele piscou, deslumbrado.
— Oi, anjo — saudou, esboçando um meio sorriso que prejudicou a
minha estabilidade sobre as sandálias de salto.
Calmamente, apertei os dedos no corrimão da escada e forcei meus
pés a descerem os degraus restantes para o alcançar na soleira.
Como se fosse a primeira vez que me via naquele dia, sua mão
mergulhou no meu cabelo e ele deixou um beijo demorado na minha testa,
com tanta naturalidade que sequer tive como estranhar.
— Como foi a entrevista?
Meu sorriso morreu, dando espaço para uma careta.
— Precisamos falar sobre isso? — questionei, sem esconder a
chateação.
Era estranho, se fosse Roberta me perguntando, eu teria feito questão
de agir como se tudo tivesse corrido perfeitamente bem. Entretanto, com o
Renato eu me sentia confortável para não vestir a máscara prepotente de
sempre. Talvez, eu estivesse sendo ingênua demais, mas me sentia segura
para expor minhas vulnerabilidades perto dele — ainda que uma voz em
minha cabeça me mandasse recuar.
— Quer desabafar?
— Está tão na cara que foi ruim? — Pendi a cabeça para trás,
sentindo o carinho dos seus dedos no meu cabelo. Seu corpo ainda estava
perto, transmitindo calor para mim.
Ele sorriu despretensiosamente, afastei-me um pouco e abandonei a
bolsa no móvel ao lado, o olhando com desânimo.
Conversei com Antônio durante todo o trajeto para casa, e do seu
jeito torto e nada convencional, meu amigo tentou me fazer sentir um pouco
melhor. E apesar de saber que Bianca atravessaria a cidade para esganar o
recrutador em minha defesa, quando ela perguntou como havia sido, apenas
forcei um sorriso e desconversei. Seria muito egoísmo da minha parte pedir
para que ela esquecesse por cinco minutos do problema da sua mãe, para
me confortar por algo que era meramente orgulho ferido.
Mas naquele momento, em frente a Renato e com a sua atenção
inteiramente concentrada em mim, me vi tentada a desmoronar. Estava tão
cansada que não me importaria de cair no choro nos seus braços, afinal,
tínhamos adquirido alguma intimidade nos últimos dias, não?
— Quer um abraço? — perguntou, atencioso.
Era como se ele pudesse ler os meus pensamentos.
— Acho que minha mãe perdeu dinheiro com as aulas de teatro —
resmunguei.
Ele sorriu e capturou a minha mão no corrimão, puxando-me para
perto. Não recusei, estava mesmo precisando de alguém que me
confortasse. Esse era o ponto negativo de estar longe da família, gostava da
minha privacidade e de ter meu próprio espaço, mas estar afastada de todo
mundo me fazia sentir… solitária em alguns momentos.
Renato mal me conhecia e soube identificar o que eu estava
precisando, e isso foi o suficiente para que meus braços o envolvessem —
deixando de lado qualquer receio que aquela parte implicante da minha
mente ainda nutria. Escondi o rosto em seu peito, sendo invadida pelo
perfume marcante e seus braços me aprisionaram, apertando meu corpo
contra o seu.
— Se você quiser, posso dar uma surra no Oliver.
— Como sabe o nome do recrutador? — questionei, sem me afastar e
sentindo a frustração ser amenizada pelo carinho que sua mão fazia em
minhas costas.
Inclinei a cabeça para trás, encontrando seus olhos no meu rosto e,
pela primeira vez desde nossa primeira conversa na minha sala, reconheci
uma emoção por trás da máscara impenetrável que ele sustentava.
Preocupação.
— Conheço o histórico dos funcionários da Green — disse, evasivo.
— E confesso que fiz algumas ligações para descobrir quem iria tentar
roubar você de mim.
Acenei, curiosa.
— Então, enquanto eu estava fazendo entrevista com a
concorrência… você estava preocupado com o meu bem-estar? — indaguei,
arqueando a sobrancelha.
Renato não me abandonou, mas permiti que meus braços o soltassem
e o fitei com diversão. A Green era uma subsidiária da corretora do Bruno
Palheiros, e eu sabia que Renato e ele trabalharam na mesma época em uma
gestora em Londres, mas pela tensão em seus ombros, não parecia que os
dois eram amigos.
Ele deu de ombros, como se não fosse nada.
— Bem, você é minha responsabilidade até sexta-feira.
Ri baixinho.
— Então, tudo isso é por medo de processo?
Renato rolou os olhos e se afastou um pouco. Ele manteve a mão em
minhas costas e seu polegar desenhava círculos invisíveis, espalhando
pequenos arrepios por toda a região.
— Você é muito implicante, já te disseram isso? — perguntou, me
fazendo sorrir.
— Teimosa, implicante, arrogante… posso fazer uma lista, se você
quiser.
— Não é uma crítica — esclareceu, usando a mão livre para apanhar
o meu queixo e apertar levemente, mantendo-me submersa no seu olhar
profundo. — É o que torna você única.
Tentei a muito custo conter o sorriso, mas o combo dos seus olhos
sobre mim e de suas palavras, tornou a tarefa impossível de ser executada.
— Você é muito gentil… agora eu entendo o motivo de ter aceitado
que nos casássemos tão rápido — brinquei, desconcertada, afastando-me
um pouco para fugir daquela perturbação que ele me causava.
Despreocupadamente, arrastei os dedos em seu peito, mesmo sob o
tecido da camisa; eu conseguia sentir os músculos definidos se desenhando
sob a minha pele. Sem pressa, ajustei a gola — por pura necessidade de
compensar o gesto impensado. Aquele tom de branco combinava muito
com ele.
Renato não se queixou pelo meu toque, ao contrário, quando ameacei
afastar as mãos; ele capturou meus pulsos e me obrigou a olhar em seu
rosto, me dando um sorrisinho cafajeste.
— Pensei que tinha sido pela minha beleza.
Fitei-o, engolindo uma risada baixa e acenei, dando um passo para
trás e ganhando uma distância antes que eu inventasse uma bobagem. Era
muito fácil se deixar envolver pelo Renato e toda a intensidade que ele
emanava — ao ponto de sequer notar quando o clima mudava drasticamente
e a brincadeira acabava se tornando um flerte.
No entanto, meu corpo não aprovou a distância imposta.
— Podemos ir? — perguntei, torcendo para que fôssemos a um lugar
com muitas pessoas porque, definitivamente, não era recomendado que
ficássemos sozinhos.
Renato concordou, dando espaço para que eu fosse na sua frente.
Recolhi as minhas coisas, vestindo o meu sobretudo com a sua ajuda e
atravessei a sala, para alcançarmos o elevador que estava parado no meu
andar.
Durante todo o trajeto para o estacionamento, Renato me contou
sobre sua despedida dos filhos no aeroporto mais cedo. Eles viajaram com
os avós para Orlando e voltariam apenas depois do Carnaval.
— Nem se deram ao trabalho de olhar para trás — lamentou, fingindo
mágoa. — Apenas se despediram e correram para dentro do avião.
Sorri, era inevitável ficar admirada com o quão maravilhoso pai ele
era. Os garotos eram adoráveis, as duas crianças mais preciosas que eu já
conheci em toda a minha vida, e isso era mérito exclusivo de Renato.
Apesar da rotina agitada, das viagens frequentes e de todo o estresse do dia
a dia, era evidente que ele estava presente e participava de cada etapa da
vida de seus filhos.
Não dava para não admirar.
— Eles adoram você, não se preocupe.
Renato assentiu e me guiou para o carro, enquanto eu trocava
mensagens com a equipe de segurança para que não me seguissem naquela
noite. Com a condição de manter o GPS do celular ativo durante todo o
tempo, consegui a resposta que esperava. Guardei o aparelho e mirei o
homem que havia acabado de ocupar o assento ao meu lado.
— Ainda não tive a chance de te agradecer por ter ido ao aniversário
do Igor — falou, dando partida no carro. — Foi muito importante para ele.
— Foi um prazer, queria ter conseguido ficar mais um pouco —
confessei, mas como a mãe da Bia acabou tendo complicações, assim que o
médico a notificou da mudança no quadro, inventei uma desculpa para que
saíssemos.
Bianca não queria que as pessoas soubessem sobre sua mãe, e não era
meu direito contar sobre isso para ninguém. Por isso, optei por não me
aprofundar naquela conversa.
— Sua amiga desistiu de investir em você?
— Minha amiga?
— Geovana.
Ele riu baixo, balançando a cabeça devagar.
— Não nos encontramos nos últimos dias — falou, e ignorei a forma
como meu corpo relaxou com aquela informação.
Não começa com maluquice, Nathalia Gama!
Renato guiou o carro para fora do meu prédio, a música baixa tocava
juntamente com as nossas vozes, enquanto explicava para ele o que havia
acontecido durante a entrevista.
Nos minutos que seguiram, Renato escutou com muita paciência cada
palavra que metralhei em sua direção, demonstrando seu descontentamento
com pequenas reações. Hora apertando o volante quando contava sobre
como Oliver ficava toda hora encostando em mim, noutra deixando um
vinco preencher sua testa — quando expliquei sobre todo o interrogatório
em relação ao meu pai.
— Você está considerando aceitar? — perguntou, intrigado.
E se eu fosse inteligente, teria dito que estava avaliando as opções —
afinal, ele me faria uma oferta naquela noite. Mas ao ver a tensão em seus
ombros, não tive coragem.
— Não — esclareci, firme. — Ficou claro que eles não me querem,
só o meu sobrenome.
Uma das condições para a oferta, era que usasse o sobrenome do meu
pai em todos os materiais institucionais da gestora. E eu seria como uma
atração circense que usariam para conseguir mais prestígio entre os clientes.
Oliver me disse aquilo com todas as palavras, não era uma mera impressão
minha.
“— O sobrenome Gama vai ajudar a trazer mais prestígio para a
equipe e, quem sabe… seu pai não possa dar um pulinho aqui de vez em
quando para visitar a filhinha?”
Seu pai.
Não, o Miguel.
Ou o CEO do grupo Alpha Capital Investiments.
Meu pai.
Por que se fosse para me reduzir ao homem que me criou e amou, por
que não deixar claro qual era a nossa ligação? Faltou pouco para que o
recrutador sugerisse que nas minhas funções, estivesse primeiro o maior
cargo da minha vida: ser a filhinha de Miguel Gama.
Muito me surpreendia que não tivessem preparado uma recepção para
o meu pai já que, aparentemente, eu não existia sem ser sua gêmea siamesa.
As pessoas nos viam como promoção de feira, daquelas: compre 1, leve 2.
O alívio que atingiu Renato foi perceptível e ele assentiu, olhando-me
de esguelha enquanto dividia sua atenção em continuar me escutando e
dirigindo. Busquei pelo sentimento de culpa por ter desabafado com ele,
mas não apareceu.
Meu cérebro não me repreendeu por ter deixado algumas
inseguranças tão explícitas, sendo que tinha acabado de conhecê-lo, mas…
era ali que morava o problema! Renato me fazia sentir que o conhecia a
vida inteira, logo, era fácil me abrir com ele.
Notei que estávamos saindo da cidade, entrando em uma estrada
menos movimentada e coberta por árvores, mas não era um trajeto estranho.
No meio da serra existiam vários restaurantes com alguns dos melhores
chefes de cozinha, era um lugar interessante para passar o dia, um pouco de
natureza nos arredores da selva de concreto.
Gostaria de conseguir visitar com mais frequência essa parte da
cidade. Talvez um dia, até mesmo morar por ali. Eu sabia que Pedro
Zimmermann estava construindo um complexo de condomínios residenciais
naquela região.
— Sinto muito pela entrevista de merda — disse Renato, atraindo
minha atenção e virei o rosto, apertando os lábios em um sorriso contido.
— Tudo bem, não é como se eu estivesse considerando trabalhar lá…
Faria Lima não combina comigo, e eu sou muito maior do que eles —
murmurei, arrogante.
Aquilo arrancou uma risada de Renato e fez com que seus ombros
relaxassem um pouco. Ele só não sabia que estava sendo sincera em cada
palavra. Eu não consideraria trabalhar naquela região porque precisaria
esbarrar com a equipe da Alpha — e, consequentemente, com alguns
desafetos.
Todo crápula que existia no mercado financeiro, estava localizado no
mesmo prédio em que o escritório da Green ficava. E eu preferiria arrancar
minha cabeça do pescoço, a precisar dividir o mesmo oxigênio que
qualquer funcionário da Guns Asset.
Era um consenso básico: onde as pessoas mais falsas, mentirosas,
traiçoeiras, boçais, preconceituosas, machistas e ladras atuariam? Só existia
uma resposta, e era a Guns.
Eu agradecia todos os dias por meu melhor amigo ter desenvolvido
um caráter mil vezes melhor do que o de seu pai. Mesmo com um filho fora
da curva, Charles, CEO da Guns, não se incomodou em unir toda a
podridão do mercado financeiro em apenas um ambiente e transformá-los
em seus pequenos soldadinhos.
E a última coisa que eu queria, era dividir a mesma localização que
eles.
— Você parecia tão animada com essa entrevista — zombou Renato,
me fazendo revirar os olhos.
— Claro que estava, dava para perceber nos meus olhos o quanto eu
queria que tudo corresse bem. Assim como você, né?
— Eu?
Estalei a língua.
— Admite, passou o resto do dia torcendo para que minha entrevista
fosse um desastre, não foi? — Arqueei a sobrancelha, olhando-o com um
meio sorriso.
— Não me considero um homem religioso…
— Tenho certeza de que passou a tarde inteira preocupado.
— Você é muito prepotente, Sra. Trevisan.
Pisquei, ingênua.
— Pensei que fosse por isso que você se apaixonou por mim, querido
esposo… — devolvi, apreciando o sorriso que se formou em seus lábios.
Você está indo por um caminho perigoso… cuidado!
Aquela voz irritante da minha consciência reverberou, repreendendome pela maneira como estava ficando confortável demais perto dele.
Por sorte, Renato entrou no estacionamento de uma construção
holandesa, tudo era bem iluminado mesmo sendo no meio de uma reserva
florestal. O lugar também não estava cheio, talvez, por conta do horário ou
da localização mais afastada.
Um manobrista se aproximou e a porta foi aberta por outro
funcionário, mas Renato me alcançou mais rápido e capturou a minha mão,
ajudando-me a sair do carro.
Conforme andávamos pelo estacionamento repleto de cascalhos,
ponderei sobre soltar a sua mão. E mesmo quando alcançamos o piso
nivelado e seguro, não quebrei o contato.
Deveria? Sim. Fiz? Óbvio que não.
Todavia, em minha defesa, Renato também não se afastou.
Conforme éramos guiados pela recepcionista, meus olhos
percorreram o ambiente que parecia recém-reformado, alguns lustres
clássicos dividiam espaço com trepadeiras penduradas no teto, as mesas
eram bem separadas — proporcionando privacidade —, e todos os
atendentes eram muito educados.
Nunca tinha estado naquele restaurante, em específico, mas Renato
parecia conhecer o lugar como a palma da sua mão. O suficiente para que
me guiasse para uma parte mais reservada, uma espécie de sala privativa.
Ele acenou para a recepcionista que nos deixou a sós.
E lá se foi, o meu plano de ficar em um lugar com várias pessoas.
Ele costumava frequentar muito essa parte?
— Renato!
Meus questionamentos foram deixados de lado ao perceber quem era
o homem que caminhava em nossa direção. Alexandre Bianchi, um dos
chefes italianos mais renomados do país e cliente do Renato. Era
apaixonada na sua culinária desde que conheci seu restaurante-conceito em
Veneza, durante uma viagem de verão com a minha mãe.
Ela certamente teria um treco se estivesse aqui.
Os dois se cumprimentaram, como se não se vissem há muito tempo e
a atenção de Bianchi veio em minha direção, descendo para a mão de
Renato que permanecia entrelaçada na minha.
— Você deve ser a nossa convidada de honra — disse Alexandre,
segurando minha mão livre e a levou aos lábios, deixando um beijo nela. —
Nathalia, certo?
Acenei, concordando.
— É um prazer conhecê-lo, Sr. Bianchi.
— Apenas Alexandre — pediu, simpático. — Me sinto mais velho do
que sou quando me chamam de senhor.
Sorri, notando que ele não parecia tão velho quanto deveria para a sua
idade — mesmo com os fios grisalhos em seu cabelo e barba. Os olhos
escuros eram gentis e ele quase não tinha marcas de expressões pelo rosto.
— Vou deixá-los à vontade — disse Alexandre, piscando para
Renato, que revirou os olhos, como se entendesse a mensagem que aquele
gesto transmitiu.
Assim que o homem se afastou, Renato voltou para mim e apertou
seus dedos contra os meus, me dando um meio sorriso antes de me guiar
para a única mesa disposta ali.
O ambiente era bem arejado, com muita natureza em volta graças ao
jardim suspenso sobre nossas cabeças. Era como jantar no centro de um
labirinto de camélias, enquanto alguns pêndulos iluminavam o espaço. Uma
música suave tocava ao fundo, preenchendo o silêncio acolhedor. Acima de
nós, uma claraboia permitia vislumbrar o céu estrelado daquela noite.
Sem dúvidas, era um dos lugares mais lindos que já visitei.
Após recolher os nossos pedidos, o garçom nos deixou a sós e olhei
para o Renato, encontrando-o me observando.
— O quê? — indaguei, curiosa.
Renato balançou a cabeça, como se espantasse um pensamento, e
entrelaçou as mãos sobre a mesa. Ele respirou profundamente e buscou pelo
meu olhar, mantendo o clima amigável ao nosso redor —mesmo que eu
conseguisse sentir uma tensão incômoda ameaçando perfurar a bolha.
— Precisamos conversar sobre sua posição na firma.
Ah, ele ia direto ao assunto?
Certo, pensei que comeria pelas beiradas antes.
Assenti, aceitando a taça de vinho e bebendo um gole.
— Não existe uma maneira sutil de explicar o que aconteceu, por
isso, preciso que você aguarde até que eu termine de falar, tudo bem? —
pediu, encarando-me com cuidado.
Franzi o cenho, apertando os dedos no cristal da taça.
Seu pedido me deixou intrigada, porque ninguém dizia aquilo antes
de dar uma boa notícia.
— Claro, o que houve?
Renato endireitou os ombros e se fosse qualquer outra pessoa, eu não
tinha a menor dúvida de que depois daquele pedido, teria ficado aflita e
ansiosa, com a sensação irrefreável de que seria passada para trás sem saber
de onde veio o golpe. Contudo, algo em seu olhar me manteve calma.
— Você participou do processo de formulação de contrato social,
partnership e o código de conduta do escritório junto com o Marc —
murmurou, sem fugir do meu olhar inquisidor. — Mas não participou da
negociação das cotas de sócios fundadores.
Acenei, concordando.
Foi uma reunião em portas fechadas, Roberta me explicou como tinha
sido e que, apesar dos números de Renato e Leandro serem
exponencialmente maiores que os dela — pelo fato de ter perdido muitos
clientes depois do golpe do seu antigo sócio —, ela conseguiu uma posição
justa.
Tínhamos feito os cálculos e eu sabia que ela conseguiria menos de
15% do escritório se usassem apenas seus números como base. Entretanto,
Roberta disse que os rapazes levaram em conta todo o seu currículo quando
ofereceram um percentual extra.
— Por que isso é relevante? — questionei, mais perdida que antes.
— Nas primeiras reuniões, ficou determinado que a Roberta receberia
doze por cento das cotas principais e, se quisesse, poderia comprar um
montante de secundárias da tesouraria — elucidou.
— E na véspera da assinatura do contrato vocês cederam mais uma
parte, eu sei — murmurei, tamborilando os dedos na mesa, ansiosa. — O
que isso tem a ver comigo?
Renato franziu o cenho, como se não soubesse do que eu estava
falando. No mesmo segundo, um pressentimento ruim me atingiu.
— Quem te disse que concedemos?
— A Roberta. — Enrijeci os ombros, vendo a surpresa perpassar em
suas íris. — Ela me disse que tinha conseguido quinze, mas depois vocês
negociaram e cederam o restante por conta… — minha voz morreu ao
reconhecer algo em seu rosto.
— Essa conversa nunca aconteceu — esclareceu, sério. — Roberta
recebeu as cotas extras, porque na última checagem de patrimônio, o
relatório dela sinalizou uma diferença gritante de posição. Ela justificou que
era por conta da entrada de seis novos clientes, que juntos totalizavam vinte
bilhões em investimentos.
Aquilo não fazia sentido, o último cliente que Roberta assinou havia
sido Henrique Zimmermann, e muito antes das reuniões finais sobre a
fusão.
Como se soubesse que eu não estava ciente daquela parte da história,
Renato esticou o braço em direção à cadeira vazia ao seu lado e puxou um
envelope lacrado. Reconheci o monograma do escritório de advocacia
porque tinha visto aquilo mais vezes do que conseguia contar nos últimos
meses. No entanto, quando Renato me passou o envelope, meu estômago
deu uma cambalhota de nervosismo e uma sensação desagradável se
instalou no meu peito, à medida que eu abria o envelope.
— Na primeira página, você vai encontrar o nome dos clientes e os
valores de portfólio de cada um, deve reconhecê-los porquê…
Eram os meus clientes.
Meus olhos fixaram na primeira página, reconhecendo cada nome.
Eram clientes com carteiras menores, amigos de infância que receberam
heranças e quiseram manter o dinheiro investido até que encontrassem onde
aplicar parte daquele patrimônio.
Scott Vaughn era um amigo do colégio e meu primeiro cliente, ele
sempre me fazia companhia durante minhas temporadas no Brasil e
atualmente estava na WHU, fazendo pós-graduação. Como era um cliente
que não mexia nos recursos com frequência, eu não tinha o hábito de checar
seu portfólio sempre… o que permitiu que Roberta migrasse sua conta para
a base dela, sem que eu notasse.
O mesmo aconteceu com os outros cinco, eram clientes e amigos que
não demandavam tanto acompanhamento, as contas estavam protegidas por
inúmeros gatilhos que disparariam e me notificariam se algo saísse do
previsto, logo, eu não entrava com frequência e não notaria a mudança no
código de administrador principal.
Eles ainda eram meus, mas Roberta havia sido designada como sua
manager; o que os colocava no portfólio como clientes dela.
Engoli em seco, precisando beber um pouco mais de vinho para
conseguir engolir o nó que se instalou em minha garganta. A taça secou e
estendi para Renato, pedindo que a enchesse novamente.
Ele atendeu ao meu pedido sem titubear, me dando o tempo
necessário para analisar todos os documentos que Roberta enviou para
corroborar que aquilo era real. E, ao fim da última página, sentindo a visão
embaçada devido às lágrimas que se acumulavam, tive certeza de que não
era uma brincadeira de mal gosto de Renato.
Eu não tinha perdido nada com aquilo, continuei recebendo por todos
eles por estar vinculada como associada às contas, mas ainda assim… era
inacreditável que Roberta pudesse ter feito aquilo, era uma ruptura absurda
na confiança que depositei nela.
— Por que está me mostrando isso? — perguntei, sentindo minha voz
não passar de um chiado rouco e ressentido.
— Porque o percentual extra que ela recebeu, deveria ter sido
negociado para você, Nathalia.
Certo, certo, certo.
Então, eu tinha perdido alguma coisa.
— Você não pensou em fazer uma auditoria?
O questionamento soou como uma acusação de culpa que não cabia
ser descarregada nele, ainda assim, foi em Renato que precisei aliviar, uma
vez que tinha sido ele quem me fez enxergar a faca enfiada nas minhas
costas.
Era daquela maneira que ele queria me fazer ficar no escritório?
Mostrando que havia sido passada para trás pela pessoa que mais confiava?
Eu era mesmo muito ingênua, todos estavam certos sobre mim.
— Você sabe melhor do que ninguém que todas as contas foram
auditadas — disse, imperturbável.
E sim, tinha total ciência disso. O fato dela estar como manager dos
clientes era o suficiente para que passasse na verificação. A transferência
gerava um documento que era assinado pelo diretor financeiro do escritório,
e Roberta providenciou tudo.
Ainda assim, não pude conter a mágoa com a bomba que ele jogou no
meu colo.
— Quando você soube? — indaguei, abandonando os documentos
em cima da mesa, sentindo-me nauseada.
Definitivamente, estava aliviada que ele não esperou a chegada dos
nossos pratos, porque havia perdido o apetite.
— Algumas semanas atrás. — Foi sincero, mas como eu poderia ter
certeza se não estava sendo enganada de novo? — Quando Marc a
questionou sobre você estar vinculada aos clientes como associada, ela
alegou que era comum que você lidasse com alguns clientes dela. Quando
eu a cobrei sobre a verdade, ela disse que vocês fizeram um acordo e que,
posteriormente, receberia a sua parte.
Ri, nervosa.
— Isso nunca existiu.
— Eu sei. Ela não admitiu, mas estou nesse meio há tempo demais
para reconhecer quando mentem na minha cara — falou, sem desviar os
olhos. — E compreendo que descobrir isso te faz querer sair do escritório.
Mirei Renato, sentindo as emoções afloradas e respirei fundo,
tentando lembrar meu cérebro que ele não era o alvo da minha raiva.
Mesmo que soubesse de tudo, que responsabilidade ele tinha comigo?
Nenhuma. Nos conhecíamos há pouco tempo.
Era Roberta quem me devia muito. Ela que dizia ser minha amiga e
que gritava aos sete cantos do mundo que eu era a pessoa que ela mais
confiava em sua vida.
Claro que confiava, quem mais seria tão estúpida ao ponto de
acreditar que ela estava sendo honesta?
Lidar com o choque de que ela tinha mentido para ele sobre o meu
desentendimento com Guilherme, havia sido doloroso. Mas aquilo? Me usar
sem que eu soubesse para alavancar sua posição na sociedade? Merda, se
ela tivesse me pedido, ainda que julgasse muito errado, eu teria considerado
para ajudá-la. Sempre fiz tudo pelo bem dos meus amigos. Mas agir pelas
minhas costas, alegando que eu estava ciente de tudo? Aquilo era
imperdoável.
— Você realmente acha que existe alguma chance de eu aceitar
qualquer coisa que me ofereça agora? — perguntei, magoada.
Naquele momento, tudo fez mais sentido. A disposição para me
trazer para um restaurante fora da cidade, no meio da serra e longe de
qualquer ponto de táxi. Ele sabia qual seria minha reação e que a única
coisa que me impediria de levantar e ir embora, sem olhar para trás, era o
fato de que não tinha como sair daqui sem ele.
— Espero que sim — disse, oferecendo-me outro envelope. Meu
orgulho, no entanto, estava ferido demais para que estivesse disposta a
avaliar o que ele pretendia propor. — Por favor, Nathalia.
Apertei a mandíbula, odiando a parte de mim que amoleceu com o
seu pedido e cedi, apanhando o envelope e retirando os documentos dele.
Inicialmente, esperei por outra revelação que me faria sentir vontade de
fugir para as montanhas e nunca mais olhar para ninguém, mas o que
encontrei era diferente. Nada tinha a ver com Roberta ou Guilherme. Era
apenas sobre mim.
Meus números estavam descritos com detalhes minuciosos, para cada
cliente havia sido designado um percentual que no fim, totalizavam dez por
cento.
Dez por cento de quê?
Os cálculos foram realizados na semana em que conheci Renato, no
dia seguinte à nossa conversa na minha sala, quando, naquela noite, contei a
ele a verdade sobre o meu problema com Guilherme. Em outra página,
deparei-me com um termo de transferência de cotas societárias em que a
beneficiária era… eu?
— Vocês estão me oferecendo dez por cento da sociedade? —
perguntei, abismada.
E ao olhar a página seguinte, soube que não eram os sócios que
estavam ofertando aquilo, mas o próprio Renato.
Renato Monteiro Trevisan: 33.000.000 quotas
Leandro Barbieri Salazar: 32.000.000 quotas
Roberta Montes Faroni: 20.000.000 quotas
Nathalia Maia de Bazán Gama: 10.000.000 quotas
Guilherme Bastos: 3.000.000 quotas
Tesouraria: 2.000.000 quotas
Pisquei, assombrada.
— Roberta irá ressarcir as gratificações que recebeu com o adicional
que te pertencia, e você passa a ter dez por cento de direito na sociedade.
Além de ser promovida ao cargo de diretora de operações e ganhar um
assento na mesa do conselho — disse, descrevendo exatamente o que estava
escrito no termo que havia sido assinado por Roberta duas semanas atrás,
antes dela viajar.
Roberta devolveria os valores que Renato e Leandro pagaram a ela
como bonificação pelo percentual extra, e Renato transferiria dez por cento
de suas cotas societárias para mim como bonificação pela promoção ao
novo cargo.
— Diretora de operações?
— Já passou da hora de você receber o título que cabe ao que faz,
não? — perguntou, sorrindo fraco. — É você quem gerencia cada divisão
daquele escritório, está por dentro de cada operação, contrato e cliente que
entra ou sai. Era o cargo que devia ter sido promovida há muito tempo.
— Eu… não sei o que dizer — falei, sincera.
Era muita coisa para que eu processasse em pouco tempo, o que mais
aconteceria naquele dia?
Renato aquiesceu, compreensivo.
— Faremos dessa forma: fique com a minha proposta, mostre ao seu
advogado e reflita sobre o que eu te falei. No fim da semana, você me diz o
que decidiu, tudo bem? — ofertou, gentil.
Mas eu não precisava pensar, era insanidade aceitar aquilo.
— Não posso.
Renato não pareceu se surpreender, era quase como se já esperasse.
— O que não pode aceitar? Seja mais específica, anjo.
Era exatamente por causa daquilo que não podia aceitar.
Renato e eu ficamos muito próximos nos últimos dias, e se ainda
existia a menor dúvida de que ele estava interessado em mim, Leandro a
sanou naquela tarde.
O que me garantia que aquela oferta não estava sendo feita por conta
disso?
— Você sabe o motivo — falei, aborrecida.
Renato capturou minha mão sobre a mesa, prendendo-a entre as suas
e deixou de lado qualquer cautela que vinha sustentando.
— Por que estou interessado em você? — perguntou e acenei,
confirmando. Ele sorriu, tranquilo. — A movimentação foi feita muito antes
de nos aproximarmos, Nathalia. Olhe as datas no documento.
Indicou e meus olhos recaíram na data da assinatura e registro no
cartório, aquilo tinha sido feito antes do nosso encontro no Niké e a social
na casa de Leandro.
— Mas ainda assim…
— Você não me deve nada, se é isso que está pensando — afirmou,
arrancando as palavras da minha boca —, a promoção existe porque é uma
profissional extraordinária, Nathalia. Em apenas dois anos, você construiu o
que alguns sócios meus não foram capazes de fazer em dez. Goste ou não,
reconheço e bonifico as pessoas em quem acredito. E não tem ninguém
naquele escritório que eu veja mais potencial do que em você.
Seu polegar acariciou delicadamente o dorso da minha mão,
transmitindo carinho e cuidado. Meu pai costumava dizer que as pessoas
que conseguiam nos olhar nos olhos sem desviar, eram aquelas em quem
podíamos confiar. E Renato não afastou a sua atenção nem por um breve
momento.
— Independente do meu interesse em você, a oferta existiria, quer
queira ou não. Eu seria o pior CEO da história se permitisse que saísse da
minha empresa sem negociar — explicou e meus ombros relaxaram um
pouco. — Entendo que descobrir o que Roberta fez te colocou em uma
posição complicada, e que se sente traída e passada para trás. Mas o acordo
que está na mesa será fechado comigo, e eu não pretendo, de forma alguma,
prejudicá-la. Você tem a minha palavra.
Engoli em seco, encarando-o reflexiva.
— Eu poderia simplesmente me sentar aqui, oferecer o cargo de
diretora de operações e nunca mencionar o que Roberta fez… porque,
vamos ser honestos, não pegaria muito bem sobre mim, como CEO, ter sido
enganado dessa maneira. — A careta em seu rosto deixava claro que esse
assunto ainda não tinha sido completamente resolvido para ele. — A
melhor alternativa para evitar dores de cabeça seria varrer a sujeira dela
para debaixo do tapete e seguir em frente. Faz parte do jogo, e isso acontece
em todos os lugares, não é mesmo?
Aquiesci, amuada.
Ele não estava errado, afinal, a culpada era eu. Depositei minha
confiança em Roberta e lhe dei acesso às minhas contas, acreditando que
ela jamais faria algo assim. Eu merecia enfrentar as consequências dessa
apunhalada que levei.
— E por que não fez isso? — questionei.
Renato estreitou seus olhos nos meus, as íris escuras pareciam
penetrar a minha alma e segurá-la em suas mãos.
— Porque ela fez isso com você. Posso ignorar essas trapaças com
qualquer um, menos com você — falou, sem rodeios.
— Por quê?
Renato deu de ombros, sereno.
— Porque é você, e não vou permitir que ninguém te prejudique —
afirmou, sem hesitar.
Um suspiro escapou dos meus lábios e apertei os dedos em volta da
minha taça, afetada demais por tudo.
— E por que isso é tão importante para você? — insisti, chateada.
Odiava sentir que tinha sido usada como uma escada, e descobrir que
Roberta mentiu para mim por todo esse tempo e me usou para alavancar a
própria carreira, me tirou dos trilhos.
Renato não desviou o seu olhar, e sequer recuou ao dizer:
— Porque tudo sobre você, é importante para mim.
Ri, amarga.
— Você acabou de me conhecer, Renato.
Meu comentário não pareceu o incomodar, seus olhos espreitaram os
meus e ele apenas deu um sorriso torto.
— Tempo é algo relativo. Por que acabei de te conhecer, não posso
me importar com você? — retrucou, paciente.
E seria muito hipócrita da minha parte negar, porque eu me importava
demais com ele e com o Leandro. Era injusto ver que foram sacaneados
bem debaixo do meu nariz, porque, diferente de Roberta, eles foram
sinceros em cada etapa da negociação.
Suspirei, apertando o lábio inferior entre os dentes.
Meu cérebro parecia buscar uma resposta, mas eu não conseguia me
concentrar muito nisso. Estava completamente anestesiada. A traição tinha
esse efeito devastador, tirava o nosso chão e nos deixava perdidos, sem
rumo. Sempre soube que o mercado era um terreno traiçoeiro, repleto de
pessoas gananciosas que, na busca por reconhecimento, cruzavam os limites
da ética e se deixavam corromper. Já tinha presenciado isso acontecer mais
vezes do que eu poderia contar, mas nunca imaginei que eu estaria na
posição de ser vítima dessa trapaça.
Na verdade, fui ingênua o suficiente para acreditar que poderia
atravessar aquela zona de guerra sem ser atingida.
Como eu consegui ser tão cega?
Levantei meu olhar para Renato, e seus olhos permaneceram firmes
em mim. Eu não deveria confiar na sua promessa de que não me
prejudicaria. Afinal, minha intuição havia falhado com Roberta, por que
não falharia com ele também?
Mas talvez fosse meu orgulho ferido falando mais alto, ou o fato de
que, ao que parecia, fomos os únicos nessa transação que disseram a
verdade para o outro…, mas acreditei em suas palavras e me senti
compelida a aceitar sua proposta. Eu merecia aquele cargo.
Engoli a mágoa, deixando para lidar com a minha autoflagelação em
casa, quando pudesse permitir que o monstro na minha cabeça me
envenenasse com uma dose extra de autodepreciação.
— Aceito o cargo de diretora de operações — falei, baixo, vendo-o
acenar em resposta. — Mas não posso aceitar as cotas na sociedade.
— É um combo.
— Renato…
— Nathalia, é o que é justo.
— Não que saia de você — retruquei, ressentida.
Ele sorriu, despreocupado, e mesmo que eu estivesse magoada, a
maneira como Renato me olhava conseguia aliviar o peso do sentimento
negativo que se instalava em meu peito.
— Se for para abrir mão de algo, que seja por você, Sra. Trevisan.
Tentei impedir que o sorriso escapasse dos meus lábios, mas foi
inevitável. Que idiota que eu era, como conseguia ser tão facilmente
manipulada por ele?
— Você é horrível — resmunguei, soltando sua mão e o olhando
chateada. — E um péssimo negociador.
— Mas ainda assim, você se casou comigo.
— De mentira — frisei, agradecendo por ele ter aliviado o clima
pesado.
— Em breve será realidade — rebateu, me arrancando uma risada
genuína.
Balancei a cabeça, sentindo o rubor tomar as bochechas e voltei para
o documento que precisava apenas da minha assinatura para se tornar
oficial. Eu não precisava que o advogado visse, tudo parecia dentro dos
conformes e não havia nenhuma cláusula surpresa.
Com um vinco na testa, voltei a olhar para Renato, que permanecia
atento a mim.
— Você está apostando alto nisso — murmurei, buscando por
qualquer sinal de que ele tinha dúvidas do que estava fazendo. — Tem
certeza?
Ele me ofereceu uma caneta e acariciou minha mão.
— Você vale o risco — afirmou, franco e intenso.
Sorri, anuindo e apanhando a caneta que me ofereceu.
Talvez, na manhã seguinte, me arrependesse por não ter refletido
direito na minha decisão, mas naquele momento, parecia fazer muito
sentido.
— Tudo bem… temos um acordo — falei, deixando a assinatura na
linha pontilhada, concordando com a aposta mais insana que fiz na minha
vida.
Olhei para Renato, encontrando seu olhar satisfeito. Soltei minha mão
da sua, endireitando os ombros e guardando o documento no envelope,
selando-o e estendendo em sua direção.
Renato fez menção a pegá-lo, mas afastei e repassei para ele o mesmo
aviso que tinha feito para Roberta dois anos atrás.
— Vou tomar um tiro por você, no sentido literal — anunciei, serena
—, mas quando precisar… e acredite em mim, eu vou. Quero a sua palavra
de que vai me dar o que eu pedir, independente do quanto seja contra o meu
pedido.
Renato não hesitou.
— Você a tem.
Apertei os olhos nos seus.
— Sem sequer pensar?
— Não preciso — disse, seguro da sua escolha. — O que você me
pedir, terá — declarou. — Tem a minha palavra.
Anuí, entregando o envelope para ele, sem ter mais como voltar atrás
na decisão que tomei.
— Temos um acordo, falso esposo.
Ele sorriu. E me vi refém dele novamente, agradecendo aos céus pelo
garçom ter aparecido com o nosso jantar.
Na manhã de quinta-feira, a minha primeira parada foi na mesa de
operações para acompanhar os reajustes de posições.
O jantar com Renato no início da semana passada havia terminado de
forma tranquila, mesmo depois de todo o choque devido à situação com
Roberta. Entre uma taça de vinho e outra, conversamos sobre coisas banais,
rimos e discorremos sobre diversos assuntos, exceto em relação ao trabalho.
Por volta de 02h00, ele me deixou na entrada do meu apartamento e se
despediu com um beijo na minha testa e me deu um sorriso traiçoeiro ao
desejar boa noite.
Na manhã seguinte, ele viajou para realizar algumas reuniões com
clientes do Rio, e ainda assim, conversamos quase todos os dias. Nas noites
em que ele ficou no quarto do hotel, passamos horas no FaceTime testando
o desempenho do fundo de investimentos que criei para a inscrição da
B&H, e mesmo que eu insistisse que não era necessário, Renato fez questão
de acompanhar cada etapa até que eu concluísse o último parágrafo da
minha carta de intenção.
O restante da semana, passou em um piscar de olhos. Entre as aulas
da especialização, os encontros semanais com o Prof. Becker, a conclusão
do relatório do IPO falso para a outra parte da inscrição; o escritório e a
adaptação ao meu novo cargo — que não exigia nada muito diferente do
que eu já fazia —, eu consegui encaixar uma saída com Bianca, Leandro,
Marc e Maya para uma balada.
Além disso, após a assinatura no aditivo do contrato que Renato me
entregou no jantar, ele enviou o documento para o Marc; que aproveitou
para dar andamento na conclusão da fusão que havia sido paralisada.
Quando o cartório e a CVM finalizaram a verificação de toda a
documentação, a equipe de Marketing anunciou publicamente sobre a fusão
nos veículos de imprensa e, consequentemente, transformou o início da
semana seguinte em um caos.
Entre os clientes que queriam nos parabenizar pela conclusão da
negociação, a ausência de Roberta e a viagem de negócios de Renato…
sobrou para que Leandro e eu administrássemos tudo. Para melhorar a
situação, a tarde passada havia nos presenteado com um circuit-breaker
bem no meio do pregão — causando um delírio generalizado entre clientes
e associados, que nos fez trabalhar até tarde para colocar tudo em ordem.
A última vez que a bolsa brasileira sofreu uma interrupção das
negociações, foi durante a crise da bolha imobiliária nos EUA; mas os
sauditas pareciam estar determinados a estressar o mercado global de todas
as maneiras possíveis. Após passarem o mês de janeiro reduzindo os preços
dos barris, em um movimento totalmente contrário ao que outros
fornecedores de petróleo estavam fazendo, no início da semana eles
aumentaram em 50% de uma única vez, causando um colapso.
O que julgamos que seria uma desistência da movimentação confusa,
se mostrou uma operação mais contraditória quando na manhã de ontem,
anunciaram que reduziriam os preços em 80%. As refinarias que não
puderam acompanhar, pois, perderiam lucros e projeções para o primeiro
trimestre, sofreram com as quedas causadas pela venda em massa por parte
dos investidores, e o sistema de interrupção precisou ser acionado.
Leandro e eu saímos do escritório no meio da madrugada, acabados e
mortos de fome, porque não tivemos tempo sequer para respirar no meio
daquela confusão. E como Roberta não havia retornado para o Brasil,
incluímos seus clientes na lista de verificação — o que nos tomou algumas
longas horas.
Sequer tive tempo para desfrutar do meu novo título após o anúncio
da fusão, já que em eventos extraordinários como um circuit-breaker, todas
as movimentações entravam em revisão — mesmo as de sócios seniores —
e só eram liberadas após a aprovação da Diretora de Operações. E bem, eu
precisava analisar cada documento com muito cuidado e atenção, para
garantir que os clientes não fossem prejudicados pela troca de ativos.
Eram apenas 11h00 e eu estava exausta.
Era minha primeira semana como COO, e estava começando a me
perguntar onde tinha me enfiado.
Por sorte, o feriado mais esperado pelos brasileiros chegou, e por
mais desastrosas que as coisas estivessem no mundo afora… a bolsa
brasileira não operaria durante todo o Carnaval. E os investidores, se
espalharam pelo mundo para aproveitar o descanso, pouco se importando
com o que aconteceria naquele período.
Não existia nada que o brasileiro valorizasse mais do que um feriado
prolongado, e eu estava torcendo para que isso fizesse com que o restante
do dia fosse mais tranquilo.
Sentia como se um caminhão tivesse passado por cima e esquecido de
levar os meus restos mortais.
— Bom dia — saudou Roberta, me assustando ao encontrá-la na
minha sala, sentada em uma das poltronas próximas da estante de livros. —
Desculpe, queria estar aqui quando você chegasse e esqueci de avisar que
estava retornando para o Brasil.
Não, ela não esqueceu.
Conhecia Roberta mais do que ela pensava e ainda que vivesse sob as
camadas de seus personagens, eu tinha certeza de que não me avisar sobre
seu retorno para o Brasil havia sido premeditado. Ela queria me pegar
desprevenida.
— Bom dia — murmurei, fechando a porta atrás de mim e correndo
meus olhos pelo espaço, por puro hábito.
Um pequeno sorriso escapou dos meus lábios ao reconhecer o
embrulho rosa da confeitaria francesa. Eu não precisava chegar muito perto
para ler o cartão amarrado ao laço delicado, para saber quem deixou o
presente ali.
— Pensei que voltaria apenas na próxima semana — comentei,
atravessando o espaço e deixando a bolsa sobre a mesa.
Sem pressa, retirei o pequeno envelope com cuidado e o abri para ler
o cartão, sem dar atenção a Roberta.
“Quando for possível, posso ter a honra de receber uma visita da minha
COO favorita?”
Sorri, devolvendo o cartão para o envelope e guardando na gaveta ao
lado da minha mesa, desviei o meu olhar para Roberta, que me observava
com cautela.
— Renato conversou com você? — investigou.
— Sobre o quê? — perguntei, recostando o corpo sobre a mesa e a
encarando com calma.
— Bom, pela maneira vaga que está falando comigo, suponho que
sim. — Roberta se levantou e caminhou na minha direção, parando poucos
passos a minha frente. — Sei que pensa que eu traí sua confiança, mas não
a prejudiquei de nenhuma forma.
— Temos visões diferentes sobre isso.
Roberta sorriu, dura.
— Você passou pela porta e pediu por uma chance para provar para
as pessoas que era mais do que a filha do seu pai — disse, alfinetando um
ponto sensível. — Eu te dei isso. Nos ajudamos mutuamente e eu tomei
uma decisão que beneficiou a nós duas. Acredite ou não, a sua parte seria
entregue quando fosse o momento apropriado. Eu sempre fui justa com
você.
Foi a minha vez de sorrir, contudo, não era por bom-humor.
Era o oposto.
Estava ressentida porque confiei em Roberta de várias maneiras.
Acreditei que ela me protegeu no problema com o Guilherme, e ela apenas
fez o que todos sempre faziam: varreu para debaixo do tapete e não deixou
que ninguém soubesse da verdade. Pior ainda, mentiu para os sócios e fez
parecer que meu conflito com ele era mera implicância por divergência de
opiniões.
Mas antes disso, já estávamos tendo problemas por causa da fusão.
Ela aceitou entrar nessa desconsiderando todas as minhas ressalvas, e não
bastando isso, ainda me usou como parte da negociação sem sequer
perguntar se podia.
Se Roberta me dissesse que aquela era a única maneira de garantir o
que construímos nos últimos dois anos, mesmo que fosse errado, eu estava
disposta a colocar uma venda nos olhos e deixar que ela fizesse o que
julgasse melhor. Mas não, ela me usou como uma moeda de troca — assim
como todas as pessoas que me viam apenas como um meio para um fim.
O que ela achou que aconteceria? Ela pensou mesmo que eu ficaria
no escritório e nunca descobriria o que foi feito nas minhas costas?
— Não vou discutir sobre isso, Roberta — falei, sincera. — Mas se
você realmente quisesse ser justa, teria me deixado saber o que estava
fazendo. Mas não deixou, e sabe por quê? — Inclinei a cabeça, mirando-a
com desânimo. — Porque nós duas sabemos que você entrou nessa para
recuperar o que perdeu, custe o que custar. E na sua visão, eu a apoiaria
independentemente do que fizesse contra eles.
— E não apoiaria?
— Nunca pensei que a pior coisa que você pudesse fazer contra eles,
envolveria me prejudicar no meio do caminho também. — Sorri, cansada de
pensar no quanto fui estúpida por ser leal a uma pessoa que não era
recíproca. — Mas você estava certa em uma coisa, fui ingênua. Não vou
deixar isso acontecer outra vez. Estou com os dois olhos bem abertos, e não
vou ser prejudicada novamente pela deslealdade de outra pessoa.
Roberta balançou a cabeça vagarosamente, processando o que falei e
entendendo a mensagem. Não confiaria nela outra vez. A confiança era uma
coisa que se construía dia após dia, mas desmoronava com um sopro e
nunca mais se reerguia.
Não existia nada que ela dissesse que me faria esquecer do que tinha
feito, e não havia justificativas que amenizassem o golpe que me acertou
nas costas.
— Uma fusão, basicamente, é constituída por acúmulo de recursos —
falou, didática e diligente. — Clientes, sócios, funcionários… quanto mais
pessoas ao seu favor, mais recursos você pode usar em qualquer
movimentação… — prosseguiu, sem deixar de me olhar. — Renato é o CEO
e precisa de todo o apoio possível para continuar sendo. É um tanto irônico
que ele tenha cedido as cotas dele para você, não?
Apertei a mandíbula, compreendendo a sua insinuação. Odiei a parte
do meu cérebro que se concentrou nela, sinalizando uma bandeira
vermelha.
Contudo, não deixaria que Roberta usasse os seus métodos para
entrar na minha cabeça e me deixar preocupada com as intenções de
Renato. Confiaria na sua palavra de que havia feito aquilo porque
acreditava que eu merecia, independentemente de qualquer coisa que
acontecesse entre nós.
Renato não mentiu para mim em nenhum momento. Roberta me
enganou a cada segundo. Essa era a única coisa que me importava.
— Levando em conta que ele tem sido a única pessoa que está sendo
sincera comigo desde que essa fusão começou, eu vou me dar ao direito de
confiar na palavra dele — falei, sem me importar se tinha sido rude.
A única pessoa com o direito de ficar revoltada com toda essa
situação era eu, não ela. E não permitiria que Roberta se tornasse a vítima
da história.
— Há mais algum assunto que precisemos debater? — averiguei,
dando aquela conversa por encerrada.
Roberta sorriu de um jeito esquisito e balançou a cabeça, antes de me
dar as costas e sair da sala.
Soltei um suspiro fraco, tentando conter o sentimento ruim que estava
ameaçando ocupar espaço dentro de mim. Não permitiria que ela entrasse
na minha cabeça e me fizesse questionar se eu realmente merecia a
promoção.
A posição me pertencia porque trabalhei duro por ela, e se Roberta
acreditava que Renato tinha interesse de usar isso futuramente para me
manipular, era o tipo de coisa que dizia mais sobre o caráter dela, do que
sobre o dele.
Vacilei ao perceber que estava em frente a porta da sala ao lado da
minha. Não tinha certeza se queria conversar com Renato naquele
momento, mas não demorei a perceber que não queria falar com nenhuma
outra pessoa que não fosse ele.
Sem pensar muito, entrei na sala sem bater.
Encontrei Renato próximo às janelas de vidro, observando a
movimentação da cidade com os ombros retesados. Fechei a porta atrás de
mim, vendo-o girar nos calcanhares e fixar seus olhos nos meus, esboçando
um sorriso que não durou muito ao reconhecer a expressão no meu rosto.
Não soube se foi por conta do estresse dos últimos dias, a falta de um
sono regulado ou as palavras da Roberta, mas quando me dei conta, havia
falhado miseravelmente na tentativa de não ser afetada pelas palavras dela.
Eu odiava que me usassem.
Era a história da minha vida. Todos me viam como um meio para
alguma coisa e eu detestaria descobrir que tinha sido enganada novamente.
Minha visão embaçou.
Em um piscar de olhos, Renato ficou na minha frente e segurou o
meu rosto em suas mãos, de um jeito tão delicado que parecia que eu
quebraria se não fosse daquela forma. Um vinco de preocupação marcou
sua testa e seus olhos buscaram os meus, aflitos.
— O que houve, anjo?
Era patético da minha parte permitir que Roberta usasse uma
insegurança para me fazer sentir mal pela promoção, e por mais que meu
lado racional repreendesse aquele sentimento, foi inevitável que ele me
tomasse e trouxesse o desapontamento.
— Por que você me deu o cargo de COO? — inquiri, sentindo a voz
escapar trêmula e ressentida.
Se Renato estivesse se preparando para enfiar uma faca nas minhas
costas, era melhor que eu soubesse de uma vez por todas. Não queria
cometer o mesmo erro outra vez, só porque não me atentei aos sinais que
piscavam na minha direção.
— Pensei que tivéssemos encerrado esse assunto — murmurou,
circulando o polegar na minha pele e enxugando uma lágrima teimosa que
rolou. Neguei, sentindo a mandíbula trincar pelo choro contido. —
Disseram alguma coisa para você?
Seus ombros enrijeceram quando a pergunta escapou e um lampejo
de raiva atravessou suas íris. Ele não gostou nenhum pouco quando
balancei a cabeça, confirmando.
— Quem foi?
Enxuguei outra lágrima que escapou e engoli o nó na garganta,
tentando me recuperar do meu pequeno descontrole.
— Não importa, eu só… — vacilei, respirando fundo antes de
prosseguir: — Você me deu esse cargo porque espera que eu te favoreça de
alguma forma no conselho? — perguntei, precisando ouvir de sua boca se
Roberta tinha mentido novamente.
— Claro que não, Nathalia.
Aquiesci, inspirando profundamente e segurando o ar nos pulmões
por alguns segundos, antes de o soltar devagar. Conforme a racionalidade
voltava a predominar minha mente, fui constatando que Renato ainda
mantinha meu rosto em suas mãos, seu polegar roçava em minha bochecha
com carinho e seus olhos estavam divididos entre raiva, preocupação,
anseio e… saudade?
Ou talvez fossem os meus próprios sentimentos falando mais alto e
me fazendo acreditar que ele estava sentindo o mesmo que eu.
Precisava confessar que tinha sentido falta dos seus olhos cravados
em mim, atentos a cada coisa que fazia; das suas mãos buscando qualquer
pretexto para me tocar e acariciar, e como o seu corpo grande parecia se
encaixar perfeitamente contra o meu.
Ai, droga! E se fosse eu quem estava esperando algo dele?
Engoli em seco, piscando para tentar clarear minha visão, Renato
desceu sua atenção para a minha boca, apertando devagar seus dedos em
meu queixo e parecendo lutar contra um desejo primitivo que queimava em
suas veias, ou talvez fosse apenas o meu próprio anseio que estivesse
corrompendo minha visão e me fazendo acreditar que ele também queria.
Quem eu estava querendo enganar?
Ele disse alguns dias atrás, com todas as palavras, que estava
interessado em mim.
Renato não era o tipo de homem que mandava recados ou deixava
subentendido, ele deixava tão claro o que ansiava que ainda que eu não
pudesse enxergar, conseguiria saber. Era tão intenso, voraz e devastador que
me sentia fraca, amolecida perto dele.
— Você pediu para que eu viesse — soprei, rouca, tentando mudar o
foco do assunto porque conseguia sentir minha sanidade se agarrando a um
fio frágil.
Ele estava tão perto que se eu inclinasse um pouco a cabeça, sentiria
seus lábios contra os meus. Essa constatação me deixou desnorteada.
— Queria ver você.
Senti meus lábios se repuxarem em um sorriso fraco, bobo e
encantado com suas palavras.
— Sentiu minha falta?
— Que tipo de marido eu seria se não sentisse sua falta, Sra.
Trevisan? — perguntou, e meu corpo inteiro estremeceu quando senti seu
polegar se arrastar, acompanhando o contorno do meu lábio inferior.
Suspirei, erguendo meus olhos para os seus e tentei me agarrar
naquele fio que estava prestes a se romper.
— Um péssimo marido.
Ele sorriu e deixou um beijo em minha testa, afastando-se e me
permitindo voltar a respirar normalmente — ou ao menos tentar. Mas sem
quebrar a proximidade, sua mão abandonou meu rosto e se apoiou na porta
atrás de mim, buscando por algo que não identifiquei.
E senti minhas bochechas corarem quando precisei esfregar as coxas
para aliviar a pressão que sentia naquela região.
Adeus, calcinha! Foi bom ter sua companhia!
— Vem aqui — chamou, me estendendo a mão que aceitei, sem
hesitar. Não tinha certeza se conseguiria atravessar a sala sem acabar me
atrapalhando nos passos, uma vez que meus joelhos estavam bambos. —
Com exceção do estresse, como foi a sua primeira semana oficialmente
como diretora de operações?
Ele indicou que me sentasse, enquanto se afastava e ia até uma
máquina de café expresso, preparando duas xícaras. Agradeci mentalmente
por ter me sentado, porque andar era desconfortável quando me sentia
escorrendo entre as pernas.
— Hum… mais do mesmo, com o brinde de um circuit-breaker para
testar meus nervos. — Sorri fraco, aceitando a xícara que me ofereceu e o
vendo se sentar no espaço ao meu lado —, e a sua?
— Mais do mesmo, com um circuit-breaker de brinde — implicou,
achando graça da minha falta de palavras.
Irônico, não? Nunca na minha vida fiquei sem saber o que dizer, e
Renato estava provando que conseguia me roubar todas as palavras, igual
fazia com o meu fôlego.
— E o meninos?
— Estão se divertindo — disse, tranquilo, mas eu ainda conseguia
reconhecer a irritação em seus olhos. — Matheus ganhou um arranhão
depois de tropeçar enquanto corria atrás do Mickey, e fez um drama digno
de novela para me contar.
Sorri, acompanhando a sua devoção ao falar dos filhos.
— Igor avisou que comprou um presente para você, não me pergunte
o que foi, ele disse que é segredo!
Arregalei os olhos.
— E você me conta assim? Agora vou ficar ansiosa!
Ele deu risada e apoiou o braço no encosto, olhando-me com uma
admiração genuína.
— Sei que não é muito ético, mas posso dizer que está linda? —
perguntou, e senti o rubor voltar a queimar minhas bochechas.
— Você diz isso muitas vezes.
— Porque você sempre me prova que consegue ficar mais
deslumbrante que no dia anterior.
Prendi o lábio inferior entre os dentes com força, tentando impedir
que o sorriso rasgasse meu rosto e busquei refúgio no café, bebendo um
gole para acalmar a pequena arritmia que suas palavras me causaram.
— Vai ser difícil me divorciar de você… — Suspirei, lembrando-me
que meu aniversário era daqui a um mês.
— Isso é fácil de resolver.
— É…?
— Claro, é só não pedir o divórcio.
Estalei a língua, rindo baixinho.
— E continuar casada com o meu chefe? — ponderei, fingindo
avaliar a situação. — Não acho que isso seria muito bom para a minha
reputação.
Renato sorriu, divertido.
— Podemos trocar de posição, o que acha? Não vejo problemas em
me envolver com a minha chefe.
— Você me dá o cargo de CEO?
— Adoraria, não é minha maior ambição de vida — confessou, e
aquilo não me pareceu parte da brincadeira. Ele estava falando sério?
— Você não queria ser CEO?
Mas Roberta havia dito…
— Nunca foi minha intenção — disse, sincero. — Mas Leandro não
queria a posição de jeito nenhum, Roberta alegou que precisaria viajar com
frequência para o exterior esse ano… Guilherme mostrou que não era
confiável, e bem, alguém precisava aceitar o fardo da coroa.
Aquilo me pegou de surpresa.
Ele não queria estar no cargo, então, por que diabos Roberta disse que
Renato me promoveu para se manter na posição?
Senti seus dedos tocarem levemente minha testa, massageando a
região, aliviando o vinco que crescia conforme pensava na situação.
— Que cretino! Você inaugurou o cargo de COO só para jogar parte
do seu trabalho para mim, não foi? — acusei, fingindo estar horrorizada.
Renato gargalhou e meneei a cabeça, ofendida. — A ladainha de acreditar
no meu potencial era só um discurso de venda? — inquiri, fingida.
— Viu como você é inteligente? — provocou.
Levei a mão ao peito, fingindo sentir dor.
— Que traição, Renato Trevisan… que traição!
Ele sorriu e… merda, por que precisava ser tão simples lidar com ele?
Por que Renato não podia ser um babaca como todos os outros?
Por que eu tinha que me interessar justo por ele?
— Suas coisas estão prontas? — indagou, mudando de assunto ao
deixar sua xícara em cima da mesa de centro e voltar a me olhar.
— Sim…, Leandro aproveitou para levar.
Como Leandro acabou me deixando em meu apartamento naquela
madrugada e eu sabia que Bianca e ele viajariam pela manhã para a casa
dele em Ilhabela, pedi para que o crápula levasse a minha bagagem. Assim
não perderíamos muito tempo indo buscar as coisas no meu apartamento.
Em partes, estava aliviada pelo Salazar ter insistido tanto nessa
viagem durante o feriado. Eu realmente precisava de uns dias longe do
escritório.
— Minhas coisas também estão no carro, então, podemos sair direto
daqui?
— Sim, senhor. — Bati continência, fingindo seriedade.
Ele torceu os lábios, fingindo mágoa.
— Nunca mais me chame assim, parece que eu tenho cinquenta anos.
Ri baixinho, levantando-me antes que acabasse passando o restante
do dia presa naquela bolha com ele. No automático, deixei um beijo em sua
bochecha e me afastei, desejando que tivesse um ótimo dia.
Praticamente me atirei no sofá, exausta quando desliguei o telefone
com Maitê.
O dia que eu torcia para ser tranquilo nos presenteou com três circuitbreakers.
Após um novo comunicado para o mercado, os sauditas reduziram
mais 10% no preço do barril de petróleo e as bolsas entraram em colapso.
As ações da Wright Oil Companies — segundo maior conglomerado do
segmento — foram as mais afetadas, depois das estatais ao redor do mundo.
O derretimento de ações que eram consolidadas no mercado, fez com que
todos os outros papéis acompanhassem o movimento e ao meio da tarde, o
terceiro e último circuit-breaker foi acionado com o alerta de que as
negociações não retornariam naquele dia.
Eu estava morta de cansada, mas por sorte — ou azar, dependia do
ângulo que se analisava —, isso nos permitiria sair um pouco mais cedo do
escritório e, talvez, fugir do trânsito que tomaria a cidade perto das 18h.
Depois de guardar documentos importantes no cofre da minha sala e
desligar todos os sistemas, saí para o corredor e bati na porta do meu
vizinho e motorista — encontrando-o falando ao telefone, perto da janela.
Quase todo mundo havia ido embora, uma vez que não existia mais
nada que pudesse ser feito naquele dia, e com exceção de alguns sócios e da
equipe de risco que estava avaliando os danos daquele dia, todos os outros
funcionários estavam a caminho de casa.
Renato se virou em minha direção, indicando que eu entrasse e fechei
a porta atrás de mim, notando que ele também havia guardado suas coisas e
estava pronto para sair.
— Claro, Moacir. É realmente uma situação complexa, mas aumentar
a posição em dólar não seria a melhor solução — argumentou,
acompanhando-me com os olhos enquanto eu atravessava a sua sala e
sentava em cima da sua mesa.
Sorri fraco para a Dora, uma das responsáveis pela limpeza, que
estava organizando o outro lado da sala e prometi que ficaria quietinha ali,
sem atrapalhá-la. Voltei para Renato, e mesmo que estivesse se tornando
comum encontrar seus olhos cravados em mim, nunca conseguia me
acostumar.
Ele apertou os cílios, soltando um suspiro longo e guardou a mão
livre no bolso da sua calça, me dando as costas e voltando a encarar a
cidade agitada lá embaixo.
Aproveitei sua distração para me atualizar da vida dos meus amigos e
família.
Respondi aos inúmeros áudios do meu avô, que fazia questão de me
contar detalhadamente tudo o que acontecia em seu dia. Opinei sobre o
design de uma embalagem de uma nova coleção em que minha avó estava
trabalhando e pediu a minha opinião. Conversei com meu pai, que estava a
caminho de Riade, onde passaria o feriado e participaria de uma reunião a
portas fechadas com o emir[22] de Dubai, o príncipe herdeiro da Arábia
Saudita e outros empresários influentes.
Ouvi todos os áudios da minha mãe narrando sobre uma cirurgia que
fez em uma criança de sete anos, e fiquei orgulhosa por ela ser tão boa em
dedicar sua vida para salvar outras pessoas. E também tive tempo de ser
atualizada de todas as atrocidades que Antônio cometeu na última noite
para aplacar seu estresse com o mercado.
Minha família sempre me mantinha a par de tudo o que acontecia na
vida deles e, bem, Antônio também tinha o seu jeito peculiar de me manter
informada da sua vida, especialmente da sexual.
— Você está pronta? — perguntou Renato, parando poucos passos na
minha frente e assenti, guardando o celular na bolsa depois de responder
Leandro, avisando que estávamos saindo.
— Tchau, Dora. Bom feriado! — cantarolei, acenando para a mulher
que retribuiu, dando um beijo estalado na bochecha de Renato, que a
abraçou em despedida.
Quando Renato estacionou o carro na garagem aberta da casa, nós
dois soltamos o ar em puro alívio por termos sobrevivido a descida da
Serra.
Durante todo o trajeto, ele me ajudou a revisar a última parte da
minha conclusão final sobre a abertura de capital da empresa fictícia. Após
seis horas de viagem e uma atenção redobrada em cada detalhe; eu
finalmente tinha concluído todas as pendências para o envio da minha
aplicação para o estágio de outono da B&H.
— Me deixe dar uma última olhada — pediu, e entreguei o iPad para
ele, que revisou os balanços e relatórios de desempenho pela milésima vez.
— Obrigada pela carta de recomendação — falei, sincera.
Com tudo o que aconteceu, acabei optando por não pedir a ajuda da
Roberta naquela questão, mas não havia sido um problema. Fred, Celine e
outros sócios seniores com quem trabalhei em casos específicos, se
dispuseram a escreverem cartas enormes e repletas de elogios.
Leandro e Renato também escreveram cartas excelentes — tão boas
que o Prof. Becker até escondeu o desgosto quando viu a de Salazar
escondida entre a documentação.
— Não foi nada — tranquilizou, voltando a analisar os documentos
—, ficou excelente, Nathalia.
— Obrigada, mas os créditos são seus também.
Ele sorriu.
— Não foi nada, o trabalho foi inteiramente seu.
Revirei os olhos, pegando o iPad novamente e dando uma última
checada se havia anexado todos os documentos no e-mail.
— Se você não tivesse implicado com cada número, não teríamos
encontrado o ajuste que precisava ser feito. Aliás, você viu como nosso
fundo lucrou mesmo com a bolsa derretendo? — provoquei, virando para
que ele visse no simulador o gráfico de desempenho do fundo fictício
naquele dia.
Se aquilo não fosse uma tese para inscrição na B&H, e na verdade,
fosse um fundo operando no mercado, os cotistas dele teriam recebido a
maior bolada com o banho de sangue que aconteceu no pregão.
Renato riu.
— Que adorável… você fala dele como se fosse uma criança.
— Mas é, nosso bebê! — falei, olhando-o chateada por não
reconhecer a paternidade do nosso filho. — Não podemos sentir orgulho do
nosso pequeno prodígio?
Renato riu, me olhando incrédulo.
— Você é…
— Maluca?
— Extraordinária.
Sorri, afastando uma mecha do meu rosto e voltei a me concentrar no
e-mail que precisava enviar. Ainda dentro do carro parado na garagem,
digitei rapidamente uma mensagem padrão e anexei minha carta de
intenções, enviando a minha inscrição.
Soltei um suspiro, aliviada e apavorada.
— Agora resta saber se vai dar certo, né?
— Claro que vai. É a melhor inscrição que eles vão receber.
Mordi as bochechas para conter o nervosismo, tentando esconder a
minha inquietação de Renato. A verdade era que todos os meus passos
foram dados para que eu conseguisse chegar naquele estágio.
Precisava dele para que as pessoas entendessem que eu podia me
destacar por algo que não tivesse a chancela do meu pai. E se não
conseguisse aquela vaga… simplesmente, não sabia qual seria o meu passo
seguinte. Por mais que eu quisesse, não poderia voltar para a Alpha e lidar
com os olhares desdenhosos que encontraria.
— E depois… eu que sou a prepotente? — suspirei, apertando os
olhos em seu rosto e encontrei seu sorriso cafajeste.
As luzes da varanda sobre nós foram acesas e escutamos o chamado
de Leandro, berrando para anunciar que havíamos chegado. Renato e eu nos
entreolhamos e reviramos os olhos, diante da euforia do nosso amigo.
Guardei minha pequena bagunça de volta na bolsa e Renato abriu a porta,
estendendo a mão livre para mim, enquanto a outra empurrava sua mala.
Seriam quatro dias, e com o recesso da bolsa e o trabalho para a B&H
entregue… eu poderia finalmente descansar. Não existia nada mais sagrado
para o brasileiro do que o feriado de Carnaval, e tinha certeza de que
nenhum cliente me ligaria nos próximos dias.
Todavia, Leandro abrindo a porta para nos recepcionar, me fez
lembrar que ainda precisaríamos lidar com a criatura que tínhamos como
amigo. Quando notou que Renato ainda segurava minha mão, ele deu um
sorriso largo e abriu caminho, berrando para dentro de casa.
— O casal chegou!
Por que eu tinha aceitado vir mesmo?
Bianca foi a primeira a me receber e como se não me visse há dias,
me apertou em um abraço que me fez ter a impressão de que era mais ela
que estava precisando daquilo do que eu.
— Vou levar você para o seu quarto — disse Bianca, arrastando-me
escada acima e deixando Leandro e Renato sozinhos.
— Aconteceu alguma coisa?
— Me conta você! — devolveu, abrindo uma porta qualquer e me
empurrando para dentro. Minhas coisas estavam devidamente organizadas
no armário, e soube que a maluca que estava na minha frente tinha sido a
responsável. — Renato ligou para o Leandro e os dois conversaram sobre
Roberta ter dito algo para você.
Ah! Então, ele não deixou esse assunto de lado?
— Foi só a Roberta sendo ela mesma, a diferença é que dessa vez foi
comigo, não com um cliente ou sócio. — Suspirei, cansada.
— E o que ela disse?
— Basicamente, que Renato só me promoveu porque queria usar isso
como vantagem futuramente.
Dei de ombros, sentando-me na poltrona da varanda que estava
aberta. Na minha frente, pude apreciar a visão das ondas do mar quebrando
contra as rochas perto da casa.
— Ela comentou algo sobre vocês terem transado?
— Não, o que é um milagre.
Eu só me dei conta da pergunta da Bianca quando era tarde demais.
— Então, vocês transaram?
Dei risada, negando.
— Nós não transamos — frisei, percebendo que a idiota tinha jogado
verde para descobrir uma fofoca. — Seu namorado que pediu para você
perguntar?
— Credo, ele não é meu namorado.
Sorri, notando que ela soube exatamente de quem estava falando, ao
invés de se fazer de sonsa — como nos últimos dias.
— Posso tomar um banho? — pedi, estava tão cansada que declararia
amor eterno aos dois se decidissem que sairíamos amanhã.
— Claro, mas não precisa se arrumar muito. Leandro passou o dia na
cozinha, e se eu precisei comer aquela gororoba fitness dele… vocês
também vão. — Ela se levantou, passando as mãos no short jeans. — Mas
vamos para uma balada mais tarde, você quer ir?
Definitivamente, balada não estava nos meus planos para aquela
noite.
— Deixo para vocês que são jovens, as minhas costas doem.
Bianca riu, me atirando uma almofada e caminhando para fora do
quarto.
— Olha, não sei se você quer saber… — incitou, perto da porta e me
obrigando a desviar a atenção do pôr do sol. Encarei a maldita. — Mas o
quarto do Renato é na porta da frente.
— Por que eu precisaria saber disso?
Bia sorriu.
— Só compartilhei uma informação para você não acabar se
confundindo… — zombou, maliciosa —, inclusive, Leandro e eu estamos
do outro lado da casa, e ele mandou avisar que os quartos são isolados
acusticamente. Sabe, caso vocês decidam fazer barulho…
Grunhi, pegando uma almofada e atirando em sua direção.
Ela usou a porta como escudo.
— Eu te odeio, Bianca!
— Também te amo, Barbie Malibu!
Bianca e Leandro nos deixaram sozinhos pouco depois do jantar —
que foi um desastre porque as aptidões como cozinheiro do Leandro eram
praticamente nulas.
No fim das contas, terminamos pedindo comida em um restaurante
local e abrindo algumas garrafas de vinhos, enquanto ouvíamos os dois
contarem sobre como havia sido a tarde do casal — que apesar de não
serem um casal, agiam como um.
A casa de Leandro ficava dentro de um condomínio privado na ilha, e
a propriedade contava com alguns metros de praia particular à disposição.
Ainda assim, os dois insistiram em atravessar a ilha para ir a uma balada,
levando Marc e Maya com eles.
Renato e eu ficamos sozinhos na casa, e aproveitei para passar um
tempo relaxando na piscina enquanto Renato estava ao telefone com James
Martínez, um cliente da Espanha. Um tempo depois, virei o rosto na direção
da casa ao ouvi-lo se aproximar da piscina, segurando dois rótulos de vinho,
o que me arrancou um sorriso.
— Duas garrafas é o suficiente? — indagou, parando em frente a
borda da piscina e nadei para perto, olhando-o com curiosidade.
— Pensei que você preferisse uísque.
— Normalmente, sim.
Meneei a cabeça, olhando ao redor e percebendo que a maré ainda
estava baixa e poderíamos ficar um pouco na praia, como ele havia
proposto antes da ligação do seu cliente.
Renato pareceu ler os meus pensamentos e assim que saí da piscina,
descemos o pequeno lance de escada que separava a área externa da praia.
Usei a toalha para forrar o chão e peguei a garrafa de Renato,
fingindo não ter aproveitado que ele retirou a camiseta para apreciar o
contorno do seu corpo. Os músculos do seu abdômen eram tão bem
definidos que pareciam ter sido esculpidos, me parecia blasfêmia não parar
alguns segundos para apreciar a paisagem diante de mim.
Suspirei, abrindo o vinho com facilidade. Adquiri habilidade naquilo
ao longo dos anos, uma vez que amava beber ao menos uma taça por dia.
Em minha defesa, era ótimo para a saúde, desde que não se tornasse
uma dependência.
Como Renato tinha bolsos, entreguei a rolha intacta para que ele a
guardasse para mim. Seu cenho se franziu em confusão.
— Eu coleciono as rolhas — esclareci.
— Todas?
— Sim, cada uma conta a história de alguma noite da minha vida —
falei, dando de ombros. — É um hábito que aprendi com os meus avós.
— Eles também fazem isso?
Assenti.
— A minha avó tem muito apego às memórias. — Balancei os
ombros, lembrando que por conta de todo o problema com sua criação,
vovó não tinha nenhuma recordação da sua infância. Ela compensou
comigo e com o meu pai, guardando absolutamente tudo o que fizemos ou
tocamos. — Então, qualquer coisa que puder ser conservada, ela guarda.
Fotos, filmagens, roupas, brinquedos… rolhas de vinhos — expliquei,
sorrindo nostálgica.
Eu amava minha família mais do que conseguia colocar em palavras,
era sortuda demais por ter nascido em um lar que me oferecia Elias e Ellen
como avós. Como era a única neta deles, toda a minha infância foi
registrada em uma centena de vídeos e fotos; cada diploma, trabalho
acadêmico, troféu, pintura, travessura ou qualquer coisa que julgassem
válido, era armazenado.
Todo ano, eles escolhiam uma data especial para reviver essas
lembranças. Era fofo ver como valorizavam cada memória.
Vovó ainda tinha a garrafa do primeiro vinho que tomou com meu
avô quando eram apenas dois jovens almejando conquistar o mundo, não
importando o que custasse. Eles mal sabiam o que o destino planejava para
as suas vidas. E eu ainda me lembrava do brilho no olhar dos dois quando
— após meses procurando — os presenteei com uma garrafa daquela
mesma safra que sequer era fabricada mais.
Durante todo o jantar, os escutei narrarem detalhadamente sobre a
noite em que se deram conta de que estavam apaixonados. Os sorrisos
confidentes, os olhos brilhando pela nostalgia… era o tipo de coisa que eu
queria para o meu futuro.
Que loucura seria encontrar aquela rolha daqui a trinta anos e me
lembrar dessa noite, sentada no meio da praia com Renato?
Eu me pegaria pensando o que houve com ele? Se chegou a se casar?
Se teve mais filhos? Nós ainda teríamos contato ou teríamos nos
distanciado algumas semanas depois dessa noite?
Era o tipo de momento que gostaria de poder apreciar daqui a alguns
anos. Algumas pessoas se sentiam deprimidas com o sentimento de
nostalgia, mas meus avós me ensinaram que aquilo era um sentimento bom
— mesmo que algumas lembranças fossem ruins —, no fim das contas,
quanto mais recordações tivesse, mais significava que tinha aproveitado
minha vida.
— Seus avós parecem ser pessoas boas — disse, quando terminei de
explicar a tradição dos dois.
— Eles são os melhores. — Suspirei, aceitando que servisse a minha
taça e brindamos. Os dois estavam exaustos pela correria do dia, mas eu
estava gostando da companhia e não queria que a noite acabasse. — Topa
um jogo?
— De que tipo? — Renato alçou a sobrancelha, sagaz, e me arrancou
uma risada genuína.
— Não desse tipo — resmunguei, reconhecendo a malícia em seu
olhar.
— Que sem graça — lamentou, com uma falsa decepção. — Tudo
bem, explique o jogo.
— Basicamente, você me conta duas coisas que são verdades e uma
mentira, mas não pode me dizer qual é qual — esclareci, vendo-o acenar,
compreendendo. Refleti um pouco, quando jogava isso na universidade,
tínhamos que tirar uma peça de roupa para cada acerto. Isso não aconteceria
aqui. — Se eu adivinhar qual é a mentira, escolho uma prenda para você
pagar e vice-versa.
Um pensamento passou pela mente do Renato e um sorriso cafajeste
escapou dos seus lábios, atiçando uma parte de mim que não deveria entrar
naquele jogo perigoso.
— Interessante, na minha época era uma prenda bem específica.
Merda, claro que ele sabia!
— Mas não é com ela que vamos jogar — falei, sem conseguir
convencer nem a mim, quem dirá ele.
Renato sorriu, meneando a cabeça e me olhou com certo
entretenimento, talvez, porque minhas bochechas estavam queimando.
— Você começa — mandei, ouvindo sua risada ecoar.
— Você propõe o jogo, e eu que preciso iniciar?
— Meu jogo, minhas regras.
Uma risada baixa escapou e ele acenou, concordando.
— Como quiser, senhora — disse, e senti falta de ouvir o seu
sobrenome no final. — Fiz pós-graduação em Ciências Políticas, porque
pretendia ingressar na carreira política… — murmurou, olhando para as
ondas quebrando próximo de onde estávamos. — Participei de uma orgia na
Tailândia… e fodi o ombro saltando de bungee jump na Nova Zelândia.
Pisquei, aturdida.
— Você tinha que contar uma mentira!
— Mas eu contei — disse, jocoso.
Mirei o homem na minha frente, perdida. Todas as opções me
pareciam verídicas. A orgia era a única que eu tinha certeza, Leandro não
me poupou detalhes daquilo depois de três garrafas de Don Julio. Mas as
outras duas me pareciam muito plausíveis de serem verdadeiras.
Esquadrinhei o ombro de Renato, buscando um sinal de cicatriz, mas
a pouca iluminação não me permitiu enxergar muito. Busquei pelo seu
currículo na memória, e sorri vitoriosa ao lembrar que sim, ele havia feito
pós em Ciências Políticas.
— A do braço — falei, muito convencida.
— Tem certeza?
— Absoluta.
Renato sorriu, triunfante.
— Sinto muito, anjo… você errou. — Ele virou um pouco o corpo,
mudando o eixo e me permitindo visualizar a parte de trás do seu ombro
esquerdo, onde havia uma pequena e quase inexistente cicatriz, escondida
por uma tatuagem.
— Mentira.
— Verdade, foram três dias de festa em Queenstown, Rodrigo nos
desafiou e o funcionário não viu problema em deixar sete universitários
bêbados pularem. — Sorriu, nostálgico. Eu não sabia se conseguia gostar da
imagem que se formava na minha mente. — Meu equipamento acabou
dando problema e o impacto causou um deslocamento. No fim, ganhei de
lembrança da viagem: seis semanas de gesso e quatro de fisioterapia.
Arregalei os olhos.
— Meu Deus, aonde as mães de vocês estavam nessa época? — Fingi
horror. — É prisão na Tailândia, orgia, tentativa de assassinato disfarçada
de desafio…
Ele sorriu, inocente.
— Bom, não posso dizer que não vivi.
Estalei a língua, mas ainda havia uma dúvida.
— Você fez pós-graduação em Ciências Políticas.
— Mas não para trabalhar com política — disse, ardiloso.
Ótimo, enganada no meu próprio jogo.
Certo, certo, certo…
— Tudo bem, se você acertar o meu, pago a prenda… se errar,
estamos quites.
— Essa não é a regra.
— Meu jogo, minhas regras.
— Muito espertinha você, Sra. Trevisan. — Apertou os olhos no meu
rosto e sorri.
Bebi um gole de vinho, pensando no que poderia falar sem me
comprometer tanto. Ainda estava lidando com as consequências de ter sido
linguaruda na minha última bebedeira com Leandro.
— Já tive a bebida adulterada com veneno de baratas por uma
veterana que me odiava. — Sustentei uma expressão imparcial no rosto,
ignorando o esquadrinhamento que ele fazia das minhas expressões. —
Fiquei doze horas presa por atentado ao pudor em Nova Iorque… — aquela,
ele sabia que era verdade. — E um namorado terminou comigo na véspera
de Natal, porque estava transando com uma amiga minha.
Renato franziu o cenho e ponderou sobre as suas alternativas.
— A bebida adulterada é mentira.
Ri baixinho, negando.
— Pior que é verdade. Agnes Langdon, namorada do running back
dos Princeton Tigers — falei, lembrando daquela noite. — Ela não foi presa
porque era filha de um senador do partido conservador. Mas o meu pai fez
com que fosse expulsa e garantiu que ela não conseguiria entrar em
nenhuma outra universidade de renome.
Renato me encarou, dividido entre o choque e a curiosidade.
— O que você fez para tentarem te envenenar?
Olhei para ele, horrorizada.
— Por que você acha que eu fiz algo? Sou um anjo, esqueceu?
Ele franziu o cenho, incerto.
— Você fez? — Insistiu.
— Talvez.
— O quê?
Sorri, não gostando muito de lembrar daquela época.
Depois de muita terapia, consegui controlar o meu lado mais reativo e
impulsivo, mas foi um trabalho que demandou tempo. Precisei aprender que
não valia a pena devolver as coisas que me faziam na mesma moeda,
porque quando eu ia por aquele caminho… meio que perdia a noção do
limite.
— Nem sempre fui esse pontinho de luz. — Foi tudo o que eu falei.
— Um pouco difícil de imaginar — comentou, apertando os olhos em
mim, intrigado. — Então, a mentira é sobre o babaca que terminou contigo
no Natal?
— Sim. Ele terminou, mas, foi na véspera de ano novo. Ele me
deixou sozinha no meio do nada, pouco antes da meia-noite.
— E a garota?
— Agnes Langdon.
— Então, o seu namorado era o running back.
— Touché.
Renato meneou a cabeça, ele parecia pensativo.
— O envenenamento foi antes ou depois?
— Depois.
— Então, ela ficou com o cara e ainda quis ferrar contigo?
Estalei a língua.
— Digamos que eu me vinguei pela traição, ela não gostou… e foi por
isso que ela apelou. E o envenenamento foi uma dose pequena, nada que
bons médicos e uma lavagem estomacal não resolvessem.
Renato riu, descrente.
— E você diz isso como se não fosse nada demais?
— Estou viva, não estou? Já me aconteceram coisas piores… —
pisquei, divertida.
Ele franziu o cenho e me olhou abismado.
— Você é surpreendente.
— Olha quem fala! — retruquei, encontrando o seu sorriso cúmplice
e ergui minha taça na sua direção, antes de virar um gole longo.
Depois de algumas rodadas, desistimos de jogar porque a minha regra
impossibilitou que qualquer um pagasse prenda, já que sempre acabávamos
errando algo sobre o outro.
Quando uma garoa fraca começou a cair, decidimos voltar para
dentro da casa e descansar para o dia seguinte. Não havia qualquer sinal dos
nossos amigos, e eu duvidava muito que voltassem cedo — uma vez que
foram com Marc e Maya: os inimigos do fim.
Hesitando na porta do quarto, girei nos calcanhares e mirei Renato
que estava a poucos passos de distância de mim.
Meu coração deu um solavanco no peito e meus pensamentos se
transformaram em uma bagunça apocalíptica quando, sem qualquer cuidado
com a minha sanidade mental, Renato se aproximou o suficiente para tocar
o batente da porta e engrandecer seu corpo sobre o meu.
Ofeguei, catatônica.
Ainda havia alguns centímetros de distância entre nós, mas diante do
olhar que o cretino me direcionou, eles pareciam inexistentes. Seu olhar era
tão intenso e profundo que fez sentir como se o seu corpo estivesse colado
ao meu e suas mãos estivessem por todo lado.
Mas não estavam.
Era apenas o efeito do seu olhar sobre mim.
Engoli em seco, sentindo as bochechas enrubescerem.
— Boa noite, anjo — desejou, baixo e grave, encerrando aquela
noite.
E de repente, eu não queria mais me despedir.
— Boa noite, Renato — assoprei, inquieta ao vê-lo dar mais um
passo para perto, obrigando-me a erguer um pouco o rosto para olhar em
seus olhos.
Inspirei profundamente, tentando controlar a bagunça que a sua
presença causava no meu cérebro e espalmei a mão em seu peito, ficando
na ponta dos pés para deixar um beijo no seu rosto.
Renato aninhou sua mão livre no meu pescoço, seus dedos apertaram
a minha nuca e, lentamente, permiti que meus lábios tocassem a sua
bochecha.
Senti meu coração vacilar quando o seu aperto se intensificou, forte e
possessivo.
Um calor se alojou em meu âmago, ateando fogo em cada parte do
meu corpo e afastei os lábios da sua bochecha, encontrando seus olhos
escuros sobre mim, sórdidos e ferinos; a sua respiração ficou pesada e me
dei conta de que ainda estava segurando a minha.
— Acho melhor você entrar — sugeriu, rouco e grave.
A ausência de roupa não foi o suficiente para aplacar o calor que
estava incendiando a minha pele, eu conseguia sentir a umidade no tecido
da calcinha do biquíni e, uma parte de mim, teimosa pra caralho, não se
afastou.
Era o que nós dois queríamos, certo?
Estávamos há dias passeando pela linha do nosso próprio
autocontrole e a empurrando cada vez mais para longe do ponto anterior. E
eu sequer poderia colocar a culpa no vinho, porque não estava bêbada —
exceto se eu levasse em conta a tontura que ele me fazia sentir.
Merda, por que não conseguia simplesmente me afastar?
— Nathalia.
Meu nome escapou como um rosnado de advertência. Os seus olhos
inflamaram e eu soube que ele estava dando tudo de si para não perder o
controle, e isso… merda, isso me fodeu.
Pisquei, consciente de que meu corpo não atenderia qualquer
comando que me afastasse de Renato e não tive alternativa, senão aceitar a
existência do sentimento que pungia em minhas veias, transformando o
sangue em lava.
Engoli em seco, zonza e intoxicada pelo seu calor.
— Você provou o seu ponto, Renato — soprei, rouca, empurrando
qualquer resquício de racionalidade para longe —, entendi que me quer. —
Seu aperto se tornou mais intenso. Eu me arrependeria disso amanhã?
Talvez. Mas, no momento, eu não me importava com as consequências. —
Agora que tem, o que pretende fazer?
Seus olhos subiram para os meus, investigando por qualquer sinal de
que eu não estava confiante com a escolha e nunca em toda a minha vida,
me senti tão certa de uma decisão.
Eu o queria.
Renato sorriu, lascivo.
Ele arrastou a mão em meu pescoço, enrolando os dedos no meu
cabelo e incentivou que eu inclinasse um pouco a cabeça para o lado,
abrindo espaço para que ele, vagarosamente, arrastasse seus lábios na pele
sensível.
Tão suave que meus olhos se fecharam em resposta e o meu corpo
inteiro estremeceu.
Arquejei, sentindo os seus lábios se delinearem em um sorriso contra
a minha pele. Renato não teve pressa, ele mordiscou um ponto sensível no
meu pescoço, chupando e lambendo, aspirando meu cheiro como se fosse
um afrodisíaco para a sua mente. Amolecida, apertei os dedos em seus
ombros, tentando adquirir firmeza no meu próprio corpo.
— Você tem certeza disso? — investigou, trazendo o seu olhar
penetrante de volta para o meu. Assenti, fraca. — Não haverá volta depois
disso, anjo.
Algo no seu olhar me dizia que não era apenas sobre o sexo que ele
estava falando, mas não me dei ao trabalho de dissecar suas palavras e
buscar pelo significado oculto. Se o fizesse, corria o risco de que a voz
sabotadora que morava na minha cabeça aparecesse para roubar o
momento, e me aprisionar em um oceano de autodepreciação.
E eu não queria isso. O que eu queria estava bem ali, na minha frente,
esperando por uma última confirmação de que estava ciente do passo que
daria.
Suspirei, afundando as unhas na sua pele, acenando, segura.
— Aceito o risco — declarei contra seus lábios.
Não tive tempo de capturar a sua reação diante da minha
confirmação. No segundo seguinte, a boca de Renato colidiu com a minha e
senti como se o chão tivesse fugido debaixo dos meus pés.
Mal tive tempo de processar as palavras que escaparam dos seus
lábios, quando o instinto falou mais alto e minha boca se chocou com a sua.
Um gemido baixinho escapou do fundo da sua garganta, e eu trouxe o
seu corpo para perto, incapaz de mantê-la longe por mais tempo. Cada
pedaço do meu corpo e mente gritavam, esfomeados, ansiando sentir o seu
gosto em minha boca e o seu calor ao meu redor.
Porra, havia desejado por isso desde que coloquei os olhos nela,
apenas aguardando um sinal de que Nathalia queria tanto quanto eu, e que
estava disposta a deixar seus receios de lado.
E ela me deu aquele sinal diversas vezes ao longo do dia.
Precisei de muito esforço para conseguir me concentrar nos
compromissos do dia, e ainda assim, não consegui tirar o seu olhar cheio de
lascívia da mente após ela deixar a minha sala. Horas depois, vê-la em cima
da minha mesa, olhando-me com aqueles olhos grandes e cobiçosos, me fez
fantasiar com diversas formas que poderia fodê-la ali mesmo.
A sua sorte era que Dora estava presente na sala, caso contrário, teria
desligado a chamada com o meu cliente e arriscado um avanço ali mesmo,
no escritório.
Porra, esse era o tipo de homem que Nathalia me transformou desde
que surgiu no meu caminho: um moleque que mal conseguia controlar os
próprios pensamentos quando estava perto dela.
Mas naquela noite não havia mais ninguém que pudesse me
atrapalhar, apenas Nathalia… que desejava colocar um fim naquele
sentimento irracional tanto quanto eu.
A mão que estava em sua cintura desceu pelo seu corpo, encaixando
em sua nádega esquerda e Nathalia rapidamente compreendeu o que deveria
fazer; prendendo suas pernas ao meu redor quando a impulsionei para cima.
Suas unhas afundaram em minha nuca e seus lábios retribuíram as
investidas, tão faminta e determinada em aplacar aquele desejo, que estava
amolecida nos meus braços, completamente entregue.
O gosto do vinho, misturado ao sabor doce dos seus lábios, conseguiu
se mostrar muito melhor do que eu havia imaginado.
Um arrepio atravessou minha espinha quando suas unhas arranharam
minha nuca e meus dedos apertaram sua bunda, com mais força do que o
recomendado, quando ela moveu o quadril contra a ereção que marcava a
minha bermuda.
Afastei nossos lábios, mordiscando a ponta do seu queixo e subindo
pela linha da mandíbula delicada, alcançando o lóbulo da orelha direita e
mordiscando levemente. Nathalia aumentou o aperto das suas pernas ao
meu redor e sorri, sentindo-a estremecer em resposta.
Em segundos, estávamos dentro do meu quarto, a porta foi trancada
para o risco de Leandro tentar invadi-lo pela manhã, e o corpo de Nathalia
ficou preso contra o meu e a parede. Minha boca rastejava pelo seu colo,
apreciando a pele sedosa e cheirosa que respondia tão prontamente ao toque
mais sutil.
Seus dedos apertaram meu cabelo, puxando meu rosto de volta para
cima e colando a sua boca na minha, ávida e gananciosa.
Caminhei com ela nos braços pelo quarto, deixando seu corpo sobre o
colchão e fisguei seu lábio inferior entre os dentes, apreciando o lamento
torturado que escapou do fundo da sua garganta.
Usando todo o meu autocontrole, abandonei Nathalia na cama e me
afastei, necessitando de alguns segundos para processar a imagem dela
deitada na cama, com a porra de um biquíni que não cobria quase nada do
seu corpo perfeito. Seu peito subindo e descendo, acompanhando a
respiração fora de ritmo, os mamilos eriçados marcando o tecido minúsculo
que os cobria; a barriga plana e um pedaço de pano quase inexistente,
escondendo o ponto do seu corpo que eu mais desejava.
— Vamos tentar um jogo diferente — falei, vendo Nathalia espalmar
as mãos no colchão para sustentar o tronco, seus olhos alcançaram os meus,
tomados por cobiça.
— Qual?
— O bom e velho, verdade ou mentira.
Ela arqueou a sobrancelha, prendendo o maldito lábio grosso entre os
dentes, deixando-a deliciosa pra caralho.
— Quais são as regras?
— Vou fazer uma pergunta, e você responde se é verdade ou mentira.
Para cada resposta errada, você perde uma peça do seu biquíni.
— E para as que eu acertar?
— É a mesma condição para qualquer um dos resultados.
Ela estalou a língua, inclinando a cabeça levemente para o lado,
consciente do quanto era gostosa.
— Isso não me parece justo.
Sorri, aproximando-me da beirada da cama e oferecendo a mão para
que Nathalia se levantasse, ficando de joelhos sobre o colchão e olhando em
meus olhos.
— Meu jogo, minhas regras.
Ela suspirou, escondendo um sorriso e assentiu, de acordo com os
meus termos. Olhando-me como a porra de uma deusa, Nathalia endireitouse no colchão e fodeu com a minha cabeça ao mordiscar aquela boca
deliciosa, aguardando pela pergunta.
Dei um passo para trás, ganhando uma distância que fosse boa o
suficiente para apreciar o que estava diante de mim.
— Sua boceta está tão melada quanto eu imagino? — A pergunta
soou rouca, carregada de tesão e um sorrisinho maligno surgiu nos seus
lábios.
Nathalia levou as mãos para as costas e desfez os nós que
sustentavam a parte de cima do biquíni, proporcionando-me a visão dos
seios cheios e redondos totalmente descobertos. Despreocupada, ela jogou a
peça no chão e me desafiou com o olhar. Meus dedos envolveram o seu
queixo, apertando e a obrigando a sustentar a provocação.
— Você não respondeu à pergunta.
— Por que você não descobre por conta própria? — contrapôs,
segura e gostosa pra caralho.
Sorri, apreciando a sua confiança.
— Verdade ou mentira? — perguntei, arrastando a mão livre por sua
barriga, as pontas dos dedos trilhando o percurso até o cós do tecido que
dependia apenas de dois laços para permanecer em seu corpo.
Nathalia arquejou e fechou os olhos, bêbada e estremecida, quando
meus dedos se arrastaram por cima do tecido quente.
Caralho, ela era quente como o inferno.
Deslizei os dedos vagarosamente por todo o tecido, alcançando o
ponto úmido e engoli um sorriso de satisfação ao constatar que, sim, ela
estava molhada pra caralho.
— Verdade ou mentira? — exigi, circulando o polegar em seu clitóris
sob o tecido e Nathalia agarrou meu pulso, afundando as unhas nele.
— Verdade.
Um esboço de sorriso escapou dos meus lábios ao encontrar os olhos
grandes e escuros me fitando com pura obscenidade. Espalmei a mão,
cobrindo o tecido e assisti ela buscar alívio contra a minha palma.
Abandonei um tapa fraco e Nathalia arquejou, subindo o seu olhar para
mim.
— Última chance — avisei, vendo-a assentir em resposta. — Você
quer que eu te foda com força?
Nathalia cravou os olhos em mim, e não precisei que ela respondesse
para que soubesse que a resposta que eu esperava, era a mesma que
escaparia de seus lábios.
— Verdade.
Desci o rosto em sua direção, soltando seu queixo e deixando que
minha mão livre encontrasse o percurso até a sua nuca. Segurei firme nos
fios do seu cabelo, forçando a sua cabeça para trás e apreciei os seus olhos
lindos se fecharem quando meus dedos invadiram o tecido, escorregando
pela fenda molhada e abrigando-se na boceta quente e melada.
Suas paredes se moveram contra a invasão, esmagando meus dedos
dentro de si. Senti o meu pau babar ao vê-la entreabrir os lábios em um
gemido baixinho.
Movimentei os dedos lentamente, permitindo que ela fodesse com
eles, indo no seu próprio ritmo enquanto eu apreciava os sons doces que
escapavam dos seus lábios.
Sem conseguir me conter, minha boca buscou pela sua com dureza,
dominando-a por completo e engolindo cada gemido que escapava dela. Eu
queria que todos eles me pertencessem, e Nathalia me entregou cada um,
sem titubear.
Senti suas paredes se fecharem em volta dos meus dedos, anunciando
o orgasmo que se aproximava e afastei nossas bocas, mordiscando sua
mandíbula e diminuindo o ritmo, indo contra os seus pedidos para que eu
fosse mais rápido.
— Não… não para — suplicou, fodendo com a minha cabeça. —
Renato, não para — choramingou e sorri, ignorando o lampejo de raiva que
tomou seu rosto lindo.
Circulei os dedos em seu clitóris melado, lambuzando aquele ponto
com a sua própria lubrificação.
— Acredite em mim, amor — soprei contra os seus lábios —, você
vai me agradecer por isso.
Nathalia piscou, ainda zonza pelo orgasmo interrompido e aproveitei
para me desfazer da sua calcinha, afastando-me um pouco para vê-la por
inteiro.
No entanto, minha surpresa foi encontrar o motivo para o meu maior
questionamento sobre ela, bem ali, escondido por uma peça minúscula. Que
grande ironia que a minha maior curiosidade em relação a ela, estivesse
bem ao lado da minha maior cobiça.
No canto direito da sua virilha, existia uma tatuagem pequena e
delicada, com pouco menos de três centímetros; um pequeno arco com dois
chifres e um tridente, formavam a explicação para a porra do apelido que
Leandro usava para se referir a ela.
Um sentimento de posse me alcançou e Nathalia se levantou da cama,
caminhando em minha direção, calma e decidida. Seus olhos não se
afastaram dos meus e suas unhas se arrastaram no meu peito, alcançando o
cós da minha bermuda e a empurrando para longe, levando minha boxer
junto com ela.
— Não me diga que mudou de ideia — incitou, arrastando seus dedos
pela extensão do meu pau e minha mão laçou seu cabelo, prendendo seu
olhar no meu.
— Longe disso, diabinha — falei, tomando posse daquele maldito
apelido, porque agora, eu era o único que poderia usá-lo com ela.
Suas íris inflamaram ao reconhecer o apelido e ela apertou seus dedos
em volta da minha ereção, causando uma pressão deliciosa. Em resposta,
meus dedos escorregaram para dentro dela novamente, mergulhando em seu
calor e a sentindo estremecer e apertar a base do meu pau.
Sua boca gostosa encontrou com a minha, entregando-me mais
daqueles gemidos que escapavam dos seus lábios. Ela perdeu um pouco do
equilíbrio das próprias pernas e a amparei com meu braço. Nathalia gemeu
e sua boceta lambuzou meus dedos, tão melada que eles escorregavam sem
qualquer dificuldade.
Merda, eu estragaria essa garota para qualquer um que ousasse tentar
roubá-la de mim, porque tinha certeza de que ela me arruinaria para
qualquer outra mulher.
Quando sua boceta me apertou, esmagando meus dedos e anunciando
que estava perto, Nathalia soube que eu iria me afastar e suas mãos
abandonaram meu pau para afundar as unhas nos meus pulsos, sem me
deixar sair de dentro dela.
— Não ouse — rosnou contra meus lábios, aflita e ofegante.
E ainda que estivesse muito tentado a apreciar a obra de arte que seria
ela gozando, deixei que escorregassem para longe. Desvencilhando-me do
seu aperto, lambi os dedos, sentindo seu gosto delicioso na minha boca.
— Quero você no meu rosto — soprei contra seus lábios, a verdade
era que eu necessitava daquilo quase como precisava do ar para respirar.
Não teria paz enquanto não tivesse Nathalia se esfregando em mim. —
Quero essa boceta gostosa gozando na minha boca.
Seus olhos colidiram com os meus e tomados pela volúpia, ela
acenou, concordando em atender a minha necessidade.
Segundos depois, Nathalia estava encaixada em mim, uma perna de
cada lado do meu rosto, e meu ponto de desejo a poucos centímetros de
distância. Arrastei minha língua por toda a extensão, sentindo o gosto doce
se espalhar e desci seu quadril, investindo contra ela.
Insaciável, provei-a como um maldito esfomeado.
Os seus gemidos ecoaram pelo quarto e suas mãos se agarraram a
cabeceira da cama, enquanto o seu quadril movia-se com vida própria,
buscando pelo alívio que eu concederia daquela vez, porque queria tudo
dela.
Lambi sua boceta como se ela fosse uma fonte d’água no meio do
deserto, sentindo as minhas bolas doloridas pela falta de alívio. Ela era doce
pra caralho, o cheiro dela impregnou-se na minha mente e demoraria uma
vida inteira para que eu pudesse me livrar dele, e temia que ainda não fosse
o suficiente.
Nathalia gemeu, os olhos nublados de devassidão enquanto cavalgava
em meu rosto, buscando pelo próprio alívio.
Ela era extraordinária em cada curva, centímetro e pedaço daquele
maldito corpo. Uma diaba, hipnotizando os desavisados e preparando-se
para transformá-los em fiéis pecadores.
E merda, eu cometeria todos os pecados que fossem necessários para
garantir que a minha eternidade no inferno, me permitisse tê-la assim;
esfregando a boceta deliciosa na minha boca, sendo invadida pela minha
língua e me entregando tudo de si.
Deixei que meus dedos alcançassem sua entrada, mergulhando dois
deles dentro dela, enquanto me dedicava ao clitóris sensível. O corpo de
Nathalia ondulou quando foi preenchida e seu orgasmo se aproximou. Eu
conseguia senti-la sugando meus dedos, os comprimindo no seu calor, os
mantendo como reféns.
— Renato… — lamentou, consumida.
Seu prazer escorreu em minha boca, e não deixei que uma única gota
escapasse, afundei meus dedos em suas coxas que tremiam, impedindo que
se afastasse e seu corpo cambaleou para frente, enfraquecido.
O olhar lânguido que me direcionou, era tudo o que eu precisava para
inverter as posições. Devolvi Nathalia para o colchão e me afastei da cama
para apanhar as camisinhas na carteira. Precisava estar dentro dela naquele
instante. Ela soltou um suspiro satisfeito e se sentou, trazendo seu olhar
para mim, atrevida.
— Ainda não acabei com você — esclareci, ao vê-la se levantar e
caminhar na minha direção.
— Não, não acabou. — Seus dedos correram pelo meu peito e ela
buscou pela minha boca, tomando meus lábios e assumindo as rédeas. —
Mas é minha vez de jogar…
Semicerrei os cílios, perdendo o fôlego ao ver Nathalia se ajoelhar e
sem afastar os olhos dos meus, ela juntou seu cabelo e os enrolou em sua
mão, dando um nó nos fios e me deu um sorriso, incitando minha mente.
Caralho.
Nathalia segurou firme na base do meu pau e arrastou sua língua por
toda a extensão, desde as bolas doloridas até a glande que babava por ela.
Minha mão se fechou em seu cabelo, segurando firme nos fios e deixando
que a diaba tomasse seu tempo para o que queria fazer.
Ela colocou apenas a ponta nos lábios, chupando devagar e
aumentando a pressão gradativamente. Sua língua se arrastou pelo freio
sensível, arrancando-me um gemido rouco.
Estimulada, Nathalia investiu contra o meu pau, engolindo pouco
mais da metade e quando senti que alcancei sua garganta, minha visão
embaçou de prazer.
Respirei pesadamente, dando tudo de mim para não empurrar meu
pau como um maldito troglodita em sua garganta, e me concentrei em seus
olhos que não fugiram dos meus.
— Porra, diabinha.
Suas orbes brilharam, Nathalia me empurrou mais fundo e pude ver
as lágrimas se acumularem em seus olhos, sua respiração se perdeu e tentei
me afastar, mas ela apertou suas unhas em minha coxa, impedindo-me de
tomar o controle.
Suas bochechas ruborizaram e ela engasgou quando tentou me
empurrar mais, puxei-a para trás com cuidado, a afastando e recebendo seu
olhar de advertência. Ela estava determinada no que queria, mas eu sentia
que perderia o controle se continuasse daquele jeito.
Era demais para a minha cabeça tê-la ajoelhada aos meus pés, me
chupando até o talo, me olhando como uma putinha safada.
— Você teve o seu momento — disse, sem fôlego e com os lábios
inchados próximos à glande, provocando e jogando com a minha mente. —
É a minha vez.
Engoli em seco, aquiescendo e deixando que fizesse o que queria.
Ela poderia tirar o que quisesse de mim, sem precisar de esforço.
— Coloque essa boca gostosa nele outra vez, diabinha, é seu para
fazer o que quiser — falei, rouco e entregue.
Nathalia sorriu de um jeito obsceno e envolveu os lábios ao redor do
meu comprimento, voltando a chupar como fazia antes, com as duas mãos
segurando a base.
Agarrei firme em seu cabelo, deixando que seguisse a sua vontade,
ora lambendo toda a extensão, da base à glande e depois voltando para
baixo, chupando minhas bolas, e noutra me enfiando fundo em sua
garganta, até que perdesse o fôlego e as lágrimas cobrissem seus olhos.
Ela era a blasfêmia em carne e osso.
O rosto, olhos e sorriso, doces e angelicais, eram apenas uma forma
de esconder o verdadeiro demônio que ela era. E eu me sentia o maior
pecador do mundo por adorar a visão daquele anjo diabólico, com os lábios
rosados e grossos, deslizando pelo meu pau, tomando cada centímetro para
si.
Uma de suas mãos escorregou para as minhas bolas, brincando com
elas com habilidade, sabendo exatamente o que fazer para atingir seu
objetivo e cerrei a mandíbula, sentindo a tensão crescer em meus ossos
quando ela me engoliu e empurrou a ponta em sua garganta, apertando-me
em sua boca.
Minha visão turvou e precisei empurrar sua cabeça com cuidado, a
afastando e trazendo para cima.
Meus dedos apertaram seu queixo, cravando seus olhos em mim e
sorri, fascinado.
— Provou o seu ponto, putinha — rosnei contra seus lábios —,
prometo que na próxima gozo na sua boca.
Seus olhos se acenderam, em puro êxtase e capturei sua boca,
mantendo-a presa em meus braços e sentindo seus dedos se aninharem em
meu cabelo, puxando os fios curtos e ansiando por mais, tão insaciável
quanto eu.
Impulsionei seu corpo para cima, deixando que enlaçasse meu quadril
com suas pernas, e a coloquei sentada em cima da pequena mesa que tinha
no quarto, afastando a boca da sua para explorar cada pedaço de pele
disponível e tendo a minha sanidade testada por ela que não parava de se
esfregar contra a minha ereção.
Minha mão se fechou em seu seio esquerdo e abocanhei o direito,
circulando minha língua ao redor do bico intumescido, escutando os sons de
aprovação que escapavam dos seus lábios e a forma como seu corpo se
arrepiava com cada toque meu. Prendi o mamilo entre os dentes, sentindo
suas pernas se apertarem ao meu redor e seu quadril ondulou, deslizando
em meu pau, melando todo o comprimento com a sua lubrificação.
Tateei a mesa, buscando pelo invólucro preto e o abri, abandonando
um seio para explorar o outro, dedicando toda a minha atenção nele da
mesma maneira que havia feito com o primeiro. Nathalia chiou e seu corpo
estremeceu, seu quadril não parava de rebolar e impulsionar contra o meu
pau que latejava em resposta, ansiando para mergulhar no seu calor.
— Shh, uma coisa de cada vez, diabinha — falei baixo, vestindo a
camisinha e me afastando o suficiente para contemplar a visão do meu pau
mergulhando no seu interior.
Esfreguei a ponta na extensão da fenda, tocando o clitóris inchado e
espalhando a sua lubrificação. Nathalia prendeu o lábio inferior entre os
dentes e me vi em dúvida de qual visão era melhor de se apreciar: o meu
pau sendo engolido pela sua boceta, ou os seus olhos se fechando e sua
cabeça pendendo para trás, em puro deleite?
Os fios que havia prendido em um nó se soltaram, caindo em suas
costas, suas unhas afundaram em meus ombros… e Deus, o gemido que
escapou dos seus lábios me fez sentir o homem mais degenerado do mundo.
Suas paredes me comprimiram e meu pau lutou para conseguir
encontrar abrigo, sentindo seu aperto me estrangular dentro de si. Perdi o
fôlego e o rumo dos pensamentos, quando seus olhos se abriram e colidiram
com os meus.
Tão entregue, linda, gostosa… meu maldito anjo.
— Porra, diabinha, tão apertada — rosnei contra seus lábios, sentindo
sua respiração fraquejar contra o meu rosto.
Nós nos tornamos uma enorme bagunça, corpo com corpo, pele com
pele, seu calor incendiando ao meu redor; o som dos seus gemidos
desconexos reverberando pelas paredes e a cada vez que meu nome
escapava dos seus lábios, em meio aos grunhidos lânguidos de prazer, eu
era atingido pela certeza de que Nathalia teria tudo de mim.
A cada estocada, eu marcava em seus ossos que a partir daquela noite
ela me pertencia.
A cada novo golpe que arrancava um gemido alto dos seus lábios, ela
me estragava para qualquer outra mulher.
Nathalia pendeu a cabeça para trás, bêbada, fraca e devastada, e sua
boceta mastigou meu pau com violência quando ela se rendeu ao orgasmo.
Não parei de meter, sem folga, desejando cada gota de energia que ainda
restava em seu corpo, para que depois dessa noite ela soubesse que era
minha.
Porque faria de tudo para tê-la na minha cama outras vezes.
Envolvi o seu corpo com um braço, a segurando para levá-la até a
cama e a depositei no colchão, com cuidado.
— De quatro, diabinha — ordenei.
Ainda estava longe de acabar com ela.
Mole, Nathalia girou no colchão e apoiou os joelhos, ficando de
frente para a porra do espelho que nos refletia. Deslizei meus dedos em sua
fenda melada, a fodendo com eles e seu corpo respondeu. Minha mão livre
se arrastou em sua nádega direita e um gemido escapou dos seus lábios
quando o estalo do tapa soou, suas paredes pulsaram, engolindo meus dedos
e mostrando o quanto tinha gostado daquilo.
Minha putinha, era isso o que ela era.
Desferi outro tapa, mais um e outro, sem parar de movimentar meus
dedos dentro dela e Nathalia se rendeu a outro orgasmo, choramingando
meu nome entre as palavras ininteligíveis que escapavam dos seus lábios.
Seu corpo cambaleou para frente, sem forças.
As pernas trêmulas não foram capazes de sustentar seu corpo e
precisei envolver sua cintura, a sustentando na posição em que estava antes
de ser nocauteada pelo último orgasmo.
Nathalia ofegou, suas nádegas ainda tinham os vestígios do meu
pequeno descontrole, a pele estava rosada e quente.
Mal precisava tocar nela para a sentir estremecer.
Tão linda… e minha.
Mantendo-a firme contra mim, arrastei meus dedos em sua coluna,
enrolando seu cabelo no meu pulso e mirei seu reflexo no espelho. O rosto
doce e angelical tomado por puro deleite, os lábios vermelhos e inchados,
as pálpebras que mal conseguiam se sustentar abertas por muito tempo; o
cabelo desgrenhado, o peito subindo e descendo acelerado…
Porra, ela era perfeita.
— Firme e forte, diabinha… — ordenei, arrastando minha boca em
seu pescoço, sentindo-a estremecer sob o meu domínio. — Sem corpo mole
agora.
Nathalia riu, embriagada de prazer.
— Você vai acabar comigo — sussurrou, arrebatada, e me arrastou
consigo quando cravou seus olhos em mim.
— Prometo fazer valer a pena.
Ela sorriu e a invadi com meu pau novamente, firme, forte, bruto e
com força. Nathalia gritou, escandalosa, e poderia me acostumar a escutar
aquele som pelo resto da minha vida. Suas costas coladas ao meu peito,
seus seios saltando conforme meu corpo colidia com o seu e um olhar
extasiado dominava seu rosto. Aquilo era tudo o que eu precisaria para ser o
homem mais sortudo do mundo.
— Eu não aguento… — choramingou, lânguida. As bochechas
vermelhas e os lábio inferior inchado de tanto que ela o prendia entre os
dentes para abafar seus gemidos.
— Claro que aguenta, anjo — sussurrei em seu ouvido, sugando e
mordiscando o lóbulo da sua orelha e ela deitou a cabeça em meu ombro,
fraca. — Você é tão gostosa que passaria a vida inteira assim.
Ela sorriu e seus lábios se apertaram quando meus dedos alcançaram
seu clitóris. Nathalia estava tão sensível que bastou que arrastasse a ponta
dos dedos ao redor, para que seu corpo ondulasse e ela me estrangulasse
ainda mais dentro de si.
— Porra, não faz isso, diaba… — rosnei, sentindo a visão embaçar
com o prazer que me atingiu.
Em resposta, sua boceta repetiu, sufocando meu pau em suas paredes.
Sai de dentro dela, estocando novamente, forte, firme, brutal. Os
joelhos de Nathalia perderam a força e precisei segurá-la para que não
caísse no colchão, enfraquecida. Merda, ela era tão minha.
Devolvi seu corpo para o colchão, me inclinando sobre ela e
abocanhando seu seio novamente, deixando que se recuperasse para uma
nova rodada. As suas unhas rasgavam as minhas costas, espalhando
arranhões por toda a extensão e quando alcancei a boceta apertada, suas
costas ondularam no colchão e ela choramingou em resposta, impedindo
que minha língua mergulhasse ali.
— Deus do céu!
Sorri, arrastando minha boca pela sua barriga, passando pelo vão
entre os seios e mordiscando seu queixo, antes de pairar contra seus lábios.
— Não é hora de blasfêmia, diabinha.
Ela riu, desnorteada.
— Meu cérebro deixou de funcionar. — Suspirou, abrindo as pernas e
me deixando me aninhar entre elas de novo. — Você acabou comigo.
Sorri, deixando um beijo em seu pescoço.
— Eu disse que não teria volta.
Ela buscou pelos meus olhos e sorriu, ciente de que havia cumprido
minha promessa. Nós dois estávamos arruinados para qualquer outra pessoa
depois dessa noite.
Suas pernas me envolveram, me guiando para ela e a penetrei
novamente, sentindo seu calor me abraçar. Enrolei os dedos em volta da sua
garganta, mantendo o seu olhar sob o meu.
Nathalia arfou e aumentei as investidas, saindo quase por inteiro para
retornar, estocando e metendo com força.
Senti meu próprio limite se aproximar e quando a sua boceta asfixiou
meu pau, soube que Nathalia estava prestes a alcançar outro orgasmo.
Minha visão ficou turva e mesmo enquanto enchia a camisinha, não parei
de meter nela até que me entregasse mais de si.
Desci minha mão livre para o centro quente, estimulando o clitóris e
sai de dentro dela, sem parar de a masturbar com meus dedos.
Nathalia arqueou as costas no colchão, sua boceta esguichou quando
o prazer a nocauteou novamente e seu corpo convulsionou, afundando as
unhas em meu pulso que ainda apertava sua garganta. Suas pernas se
fecharam, impedindo que movesse minha mão e sorri, satisfeito ao ver o
quanto ela tremia, derrotada, lânguida e sem fôlego.
Ela afrouxou o aperto das suas pernas em minha mão e depositei
algumas palmadas fracas em sua virilha, vendo-a estremecer mesmo com
aquele pequeno toque.
Calmamente, alcancei o seu rosto e deixei que a mão que apertava
sua garganta, envolvesse seu queixo. Seus olhos estavam quase se fechando
e um meio sorriso dançava em seus lábios.
— Se importa se eu cochilar aqui? — pediu, baixinho e rouca. —
Acho que não consigo andar agora.
Uma risada fraca escapou da minha garganta, mas ela não escutou.
Seus olhos se fecharam e Nathalia se entregou ao cansaço, caindo no
sono.
Nua, suada, desgrenhada e minha.
Completamente minha.
Abrir os olhos demandou mais força de vontade do que eu imaginava,
e se não fosse pelo calor que estava sentindo, voltaria a dormir.
Mas estava quente.
Meu corpo fervia.
E quando finalmente consegui abrir os olhos, pude encontrar o
responsável pela onda de calor que atravessava a minha pele.
Renato me envolvia de maneira possessiva e protetora. Eu estava
usando a sua camiseta. O seu rosto estava escondido na curva do meu
pescoço e a sua respiração espalhou arrepios pelo meu corpo. Uma de suas
mãos me segurava, mantendo-me aprisionada a ele, enquanto a outra
segurava meu seio direito — como se fosse um lugar confortável para
descansar a mão enquanto dormia —, e minhas pernas foram entrelaçadas
nas suas, impedindo minha saída do seu abraço.
Era humanamente impossível sair daquela armadilha em que ele me
prendeu, e o mais louco era que eu estava confortável.
Ergui um pouco a cabeça, tentando me localizar em relação ao
horário, mas as persianas estavam fechadas. Apesar da luz fraca que
atravessava as frestas, não era suficiente para que eu identificasse se era
muito cedo ou muito tarde. Agucei a audição, tentando decifrar se mais
alguém estava acordado, mas além do canto dos pássaros e do barulho das
ondas do mar batendo nas rochas perto da varanda do quarto, não consegui
identificar mais nada.
Eu precisava de um banho, com urgência.
E foi com aquela certeza que passei os minutos seguintes, tentando
me desvencilhar da arapuca que Renato havia armado, usando todo o meu
talento como escoteira para fugir para o banheiro.
Sem ter certeza se era uma boa ideia sair do quarto, pois, corria o
risco de esbarrar com Leandro ou Bianca e ser interrogada sobre aquela
madrugada, me arrastei para a ducha que ficava ali no quarto do Renato.
Meu corpo estava inteiramente dolorido.
Sentia como se um caminhão tivesse passado por cima de mim, mas
no meu caso, a carreta que me atropelou tinha 1,92m; um pau enorme e
grosso, e um apetite insaciável.
No chuveiro, me lavei sem pressa, esperando o momento em que a
culpa e os milhões de julgamentos seriam desencadeados pelo meu cérebro,
mas eles não vieram.
Nunca na minha vida, minha mente esteve tão pacífica quanto
naquela manhã, e se eu compartilhasse aquilo com a minha terapeuta, tinha
certeza de que ela indicaria, no mínimo, três sessões com Renato por
semana.
Olhei na direção do quarto, observando-o dormir como pedra e
balancei a cabeça, tentando conter o sorriso, mas foi inevitável.
Que homem era aquele?
E quem eu me tornava perto dele?
Suspirei e saí debaixo da água morna. Peguei uma escova de dentes
nova que estava em uma das gavetas, tentando dar início ao meu dia, mas a
preguiça parecia ter se infiltrado em meus ossos naquela manhã.
Quando retornei para o quarto, busquei por uma camiseta limpa e a
vesti, tentando me convencer de que era melhor sair de fininho — antes que
os nossos amigos acordassem. Talvez eu pudesse dar uma volta na praia,
assim, se Leandro ou Bianca escutaram algo; fugiria do interrogatório
matinal.
No entanto, pela primeira vez em muito tempo, me permiti descansar
por mais algumas horas.
O mundo não acabaria se eu dormisse até tarde, certo?
Soltei um suspiro, derrotada, e retornei para a cama, tomando o
máximo de cuidado para não fazer barulho, mas foi em vão.
Renato estava acordado.
— Volte a dormir, anjo — pediu, enlaçando minha cintura e me
abrigando novamente em seu casulo. — Você precisa descansar.
Engoli o suspiro que ameaçou escapar dos meus lábios.
— Por que será? — resmunguei, sonolenta.
Ele sorriu, deixando um beijo na curva do meu pescoço e me puxou
para perto, sem se importar em ficar abraçado comigo.
E o estranho foi que eu também não me importei, ao contrário, gostei
tanto que me aninhei contra o seu corpo.
Renato estendeu a mão para mim e, sem hesitar, entrelacei minha
mão na dele, sentindo seu sorriso se moldar em minhas costas. Sua outra
mão acariciou suavemente meu cabelo, afagando-o, até que a exaustão me
envolvesse novamente.
Mais tarde naquela sexta-feira, saí do quarto de Renato enquanto ele
tomava banho e caminhei pelo corredor, ouvindo uma bagunça generalizada
no andar de baixo. Ao entrar na porta da frente, procurei pelo meu celular e
percebi que havia algumas mensagens de Bianca.
As primeiras mensagens chegaram no início da madrugada, apenas
para verificar como estavam as coisas por aqui. Depois, mais próximo do
início da manhã, por volta das 05h, ela implorou que eu a informasse se eu
havia fugido de casa ou se estava no quarto do vizinho. Às 07h, ela
anunciou que Marc, Pedro, Fabio, Rodrigo e suas respectivas companheiras
viriam para almoçar conosco.
Às 10h, ela questionou se precisava invadir o quarto para verificar se
Renato havia me matado, pois segundo ela, eu nunca dormia até tão tarde.
Às 11h, ela começou a cogitar bater na porta para checar se nós dois
estávamos vivos. Segundo ela, Leandro disse que Renato era uma coruja
que dormia pouco, e que as únicas vezes que o viu dormindo até tarde era
porque estava doente.
Ao meio-dia, Bianca informou que eles iriam para a praia e voltariam
para almoçar. Ela acrescentou que, por eu tê-la ignorado, fui excluída dos
planos. Às 13h, ela mencionou que enviaria alguém para arrombar a porta
do quarto.
Às 14h, não recebi uma mensagem porque Leandro tinha ligado para
Renato, agindo como nosso despertador.
Renato me explicou que fomos dormir por volta das quatro da manhã,
então não achei que tínhamos dormido tanto quanto nossos amigos
dramáticos afirmavam.
Enviei uma mensagem para a Bianca, avisando que estava no meu
quarto e me tranquei no banheiro para tomar outro banho, aproveitando
para lavar o cabelo que estava um caos. Minutos depois, fui para o quarto
com uma toalha enrolada no corpo e dei de cara com uma pequena reunião
na minha cama. Bianca, Maya e Carolina, estavam sentadas fofocando
como se fossem amigas de longa data.
— Finalmente, Barbie Malibu — cantarolou Bianca, passando os
olhos pelo meu corpo em busca de vestígios da noite anterior.
— Deixa a menina ligar o sistema operacional. Olha a cara dela de
quem está mais no mundo da lua do que aqui — disse Maya, sorrindo
maliciosa. — Sinal de que a noite foi boa.
Ri baixinho, atravessando o quarto e escutando as maluquices que
saíam da boca das duas loucas sem filtro. Carolina parecia a mais centrada e
estava horrorizada com as teorias delas. Dentro do closet, coloquei um
biquíni azul claro e por cima, um vestido branco de alças finas, bem
soltinho e praiano, e quando voltei para o quarto, as três esperavam por uma
explicação.
— O quê?
— Eu falei, gente… esquece — Bianca suspirou, chateada —,
conheço essa garota há anos e ela nunca compartilhou nada do tipo.
Sorri, aquiescendo.
— Exatamente, e não vou começar a fazer agora. Fofoqueiras! —
Mostrei a língua para as três e me sentei na beirada da cama. Carol roubou a
escova de cabelo da minha mão e começou a pentear os fios com
delicadeza.
— Como anda o processo de adoção? — perguntei para ela, deixando
as outras mergulharem em suas teorias de conspiração sobre como a noite
passada desandou totalmente do planejado.
Maria Carolina deu de ombros, aborrecida.
— Complexo, estamos considerando uma barriga de aluguel… —
falou, pensativa. — A Maju, minha irmã, conhece um médico especialista
em fertilização in vitro e pensamos em visitar alguns bancos de doação…,
mas eu ainda queria a adoção em si. Tem tanta criança que precisa de um
lar, sabe?
Anuí.
— Não sei se isso pode te ajudar… — murmurei, reflexiva —, mas
sou madrinha de uma instituição que acolhe crianças órfãs, e elas raramente
são escolhidas para adoção…
Minha mãe conheceu a instituição quando veio ao Brasil para fazer
uma cirurgia de um tumor raro em uma garotinha de quatro anos. A menina
era uma das crianças do instituto e conseguiu acesso ao hospital através de
uma vaquinha que ajudou a pagar os custos. Isso foi há seis anos, e desde
então, meus pais acolheram o instituto e o financiavam para que
continuasse funcionando.
Miguel reformou a pequena casa usada como lar temporário, e
comprou um terreno ao lado para construir outra mais espaçosa. Além
disso, ele decidiu construir uma pequena escola, onde as crianças pudessem
estudar com professores contratados pela equipe de ações beneficentes da
Alpha.
— São crianças maravilhosas, carinhosas, dedicadas…, mas quase
nunca são escolhidas para adoção porque estão um pouco mais velhas. Os
mais novos são os trigêmeos: Rafaela, Manuela e Gustavo, que têm nove
anos… — expliquei, virando para ela quando terminou de pentear o meu
cabelo.
— Eles não são adotados por causa da idade? — perguntou,
horrorizada.
— Basicamente — expliquei, vendo Bianca me lançar um olhar de
soslaio. — Segundo as tutoras, quando alguém vai procurar por crianças
para adoção, geralmente buscam aquelas com menos de cinco anos,
alegando que é mais fácil para se adaptarem a um novo lar.
Minha amiga revirou os olhos. Bianca, que foi adotada, sempre ficava
afetada quando esse assunto surgia em conversas.
— Como faço para entrar em contato com eles? — Carol perguntou,
interessada.
— Vou visitá-los no próximo sábado, por que não vai comigo?
Aquilo pareceu animar Carolina, e torci para que uma das minhas
crianças conseguisse conquistar seu coração.
Uma batida na porta soou e murmurei que entrassem, vendo a
montanha de músculos surgir com um sorriso largo.
— Ora, ora… se não são as mulheres mais belas dessa casa — Marc
elogiou, charmoso.
— Somos as únicas mulheres da casa, falso — retrucou Carol,
revirando os olhos para ele.
— Olha, isso aí depende do ponto de vista. Leandro está chorando
pelos cotovelos lá embaixo porque Renato o trocou pela gatinha — falou,
apontando para mim.
— E vocês levam a sério o drama que o Leandro faz? — perguntei,
preocupada.
— Claro que não — responderam, em uníssono.
Sorri, aliviada.
Eu amava Leandro, mas ele nunca levava nenhum assunto a sério.
Não sabia se era um método de autopreservação que usava, mas tudo,
absolutamente tudo, ele transformava em piada.
— Bom, vim chamar vocês para comer. O almoço está servido. —
Marc bateu as mãos, nos incentivando a levantar e as garotas foram na
frente, deixando-me para trás. — E fiquem tranquilas, soube do desastre
que foi Leandro cozinhando ontem… chamamos um especialista.
As garotas riram, um pouco mais afastadas.
— O que foi? — perguntei, ao encontrar seu olhar em mim.
Marc sorriu, balançando a cabeça devagar.
— O que acha de almoçarmos na próxima semana, e você conhecer a
minha empresa?
— O escritório de advocacia ou o sex shop?
— Sex shop, óbvio… muito mais interessante.
Revirei os olhos, me aproximando da porta.
Perto de Marc, eu me sentia menor do que realmente era. Talvez fosse
devido aos seus bíceps enormes e ombros largos, ou simplesmente por
conta da sua altura. Todos seus amigos eram absurdamente altos e fortes,
mas Marc conseguia superá-los e a culpa era do seu porte físico. Ele parecia
que morava na academia. Era difícil ignorar a sua presença. No entanto, seu
sorriso era tão cativante que tornava todo o resto um pouco menos
intimidante.
— Vamos ver como o mercado abre essa semana, e aí marcamos,
pode ser, gatinho?
— Claro, Boo.
Sorri, notando que realmente, em questão de tamanho, personalidade
e senso de humor, Marc Menezes lembrava o personagem Sulley de
Monstros S.A.
— Como você está com todo o lance com Roberta? — perguntou, me
acompanhando enquanto descíamos as escadas.
— Bem, pensei que demoraria mais para a decepção passar, mas… no
fim das contas, eu não sou responsável pelas atitudes das outras pessoas e
nem posso esperar que ajam comigo da mesma maneira que eu agiria com
elas, né? — murmurei, sem pressa para descer o lance de escada. — É uma
pena para ela, porque perdeu completamente a minha confiança.
Não guardaria rancor dela, porque precisava ser grata às portas que
Roberta abriu quando me permitiu liderar a firma. Claro que eu não devia
nada a ela por isso, investi meu dinheiro, conhecimento, tempo e saúde
naquele escritório. Estávamos quites. Mas não existia a menor chance de
que eu abaixasse a guarda perto dela outra vez. As pessoas só tinham uma
chance para me fazer de idiota, eu não daria outra oportunidade.
Marc sorriu.
— Me surpreende como você consegue ser mais centrada do que
muito macaco velho nesse mundo, pirralha — murmurou, a mesma coisa
que disse quando nos encontramos na escritório no fim do ano passado para
discutirmos o código de conduta da firma.
— Eu tento, nem sempre consigo… tenho os meus momentos de
merda também.
Demandava muita terapia e autoconhecimento, porque nem sempre
era fácil deixar certos impulsos de lado, mas eu tentava ser uma pessoa
correta e estável. Aquilo valia de algo, não? Era melhor do que sequer
tentar.
Marc não teve tempo de responder porque foi interrompido pelo ator
de novela mexicana, encenando a sua mais nova cena.
— Nathalia, você não tem vergonha na sua cara? — perguntou
Leandro, inconformado.
Busquei por Renato, encontrando-o sentado na poltrona com uma
cerveja na mão e os olhos fixos em mim, seus lábios se inclinaram, em um
esboço de sorriso, antes de voltar para o amigo, Pedro.
— O que eu fiz dessa vez? — inquiri, perdida.
Salazar caminhou em minha direção, passando os braços sobre meus
ombros e me guiou para o lado oposto dos outros. Entramos na cozinha,
ficando a sós e ele me soltou para pegar uma cerveja na geladeira para mim.
Confusa, abri a tampa e Leandro bateu sua long neck na minha e sorriu
vitorioso.
— Graças a você, ganhei um cu.
Abri e fechei a boca, estatelada.
Leandro virou um gole longo e alargou o seu sorriso, como se fosse
Natal e o papai Noel tivesse dito que ele era um bom garoto.
— Por que eu precisava saber disso? — perguntei, sentindo a minha
voz soar estridente.
O idiota deixou um beijo na minha têmpora, murmurou que eu tinha
um lugar garantido no céu e deu as costas, cantarolando o refrão de “A
paixão me pegou”[23]
, deixando-me sozinha.
Demorei alguns segundos para processar o que havia acontecido e
acabei deixando de lado, porque se tentasse entender o que se passava na
cabeça do Leandro, era capaz de gastar todos os meus neurônios bons e
ainda assim não encontraria uma resposta.
De volta na sala, falei rapidamente com o esposo da Carol e me
aproximei da área externa para cumprimentar os outros, e acabei parando
perto de onde Renato e Pedro Zimmermann estavam conversando.
Os dois desviaram a atenção para mim e sorri fraco, parando próximo
de Renato, que não hesitou em buscar pela minha mão, levando-me para
perto.
— Oi, Zimmermann — saudei, simpática. Ainda que o homem na
minha frente não fosse muito gentil. Ele ergueu o olhar para mim, saltou
para Renato e desceu para as nossas mãos entrelaçadas.
— Gama.
Miss Simpatia em pessoa.
— Pedro — repreendeu Renato, mas o amigo dele não fez questão
alguma de disfarçar que me detestava, ao contrário, se levantou e entrou na
casa sem olhar para trás.
— Isso tudo ainda é porque eu ganhei dele?
Desci os olhos para Renato, sentindo um vinco surgir na testa e ele
meneou a cabeça, negando.
Calmamente, me guiou para o seu colo e me sentei em sua perna
esquerda, sentindo o seu braço enlaçar minha cintura.
— Não o leve tão a sério, o problema dele é mais interno do que
externo — falou, arrastando as pontas dos dedos em minha pele e trouxe a
sua atenção para o meu rosto. — Estamos bem?
Sorri, acenando em concordância.
— Estamos.
— Então, vou ter companhia na minha cama essa noite?
— Está pretendendo chamar alguém? — Fingi que não sabia do que
ele estava falando, isso arrancou um sorriso seu.
Renato deixou um beijo em meu ombro e virei o rosto para dentro da
casa, notando que Pedro era o único que estava meio que sozinho.
— Pensei que Rodrigo viria.
— A namorada mudou de ideia.
Aquiesci.
— Pedro não tem namorada?
Minha pergunta arrancou uma risada do homem ao meu lado e ele
balançou a cabeça, como se aquilo fosse improvável.
— Se você encontrar alguém que consiga dobrar aquele cara, dou o
que você quiser de recompensa — prometeu, e a sua oferta me despertou
interesse.
— O que eu quiser? Você é um péssimo negociador… sempre diz que
eu posso escolher o que quiser. Isso não te dá muita vantagem.
Renato me fitou, relaxado.
— É um privilégio que apenas você tem direito, diabinha. — Apertou
os dedos na minha cintura, sem muita força. — Não preciso ter vantagem
com você, prefiro que estejamos no mesmo nível, Sra. Trevisan.
Sorri, passando os braços em volta dos seus ombros, sabendo que os
outros estavam mais ocupados em discutir a programação do restante do
dia.
— Então, vamos continuar com a brincadeira de casamento falso? —
perguntei, curiosa.
Renato arqueou a sobrancelha e meneou a cabeça, imperturbável.
— Quem disse que era brincadeira para mim?
Afastei-me um pouco da piscina, abandonando o pessoal e entrei na
cozinha, dando de cara com o Zimmermann sentado na bancada da ilha,
falando em alemão com alguém no telefone.
Apesar de conseguir distinguir uma palavra ou outra por causa da
minha convivência com Antônio, não me esforcei para entender o que
Pedro estava falando, definitivamente, eu não fazia o tipo que escutava as
conversas alheias.
Atravessei o espaço calmamente, sentindo o seu olhar esfaqueando as
minhas costas, e fingi não notar que por algum motivo, o cara parecia
prestes a arrancar minha cabeça do pescoço e a jogar no oceano. O motivo?
Não fazia ideia. Nem quando nos encontramos no clube, Pedro demonstrou
tanta antipatia comigo.
Apanhei a bandeja de morangos frescos dentro da geladeira e me
sentei de frente para ele, esperando pacientemente que terminasse o que
estava fazendo. Para mim, era incômodo ficar com a sensação de que
alguém tinha um problema comigo, e sempre que isso acontecia, preferia
tirar a história a limpo e descobrir se era apenas coisa da minha cabeça ou
se realmente havia algo a ser resolvido.
Pedro franziu o cenho, apertando os olhos castanhos no meu rosto e
respirou pesadamente, murmurando uma resposta mal-humorada para quem
estava do outro lado da chamada.
Não tive pressa, todos os outros estavam na praia a poucos metros de
distância, e tinha certeza de que se ele ameaçasse dar um passo para me
esganar, bastava gritar alto o suficiente para que a cozinha fosse invadida
por quatro brutamontes com síndrome de macho-alfa.
— Temos algum assunto para tratar? — perguntou, áspero, assim que
encerrou a ligação e percebeu que eu não sairia dali.
— Não sei, nós temos? — devolvi, confusa com a sua grosseria sem
sentido.
Ele não gostou de perder, eu entendi isso. Mas sequer conseguir ficar
no mesmo ambiente? Aquilo não fazia o menor sentido.
Pedro inspirou profundamente, como se precisasse daquilo para
buscar por um resquício de paciência e quando soltou o ar devagar,
semicerrou os olhos nos meus, seco e truculento.
— Não sorri o suficiente para você, princesa?
— Estranho seria se você sorrisse — respondi, empurrando a pote de
morangos para longe e o olhando, séria. — Mas se fiz algo que te
incomodou, preciso saber sobre o que exatamente eu preciso me desculpar.
Não que eu acreditasse que havia feito alguma coisa, Pedro e eu
tivemos pouquíssimas interações, a última havia sido na social que Leandro
fez na casa dele, e foi o próprio Zimmermann quem veio atrás de mim com
uma conversa completamente sem sentido.
— Não é uma questão que precise se desculpar. — Ele se levantou da
banqueta e apanhou o celular de cima da ilha, preparando-se para sair da
cozinha sem me dar uma resposta concreta. — Mas não espere que eu fique
sorrindo para você como todo mundo.
— Não estou querendo nada de você. Não sei se entendeu, mas estou
perguntando se eu fiz algo que te ofendeu — falei, irritada com sua
grosseria. Odiava pessoas que eram rudes com outras sem qualquer motivo
para isso. — Até porque é você que está saindo dos lugares quando chego,
como se eu fosse a portadora de uma doença contagiosa.
Pedro estava prestes a sair e me deixar falando sozinha, provando o
meu ponto de que tinha um problema pessoal comigo. E quando girou nos
calcanhares e veio em minha direção, me peguei considerando que, talvez,
era melhor ter o deixado no seu canto.
— Não me peça para agir como se eu não soubesse qual é o seu
joguinho aqui, Gama.
Se eu estava confusa antes, naquele instante, percebi que não fazia a
menor ideia do que se passava na cabeça dele.
Ergui o queixo, sem permitir que Zimmermann tentasse me intimidar.
— Do que você está falando?
Pedro ponderou o que diria, ao menos, ele filtrava as merdas que
saíam da sua boca.
Imagine o que sairia dali se ele não pensasse antes?
Zimmermann balançou a cabeça, incomodado.
— Apenas procure alguém da sua idade para brincar, garota — disse,
severo. — Duas crianças estão envolvidas nessa história e, é ridículo da sua
parte envolvê-los nisso.
Que merda…?
Ele estava me acusando de usar os filhos de Renato para conquistar
alguma coisa?
Uma raiva descomunal atravessou o meu corpo e senti o sangue
ferver em minhas veias de um jeito nada bom. Quem aquele filho da puta
pensava que era para pressupor minhas intenções, sem sequer me conhecer?
— Você não sabe nada sobre mim, Zimmermann — rosnei, sentindo
as mãos tremerem de raiva.
— Não? — Zombou. — Você acha que é a primeira que tenta essa
palhaçada?
Engoli em seco, ignorando seu comentário.
— Não me importo com quem veio antes, ou que merda fizeram no
meio do caminho. — Tentei, com muito esforço, manter o meu tom de voz
baixo. Mas com o olhar acusatório que o engenheiro me direcionou, foi
impossível. — Você não me conhece, no máximo falou comigo duas vezes.
Não tem direito algum de me acusar de porra nenhuma.
— Não estou acusando, apontei um fato.
— Que fato? — perguntei, horrorizada. — Por acaso você é Deus e
sabe o que se passa na minha cabeça para saber quais são as minhas
intenções?
Não sei se foi por causa do meu tom de voz elevado, ou se ele estava
vindo para a cozinha de qualquer maneira, mas meus olhos capturaram
quando Renato atravessou o arco da cozinha e mirou as costas do homem
parado na minha frente, olhando-me com um ressentimento que não me
cabia.
— Só procure alguém da sua idade, ok, criança?
Meus olhos foram encobertos por uma raiva fora do normal, que
sequer soube identificar de onde veio e para a sorte do engenheiro, Renato
entrou no meio, sem me olhar e fitando o amigo, sério.
— Já chega, Pedro.
O babaca olhou para ele, cético.
— Quer fazer merda? Faça. Mas não envolva as crianças — falou,
encarando Renato com raiva. — Eles já passaram por merda demais para
precisar lidar com mais uma garota qualquer que só vai passar, se divertir e
ir embora.
— Pedro. — O tom de voz de Renato me assustou, nunca tinha
escutado ele falar daquela maneira com ninguém, mas aquilo não causou
qualquer efeito em Zimmermann. — Isso não é assunto seu.
O engenheiro sorriu, irônico.
— Certo. Vamos ver o que você me diz daqui a algumas semanas
quando ela cansar de brincar de casinha — disse, nos dando as costas e
pisquei, completamente em choque.
Renato acompanhou o amigo sair da cozinha e trouxe os olhos para
mim, a sua expressão não era das melhores e por mais que eu soubesse que
o problema não era comigo, e que Renato não tinha culpa nenhuma pelo
que Pedro havia dito, eu estava furiosa por ter sido acusada de uma coisa
que nunca seria capaz de fazer.
Não me importava se outra pessoa fez isso antes, não era direito de
Pedro pressupor sobre mim e apontar o dedo para me acusar de qualquer
coisa que fosse.
Principalmente de usar as crianças para chegar ao pai delas.
A minha vida inteira eu fui a pessoa que as pessoas usaram e
manipularam para chegar no meu pai. Nunca faria isso.
— Nathalia…
— Agora não. — Dei as costas para ele, irritada.
Diferente do amigo dele, se estava com um problema, eu não
descontava em outra pessoa. E precisava de cinco minutos sozinha para
conseguir me acalmar, ou corria o risco de explodir em cima de Renato.
Assim que atravessei o corredor que levava para a sala de estar, pude
ver Pedro apanhando as chaves do seu carro e sair da casa, ouvi o chamado
de Leandro, mas não quis escutar qualquer que fosse a piadinha que ele
pretendia soltar.
Cerca de vinte minutos depois, uma batida ecoou no quarto e como
Bianca havia acabado de sair, eu sabia que não era ela.
Murmurei que podiam entrar e bebi um gole da cerveja que minha
amiga trouxe, acompanhando de canto de olho enquanto Renato atravessava
o quarto e caminhava em minha direção.
Da varanda, eu conseguia ver os nossos amigos espalhados pela faixa
de areia, aproveitando o sol que estava fazendo. Eu sabia que o
Zimmermann tinha ido embora, mas não estava com vontade de voltar para
baixo e socializar. Ele conseguiu detonar com o meu bom humor.
— Mais calma? — perguntou Renato, o corpo apoiado na ombreira e
o olhar tranquilo. O pedido de desculpas estava explícito, mas não era ele
quem deveria se preocupar com aquilo.
— Não.
Ele sorriu, indicando se podia se sentar e acenei em confirmação,
abrindo espaço ao meu lado, mas de nada adiantou. Renato capturou meu
braço e como se nada pesasse, me colocou em seu colo e manteve o braço
pesado em minhas pernas, impedindo que me afastasse.
Não que fosse o que eu pretendia, mas ele preferiu prevenir caso
houvesse a possibilidade.
— Quer uma explicação?
— E tem? — retruquei, me odiando por soar birrenta, mas ainda
estava ressentida.
Ele meneou a cabeça, compreensivo.
— Não existe uma justificativa para o que ele disse, mas… Pedro é
complexo, e se agarra aos motivos dele para agir de certas maneiras.
— É para isso que existe terapia.
Renato sorriu, aquiescendo.
— Quer saber a história? — ofereceu, tranquilo.
Uma parte de mim, quis dizer que ele não precisava me explicar
nada, eu não me importava se o seu amigo pensava o pior de mim. Pedro
Zimmermann não me conhecia e a minha consciência estava tranquila. Não
me aproximei de Igor e Matheus com nenhuma segunda intenção. Eu
gostava deles de graça.
Independentemente do que sentia por Renato, continuaria encantada
pelos seus filhos e nada mudaria.
Não era justo que Pedro pegasse o sentimento mais genuíno dentro de
mim, e o distorcesse para fazer parecer algo ruim.
Mas outra parte, uma curiosa demais para ignorar uma explicação,
acabou se voltando para Renato e acenando, deixando que me contasse que
merda poderia motivar Pedro a agir daquele jeito comigo.
— A história é longa.
— Não tenho planos para hoje — falei, e precisei engolir um sorriso
ao ver o brilho lascivo que tomou seus olhos.
— Bem, eu tenho alguns planos para nós dois — anunciou, apertando
minha coxa e soltei um suspiro.
O pobre coitado do meu corpo, se dividiu entre o fogo que se instalou
em minha pele, e a curiosidade que predominava minha mente.
Para o meu alívio, Renato tomou a decisão por mim de definir o que
era mais importante.
— Pedro e eu sempre fomos próximos, ele passou por muita merda
antes de ser adotado por Ada e Hugo — disse, e acenei devagar. Não era um
segredo que todos os filhos do casal foram adotados. — Então, ele pode ser
um pouco… protetor? Acho que podemos definir assim.
— Eu diria um galo superprotetor — brinquei, tentando amenizar o
clima tenso, não precisava observar muito para perceber que Renato não
gostava daquela parte da história. — Você precisa ver como o galo Titus
fica quando o meu avô tenta pegar um dos seus pintinhos…
Renato sorriu, girando os dedos na minha pele desnuda e acenou.
— Na universidade, Leandro e eu acabamos nos envolvendo com
uma garota… bem, levou um tempo para que descobríssemos que ela estava
saindo com os dois. Quando ficamos sabendo, rompemos com ela. — Seu
olhar se manteve em meu rosto, paciente e tranquilo. — Depois disso,
Leandro acabou se envolvendo com outra pessoa e, vez ou outra, Flávia e
eu nos encontrávamos em festas e ficávamos… — disse, e sua voz ganhou
um tom nostálgico enquanto compartilhava as lembranças daquela época.
— Não vi problema em continuar transando com ela, afinal, não era nada
sério e nem nunca seria.
Anuí, não gostando da imagem que minha mente criou dele se
envolvendo com essa garota.
— Deveria ser apenas sexo, mas num belo dia, ela surgiu com a
notícia de que estava grávida. Eu tinha vinte e um anos, foi… uma merda.
— Sorriu, culpado. — Não me arrependo de ser pai, mas não estava nos
meus planos que acontecesse enquanto estava na faculdade, entende? —
indagou e acenei, compreensiva. — Mas tudo bem, não tomei os cuidados e
aconteceu, bola para frente.
Dava para perceber que Renato sentia certo desgosto ao relembrar
dessa época, e pela maneira como sua voz ganhava um tom mais grave
conforme falava e o pouco que eu sabia sobre a genitora dos garotos, não
foi difícil ligar os pontos para entender que ela era o motivo da sua
frustração.
— Nunca fomos um casal, nem nada do tipo. Deixei claro que
assumiria as minhas obrigações, e que ela não precisava se preocupar com a
minha ausência. Seria um pai presente. Mas Flávia nunca quis ser mãe.
Primeiro vieram as ameaças de fazer um aborto… e odeio admitir isso, mas
se ela me dissesse que era aquilo que queria, eu teria apoiado — disse,
parecendo sentir dor ao confessar aquilo. — Em partes, sou grato por ela
nunca ter ido em frente, mas… vou te poupar de todo o drama que
acompanhou essa decisão.
Sorriu fraco, melancólico.
— Pedro é padrinho do Igor, e tive sorte de ter meus amigos ao meu
lado nesse período, porque Flávia conseguiu transformar aquilo tudo em um
inferno. Quando Igor nasceu, ela deixou claro que não queria ficar com ele.
A guarda era minha e eu estava cem por cento responsável por tudo o que
envolvia ele. Aceitei de bom grado, era meu filho e sendo cedo ou não, era
minha função protegê-lo. Nunca me opus ao desejo dela de não querer ter
contato, era o seu direito… mesmo que eu não concordasse.
Acenei, aturdida, apenas para que soubesse que eu ainda estava
escutando.
— Por um ano, me virei sozinho com Igor, dei o meu melhor para
equilibrar tudo, e tive bastante ajuda, principalmente, do Pedro e do
Leandro… — sorriu fraco, cheio de gratidão. — Dois anos depois, Flávia
bateu na minha porta, disse que queria se aproximar do filho e que estava
arrependida. Durou menos de uma semana, e, da mesma forma repentina
que surgiu, ela simplesmente desapareceu, sem dar explicações.
Seus olhos escureceram e um vinco surgiu em sua testa.
— Resumidamente, isso se repetiu várias vezes. Quando eu a impedia
de se aproximar, ela aparecia com um advogado e ameaçava arrancar o meu
filho de mim. — Ele apertou a mandíbula, respirando profundamente para
controlar a raiva que queimou em suas íris. — O pai dela era um juiz
influente e corrupto… então, não seria tão difícil que ela conseguisse isso.
Senti um nó em minha garganta e levei os dedos para a sua testa,
acariciando a região para desfazer o vinco que presente ali.
— Em uma dessas visitas, aconteceu a despedida de solteiro do
Fabio. Eu estava em uma situação complicada no escritório, bebi demais… e
não pensei direito nas consequências.
— E aí veio o Matheus — deduzi, sentindo as coisas fazerem mais
sentido na minha cabeça.
Renato me olhou, culpado.
— O processo se repetiu, com a diferença de que na gravidez de
Matheus, ela precisou passar boa parte do tempo sob vigilância. Flávia não
queria parar de beber, continuou fumando, frequentando baladas… como se
não estivesse grávida. O acordo era o mesmo, depois que ele nascesse, ela
não precisava ter qualquer vínculo. Todo mundo sabia que não existia
resquício de maternidade nela…, mas novamente, ameaças de advogados, a
posição do pai dela no sistema e a possibilidade de tirar os dois de mim. —
Torceu os lábios. — E ela sempre conseguia se aproximar, fosse aparecendo
no colégio e exigindo ver Igor, ou aparecendo na casa dos meus pais para
fazer escândalo. A desculpa era sempre a mesma, ela não pensou direito…
estava arrependida… queria ser uma boa mãe. Durava alguns dias, e ela
desaparecia de novo.
Engoli em seco, sentindo os ombros enrijecerem conforme as
palavras escapavam dos seus lábios.
— Sempre usando os garotos para se aproximar, nessa última vez, há
pouco menos de um ano, ela extrapolou todos os limites.
Ainda tinha algum que ela não tivesse ultrapassado?
— Precisei ir para uma conferência no Rio e os garotos ficaram com
os meus pais. Quando cheguei para buscá-los, encontrei Pedro arrastando
Flávia para fora da casa dos meus pais. — Seus dedos afundaram em minha
coxa, brutos. — Igor estava em estado catatônico, nos braços de Leandro, e
minha mãe estava sendo contida pela governanta após ter agredido a
Flávia… foi um desastre completo.
Sua voz ficou rouca, desgostosa e com uma raiva contida.
— Basicamente, ela apareceu em casa bêbada e berrou as maiores
atrocidades que uma pessoa pode dizer para o próprio filho. — Renato
respirou fundo, tentando conter a fúria que aquela lembrança trazia. — E
bem, depois disso… cheguei à conclusão de que agir certo não valia de nada
nesse caso. Não me importo em admitir que usei alguns dos meus recursos
para garantir que ela nunca mais vai se aproximar dos garotos.
Aquiesci, compreendendo o motivo do pequeno ser tão fechado.
E por mais que ainda achasse injusto que Pedro tivesse me acusado
de usar as crianças para me aproximar de Renato, meio que a minha raiva
cedeu um pouco. Ele estava tentando proteger Igor e Matheus de lidarem
com algo parecido de novo, e por mais que estivesse errado em descontar
aquela situação em mim, o admirava por querer proteger os pequenos.
— Toda essa situação é um gatilho para o Pedro… a questão da
negligência da Flávia, as coisas que ela falou para Igor… — esclareceu e
soltei um suspiro, sentindo o coração apertar no peito e os olhos marejarem.
Queria guardar os filhos dele em um potinho e protegê-los da
maldade daquela mulher. Igor e Matheus eram crianças adoráveis, incríveis
e mereciam alguém que os amasse com todo o coração. Ficava feliz de
saber que eles tinham o Renato e os tios; que estavam dispostos a cuidar e
impedir que qualquer um os machucasse.
— Não é para você ficar triste — disse ele, arrastando o polegar em
minha bochecha, enxugando uma lágrima que escapou sem minha
permissão. — Sei que estava curiosa sobre isso, e embora não justifique a
atitude de Pedro…
Interrompi, engolindo o nó em minha garganta.
— É compreensível, ele acha que vou fazer a mesma coisa — falei,
tentando deixar a mágoa de lado. — Não foi justo, mas eu entendo.
— Ele vai te pedir desculpas — garantiu, olhando-me firme.
Neguei, deixando aquilo de lado.
Meu ego se recuperaria daquele ataque gratuito.
No fundo do meu coração, eu sabia que nada do que ele tinha dito era
verdade e, contanto que Renato também soubesse, estava bem com aquela
história. Águas passadas.
— Não me aproximei dos meninos com segundas intenções —
esclareci, sentindo a voz embargar por causa do choro contido.
Ele sorriu fraco. Sua mão se aninhou em minha bochecha e acariciou
a maçã, ternamente.
— Não pensei isso nem por um segundo, anjo — prometeu,
conduzindo meu rosto para perto do seu e deixou um beijo em minha testa.
— Desculpe por isso, você não merecia ter escutado nada daquilo.
Assenti, concordando com ele, mas era passado.
Uma hora ou outra, Pedro Zimmermann mudaria de opinião, e se
arrependeria de ter me comparado com aquela mulher.
— Quer descer? — perguntou, fazendo carinho em minhas costas e
desviei minha atenção para a faixa de areia, vendo que o sol estava
começando a se pôr.
Soltei um suspiro, desviando meu olhar para ele, sentindo-me exausta
depois de ouvir aquela história. Mesmo sendo poupada dos detalhes, não
conseguia imaginar o que mais poderia ter acontecido, e sinceramente, não
queria saber. Caso contrário, não poderia me responsabilizar pelos meus
atos seguintes.
— Podemos ficar aqui um pouco? — pedi, manhosa.
Renato sorriu e acenou, e sem pensar muito bem no que estava
fazendo, me aninhei em seu peito e entrelacei nossas mãos, deixando o seu
corpo me envolver naquele casulo confortável.
— Me conte um pouco sobre o galo Titus — ele pediu, enquanto
acariciava minhas costas e escondia o rosto em meu cabelo.
— Ele quase arrancou um dedo do meu avô uma vez.
— Por quê?
Sorri e gastei alguns minutos compartilhando com ele todas as
maluquices que o Sr. Elias viveu com seu galo ciumento.
Tateei o móvel em busca do celular que não parava de vibrar e espiei
sonolenta, percebendo que já era de manhã e que tinha dormido no quarto
de Renato outra vez.
Soltei um suspiro, sentindo a sua respiração em minha pele e apanhei
o celular de cima do móvel, franzindo o cenho ao ler o nome na tela.
Guilherme Bastos.
Eu estava tendo um pesadelo?
Deixei a chamada ir para a caixa postal, pois não tinha nenhum
assunto para tratar com ele em uma manhã de sábado. Se fosse possível,
rezaria a qualquer entidade capaz de evitar qualquer interação futura entre
nós.
Meu celular voltou a vibrar e apenas para fins de confirmação, li
novamente seu nome na tela e dessa vez, recusei a chamada; colocando no
modo avião.
Não havia nada que ele precisasse falar comigo que justificasse ligar
às sete da manhã de um sábado de Carnaval.
— Não vai atender? — perguntou Renato, seus lábios contra a pele
desnuda dos meus ombros e uma de suas mãos cobrindo meu seio esquerdo,
apertando-o suavemente.
Ignorei o espasmo que correu pelo meu corpo, mas não pude conter o
movimento instintivo que meu quadril fez ao se aproximar dele, sentindo a
ereção pressionando contra a minha bunda.
Soltei um suspiro, negando.
— Não é ninguém importante — falei, sincera.
Renato murmurou em resposta, a voz rouca devido ao sono.
Tínhamos ido dormir a pouco menos de uma hora, e o meu corpo
ainda estava enfraquecido pela noite passada. Não existia academia que me
prepararia para lidar com a disposição de Renato para o sexo, e pela
segunda vez em duas noites, ele me levou ao limite.
Suspirei, esgotada.
— Preciso de um banho…
Sua mão abandonou meu seio para deslizar pela minha barriga,
arrastando seus dedos preguiçosamente por toda a extensão, e não demorou
a encontrar o caminho para o meio das minhas pernas, arrancando-me uma
risada baixa e trêmula.
— De preferência… — fui interrompida por uma batida na porta e
ergui o rosto, encarando-a com medo de que fosse derrubada pela força das
batidas.
— Levantem coelhos, saímos em dez minutos! — gritou Leandro.
Merda.
— Esquecemos da trilha — constatei.
— Não sei por que você deu ideia… — resmungou ele
preguiçosamente, enquanto apertava o braço ao meu redor, impedindo-me
de levantar da cama.
Ri baixinho.
— Eu não achei que ele aceitaria.
— É o Leandro — disse, como se fosse óbvio.
E deveria ser, mas eu não estava pensando muito bem nas coisas
quando sugeri que fizéssemos a trilha até uma piscina natural do outro lado
da ilha. Pensei que todos recusariam, mas para minha surpresa, Salazar viu
nisso uma oportunidade de brincar de Dora Aventureira.
— Não escutei confirmações — cantarolou Leandro, esmurrando a
porta novamente.
— Vai à merda — respondeu Renato, alto o suficiente para que o
amigo o escutasse.
Sorri, escutando os resmungos de Leandro sobre Renato não o tratar
com carinho e que aquilo era minha culpa.
Girei no colchão, ficando de frente para Renato e engoli um suspiro
ao observar o homem ao meu lado.
— Você parecia muito acordado dois minutos atrás — comentei,
lembrando-o de como estava prestes a começar algo antes de ser
interrompido. — Onde está a sua energia?
Renato prendeu os olhos nos meus e sorriu, mordaz.
— Está reservada para ser usada apenas com você.
Suspirei, arrastando as unhas vagarosamente em seu peito, vendo-o se
arrepiar em resposta.
Em um piscar de olhos, o corpo de Renato estava sobre o meu e a sua
boca explorava meu pescoço, espalhando beijos e chupando um ponto
sensível, responsável por alastrar arrepios por todo o meu corpo, seguidos
de uma onda de calor e energia.
O cansaço que estava sentindo deu espaço ao desejo e Renato não
parou, abocanhando meu seio e chupando, mordiscando, lambendo,
sugando… e merda, eu estava tão sensível que sentia minha boceta contrair
em resposta, sem que ele sequer precisasse me tocar ali.
Meus dedos encontraram abrigo em seu cabelo e ele desceu pela
minha barriga, beijando cada centímetro de pele disponível no trajeto e
espalhando arrepios por toda a região, incendiando o meu corpo por inteiro.
Um arquejo escapou do fundo da minha garganta e minhas costas
ondularam no colchão quando sua língua alcançou o ponto que estava
úmido, ansiando por atenção. Senti minhas paredes se apertarem, buscando
pela grossura dele e arfei baixinho, fechando os olhos e impulsionando meu
quadril contra a sua boca.
Meu corpo fervilhou e minha visão ficou desfocada. Sua língua
explorava cada centímetro, hora chupando, lambendo e sugando o clitóris
sensível… noutra investindo dentro de mim.
Gemi algo desconexo, meu cérebro não estava funcionando direito e
mal conseguia concluir qualquer palavra; antes que ela fosse interrompida
por um gemido quando sua língua se movimentava, entrando e saindo,
contornando, girando… minha mente ficou turva.
Meus dedos se apertaram nos fios, meu quadril ganhou vida própria e
senti suas mãos apertarem minhas coxas, impedindo que eu as fechasse.
Meus olhos desceram em sua direção, perdendo o fôlego ao vê-lo
entre minhas pernas, as íris inflamadas em meu rosto enquanto ele me
devorava e sorria como um cretino.
Apertei meus seios, sentindo necessidade de estimulá-los e Renato
não demorou a tomar posse, seus dedos fizeram a pressão exata que eu
precisava.
Poderia me acostumar a acordar daquele jeito todas as manhãs.
Quem precisava dormir?
Senti a pressão aumentar, cegando-me momentaneamente, e deixando
meu corpo em chamas, minha respiração oscilou, refém de todo o prazer
que ele proporcionava.
Minhas pernas tremeram, preparando-se para o orgasmo intenso que
se aproximava e minha boceta apertou, pulsando violentamente. Estava tão
embriagada pelas sensações intensas que queimavam em minhas veias, que
mal percebi que seus dedos me abandonaram e acho que gritei ao sentir o
seu pau me invadir, com força, pegando-me de surpresa.
— Ai, meu Deus…
Renato buscou pela minha boca, bruto, forte e tomando todos os
meus gemidos para si. Minhas unhas descontaram em suas costas. Minhas
paredes sentiram o impacto da invasão violenta e meus olhos giraram nas
órbitas.
— Olhos em mim, diabinha… — ordenou, severo.
E minha mente colapsou quando seus dedos se fecharam em minha
garganta, apertando e me obrigando a mirar seu rosto enquanto metia fundo,
duro, voraz.
Choraminguei, sentindo o meu corpo prestes a implodir em frenesi.
Suas orbes cravaram em mim, aprisionando-me e me impedindo de fugir
dele. O calor cresceu, tornando-se insuportável e mal consegui escutar o
som da minha própria voz quando fui nocauteada pelo orgasmo.
Minha mente escureceu e fechei os olhos, sentindo o aperto em
minha garganta diminuir e seus lábios tocarem meu rosto, com carinho e
cuidado, mas era tarde demais. Eu estava arruinada.
Renato Trevisan ainda acabaria comigo.
Olhei em volta, estranhando a quantidade excessiva de vegetação na
trilha que Leandro queria seguir e que não parecia ser frequentada há muito
tempo.
Hesitei e como Renato estava segurando a minha mão, ele virou na
minha direção e seus olhos correram pelo meu corpo, buscando por um
motivo para que eu tivesse congelado no meio do caminho.
— Leandro, não acho que esse é o caminho certo… — falei, atraindo
a atenção do pior guia de turismo que tinha conhecido em toda minha vida.
Ele girou nos calcanhares, me olhando com irritação. Nem mesmo ele
conseguia mais suportar andar sob aquele sol escaldante, mas seu orgulho
era grande demais para admitir que havia nos levado para o lugar errado.
— Faço essa trilha desde pirralho, sei o caminho.
Bianca soltou um suspiro, ofegante e cansada, ela se aproximou de
uma pedra grande que tinha ali e afastou os galhos, sentando-se e apoiando
as mãos nos joelhos, agoniada por estar suada.
— Concordo com a Nathalia, estamos andando por duas horas e
ainda não vi sinal de cachoeira — reclamou, espantando alguns mosquitos.
Leandro olhou para ela, ofendido.
— Você vai confiar em mim, ou no projetinho de Dora Aventureira,
neném? — perguntou, ressentido.
Bianca olhou para ele e respirou profundamente, como se pedisse
paciência para o drama que viria a seguir.
— Já não bastava vocês dois terem me arrastado para fazer uma
trilha, ainda estamos perdidos. — Bufou e se levantou, esfregando as mãos
em seu shorts. — Nunca fiz nada de ruim para vocês, e estão me fazendo
andar no meio do mato há horas. — Olhou enfezada de um para o outro. —
Não me importo com quem está certo ou errado, só deem um jeito de
encontrar o caminho certo, ou eu juro que vou matar vocês dois!
Leandro revirou os olhos e esquadrinhou o espaço ao nosso redor,
buscando pelo caminho em sua memória, mas parecia realmente perdido.
— Você nunca foi nesse lugar? — indaguei para o homem ao meu
lado que me entregou uma garrafa de água.
— Bêbado — esclareceu Renato. — As três vezes em que viemos,
tínhamos bebido demais.
Suspirei, me sentindo cansada também.
Estava acostumada a fazer trilhas porque era o tipo de coisa que meu
pai amava fazer, e como gostava de passar o tempo com ele, acabei me
rendendo aos seus hobbies. Por isso, eu tinha alguma experiência em saber
reconhecer os caminhos certos, e aquele buraco que Leandro queria nos
enfiar não parecia apropriado para a passagem de seres humanos.
— Quando foi a última vez que você foi lá? — perguntei para o guia
de turismo do AliExpress.
Leandro fez uma careta.
— Dez anos?
— Isso é uma afirmação ou uma pergunta?
— Sei lá, cara. Faz tempo pra caralho.
Respirei fundo, olhando para o Renato e o fuzilando com o olhar. Por
que ele não avisou que Leandro era a pior pessoa do mundo para nos
conduzir?
Olhei em volta, odiando que tínhamos saído da casa sem celular e não
havia qualquer chance de conseguir chamar um guia decente para nos levar
até o ponto. Não deveria ser tão difícil de chegar, afinal, era um ponto
turístico e deveria ser fácil de encontrar.
— Vamos voltar para a última placa — disse Renato, estendendo a
mão para que eu pegasse, mas meus pés estavam doloridos.
Estávamos andando há horas e eu não tinha descansado nada na noite
passada.
— Acho melhor, ou vou acabar aderindo ao canibalismo, e o Leandro
vai ser o primeiro a me servir de almoço — disse Bianca, levantando-se e
passando por nós para descer pela trilha que havíamos acabado de subir.
Leandro sorriu, sacana.
— Meu pau pode ser sua refeição principal! — sugeriu, implicando
com ela, e me arrancando uma risada quando Bianca o xingou.
Meneei a cabeça, odiando que eu não conseguia ficar com raiva
daquele idiota por muito tempo, e agradeci mentalmente por não estar na
pele de Bianca.
Voltei para perto de Renato e ignorei a ardência no meu tornozelo,
começando a considerar a possibilidade de tê-lo torcido quando escorreguei
em uma pedra alguns quilômetros atrás.
— Quer subir nas minhas costas? — ofereceu e fiz beicinho,
balançando a cabeça em resposta.
— Por favor?
Ele sorriu e me puxou em sua direção. Escalei suas costas, prendendo
minhas pernas ao redor de seu quadril, permitindo que ele me carregasse.
Dessa vez, Renato tomou a frente da exploração e nos guiou,
seguindo as placas que indicavam o caminho, recusando-se a seguir as rotas
alternativas sugeridas por Leandro.
— Me lembrem de nunca mais aceitar fazer nada com vocês. Ricos
são tão estúpidos, com tantas opções disponíveis, e eles querem se enfiar no
meio do mato como se fossem o maldito Les Stroud[24] — reclamou Bianca,
abanando a mão para espantar alguns insetos. — É por isso que precisam
ter tanto dinheiro, porque se dependessem do cérebro para sobreviver, não
durariam um dia! Odeio o mato. Por que sou amiga de vocês?
Ela chutou um galho para longe.
— Por que ninguém me chama para ir à Europa? Até o Oriente
Médio eu toparia, mas não! No meio da selva. — Jogou a cabeça para trás,
dramática. — Não assisti Largados e Pelados o suficiente para sobreviver
aqui!
Seu milésimo resmungo nos arrancou uma risada.
— Pensa assim, neném…
— Cala a boca, você perdeu o direito de me chamar assim depois de
me fazer andar feito uma condenada.
— Que horror, neném…
— Leandro, eu vou te jogar daqui de cima.
— Não fala assim, você me ama.
— O seu rabo! Nesse exato momento o meu maior sonho é ver você
bater com a cabeça numa pedra e sumir da minha vida.
Olhei por cima dos ombros, vendo os dois brigarem como se fossem
casados há anos. Sorri, achando graça em como, mesmo fingindo odiar o
quanto ele implicava com ela, Bianca adorava ter o idiota atormentando seu
juízo.
— Eles ficam bonitinhos juntos — comentei, apenas para que Renato
escutasse.
Ele olhou por cima dos ombros, vendo o casal ficar para trás, e riu
baixinho, concordando comigo.
— Me surpreende que ela ainda não tenha cumprido todas as ameaças
que faz, motivos não faltam.
Suas mãos apertaram minhas coxas. Ele parou no meio do caminho,
analisando as duas trilhas, uma de cada lado. Ambas tinham marcas de que
foram frequentadas recentemente; a grama amassada e alguns galhos
quebrados para abrir caminho eram um bom indicativo. Na nossa frente,
conseguíamos ver a imensidão do oceano lá embaixo e a maneira como a
água brilhava com a luz do sol refletindo nela.
Soltei um suspiro, admirando aquele tecido azul que, do ponto em
que estávamos, parecia infinito.
— Direita ou esquerda? — pediu, me fazendo escolher.
Não precisei pensar muito.
— Esquerda — falei, segura da decisão, era a trilha que me parecia
mais mexida.
Renato não titubeou e seguiu, sinalizando para que nos
acompanhassem ou acabaríamos nos perdendo.
— Quer que eu desça? — perguntei, me sentindo culpada por fazer
com que me carregasse por todo aquele caminho.
— Não — disse, tranquilo e seu olhar recaiu para os meus pés. —
Ainda está doendo?
— Não — menti.
— Nível de dor? — insistiu, ignorando a minha resposta.
— Cinco?
— Cinco?
— Ok, talvez, seis.
Ele diminuiu o passo, caminhando mais devagar e agarrou meu
tornozelo dolorido, verificando o estado. Aquilo foi o suficiente para fazer
com que minha visão embaçasse e precisei morder as bochechas para conter
a reclamação.
— Ok, ok… dez — admiti, ofegante.
Renato assentiu, preocupado.
Ele apertou o passo e após alguns minutos de caminhada, pude
escutar o barulho de água corrente.
Olhei em volta, tentando me localizar entre a vasta vegetação,
arriscando identificar de onde estava vindo aquele som.
— Ei, acho que é pra cá — disse Bianca, apontando na direção oposta
e olhei para ela, incerta.
— Eu acho que é para lá — contrapôs Leandro, indicando para onde
estávamos indo.
Renato me olhou por cima dos ombros, ponderando as duas opções e
não precisamos pensar muito.
— Direita — dissemos em uníssono, concordando em seguir por
onde Bianca tinha sugerido.
— Estou ofendido! — Leandro reclamou, indignado.
Olhei para ele, mostrando a língua em resposta e como uma criança
implicante, Salazar mostrou o dedo do meio. Felizmente, tínhamos escutado
a voz da sabedoria e seguimos o instinto da Bianca, porque assim que
entramos na trilha, pudemos ver a água cristalina sob o reflexo do sol.
Não era a piscina natural que os rapazes falaram tanto, mas era uma
cachoeira.
Melhor do que nada.
— Finalmente!
— Eu falei que ia encontrar o caminho.
O filho da mãe teve a pachorra de se gabar.
Bianca e eu lançamos olhares furiosos em sua direção, e ele ergueu as
mãos, rendendo-se e nos deu às costas.
— E eu pensando que vocês me amavam.
— Quero arrancar o seu pescoço, isso sim! — A loira estava brava,
mas eu sabia que não duraria muito.
No meu caso, tínhamos um problema maior. Bianca e Leandro se
afastaram e se desfizeram das roupas para entrarem na água que parecia
fresca, e Renato me colocou no chão. Aproveitei que tinha um banco feito
com pedaços de uma árvore para me sentar; me livrei do tênis e percebi
que, realmente, dei um jeito no tornozelo.
— Droga.
Renato pegou a mochila que Leandro estava carregando durante todo
o trajeto, e que tinha algumas coisas que o guia de turismo fajuto julgou que
fossem úteis, e quase dei um beijo em sua boca quando retirou um tablete
daqueles gelos reutilizáveis.
— Vem cá — pediu, agachando-se na minha frente e retirou a meia,
expondo a região inchada. — Você deveria ter me avisado antes.
Suspirei, dando de ombros.
— Acho que fiquei tão irritada com o Leandro, que só percebi que
estava doendo depois que me acalmei e me sentei um pouco — confessei,
sentindo o alívio me atravessar quando ele encostou o pacote gelado em
minha pele.
Renato olhou por cima dos ombros, esboçando um sorriso divertido
quando Bianca empurrou Leandro de cima da cachoeira, pegando-o
desprevenido.
Ele se afastou um pouco, aproveitando para se desfazer da camiseta e
me agraciando com a visão do seu abdômen definido, ainda existiam os
resquícios das minhas unhas em suas costas e ele não parecia incomodado
com aquilo.
— Obrigada.
Seu olhar veio para mim, achando graça.
— Não foi nada, anjo.
Fiz beicinho.
— Estou agradecendo por isso. — Indiquei com o queixo para a sua
barriga trincada e dei um sorrisinho, esperta. — Ajudou bastante a me
distrair da dor.
Ele riu, balançando a cabeça e seus dedos capturaram meu queixo,
me roubando um beijo delicado. Meus braços envolveram seus ombros e
deixei que sua boca dominasse a minha, no ritmo que quisesse, porque tudo
o que ele fazia era tão bom.
Arfei baixinho quando prendeu meu lábio inferior entre os dentes e
odiei Leandro por se lembrar da nossa existência.
Reviramos os olhos e Renato se afastou para pegar uma cartela de
analgésico muscular.
— Quando voltarmos, te levo no hospital.
Acenei, concordando.
— Falou com Pedro? — perguntei, curiosa.
O engenheiro havia ido embora depois da nossa discussão e não
voltou mais, e meio que eu me sentia culpada por ele não ter ficado. Estava
brava com ele? Com certeza. Mas não significava que queria que ele fosse
embora, ao contrário, tinha ido falar com ele justamente para que não
ficasse um clima chato.
— Sim, ele voltou para São Paulo — disse, despreocupado. Não
soube dizer se minha chateação ficou estampada, mas Renato segurou meu
rosto, fazendo-me olhar em seus olhos e me deu um sorriso, tranquilo. —
Não é sua culpa, ele ia de qualquer jeito.
— Ia mesmo?
— Sim, parece que teve um problema no projeto que está responsável
em Munique.
Ah, então foi por isso que ele estava brigando no telefone?
Coitada da pobre alma que tinha que trabalhar com ele em um
projeto.
Senti os ombros relaxarem e me senti um pouco melhor. Ao menos
não havia sido por minha causa que ele foi embora.
Mais tarde, naquela noite, Renato me deixou no sofá do quarto e
avisou que voltava em alguns minutos para me ajudar a tomar um banho.
O ortopedista que nos atendeu fez alguns exames para garantir que
nenhum osso havia sido lesionado e me colocou de castigo por uma
semana, com o pé enfaixado devido a uma entorse no tornozelo.
A recomendação era que evitasse me esforçar muito, Renato
entendeu que isso significava que eu não poderia andar e,
consequentemente, ele precisaria me carregar no colo para cima e para
baixo.
A porta foi aberta pouco tempo depois dele sair para buscar algo para
eu comer, e Bianca surgiu por ela. Sua pele estava bronzeada pela tarde que
passamos na cachoeira, destacando as inúmeras tatuagens, e seu olhar
demonstrava exaustão. Era visível que ela estava extremamente cansada e
só não tinha ido descansar porque estava nos esperando chegar do hospital.
— Como você está? — perguntou, sentando-se no espaço ao meu
lado e analisando a tala no meu tornozelo. — Você quebrou alguma coisa?
— Não, foi só uma torção… — suspirei, relaxando nas almofadas e a
olhando com um meio sorriso. — Quer conversar comigo sobre o que
aconteceu hoje?
Bianca piscou, se fazendo de desentendida.
— O que aconteceu?
Revirei os olhos, sabendo que não adiantaria insistir, ela conversaria
comigo sobre isso quando estivesse pronta.
Leandro e ela passaram a tarde inteira na cachoeira agindo como um
casal apaixonado, sempre de mãos dadas e até sumiram por algumas horas.
Não julgaria se estivesse se deixando levar, afinal, não podemos controlar
nossos próprios sentimentos.
A minha única preocupação era que Bianca sempre evitava falar
sobre isso, e a chance de acabar dando merda era enorme.
— Não, quer falar sobre o que rolou entre você e o Sr. Perfeição?
— Sr. Perfeição? — Engoli um sorriso ao escutar o apelido.
— É. Combina com ele, não é? — Sorriu, astuta. — Bonito,
inteligente, educado, cadelinha número um da namoradinha…
— Não sou a namorada dele.
Bianca revirou os olhos, como se aquilo fosse um mero detalhe.
— Não rolou um pedido porque ele te escutou falando ontem o
quanto acha isso cafona, mas vocês estão namorando há semanas, meu bem
— falou, irônica.
— Não me chame de meu bem.
— Você pode, e eu não?
— Exatamente, meu bem — resmunguei, desviando do assunto. —
Essa é a minha marca registrada.
Bianca sorriu.
— Boa saída para fugir do assunto, mas não muda o que eu falei.
Soltei um suspiro, deitando a cabeça no apoio do sofá e olhando para
ela mais tranquila, desistindo de fugir do assunto.
— Burrice, não é? — indaguei, esperando pelo julgamento.
Afinal, o prêmio de maior hipócrita do mundo seria… meu.
Dois anos inteiros falando para todo cara que me chamou para sair,
que não me envolvia com ninguém do mercado e ali estava eu, no meio do
quarto do Renato, e indo dormir na sua cama pela terceira noite seguida.
— Está achando que eu vou te julgar? — indagou e assenti,
escutando uma risada sombria escapar dela. Bianca negou. — Que moral eu
tenho para te acusar de alguma coisa, Nathalia? Seria hipócrita da minha
parte achar que tenho direito disso.
— Como assim?
— Você sabe muito bem — respondeu, amarga.
Engoli em seco, me odiando por ter feito aquela pergunta e aberto
aquela porta.
— Não foi minha intenção te fazer pensar nisso.
— Você não fez — garantiu, a voz ficando mais baixa e receosa. — É
só que… é o tipo de coisa que nunca sai da minha cabeça.
Senti minha garganta dar um nó ao reconhecer a dor em suas
palavras, o brilho divertido que ela sustentava até aquele momento se
esvaiu, dando espaço para aquele lado que, raramente, Bianca deixava
exposto na superfície.
Eu queria muito ter poderes mágicos e poder apagar as coisas que a
atormentavam, mas, infelizmente, aquela era a vida real, tudo o que eu
podia fazer era fornecer meu apoio incondicional.
— Você ainda está vendo a Dra. Cecília?
— Duas vezes por semana. Como você mandou, mamãe. — Bateu
continência, numa falsa tentativa de implicar comigo.
Suspirei, entristecida.
— Sabe que é para te ajudar, Bia.
— Sei, sei… estou indo, não estou?
— E os remédios? — investiguei, buscando em seu rosto um sinal de
mentira.
— Tudo em ordem.
— Sono?
— Dormindo feito um anjo.
— Todas as noites?
Bianca fez uma careta e afundou as costas no estofado. Soube que a
resposta era negativa. Ela tinha voltado a passar pelas noites ruins, e me
senti a pior amiga do mundo por não ter notado aquilo, estava tão ocupada
com o escritório, a inscrição para o estágio, a situação com Roberta e
Renato, que perdi a noção do que acontecia ao meu redor.
— Ei, você tem direito de ter uma vida, sabia? — perguntou Bianca,
sorrindo fraco, como se soubesse o que se passava na minha mente. — Não
pode ficar só cuidando de mim. Tecnicamente, eu sou mais velha do que
você.
Tentei engolir o nó na garganta, mas aquilo só fez com que as
lágrimas se acumulassem em meus olhos.
— Só três anos — retruquei, vendo Bianca entrelaçar a minha mão na
sua, apertando levemente —, promete que se tiver uma daquelas noites,
você vai me ligar? — pedi, angustiada. — Sabe que não importa onde eu
esteja, se precisar de mim, largo tudo para ficar contigo, né?
Ela sorriu, abrindo os braços e soltei um suspiro, aceitando o seu
abraço apertado.
— A gente se casou e eu esqueci de ser informada? — implicou.
Dei risada.
— Fizemos pacto de sangue, vadia. Isso é muito mais sério.
Senti o sorriso dela, enquanto apertava os braços ao meu redor.
Quando o barulho da porta sendo aberta quebrou o silêncio, Bianca me
soltou e olhou na direção. Renato entrou no quarto segurando uma bandeja
e nos observou, como se perguntasse se havia interrompido algo.
— Acho bom você cuidar da minha Mia Colucci de estimação, ou
arranco as suas bolas e nunca mais vai poder ter filhos — ameaçou Bianca,
olhando-o como uma psicopata sanguinária.
Renato sorriu, acenando.
— Pode deixar, loira.
Bianca sorriu de volta, o que era incomum. Seu olhar retornou para
mim e ela piscou, saindo do quarto e nos deixando a sós.
Assim que fechou a porta, voltei a olhar para Renato, que franziu o
cenho, preocupado. E me provando que sempre notava tudo, ele deixou a
bandeja na mesa de centro e me observou, intrigado.
— Aconteceu algo?
— Nada demais.
— A mãe dela está bem?
Tinha me esquecido completamente que Renato sabia da situação da
Adelaide. A própria Bianca lhe contou para justificar as ausências durante o
expediente, e Renato deu carta branca para que ela pudesse ir sempre que
precisasse.
— Tudo bem — falei, o tranquilizando.
Renato se sentou ao meu lado e trouxe a bandeja para perto, com uma
quantidade exagerada de comida apenas para nós dois.
Eu me sentia exausta.
Se fosse ser sincera, sequer estava com fome, só queria dormir por
cinco minutinhos.
— Come alguma coisa e depois pode descansar — prometeu, lendo
os meus pensamentos.
— Posso ir para o meu quarto?
Ele me olhou, pacífico.
— Você quer ir para o seu quarto? — questionou, franzindo o cenho
levemente.
Suspirei, pegando o copo de suco de laranja e bebendo um gole,
enquanto tentava encontrar as palavras certas para explicar o motivo da
minha pergunta, mas acabei chegando na conclusão de que sinceridade era a
melhor alternativa.
— Eu não quero invadir o seu espaço, sabe? — murmurei, sem graça.
Afinal, não me importava de dividir a cama com ele, mas Renato
pensava da mesma forma?
Ele sorriu, como se aquele comentário o divertisse de alguma forma.
— Não preciso disso, diabinha — disse, prendendo seu olhar no meu,
descarregando toda aquela sua intensidade em cima de mim. — Espaço é o
que as pessoas que não sabem o que querem, precisam, e eu sei que quero
você… — prosseguiu, arrastando os dedos na minha bochecha,
compenetrado. — E de todo jeito, não importa o quão perto você fique,
ainda não vai ser o suficiente para mim.
Meus lábios se entreabriram, tentando encontrar as palavras certas
para respondê-lo, mas elas simplesmente não existiam, ao menos, não na
ponta da minha língua.
Fisguei o lábio inferior, vendo seu olhar recair nele e soltei um
suspiro, desistindo daquela busca inútil.
Era oficial.
Existia uma pessoa que conseguia me deixar sem palavras, e seu
nome era Renato Monteiro Trevisan.
Seu polegar tocou meu lábio inferior, libertando-o da pressão entre
meus dentes, e ele apertou meu queixo, instruindo-me a olhar em seus
olhos.
— Não sou do tipo que manda recado ou que deixa espaço para
desencontros, Nathalia — falou, sem desviar o seu olhar do meu. — Quero
você, e se me quiser, saiba que tem.
Senti-me zonza e nada tinha a ver com os analgésicos.
— Por quanto tempo? — perguntei, em um sussurro.
— Pelo tempo que você quiser.
Ah, droga…
Meu coração acelerou drasticamente e esperei pela parte do meu
cérebro que me mandaria correr para longe, que aquilo era cilada, mas não
aconteceu.
Renato conseguiu instaurar uma pane em todo o meu corpo,
colapsando meus neurônios e os deixando perdidos, sem saber o que
responder.
— E se amanhã você mudar de ideia?
Ele não se abalou pela pergunta, ao contrário, parecia esperar que ela
surgisse.
— Dificilmente mudo de ideia sobre o que eu quero, anjo.
Soltei um suspiro, acenando e desviando o olhar, sentindo-me
intoxicada por ele.
— Acho que encontrei o genro dos sonhos da minha mãe —
cantarolei, divertida.
Bebi um gole do meu suco, escutando a sua risada.
Merda.
Por que não existia nenhuma parte de mim que estava disposta a
recusar aquela oferta?
Porque seria estupidez, óbvio.
— Coma — mandou, compreendendo que eu precisava de um tempo
para processar o que havia dito. — Você vai para o seu quarto essa noite?
Não existia exigência na sua pergunta, tampouco uma pressão por
resposta, apenas curiosidade.
Mas ainda assim, eu sabia que a resposta que desse, seria definitiva.
Não teria volta.
Se saísse, ele entenderia que eu precisava de distância para refletir
sobre a proposta que fez. Se ficasse, significava que estava aceitando correr
os riscos daquela aposta.
Subi meus olhos para os seus, buscando por uma recomendação, mas
não encontrei.
Renato estava me deixando a vontade para escolher.
Inspirei lentamente, obrigando o oxigênio a fluir corretamente em
direção aos meus pulmões e, sem pressa, soltei o ar; sentindo as palavras
escorregarem dos meus lábios sem qualquer esforço.
— Vou ficar.
Ele anuiu, deixando um beijo em meu cabelo e avisando que voltava
em poucos minutos.
Encarei meu reflexo pelo vidro da porta de correr, buscando por
qualquer sinal de arrependimento, mas não o encontrei.
Ao menos naquele momento, estava firme naquela escolha.
Estacionei o carro em frente à casa dos meus pais e desviei o olhar
para Nathalia. Já se passavam exatos cinco minutos desde que ela ficou em
silêncio, e levando em consideração seu histórico, aquilo era tempo demais.
— Algum problema?
Seus olhos se voltaram para mim e, num rápido instante, vi quando
rejeitou uma chamada, oferecendo um meio sorriso e negando.
— Ainda acho que eu poderia ter ido com o Leandro e a Bianca… —
suspirou, reconhecendo o portão da garagem que se erguia para que
entrássemos. — Não acho que a sua mãe vai ficar animada em me ver aqui.
Olhei para ela, incrédulo em como, de repente, aquela autoconfiança
que estava presente quando nos conhecemos simplesmente desapareceu.
Nathalia parecia insegura em sair do carro e não foi difícil perceber
que era por conta do que Pedro havia dito.
— Minha mãe vai ficar eufórica em te ver aqui, anjo — assegurei.
Nos últimos dias, Amália me encheu de mensagens cobrando
atualizações. Em quase trinta anos, ela nunca quis saber de qualquer mulher
com quem me envolvi, mas desde que conheceu Nathalia no aniversário de
Igor, minha mãe não parava de perguntar sobre ela.
Meus pais retornaram de viagem naquela manhã e estava com
saudades dos meus garotos. Não era comum que passasse tanto tempo longe
deles, e ainda que minha mãe tivesse sugerido que os pegasse no dia
seguinte, ainda preferia buscá-los naquela noite.
— Será rápido, tudo bem? — perguntei, abrindo a porta do
passageiro e oferecendo uma mão que ela prontamente aceitou, mancando
ao descer do carro.
— Tudo bem. — Sorriu doce, entrelaçando os dedos nos meus, e
caminhou sem muita pressa para o jardim na entrada da casa.
— Se você…
— Não ouse — resmungou, mandona. — Ainda consigo andar —
garantiu, teimosa.
O inchaço tinha diminuído bastante nos últimos dias. Entre pomadas
de massagem, anti-inflamatórios e compressas quentes, naquela manhã,
Nathalia acordou elétrica e disposta a aproveitar tudo o que não pode nos
outros dois dias com o pé imobilizado.
Apesar do feriado durar até a metade do dia seguinte, decidimos
retornar um dia antes, o que encurtou o trajeto, uma vez que voltamos de
helicóptero. Isso permitiu que ela pudesse compensar o tempo perdido.
Mal tivemos tempo de alcançar o alpendre, quando uma cabeleira
loira apareceu em meu campo de visão, passando como um furacão por
mim e envolvendo Nathalia em um abraço apertado.
— Ah, meu Deus, docinho… o que eles fizeram com você? —
indagou preocupada, ao ver o tornozelo de Nathalia enfaixado.
Minha mãe me olhou, inquisidora.
— O que o Leandro fez?
Nathalia olhou para ela, espantada.
— Como sabe que foi culpa do Leandro?
— Quem mais poderia ser? — Minha mãe retrucou, como se fosse
óbvio e acariciou as bochechas de Nathalia. — Acho muito difícil que
Renato deixaria algo acontecer com você propositalmente. Ele é igual o pai
dele nesse quesito!
Revirei os olhos, ignorando o olhar que ela me enviou, juntamente
com o sorriso largo que tomou seus lábios ao ver a mão de Nathalia
entrelaçada na minha.
— Tecnicamente, a culpa não foi dele… — Nathalia tentou defender o
amigo. — Eu fui desastrada e acabei pisando em falso na trilha.
Amália apertou os olhos na mulher ao meu lado e sorriu, perspicaz.
— Quem estava guiando vocês?
— Leandro.
Minha mãe sorriu mais e arrancou uma risada de Nathalia, que
desviou o olhar para mim com doçura.
— Que horror, o coitado sofre bullying com todos vocês — disse,
fingindo chateação. — Como foi a viagem? — perguntou, voltando a olhar
para a minha mãe, que sorriu radiante com aquilo.
— Foi ótima! Eu adoro passar um tempo mimando meus lindinhos,
sem o Renato implicando comigo por ser uma avó babona — falou,
enlaçando seu braço no de Nathalia e piscou para mim. — Os meninos
estão dormindo, por que não vai falar com o seu pai?
Encarei a Nathalia, sabendo que Amália queria uma chance de falar
com ela a sós.
A morena balançou a cabeça, de acordo com aquilo.
Nos fundos do jardim, havia um bar que meu pai e eu construímos
juntos quando eu tinha dezoito anos. Ele tinha acabado de se aposentar e
queria um projeto para ocupar a cabeça, e era ali que passava a maior parte
do tempo.
O espaço possuía uma mesa de bilhar, outra de pôquer e uma
prateleira com inúmeras garrafas de uísque. Sempre que viajava, ele
adicionava um novo rótulo na coleção e como passava boa parte do seu
tempo ali, eu estava tão familiarizado com o espaço que conseguia
identificar as garrafas novas.
— Ei, garoto! — cumprimentou, erguendo seu olhar do Kindle que
estava lendo e se levantou, vindo em minha direção para me dar um abraço
apertado, seguido de alguns tapas nas costas. — Como foi o seu feriado?
— Tranquilo, levando em conta que Leandro esteve à frente da
programação — murmurei, relaxado e ele sorriu, aquiescendo.
Meu pai deu a volta no balcão, buscando dois copos e colocando
cubos de gelo, enquanto servia uma dose calibrada de uísque.
A embalagem era nova e isso atraiu minha atenção.
— Uísque australiano — explicou e soltou uma risada ao ver o
estranhamento em meu rosto. — É uma merda, mas o sommelier me
convenceu e eu comprei três caixas… a sua mãe vai me fazer beber isso até
o Natal.
Sorri, entendendo o motivo da sua diversão.
— Dê de presente ao Hugo.
Eduardo apontou para a outra parte da sala, onde havia apenas duas
caixas de madeira.
— Onde acha que está a terceira caixa?
— Ele disse algo?
— Porra nenhuma. Mas deve gostar… tem um sabor fresco, como ele.
— Revirou os olhos e apoiou os cotovelos.
As pessoas costumavam dizer que eu era parecido com meu pai, e
mesmo com o cabelo grisalho e algumas marcas do tempo, ele ainda
aparentava juventude aos 59 anos. Talvez fosse a influência da minha mãe,
que nunca deixava de lado o espírito jovem que tinha aos 18 anos. Eu
admirava a forma como meus pais levavam a vida.
Eu era extremamente sortudo por ter crescido em um lar estável, com
duas pessoas que se amavam de um jeito quase exagerado, e que se
dedicaram a me dar todo o suporte necessário em todas as fases da minha
vida, mesmo tendo carreiras que exigiam muito deles.
Enquanto minha mãe se aventurava na carreira de escritora de
romances eróticos, meu pai atuou como delegado da Polícia Federal por
vinte anos. Essa profissão era a sua paixão, desde… sempre. No entanto, seu
amor por minha mãe era ainda maior e a decisão de se aposentar tão cedo
foi tomada por causa dela, a única mulher por quem ele seria capaz de
desistir de qualquer coisa.
Era uma carreira perigosa e, depois de alguns problemas, a
aposentadoria era a melhor alternativa para que pudesse estar ao lado dela
naquela fase da vida.
Aos poucos, mesmo sem ter a intenção de se aposentar tão cedo,
minha mãe estava diminuindo sua carga de trabalho. Ela vinha reduzindo
gradativamente o número de lançamentos por ano. E quando os dois não
estavam comigo e meus filhos, aproveitavam para viajar pelo mundo.
— Os meninos deram trabalho?
— Nunca dão — falou, despreocupado. — Quer conversar sobre a
garota?
Revirei os olhos, sem me surpreender que Amália tivesse dito algo.
— O que a minha mãe te contou?
Ele sorriu, bebendo um gole do uísque e esboçando uma careta.
Era péssimo, realmente. O gosto era doce demais e podia sentir notas
frutadas ao fundo. Tinha sido uma péssima aquisição.
— Não foi ela.
— Leandro?
— Pedro — disse, me pegando de surpresa com aquela revelação.
— Pedro?
Meu pai assentiu, jogando o líquido na pia ao lado e fazendo uma
careta desgostosa, imitando o gesto com o meu copo quase intocado. Ele
serviu novas doses, dessa vez de um escocês tradicional.
— Ele passou aqui antes de ir para o aeroporto, almoçou com a gente
e me contou sobre ter discutido com a garota — explicou, bebendo um gole
e respirou pesadamente, aprovando o gosto da bebida. — Porra, isso que é
uísque de verdade. Aqueles críticos não sabem merda nenhuma.
Sorri, balançando a cabeça.
— Vocês dois brigaram? — indagou.
— Pedro e eu?
— Não, a garota… Nathalia.
Neguei, tranquilo.
— Isso é bom… Pedro estava preocupado de que tivesse te
prejudicado com ela de alguma forma.
Respirei fundo.
Não estava com raiva de Pedro ou qualquer coisa do tipo, entendia a
sua atitude e sabia que relembrar o que Flávia havia feito com os garotos,
especificamente com o Igor, trazia à tona algumas lembranças que ele se
esforçava muito em deixar para trás.
Ele era um claro exemplo de como uma mãe de merda poderia ferrar
uma criança para sempre. E mesmo não concordando que tivesse tido
aquela conversa com Nathalia — que nada tinha a ver com o assunto —,
não o recriminaria por ter se preocupado com o bem-estar dos meus filhos.
Pedro podia fingir que não se importava, mas era quando agia
daquela maneira impensada que eu sabia que, apesar serem completamente
disfuncionais, desajustados, inaptos e conturbados, eu tinha feito uma boa
escolha ao escolher ele e Leandro como padrinhos de Igor e Matheus.
Se algo acontecesse comigo e com os meus pais, tinha certeza de que
meus filhos estariam sob os cuidados de pessoas que fariam o possível para
dar a eles o que eu me esforçava para ser.
— E como estão as coisas com a Nathalia? — investigou,
interessado. — Te conheço a vida inteira e nunca vi você falar de uma
mulher com tanta admiração.
Sorri, aquiescendo.
Meu pai era a última pessoa que me alertaria sobre como aquilo
estava indo rápido demais, ou que eu deveria pensar antes de dar qualquer
passo em relação à Nathalia.
Cresci ouvindo-o contar que, na maioria das vezes, um homem sabia
reconhecer o exato momento em que conheceu a mulher que seria capaz de
amarrá-lo para o resto da vida. Ele soube com a minha mãe, e trinta e um
anos depois, apesar de todos os desafios e percalços no meio do caminho,
eles ainda se amavam, se respeitavam e estavam interessados em passar
cada dia de suas vidas juntos. Mesmo com as dificuldades causadas pelo
meu avô, eles continuaram firmes em seu compromisso um com o outro.
— Estou vendo como as coisas vão fluir — falei, sincero. — Pedro
não estava tão errado quando disse uma coisa… eu preciso me lembrar de
que tenho duas crianças nessa equação. Eles acabaram de conhecê-la e
estão se apegando.
No que dependesse de mim, Nathalia permaneceria na minha vida.
Mas era uma certeza minha, e ela tinha o direito de pensar diferente.
Seis anos de diferença podiam não ser tanta coisa, mas existia toda
uma vida de discrepância entre nós dois e, principalmente, duas crianças
que dependiam da minha completa dedicação.
Isso me restringia muito e, por mais recursos que tivesse à disposição
para ajudar na criação deles, significava que onde quer que eu fosse, Igor e
Matheus estariam comigo. E Nathalia, com seus 23 anos, tinha o direito de
não querer se preocupar com essas responsabilidades.
Eu não esperava que ela assumisse o papel de figura materna dos
meus filhos, de forma alguma. Mas em um relacionamento, a presença dos
garotos seria constante. A cada minuto e hora do dia, eles dependeriam de
mim.
Precisava ter certeza de que ela entendia o que isso significava.
— Está preocupado que Nathalia veja os garotos como um fardo?
— É uma possibilidade, não?
Meu pai sorriu, meneando a cabeça devagar.
— Não a conheço muito bem, meu filho — ponderou, refletindo —,
mas observei como ela lida com os meninos, a conexão, a sintonia… o
carinho genuíno ao se dirigir a eles. — Apontou, lembrando-me de como
ela agiu com os dois na festa de Igor. — Nathalia me parece muito
consciente de que os dois fazem parte do combo que envolve estar com
você.
— E se for demais para ela?
— Você acredita que ela não daria conta?
Franzi o cenho, pensando por um minuto na pergunta. Ainda que não
tivéssemos tornado as coisas oficiais, dei a ela a oportunidade de pisar no
freio e fazer com que tudo fosse mais devagar. Nathalia escolheu
permanecer e ver onde aquilo levaria, então eu precisava confiar em sua
consciência sobre o que estava envolvido.
— Bom, acho que é uma aposta que os dois vão precisar fazer. Faz
parte do jogo — disse ele, dando de ombros. — Vou torcer para que saiam
no lucro, sua mãe a adorou… será difícil para a pobre coitada que vier
depois. Acho que até o seu avô fará gosto do relacionamento.
Torci os lábios, descontente.
— Minha vida pessoal não depende da aprovação do Vicente — falei,
incomodado.
Eduardo sorriu, meneando a cabeça.
— Claro que não. Se a Lia não permitiu que o pai dela ditasse com
quem ela ficaria, por que você permitiria? Já avançamos algumas décadas,
ele pode ter deixado essa ideia de casamento arranjado de lado — zombou,
dando outro gole em sua bebida.
Revirei os olhos, mesmo sabendo que meu pai havia perdoado meu
avô por tudo o que aconteceu quando eles eram mais jovens, eu preferia
manter distância de tudo o que envolvia Vicente e suas crenças estúpidas.
— De qualquer forma — murmurou, voltando a conversa para
Nathalia —, acho que é importante que vocês tenham uma conversa sincera
sobre as expectativas que têm nesse relacionamento. Assim, ninguém entra
nele de mãos atadas.
Anuí, soltando uma risada fraca.
— Quase trinta anos nas costas, e ainda preciso dos conselhos do meu
pai — zombei, achando graça na situação.
Eduardo sorriu, erguendo o seu copo em um brinde silencioso.
— Nunca se é velho demais para receber um conselho de pai, meu
filho. — Bateu em meu ombro, relaxado. — Daqui a alguns anos, você
também estará atrás de um balcão aconselhando o Igor e o Matheus sobre
os seus respectivos relacionamentos.
— Isso ainda vai demorar.
Meu pai riu.
— Vamos torcer para que o destino os ajude e coloque a pessoa certa
para a vida deles no caminho um pouco mais rápido do que foi com você.
Balancei a cabeça, concordando plenamente com aquele desejo. Eu
também torcia para que meus filhos não tivessem que encarar os mesmos
desafios que eu enfrentei.
Após jogar uma partida de truco com o meu pai, retornamos para
dentro de casa e encontramos a minha mãe e Nathalia na sala, rindo de
alguma coisa enquanto bebiam vinho.
Meus olhos percorreram o ambiente e logo percebi que já estavam na
segunda garrafa de vinho. No colo de Nathalia, repousava o iPad da minha
mãe. Ao me aproximar, ficou claro que ela estava lendo o manuscrito do
novo livro, imersa na história que minha mãe havia criado.
— Tudo bem por aqui?
As íris castanhas se acenderam, brilhando de maneira tão
extraordinária que ela poderia iluminar todo o bairro.
— Estou tendo acesso exclusivo ao novo livro de uma autora
mundialmente famosa — disse baixinho, como se me contasse um segredo.
— Nunca me senti tão privilegiada quanto agora.
O sorriso genuíno que se abriu em seus lábios me impeliu a
acompanhar, afagando seu rosto lindo e voltando para minha mãe, que
mantinha sua atenção concentrada em nós, observando como um gavião,
sem deixar nada passar.
— Os garotos?
— No seu quarto.
Assenti, murmurando para Nathalia que voltaria em breve, e subi
para o segundo andar. Os meninos tinham quartos individuais, projetados de
acordo com seus gostos — minha mãe não se importava em mimá-los. No
entanto, sempre que dormiam aqui sem mim, era comum que eles
dividissem minha cama no meu antigo quarto.
Era um hábito dos dois, e a terapeuta acreditava que era uma forma
do cérebro deles de associarem minha presença, já que se sentiam seguros
ao meu lado e queriam manter essa sensação mesmo na minha ausência.
Outra teoria era simplesmente a saudade, e eu estava cheio dela.
Fazia muito tempo que eu não dormia na casa dos meus pais, mas
meu quarto havia sido adaptado com uma cama grande o suficiente para
que nós três pudéssemos dormir confortavelmente nas raras ocasiões em
que passávamos a noite ali.
Abri a porta, vendo que as cortinas estavam fechadas e que a brisa
fresca ventilava o quarto, cobertos por uma manta estavam os dois maiores
presentes da minha vida. Esparramados na cama, exaustos, no milésimo
sono e de mãos dadas, eles eram responsáveis por melhorar o meu dia
drasticamente.
De todos os erros que cometi na vida, aqueles dois eram os meus
maiores acertos.
Senti um toque delicado em meu braço e me virei, encontrando
Nathalia.
— Sua mãe me pediu para te avisar que espere o jantar ficar pronto
antes de acordar os dois — disse, desviando o olhar para a cama e soltando
um sorriso doce.
Nathalia olhou em volta, interessada. Não tinha mudado muita coisa
desde a época que morava com os meus pais, alguns troféus de
campeonatos acadêmicos e esportivos, diplomas e medalhas, fotos de
viagens… uma boa parte da minha vida estava ali.
— Que injusto… você sempre foi sarado, bonito e inteligente —
sussurrou, apontando para uma foto minha ao lado de Pedro e Leandro
quando tínhamos dezesseis anos. Estávamos vestindo apenas a bermuda do
time da escola, suados e felizes pela vitória no campeonato. — Aposto que
as garotas brigavam por você.
Seu comentário me arrancou uma risada baixa e me aproximei,
percorrendo os olhos pelas fotos e lembrando do que Nathalia havia dito
sobre ver uma coisa do passado e relembrar de como tinha sido na época. E
realmente, era uma sensação boa de nostalgia.
Nathalia estava particularmente interessada nas fotos expostas.
— Com quantas você namorou? — indagou, olhando uma foto com
algumas amigas do colégio na festa de formatura.
Guardei as mãos nos bolsos, vendo-a caminhar pelo meu quarto de
quando era adolescente.
— Nenhuma.
Nathalia sequer disfarçou sua descrença na minha resposta. Seus
dedos, que exploravam curiosamente a fileira de fotos, hesitaram no meio
do caminho e ela virou o rosto, espiando em meu rosto.
— Conta outra!
— É a verdade — falei, sincero.
Fiquei com muitas garotas? Sem a menor sombra de dúvidas. Mas
nunca nenhuma ganhou o status de um relacionamento sério. Aquilo
demandava muito esforço e maturidade, e a última coisa que eu queria
naquela época era me preocupar com responsabilidades.
— É sério?
Meneei a cabeça, assentindo.
— Sempre pensei em namoro como algo muito sério. Se eu estivesse
com alguém, eventualmente, me casaria com essa pessoa. Era uma escolha
importante demais para fazer com quinze ou dezesseis anos.
Nathalia suspirou, atordoada.
— Você já pensava sobre casamento? — Assobiou, sem desviar os
olhos do meu rosto. — Muito ambicioso para um adolescente, não?
Dei de ombros, apreciando como ela se dividia entre confiar na
minha palavra e duvidar de tudo o que eu estava dizendo. Não a julgava por
não acreditar. Dado ao histórico de homens sem caráter que passaram pela
sua vida, era válido que ficasse com um pé atrás.
— Gosto de pensar no longo prazo. É o que faço na minha carreira,
por que não faria na vida pessoal? — Arqueei a sobrancelha, vendo-a se
aproximar e se sentar na poltrona, olhando-me com verdadeiro interesse.
— Mas isso mudou na faculdade, né? Tipo, você namorou…
— Também não.
— Mentira. — Seus olhos se arregalaram, espantados. — Você é
completamente virgem de relacionamentos?
A pergunta escapou de forma tão genuína da sua boca que a risada
que soltei foi inevitável. Nathalia voou em minha direção, cobrindo meus
lábios com as mãos para impedir que eu acordasse os meninos e levou o
olhar para a cama, soltando um suspiro aliviada ao ver que eles ainda
dormiam.
Ela fez menção a se afastar, mas segurei seu quadril, mantendo-a
perto.
— Tive muitas mulheres, se é o que quer saber, Nathalia — esclareci,
sustentando o seu olhar inquisidor —, algumas duraram um pouco mais que
outras, mas nenhuma se tornou algo realmente sério.
— Não gosto que me chame pelo meu nome — confidenciou,
erguendo o queixo, manhosa. — Parece que você está brigando comigo…
— lamentou.
— Quem disse que não estou?
Ela piscou, doce e atrevida.
— E por que você brigaria comigo? — perguntou, trazendo a mão
para o meu rosto e arrastou as pontas dos dedos na minha bochecha,
carinhosamente. — Sou a única mulher que você quis se comprometer na
sua vida inteira, e você já me amarrou direto em um casamento… sou coisa
rara, amor.
Sorri, deslizando minha mão livre em seu pescoço, entrelaçando os
dedos em seu cabelo e apreciando como ela ia de zero a cem em questão de
segundos. Amava sua espontaneidade. Em um instante, ela exibia toda sua
prepotência e autoconfiança, e no outro, revelava suas inseguranças,
deixando-as expostas para que eu pudesse ver o quanto ela conseguia ser
vulnerável.
Nathalia era instigante e cheia de nuances. Mesmo quando eu
pensava que já havia descoberto tudo o que era necessário sobre ela, ainda
assim, conseguia me pegar desprevenido em certos momentos.
— Nath?
A voz sonolenta de Matheus encheu o quarto, e seus olhos, que
estavam fixos nos meus, se desviaram rapidamente em direção à cama. Seu
rosto lindo se iluminou com um sorriso doce e amoroso, e, apesar de estar
com o corpo pressionado ao meu e com um pé enfaixado, Nathalia
atravessou a distância entre eles, inclinando-se para receber o abraço que
Matheus ofereceu de braços abertos.
Observei enquanto ele a esmagava, os fios curtos e dourados se
emaranharam aos castanhos iluminados de Nathalia, e ainda que uma parte
minha me alertasse de que não deveria permitir que ela se aproximasse
tanto dos garotos, era tarde demais.
Meu pai estava certo.
Existia uma conexão e sintonia palpáveis entre eles a cada toque
singelo e a cada olhar e sorriso que trocavam. Nathalia se envolvia em uma
bolha com os garotos, e era como se ela sequer lembrasse da minha
presença, tampouco meu filho, que nem olhou na minha direção.
Sonolento, Igor tateou a cama buscando pelo irmão e quando não o
encontrou, abriu os olhos e demorou alguns segundos para entender o que
estava acontecendo.
— Bom dia, chefe — saudei, vendo-o coçar os olhos, ainda bêbado
de sono.
— Que horas são?
— Quase oito da noite.
Igor soltou um suspiro baixo, acenando em resposta e se virou para a
Nathalia, espreitando os olhos nela que ainda era esmagada por Matheus —
que já estava desperto e cheio de energia, sequer parecia que tinha acabado
de acordar.
— Oi, Nath.
Nathalia sorriu para Igor, carinhosa.
— Oi, meu bem, “bom dia” — brincou, afagando a sua bochecha
com a mão livre.
Pigarreei, chamando a atenção dos três, e finalmente Matheus
pareceu se dar conta da minha presença. Um sorriso extravagante se formou
em seus lábios, revelando suas covinhas profundas nas bochechas. Matheus
soltou Nathalia e correu descalço pela cama, lançando-se em meus braços,
que o capturaram no ar.
— Papai! — Retribui ao seu abraço, mantendo-o firmemente contra
meu corpo e inalando o aroma familiar do seu perfume. — Eu vi o Hulk! E
o Mickey!
Sorri, sendo metralhado por uma lista extensa de todos os
personagens que eles esbarraram durante aqueles últimos dias em Orlando.
Coloquei Matheus na cadeirinha e a sua mão acariciou minha
bochecha, apertando levemente.
— O que você quer, espertinho?
Ele sorriu, travesso.
— Posso tomar sorvetinho?
Dei risada, balançando a cabeça.
— Estou começando a pensar que você foi feito de sorvete —
comentei, divertido, fazendo cócegas em sua barriga e arrancando uma
gargalhada dele.
— Eu amoooo sorvetinho!
— Claro que sim.
Sorri, prendendo-o com o cinto de segurança e me virei para a
entrada da garagem, onde minha mãe estava se despedindo de Nathalia, que
prometeu que terminaria de ler o manuscrito e retornaria com um feedback.
Desviei o olhar para o meu pai, que estava encostado na coluna. Sua
atenção estava fixada no ponto ao redor da cintura de Nathalia, mais
especificamente nos braços de Igor envoltos ao redor dela, enquanto seus
dedos acariciavam amorosamente o cabelo dele.
As íris castanhas de meu pai se moveram para mim, carregados de
sabedoria e seus lábios se repuxaram em um sorriso — que não precisava
estar acompanhado de palavras para que eu soubesse o que significava.
Nathalia era realmente uma pequena diaba.
Não bastava ter me viciado nela, também tinha cativado meus pais,
meus amigos e filhos.
— Tem certeza de que não é um incômodo? — perguntou Amália,
afagando a bochecha dela.
— Incômodo algum, não se preocupe — Nathalia a tranquilizou,
descendo o seu olhar para Igor e soltou um suspiro. — Acho melhor irmos,
alguém está quase dormindo em pé, uh?
Igor fez uma careta, mas sua expressão não escondia que estava
exausto. Apesar de não ser uma grande diferença de fuso horário, meu pai
tinha me dito que ele quase não dormiu na noite anterior e que foi o
responsável por acordá-los. Igor estava inquieto para voltar para casa e
devido ao grude atual, a ansiedade nada tinha a ver comigo.
Minha conversa com meu pai ainda pairava na minha mente, e a
preocupação com aquilo era inevitável.
Por mais que eu me dedicasse muito, que meus pais fossem avós
excepcionais e que fizéssemos de tudo para oferecer todo o cuidado,
atenção e afeto que Igor e Matheus precisavam, eu sabia que eles sentiam
falta de uma figura materna. E me preocupava que estivessem começando a
ver Nathalia daquela forma.
Após nos despedirmos dos meus pais, deixamos o tranquilo bairro
para trás com os pedidos de Matheus para tomar sorvete. Não demorou
muito para que ele conquistasse o apoio da mulher ao meu lado.
— Como que alguém consegue dizer não para você, coisinha linda?
— perguntou Nathalia, esticando a mão para apertar a bochecha do meu
caçula, que sorriu, pendendo a cabeça para o lado e aumentando o bico. —
Olha isso, Renato… que golpe sujo!
Uma risada escapou da minha garganta ao ver que o pestinha estava
usando seus métodos nada convencionais para manipular Nathalia.
— Que bebezinho… — provocou Igor, bagunçando os fios dourados e
em resposta, Matheus mostrou a língua. — Agora também quero sorvete,
pai.
Olhei para os dois através do retrovisor. Estávamos quase chegando
em casa e a sorveteria conhecida ficava a poucos metros de distância.
Nathalia reconheceu o caminho e me olhou, sorrindo travessa.
— Fiquei com vontade também.
— Era só o que me faltava, um complô! — resmunguei, fingindo
mau humor. Os três me fitaram, vitoriosos, quando estacionei em frente à
loja com um toldo cor de rosa e listras brancas.
Virei-me no banco, apoiando o antebraço esquerdo no volante, e olhei
para os dois que estavam mais despertos. Diante do meu olhar, tanto
Matheus quanto Igor abriram sorrisos inocentes, ingênuos, como se não
tivessem planejado aquilo de propósito.
Conhecia meus filhos como a palma da minha mão, e raramente Igor
concordava com os desejos de Matheus sem que houvesse algum debate no
processo. Aquilo tinha sido premeditado, eu podia sentir.
Igor sorriu, ciente de que o flagrei, e ergueu as mãos em sinal de
rendição, admitindo sua participação na trama. Por outro lado, Matheus
estava genuinamente empolgado com a ideia de tomar sorvete, o que
indicava que meu primogênito havia sido o responsável por plantar a ideia
na mente do irmão.
— Nath, qual é o seu sabor de sorvete favorito? — Igor questionou,
ignorando meu olhar.
Balancei a cabeça, compreendendo que aquela era uma tentativa de
fazê-la passar mais tempo conosco.
Ele havia feito isso durante todo o jantar, convidando-a para conhecer
o quarto deles, mostrando toda a casa e exibindo todos os prêmios que
havia ganhado no colégio. Uma parte de mim se alegrava em vê-lo tão
aberto e engajado em interagir com outra pessoa, mas outra parte estava
preocupada com a possibilidade de ele estar desenvolvendo uma
dependência emocional em relação à presença dela.
Peguei Matheus no colo e os segui para dentro da sorveteria,
aproveitando para criar um pequeno espaço entre nós. Olhei para o rosto de
Matheus, sua pele clara estava levemente avermelhada devido ao calor em
Orlando, e seu colar de âmbar estava escondido sob sua camiseta de superherói.
— Quem deu a ideia de tomarmos sorvete, pequeno Hulk? —
perguntei, observando seus olhos grandes e verdes desviarem a atenção para
o meu rosto.
As covinhas perfuraram suas bochechas e ele segurou meu rosto com
as duas mãos. Calmamente, Matheus colou nossas testas e roçou a ponta do
seu nariz no meu, como fazia sempre que queria me confidenciar um
segredo.
— Guigo!
Sorri, deixando um beijo em sua têmpora e afastando os fios
compridos da sua testa, anotando mentalmente que precisava levá-lo para o
cabeleireiro, e que precisava ter uma conversa séria com eles sobre a
Nathalia.
Acompanhei enquanto os outros dois faziam seus pedidos e ajudei
Matheus a fazer sua escolha. Poucos minutos depois, meu caçula estava se
deliciando com o sorvete, com os cantos dos lábios sujos de chocolate.
Nathalia direcionou o olhar de Matheus para mim e sorriu, enquanto
ouvíamos Igor contar com riqueza de detalhes sobre sua última semana.
Seus olhos atentos alternavam entre nós, e quando ela se levantou para ir ao
banheiro, eu me virei para ele.
— Estou encrencado? — perguntou, deixando a colher de lado.
— Não, você não está.
— Mesmo?
Acenei, tranquilo.
— Sim, filho. — Garanti, arrastando os dedos em seu cabelo. — Mas
ela não pode ficar conosco o tempo todo, ok?
— Por que não?
Meu cérebro me fodeu quando ao invés de encontrar a resposta para o
questionamento do meu filho, o acompanhou naquela dúvida.
Por que ela não podia, se eu a queria o mais perto possível?
Engoli em seco.
— Ela é uma amiga. E às vezes, vai estar ocupada com… outros
amigos, entende?
Um vinco cobriu a sua testa e ele pareceu refletir um pouco.
No entanto, não havia conselho algum que pudesse me ajudar a
explicar para meu filho que ele não poderia se apegar demais a Nathalia,
pois havia o risco de ela mudar de ideia em relação à decisão que havia
tomado.
Igor concordou com um sorriso tímido e voltou sua atenção para o
sorvete. Distraído, ele aproveitou para provocar o irmão mais novo, que
estava todo lambuzado e alheio ao que estava acontecendo ao seu redor.
Matheus sequer se importou com a implicância de Igor. Ele estava
imerso no mundo dos super-heróis e sorvetes, com uma mão segurando
firmemente o boneco do Hulk e a outra segurando a colher que ele
mergulhava na casquinha e levava direto à boca.
Bebi um pouco de água, vendo Nathalia se aproximar e guardar o
celular no bolso da jaqueta, incomodada. Ao sentir o meu olhar sobre ela, a
garota esboçou um sorriso e por mais que ela tivesse tentado, não conseguiu
esconder a chateação.
Aquilo tinha se repetido várias vezes durante o feriado, e considerei
que fosse um cliente sem noção…, mas, nem Moacir — que era o meu
cliente mais fora da casinha — foi capaz de tamanha falta de senso para me
ligar às 22h de um feriado.
— Tudo bem? — perguntei, intrigado.
Nathalia suspirou e acenou, confirmando.
Sua resposta não me convenceu nenhum pouco, ao contrário, quando
encarou o celular de novo e inspirou lentamente — como quem pedia por
paciência —, uma preocupação primitiva se alojou nos meus ombros,
deixando um incômodo que demoraria a passar.
— Nath — chamou Igor, atraindo sua atenção. Seu olhar suavizou e
um sorriso terno retornou ao seu rosto enquanto ela o encarava com
atenção. — Meu pai disse que você não pode ficar com a gente sempre,
porque tem outros amigos. É verdade?
A sinceridade infantil era uma coisa único.
Ela se virou para mim, apertando os olhos nos meus.
— Ele disse?
— Sim, não foi, pai?
Ótimo, que situação maravilhosa.
O olhar de Igor saltou entre nós dois, esperando por uma resposta
minha, e eu assenti com a cabeça, confirmando sua pergunta.
— Sim.
Nathalia acedeu, compreendendo, e retornou para o meu filho com
uma expressão tranquila.
— Não se preocupe, se o seu pai permitir e vocês quiserem que eu
esteja com vocês, é só me avisar que estarei lá imediatamente, tudo bem?
— assegurou, acariciando o rosto dele. — Independentemente da situação,
adoro passar tempo com vocês.
A última frase foi para mim, e ela deixou isso claro com o olhar firme
que me dirigiu. Abaixei a cabeça, disfarçando um sorriso, e cruzei os braços
em frente ao peito, concentrando minha atenção no garotinho que se
deliciava com o sorvete.
— Agora, me conte, por que a Isabelle está chateada com você? —
perguntou Nathalia, voltando ao assunto que Igor havia começado antes
dela se afastar.
Analisei sua expressão, apesar de aparentar tranquilidade, existia
alguma coisa a incomodando e era o suficiente para deixá-la apreensiva.
Por mais que estivesse disfarçando bem, seu peito subia e descia mais
rápido do que o habitual, e os seus joelhos não paravam de se mexer.
Discretamente, coloquei minha mão em sua perna, sentindo a pele
gelada pelo vento frio que soprava naquela noite. Nathalia desviou o olhar
de Igor para mim, engolindo em seco, e deslizou sua mão pelo meu
antebraço, encontrando o ponto onde meus dedos acariciavam sua pele.
Virei a palma da minha mão para cima, convidando-a a entrelaçar os
dedos nos meus, e ela prontamente aceitou, sem hesitar. Apertei suavemente
sua mão, buscando transmitir conforto e tranquilidade diante do que a
incomodava.
Aos poucos, seus joelhos deixaram de tremer e se acalmaram; sua
mão aqueceu entre as minhas e sua respiração foi se tornando mais
tranquila gradativamente.
— Que fofos — disse Nathalia, olhando-me com um meio sorriso,
sem aquela aflição queimando em suas íris. — Isabelle se parece comigo.
Arqueei a sobrancelha.
— Você não me parece ciumenta.
Nathalia riu.
— Pergunte isso para cada pessoa que tentou roubar o meu melhor
amigo de mim… — suspirou, maligna. O que me lembrava a história do seu
quase envenenamento, aquilo me arrancou um sorriso.
— Quantas pessoas você irritou?
Ela piscou, horrorizada.
— Eu sou inocente nessa história! Só não gosto que olhem, toquem,
respirem ou pensem no que é meu. — Deu de ombros, virando-se para o
Igor que riu baixinho. — Não leve essa parte em consideração, os meus pais
me colocaram na terapia por isso.
Arqueei a sobrancelha e aquilo atraiu a curiosidade de Igor.
— Você também faz terapia? Meu pai me faz ir toda semana! —
dedurou, como se aquilo fosse algo ruim.
Nathalia assentiu, achando graça.
— Eu era muito possessiva… acho que por ser a única filha e neta? —
ponderou, refletindo por um momento. — Então, comecei a fazer terapia
com seis anos… sabe, para aprender a dividir as coisas com os coleguinhas.
Apertei os olhos e Nathalia piscou para mim, voltando-se para Igor,
que pensou um pouco.
— Você também ficava brava quando pegavam suas coisas? —
perguntou ele, surpreendendo-me ao falar com Nathalia sobre uma das
pautas de suas sessões.
Igor começou a frequentar o consultório da Dra. Luiza depois de se
envolver em uma briga com um colega de escola por causa de Isabelle.
Segundo meu filho, o garoto estava tentando roubar sua melhor amiga. No
início, considerei o incidente como algo aceitável, típico de crianças, e
conversamos sobre como resolver aquilo. No entanto, quando isso se juntou
a outros comportamentos como a timidez repentina, irritabilidade excessiva,
autoisolamento, birras e desobediência que ele nunca havia demonstrado
antes, decidi buscar a ajuda de uma psicoterapeuta.
Aquilo havia começado após o escândalo envolvendo Flávia, e
durante as primeiras sessões, Igor não escondeu sua raiva em relação a ela.
Nathalia acenou, o acolhendo.
— Sim, às vezes é normal ficar bravo.
Ele torceu os lábios, consternado.
— Fico bravo muitas vezes no dia — confidenciou, contando para ela
a mesma coisa que me disse meses atrás. Nós conversávamos sobre aquilo
com frequência e os episódios diminuíram nos últimos dois meses.
Nathalia me fitou, como quem pedia permissão para falar. Aquiesci,
deixando que eles se resolvessem.
— Por que você fica bravo sempre?
Os olhos de Igor estavam na casca de sorvete, arrastando a colher por
ela, acanhado.
— Na maioria das vezes, quando querem roubar o que é meu. —
Deu de ombros, subindo a atenção para encará-la. — Fico irritado, muito
mesmo… — desviou para mim e apertei os lábios, afagando suas costas
para que soubesse que estava tudo bem. — A Dra. Luiza diz que é normal
ficar bravo, mas que eu não posso brigar com as pessoas por isso.
— E o que você faz quando se sente assim?
Ele sorriu, olhando para mim, cúmplice.
— Meu pai e eu começamos a montar quebra-cabeças, me distrai… e
depois de um tempo, a raiva passa.
Nathalia desviou o olhar para mim, seus dedos apertaram minha mão
levemente e ela soltou um suspiro.
— Seu pai até que é legal.
Igor riu, concordando.
— Ele faz o que pode, mas ele tá velho.
Olhei de um para o outro, ofendido.
— Eu estou quieto e ainda assim sou atacado? — perguntei, fingido.
Os dois se entreolharam e sorriram, concordando.
Matheus esticou a casca do sorvete para mim, as íris brilharam em
uma súplica já conhecida.
— Mais sorvetinho, papai!
Eram 10h00 de uma Quarta-Feira de Cinzas, e eu já me encontrava
fora de mim. Depois de passar algum tempo com Renato e os garotos na
sorveteria, eles me deixaram em meu apartamento.
Renato tinha me pedido para ir com ele para o escritório naquela
tarde, pois as operações seriam retomadas após o almoço. No entanto, nem
mesmo o feriado religioso foi capaz de fazer com que algumas pessoas
tivessem um mínimo de bom senso.
Rebati a bola com mais força que o necessário e ela voou em direção
à parede atrás de Cristiano, que ergueu as mãos e sinalizou para que o jogo
fosse paralisado. O suor escorria na minha testa e nas costas, meu coração
trabalhava arduamente dentro da caixa torácica e meus pulmões clamavam
por um descanso.
Estávamos jogando sem parar desde as oito da manhã.
Mesmo após um treino brutal na academia do clube, ainda me sentia
cheia de energia para descarregar e sabia que o combustível daquilo era a
raiva latente em minhas veias.
Não havia mentido para Igor quando contei sobre ter feito terapia
para lidar com as minhas emoções intensas, era verdade. Desde criança,
meus pais me fizeram frequentar o consultório da Dra. Pilar, porque
diferente das outras crianças que extravasavam suas emoções de formas
mais sutis, a minha contava com picos extremos.
Se estava muito feliz, entrava em um ciclo de euforia intensa.
Se estava com raiva, perdia o controle das minhas ações.
Com o passar dos anos, encontrei uma forma de me acalmar e colocar
os pensamentos em ordem, e exercícios físicos eram a minha terapia
paralela. Ainda falava com uma terapeuta duas vezes ao mês, e praticava
exercícios diariamente antes de mergulhar o caos diário.
Como aquele dia era muito específico, a descarga de energia tinha
motivo e estava demorando mais tempo para passar que o habitual.
— Quer conversar sobre o que está te incomodando? — perguntou
Cristiano, repousando o braço sobre a rede e me olhando com o cenho
franzido.
Arrastei o dorso da mão na testa, balançando a cabeça em negação.
Meu peito apertou, sufocando meus pulmões e trazendo aquele
sentimento de que algo ruim estava prestes a me atingir a qualquer
momento, mas tentei me concentrar em expulsá-lo, sem dar chance para que
invadisse meus pensamentos e se alojasse permanentemente.
Eu sabia reconhecer o que era aquilo, lidava com aquele problema há
muito tempo, antes mesmo de saber qual era o seu nome clínico.
A sensação de incompetência, de que não me esforcei o suficiente, a
comparação ininterrupta… eram velhos amigos. Surgiram na adolescência e
se tornaram um diagnóstico uns anos mais tarde, trazendo com ele; as crises
de ansiedade.
O gatilho para aquilo ter vindo à tona justo naquela manhã?
Guilherme Bastos.
Não atendi as ligações incessantes, tampouco li as mensagens que me
enviava há dias, mas a mera existência das notificações era o suficiente para
que eu estivesse agoniada.
E se eu não conseguia ser profissional e atender uma simples ligação,
como poderia ser uma boa diretora de operações para o escritório?
Se eu fosse a escolha certa para o cargo, teria atendido aquela maldita
ligação e descoberto de uma vez por todas o que o sócio sênior da firma
tanto queria.
Mas não consegui, e aquilo me deixava atormentada.
Havia aceitado um cargo que não estava pronta para ocupar. Renato
fez uma aposta errada quando acreditou que eu era apta para aquela
responsabilidade. E eu não tinha mais como voltar atrás, porque dei a minha
palavra quando assinei aqueles papéis, aceitando tudo o que vinha com o
cargo.
Como não passou pela minha cabeça que aquilo acarretaria numa
interação direta com Guilherme?
Senti um nó se enrolar na garganta e apoiei as mãos nos joelhos,
puxando o ar lentamente e o mantendo nos pulmões por alguns segundos,
antes de soltar e repetir aquilo mais algumas vezes.
Pendi a cabeça para trás, piscando repetidamente para espantar as
lágrimas que se acumulavam nos meus olhos. Quando senti que estava
começando a me recuperar, endireitei a postura e segurei firme na raquete,
encontrando o olhar preocupado do meu instrutor.
— Mais uma rodada — declarei, firme.
Entretanto, antes que Cristiano assumisse sua posição do outro lado
da rede, meus olhos capturaram o homem alto, com ombros largos e olhos
gélidos, caminhar em nossa direção com uma raquete em punho.
Era só o que me faltava.
— Deixa comigo — disse Zimmermann, acenando para que o meu
instrutor se afastasse, com a sutileza de um elefante.
Cristiano me fitou, pedindo por confirmação e acenei, dispensando-o
para que fosse embora.
Ele estava comigo há horas e o seu cansaço era visível.
Quando se afastou, desviei a atenção para o engenheiro parado a
poucos centímetros da rede, encontrando seus olhos fixos em mim. Pedro
sinalizou para que eu me aproximasse, e o cumprimentasse antes de
iniciarmos a partida.
— Bom dia, Gama.
— Bom dia, Zimmermann.
Pude ver o esboço de um sorriso passar pelos olhos dele, mas a sua
expressão ainda era dura, fria e soberba.
Zimmermann estendeu a mão para um aperto firme, e eu respirei
fundo, incomodada com seu olhar minucioso. Virei as costas para ele,
indicando ao funcionário do clube que estava acompanhando a partida que
reiniciasse o placar.
Seis sets e Pedro Zimmermann descobriria que eu não roubei nada na
Itália.
O sol queimando sobre nossas cabeças incomodava, o meu corpo
estava começando a sentir os efeitos do treino ininterrupto e meu tornozelo
reclamou pelo esforço que não havia sido recomendado pelo médico.
No primeiro set, Pedro ganhou vantagem.
No segundo, igualei a pontuação, fazendo o mesmo no terceiro.
No quarto set, meu tornozelo queimou e uma dor fulminante me
atingiu quando pisei de mau jeito. Pedro marcou aquele ponto e sinalizou
para que paralisassem o relógio, atravessando a quadra para vir ao meu
encontro.
— O que houve?
— Nada — grunhi, morta de dor.
Se alguns dias atrás, a entorse não era grave e melhoraria em uma
semana, eu tinha certeza de que naquela manhã, consegui o feito único de
quebrar o meu tornozelo.
Pedro amparou meu corpo quando cambaleei, sem conseguir colocar
o pé no chão e mandou que alguém chamasse um dos médicos que do
clube. Minha visão foi embaçada pelas lágrimas e a dor cruciante me cegou
momentaneamente.
Pisquei, tentando clarear a visão a tempo de encontrar uma
enfermeira se agachando para analisar o que havia acontecido. Outro
funcionário veio na nossa direção e entregou uma compressa de gelo; uma
garrafa de água e duas toalhas secas.
— Merda, garota. Como você conseguiu dar um jeito no tornozelo?
— questionou Pedro, ranzinza.
Olhei para ele, irritada.
— Por que você não vai dar uma volta e desaparece da minha frente?
— rosnei, grosseira.
Sequer pude sentir culpa pela minha rispidez, o meu dia não tinha
como ficar pior.
O médico se aproximou e após ver o quanto a região estava inchada,
indicou para que entrássemos no prédio, assim poderia me examinar melhor
no consultório.
Contra a minha vontade, Pedro Zimmermann me carregou pelo
complexo. A expressão tão fechada quanto a minha. Nenhum dos dois
queria estar naquela situação e não fizemos questão de esconder o desgosto.
Depois de inúmeros exames, Pedro apareceu na porta da sala falando
ao telefone com alguém e murmurou em negativa. Revirei os olhos para ele,
desviando para o médico que enfaixava meu tornozelo novamente.
— Felizmente não é nada grave, Srta. Gama, a dor deve passar com
alguns analgésicos… — explicou o doutor que não me atentei ao nome, seus
olhos azuis fitaram os meus com tranquilidade. — Nada de sandálias de
salto, exercícios físicos e caminhadas longas por duas semanas… e você
estará nova em folha.
Pedro, que estava parado na porta, repetiu tudo o que o médico havia
dito para a pessoa com quem falava no telefone, e senti-me como uma
criança que foi pega fazendo travessuras e estava em apuros.
Enquanto o médico terminava de enfaixar a região dolorida, tentei
pensar pelo lado positivo. Ao menos, os pensamentos sabotadores e
ansiosos se calaram, anestesiados pela dor.
Esbocei um pequeno sorriso para a enfermeira gentil que me entregou
um analgésico muscular, e não demorou para que ela me deixasse sozinha
com o Zimmermann.
— Você está dirigindo? — perguntou e neguei.
Naquela manhã, sentia-me distraída demais para arriscar dirigir pela
cidade e acabei vindo com um dos seguranças. Como o clube era um espaço
que não precisava de vigilância, tinha combinado com o rapaz que ligaria
quando fosse a hora de vir me buscar.
— Renato me encarregou de te levar para casa.
— Não precisa.
— Eu concordo, mas não foi um pedido — retrucou, em uma careta
que me arrancaria uma risada se não estivesse com dor. — Ninguém te
disse que não era uma boa ideia treinar com uma torção recente?
Revirei os olhos, sem vontade de escutar um esporro dele.
Definitivamente, Pedro Zimmermann era a última pessoa que poderia me
perguntar sobre atitudes tomadas no impulso.
— Não me diga que toda aquela raiva era por causa do que falei… —
provocou, tentando puxar assunto, conforme saíamos da ala médica do
clube para o estacionamento.
Seu braço envolvia a minha cintura, servindo de apoio para que eu
caminhasse sem precisar colocar pressão no tornozelo dolorido. Me abstive
do direito de mandá-lo à merda e ele permaneceu calado durante o percurso
para o carro esportivo preto, parado próximo à entrada do prédio principal
do complexo. Pedro abriu a porta do passageiro, me deixando entrar e ainda
em voto de silêncio, permiti que saísse do estacionamento.
Em um primeiro momento, o engenheiro não se preocupou em
preencher o silêncio do carro e parecia confortável com a ausência de
diálogo, mas quando entramos na Av. Nove de Julho, ele desistiu e
pronunciou algumas palavras.
— Peço desculpas pelo que falei naquele dia — disse, baixo e
receoso.
Senti um vinco na testa e precisei virar o rosto para confirmar que
havia dito algo. Os nós dos seus dedos estavam embranquecidos devido ao
aperto no volante, a sua respiração pesada indicava o quanto era difícil para
ele pronunciar aquelas palavras, e isso fez com que a minha irritação
cedesse um pouco.
Acenei, relaxando os ombros e abaixando um pouco a guarda.
— Tudo bem — murmurei, mantendo os olhos fixos na
movimentação de carros, o trânsito habitual estava começando a causar
alguns focos de engarrafamento e…
— Só isso?
Olhei para o engenheiro, sem entender o motivo da pergunta.
— O quê? Não vou te pedir desculpas, eu não fiz nada.
Ele riu, silencioso.
— É justo.
Rolei os olhos, desviando o olhar para ele.
— Eu entendo que você estava tentando proteger os meninos e o seu
amigo, mas não é certo supor coisas sobre pessoas que você não conhece —
falei, sem filtrar as palavras que saíam. — Se tivesse se dado ao trabalho de
conversar comigo por pelo menos dois minutos, saberia o quanto estava
errado por pensar aquilo de mim.
Pedro meneou a cabeça.
— Flávia também dizia isso.
Aquilo fez o meu sangue ferver.
— Não me compare com ela — rosnei, fincando as unhas na minha
pele para conter a fúria que sacudiu meus ossos. — Eu nunca… nunca faria
nada do que ela fez.
Zimmermann sorriu, ácido.
— Palavras são apenas palavras, Gama. Não me leve a mal, mas se
tem uma coisa que eu sei melhor do que ninguém é o quanto as pessoas são
capazes de mentir e manipular para conseguir o que desejam — falou,
sincero.
Engoli em seco, tentando conter o ressentimento que ameaçava
predominar e nublar a minha mente.
— Não é porque uma pessoa foi filha da puta, que todas as outras vão
ser, Zimmermann — falei, odiando que minha voz saiu enfraquecida devido
ao bolo na garganta. — Quando estou com os meninos, Renato é a última
coisa que passa pela minha cabeça. Se você olhasse direito, sem refletir em
mim as atitudes das pessoas que vieram antes, perceberia sem que eu
precisasse te dizer.
Era a verdade, ele quisesse acreditar ou não.
A cada interação com Igor e Matheus, eu me pegava mais apaixonada
pelos dois. Eles me cativaram de uma forma que eu não sabia explicar de
onde surgiu aquele sentimento, mas era intenso, genuíno e gratuito. Eu
adorava ficar com eles, e nada tinha a ver com o pai dos dois, e não me
restavam dúvidas de que se Renato e eu nunca tivéssemos nos envolvido,
ainda sentiria aquilo por eles.
Matheus me encantou quando passou pelas portas do escritório com
um sorriso gigante, usando uma fantasia do Homem-Aranha e um olhar
curioso e doce para cada pessoa que passava por ele. O pequeno era uma
criança tão meiga, amorosa e ingênua que não tinha como não ser cativada
por ele. Nossa sintonia foi imediata, no segundo em que Mara nos
apresentou, eu soube que adorava aquela coisinha minúscula.
Igor, mesmo sendo fechado e desconfiado, tinha me encantado de
uma forma tão profunda quanto o irmão. Não existiam palavras que
conseguiriam explicar o que senti quando seus olhos verdes colidiram com
os meus. Eu quis ser a responsável por fazê-lo falar, adorei saber que tinha
conseguido arrancar um sorriso minúsculo dele e ainda que tivesse acabado
de conhecê-lo, instintivamente, eu quis proteger o pequeno de tudo.
E tudo havia sido por eles, não por causa de Renato. Nunca me
passou pela cabeça que deveria me aproximar deles para me envolver com
o pai dos dois.
As pessoas me chamavam de ingênua o tempo inteiro por situações
como essa. Eu confiava e gostava das pessoas gratuitamente, sem precisar
de qualquer motivo para justificar. Não me recriminaria por ser mais
emocional que racional. Sentimentos não deveriam ser tratados como algo
ruim, era o que existia de mais puro e sincero no ser humano, e se até aquilo
fosse distorcido, o que restava?
Pisquei, espantando as lágrimas que ameaçaram escapar e balancei a
cabeça.
Zimmermann manteve o seu olhar na direção, o vinco em sua testa
triplicou de tamanho e ele respirou pesadamente, acenando.
— Talvez eu esteja errado.
Ele estava.
Deslizei o dorso da mão nas minhas bochechas, enxugando as
lágrimas teimosas que rolaram, magoada demais com aquele assunto.
Estava cansada dos julgamentos das pessoas para cada coisa que eu
fazia na minha vida. Dedos sempre eram apontados na minha direção por
ter ambições que os outros julgavam não caber a mim, e mesmo quando eu
achava que estava segura e que não deixei aberturas para suposições, ainda
assim distorciam minhas palavras e ações para criar contextos que não
existiam.
Pedro não era o primeiro que desvirtuava uma atitude que eu tomava,
mas era de longe o que tinha doído mais.
E eu não perderia meu tempo tentando provar para ele que estava
errado. Não deveria ser a minha obrigação me preocupar com aquilo, até
porque, não tinha feito nada para que ele deduzisse isso.
O restante da viagem foi silenciosa e minha voz só voltou a preencher
o carro quando pedi que parasse em frente ao meu prédio. Ele abriu a boca
para retrucar, mas ao ver minha expressão, deu a seta e parou próximo da
portaria.
Murmurei uma despedida por educação e desci do carro, sentindo a
exaustão se apossar da minha cabeça.
Zimmermann permaneceu parado na frente do prédio e o Sr. Chico
saiu da guarita, ajudando-me a subir os degraus ao perceber que estava com
o pé enfaixado.
Minutos depois, eu estava na segurança do meu apartamento, livre de
julgamentos e comparações.
Depois de longos minutos de meditação e um banho demorado, me
sentia revigorada.
Uma conversa rápida com a minha terapeuta por mensagem também
tinha ajudado a fazer com que aquele turbilhão que me atingiu pela manhã
fosse deixado de lado.
Enviei uma mensagem para Caique, um dos nossos seguranças mais
jovens e que esporadicamente cuidava de mim, informando que ele poderia
vir me buscar quando estivesse pronto. Aproveitei para responder Renato,
confirmando que estava bem e que ele não precisava vir me buscar para
irmos ao escritório. Ainda faltava uma hora para a abertura do mercado e eu
preferia ir mais cedo para adiantar o que havia ficado pendente na véspera
do feriado.
Caique informou que estava próximo e que chegaria em cinco
minutos, o que me deu tempo para descer. No entanto, assim que saí do
prédio, uma mudança repentina no clima trouxe uma chuva intensa. Precisei
voltar para pegar um casaco, ignorando o desconforto do meu tornozelo
devido ao esforço de estar usando salto alto.
Não era o recomendado, mas eu teria duas reuniões com clientes de
alto escalão e a ocasião exigia um código de vestimenta específico, eu tinha
tomado um analgésico forte e torci para que fizesse o efeito desejado.
Minutos depois, encontrei Caique na garagem, onde ele estava
recebendo instruções do chefe de segurança do meu pai. Assim que eles me
viram, Alisson se despediu e Caique abriu a porta do carro para que eu
pudesse entrar.
— A Sra. Marques não está muito longe — comentou, assim que
assumiu o volante e ergui o olhar para ele, sorrindo fraco.
— Ela te fez passar na padaria libanesa?
— Ficamos trinta minutos presos na avenida só por causa disso —
falou, divertido.
Caique aparentava ter por volta de 20 ou 30 anos, mas eu não sabia
exatamente a sua idade. Nossas interações eram pouco frequentes, pois ele
estava passando por treinamento com Alisson. Meu pai ainda não confiava
totalmente nele para ser responsável por mim. E como parte do processo
para assumir uma posição mais importante na equipe do meu pai, Caique
passava a maior parte do tempo como segurança particular da Jessica,
minha madrinha.
Ele era um rapaz bonito, inteligente e muito dedicado. Adorava falar
e sempre me mantinha atualizada do que estava acontecendo na Alpha, e
era graças ao Caique que eu sabia de viagens que meu pai fazia e não me
informava.
Crescer dentro de uma redoma de vidro me ensinou a ter olhos e
ouvidos em todos os lugares, assim eu saberia o que estava sendo feito na
minha ausência. Como o Caique era novo e ainda estava no processo de
conquistar a confiança do meu pai, não foi difícil atraí-lo para o meu lado e
garantir sua lealdade. Isso era muito importante no meio em que eu vivia.
Embora eu não tivesse a intenção de assumir a liderança da Alpha tão cedo,
era bom ter uma pessoa de confiança ali.
E durante a viagem curta, o escutei me atualizar sobre tudo o que
andou acontecendo na empresa da minha família, enquanto eu respondia
algumas mensagens. Bianca foi minha prioridade, e como aquele dia teria o
expediente mais curto, a liberei de precisar sair do hospital com a sua mãe
que estava sofrendo com os efeitos colaterais dos medicamentos.
Eu estava preocupada com o avanço do câncer da Adelaide e,
principalmente, em como Bianca lidaria caso a situação piorasse.
Anotei mentalmente de passar no hospital antes de voltar para casa e
me despedi de Caique, avisando que ligaria se precisasse que ele me
buscasse.
Mordendo as bochechas para conter a dor, enviei uma mensagem para
o cliente com quem me encontraria em alguns minutos e recebi a
confirmação de que estava a caminho e chegaria em breve.
Quatro horas depois, me despedi de Renan — o último cliente que eu
precisava me encontrar —, e senti os ombros relaxarem.
Encarei o celular, notando que as mensagens não paravam de chegar
em alguns grupos específicos, onde profissionais do mercado debatiam
sobre fatos relevantes. Aquilo era muito atípico, mas como as bolsas ainda
estavam se recuperando do pandemônio que os sauditas instauraram na
última semana, ignorei e retornei para dentro do escritório, escutando os
rapazes discutirem sobre uma social que aconteceria após o expediente.
— Ei, Nath — chamou Gabriel, um dos operadores que tinha vindo
com Leandro e Renato na fusão.
De todos, ele era o mais simpático e que menos me fazia sentir
vontade de revirar os olhos.
— Oi, Gab, como foi o feriado?
— Bloquinho de carnaval e soro na veia, e o seu?
Sorri.
Gabriel tinha dezenove anos, estava no quarto período de Economia
na USP e não negava que era um garoto ainda, talvez, era isso o que o
deixava fofo e mais tolerável. Diferente dos outros, ele não fingia uma coisa
que não era capaz de sustentar.
— Pronto-socorro e um tornozelo enfaixado — falei, vendo seu olhar
descer com curiosidade pelo meu corpo, cravando no ponto mais inchado.
— Isso parece estar doendo pra caralho.
— E está — confessei, caminhando para a cozinha, acompanhada
dele que tinha as duas mãos escondidas nos bolsos da sua calça de
alfaiataria. — Como andam as coisas na adaptação do escritório?
— Acho que tudo bem, os caras que estavam aqui antes são meio
babacas, mas… faz parte.
Assenti, concordando com ele.
Gabriel era o mais jovem do escritório e, por algum motivo,
conquistou o apadrinhamento de Renato, o que o tornava um alvo. Todo
ano, os sócios sêniores podiam apadrinhar um associado para que,
eventualmente, se tornasse um sócio júnior.
Minha surpresa, foi descobrir que Renato tinha fugido da tradição e
ao invés de estar acolhendo um associado que trabalhava diretamente com
os clientes, ele escolheu um operador de mesa que não tinha metade da
malícia dos seus colegas.
E apesar da curiosidade pelo motivo, dentre todas as opções, Gabriel
era o único que tinha a minha simpatia e, consequentemente, o que eu
preferia lidar se realmente fosse promovido.
— Eles são, mas não diga para ninguém que concordei com você.
Preciso fingir imparcialidade. — Sorri fraco, girando nos calcanhares
devagar e apoiando o corpo no balcão atrás de mim. — Como está a
faculdade?
Eu gostava de ouvi-lo falar. Conseguia ver nos seus olhos o mesmo
brilho que costumava encher os meus quando eu tinha a idade dele, antes de
descobrir como o mundo realmente funcionava.
Mentalmente, eu torcia para que o mercado fosse menos duro com ele
do que tinha sido comigo — o que não era tão difícil, considerando o
privilégio de ser homem. No entanto, eu me sentia aliviada pelo fato de o
seu padrinho ser o Renato. Ao contrário da Roberta, ele parecia ser alguém
que cumpria suas promessas.
— Se precisar de ajuda, pode contar comigo, ok? — ofereci, sincera.
Eu gostaria que alguém tivesse agido dessa maneira comigo, em vez
de simplesmente me subestimarem e me desencorajarem. Talvez, se
tivessem me tratado de forma diferente, eu não me sentiria como uma
intrusa na posição que sabia que merecia.
— Sério?
— Sim.
Gabriel piscou, perplexo.
— Por que o choque? — Franzi o cenho, confusa com a sua reação.
Ele riu baixinho.
— Você não me parece ter muito tempo sobrando — confessou, e não
era um exagero da sua parte concluir aquilo, mas ele não precisava ter
dimensão do quanto minha vida era exaustiva na maior parte do tempo.
Estalei a língua, divertida, deixando aquela pontinha de soberba
habitual escapar.
— Sou a Nathalia, esqueceu? — falei, altiva. — Eu sou especialista
em resolver todos os problemas do mundo.
Ou ao menos tentar.
Gabriel assentiu.
Suas bochechas coraram e ele ficou ainda mais fofo.
— Valeu, Nath… vou me lembrar disso.
Acedi, vendo-o me dar as costas para retornar ao trabalho e o celular
vibrou em minha mão. Torci os lábios e respirei fundo, bloqueando a tela e
ignorando a chamada.
Se fosse importante, Guilherme teria mandado um e-mail. Se estava
tão determinado a me ligar, era para perturbar a minha paz, e eu duvidava
muito que tivesse qualquer coisa a ver com o escritório.
Larguei os documentos que estava verificando em cima da mesa de
centro, ao mesmo tempo que a porta foi aberta. Não precisei virar o rosto
para descobrir quem era, seu perfume era marcante e o anunciava antes que
a sua voz ressoasse pela sala. Ainda assim, meus olhos foram em sua
direção e um sorriso fraco e cansado se desenhou nos meus lábios.
— Boa noite, meu bem — falei, pegando uma nova pasta da pilha
que precisava analisar antes de encerrar o dia.
Renato fechou a porta atrás de si.
— Noite, anjo. Posso saber o que está fazendo aqui nesse horário? —
perguntou e franzi o cenho, confusa.
Olhei por cima dos ombros e percebi que o céu havia escurecido.
Tentei tatear o sofá em busca do meu celular e percebi que já passava das
19h00.
Tinha perdido completamente a noção do tempo e estava longe de
finalizar as pendências daquele dia. Ricardo arrancaria meu fígado se
aqueles relatórios não fossem liberados para a equipe de risco até o fim do
dia, e nem mesmo estando de férias em Lisboa, ele esqueceu de enviar um
áudio tomado pela sua simpatia extremamente ácida.
— Só finalizando alguns assuntos, e você? — indaguei, vendo-o
atravessar a sala e parar poucos passos de distância. Sua mão capturou o
meu rosto e ele deixou um beijo na minha testa.
— Reunião com um cliente — disse, se sentando ao meu lado e
passou os olhos pela imensidão de documentos que estavam ali.
Se fosse pensar pelo lado positivo, a parte que havia sido feita era
muito maior do que a que precisava ser analisada. Faltava pouco e eu
gostava do que fazia.
— Quer conversar sobre o motivo para não ter esperado que eu a
buscasse? — investigou, indo direto ao assunto que sabia que uma hora
viria à tona.
Soltei um suspiro fraco, devolvendo o documento para a mesa de
centro e virei o corpo no sofá, ficando de frente para ele. Preferia conversar
com as pessoas olhando em seus olhos e sabia que Renato também.
— Estava estressada e mal-humorada. Não sou uma boa companhia
quando estou me sentindo assim… só preferi te poupar do drama — falei,
sincera.
Renato esquadrinhou meu rosto com paciência e acenou,
compreendendo.
— Você estar assim tem a relação com o cargo novo?
Hesitei, porque existia uma parte de mim que se recusava a mostrar
minhas vulnerabilidades para os outros. As únicas pessoas que sabiam sobre
o inferno que era viver na minha cabeça eram os meus pais, Antônio e
Bianca.
Era cansativo sentir que eu não merecia as coisas que conquistava e
que não importava o quanto me esforçasse, ainda não seria o bastante para
que me vissem como uma pessoa única, sem me unificarem a um
sobrenome. E sempre que tentei explicar, recebi olhares de descaso —
como se fosse futilidade da minha parte me sentir assim.
— Um pouco — confessei, fisgando o lábio inferior entre os dentes e
o olhando, constrangida em admitir aquilo.
Como explicaria para ele que eu tinha conseguido uma coisa que
queria, e ainda sentia que não era boa o suficiente para usufruir e por causa
desse sentimento, trabalhava dez vezes mais apenas para aplacar aquela
sensação?
— É só que… não é como se eu não soubesse que sou boa no que
faço, mas, sinto que se falhar em alguma parte, vou te decepcionar, sabe? —
prossegui, sentindo-me acolhida para continuar falando. — Sei que é coisa
da minha cabeça na maior parte do tempo, mas… Guilherme está me
ligando desde sexta-feira, e não consigo atender. Tenho ciência de que nesse
novo cargo, preciso estar disponível para todos os sócios… e isso não estava
me incomodando, até lembrar que ele também estava incluso nisso. Faz
sentido para você?
Renato meneou a cabeça e sua mão buscou pela minha, arrastando
lentamente o polegar na minha pele.
— Claro que faz — garantiu —, por tudo o que passou com ele, é
normal que não consiga interagir. Eu que acabei não me atentando nisso.
Aliviada por saber que Renato entendia, deitei a cabeça no encosto do
sofá, sentindo como se um fardo saísse das minhas costas.
Dra. Pilar dizia que eu não deveria me recriminar pelos pensamentos
sabotadores, eles sempre existiriam e todas as pessoas sofriam com aquilo
— cada pessoa em um grau diferente —, e contanto que eu compreendesse
que a realidade era o oposto do que aquela parte da minha mente gritava,
tudo seria mais simples de se resolver.
— Sei que deveria conseguir contornar a situação…
Renato apertou minha mão, interrompendo meu comentário.
— Não, você não deveria — disse, firme. — Guilherme não tem
qualquer assunto que precise tratar diretamente com você, não há
necessidade de te ligar, e vou ter uma conversa com ele sobre isso.
— Não precisa.
— Sim, precisa — decidiu, rígido.
Por mais que soubesse que não deveria ficar aliviada por Renato
tomar a frente da situação, senti o peso sair dos meus ombros e decidi que
era o melhor.
— Dou conta do trabalho, ok? — assegurei, atraindo sua atenção e o
seu semblante severo se desfez.
As orbes escuras foram tomadas pela gentileza e como se eu não
pesasse nada, Renato me conduziu para o seu colo, envolvendo o meu
corpo com os seus braços e me impedindo de sair de cima dele.
— Não pensei diferente disso em nenhum momento, Nathalia. Fui
sincero quando disse que vejo potencial em você para ser uma excelente
diretora de operações, por isso a promovi — disse, sossegado. — Mas isso
me leva ao que vim falar com você.
Franzi o cenho, sua mão em minha perna mergulhou para baixo do
tecido do meu vestido, alternando entre apertar a carne e arrastar os dedos
na minha pele, causando-me arrepios.
— Você veio falar comigo sobre o meu trabalho? E eu achando que
tinha sentido a minha falta! — Estalei a língua, jogando os braços em seus
ombros.
Ele sorriu, relaxado.
— Não tenha dúvidas disso. Foi uma merda acordar essa manhã sem
poder me enfiar no meio das suas pernas — provocou, e para reforçar o que
disse, seus dedos mergulharem entre as minhas coxas e estremeci ao sentilos deslizarem sob o tecido da minha calcinha, que estava úmida.
Mordi as bochechas para conter um gemido que quase escapou
quando ele alcançou um ponto sensível, fazendo pressão contra o clitóris.
Minhas unhas fincaram em sua nuca, involuntariamente, e a mão livre, que
descansava pouco acima do meu quadril, subiu pelas minhas costas e se
aninhou em meu cabelo.
Minha respiração oscilou drasticamente e, por um instante, esqueci
que estava no escritório, e que apesar do expediente ter encerrado, ainda
existia a possibilidade de alguém estar presente e me flagrar no colo do meu
chefe — com a sua mão invadindo minha calcinha e arrastando seus dedos
pela fenda melada.
Fechei os olhos, sentindo-me embriagada e intoxicada pela sua
presença e toque.
Renato era perigoso demais para a minha sanidade. Ele conseguia me
fazer esquecer de tudo ao redor sem precisar de esforço.
Abri os olhos, odiando que ele sequer havia feito muito e meu corpo
estava fervilhando. Minhas paredes pulsaram, ansiando para serem
invadidas. Sua língua, seus dedos, seu pau… o que fosse, eu só precisava ser
tomada de alguma forma.
— Não me olhe assim, diabinha. Ou vou acabar fodendo você aqui
mesmo — ordenou, apertando o meu queixo para que eu sustentasse o seu
olhar.
— Fica um pouco difícil com a sua mão… — me perdi nas palavras,
sendo interrompida por um gemido quando ele deixou um dedo me invadir.
— Renato! — grunhi, agoniada.
A última coisa que meus olhos capturaram foi o seu sorriso cretino,
antes de tomar os meus lábios. Sua boca investiu contra a minha de um jeito
violento, árduo e tórrido, como se fosse a primeira vez depois de uma
década longe. Um gemido escapou do fundo da minha garganta, sendo
engolido por ele quando, sem qualquer aviso, Renato me invadiu com três
dedos, fodendo minha boceta com veemência.
Minhas paredes se contraíram e sua boca abandonou a minha,
descendo para o meu pescoço e colo desnudos, lambendo, chupando,
beijando, mordiscando. Meus olhos miraram a nossa imagem refletida no
vidro escuro da parede atrás dele, minhas unhas castigando a sua nuca e
cabelo; o meu quadril se movendo por conta própria, rebolando e aceitando
cada investida dos seus dedos dentro de mim.
Merda, aquilo era tão errado e poderia acabar tão mal se alguém
entrasse na sala, mas não tive forças de pedir para que parasse. Eu não
queria que ele parasse, cada pedaço da minha mente se desligava para que
pudesse focar apenas nele e em suas investidas.
Renato arrastou a sua língua por toda a extensão do meu pescoço,
sugando um ponto sensível que fez meu corpo ondular e alcançou o lóbulo
da minha orelha, chupando e mordiscando, aumentando a intensidade que
os seus dedos se moviam dentro de mim, incendiando o meu corpo.
— Quero você na minha cama essa noite, diabinha… — disse, baixo,
rouco e necessitado ao pé do meu ouvido. Pisquei, aturdida. — Quero essa
boceta gostosa estrangulando meu pau do jeito que só você faz…
Seu polegar alcançou meu clitóris, circulando e o calor que estava se
concentrando no meu interior aumentou, cegando-me por um breve
instante. Minhas unhas se afundaram em sua pele e um gemido alto
escapou, me fazendo agradecer mentalmente que todas as salas eram
protegidas acusticamente.
Meu Deus, eu seria capaz de arrancar as minhas roupas naquele
segundo se ele me pedisse.
Onde estava o meu senso de autopreservação?
Renato intensificou as estocadas e eu estava tão perto que mal tinha
controle do meu próprio corpo, meu quadril se movia contra os seus dedos,
buscando pelo prazer que ele me proporcionava.
— Nathalia…
Sobressaltei, saindo do colo de Renato em um pulo e olhando na
direção da porta, alarmada. Renato agarrou o meu tornozelo direito,
colocando-o em cima do seu colo, tentando esconder a sua ereção e tivemos
apenas dois malditos segundos de vantagem para nos recuperarmos, antes
que os olhos de Frederico saíssem da minha mesa, para o outro lado da sala,
onde Renato e eu estávamos.
Não soube dizer se foram os anos de teatro que fiz quando era
criança, ou apenas a adrenalina que queimava nas minhas veias, mas
esbocei o meu melhor sorriso inocente quando os olhos pequenos e escuros
de Fred saltaram do meu rosto, para o de Renato.
Não sabia dizer se consegui disfarçar os fios desgrenhados, mas sabia
que o meu rosto estava tomado pelo rubor nas bochechas.
Olhei para Renato, precisando confirmar se ele também havia sofrido
um pequeno ataque cardíaco, mas o cretino sustentava aquele semblante
imperturbável de sempre.
— Hã… oi Renato — disse Fred, ainda olhando de um para o outro,
como se estivesse tentando entender o motivo para que o CEO estivesse na
minha sala, de portas fechadas e massageando o meu tornozelo inchado
como se fosse algo comum. — O que estão fazendo aqui?
Engoli em seco, sentindo meus neurônios entrarem em colapso.
— Nós… é… o Renato… — balbuciei as palavras, tentando encontrar
uma desculpa que fosse boa o suficiente para explicar aquela situação.
Renato fez menção a falar, mas Frederico ergueu a mão,
interrompendo-o antes que começasse.
— Eu já sei — falou Fred, endurecendo seu olhar e o trazendo para o
meu rosto.
Senti meu corpo inteiro ficar gelado.
— Sabe? — perguntei, em um fio de voz.
Era isso, a minha carreira estava arruinada.
Amanhã todos saberiam que eu havia sido flagrada quase gozando
com os dedos do Renato na minha boceta, gemendo como uma cadela no
cio para que qualquer um que estivesse passando escutasse.
E mesmo sabendo que aquilo era pior, a única coisa que o meu
cérebro conseguia registrar, foi na minha frustração por ter perdido o
orgasmo que batia na porta.
— Fred, é melhor… — Renato foi interrompido antes que concluísse.
— Não a defenda, Renato — disse ele, rígido, cravando os seus olhos
em mim, ressentido. — Você chamou o Renato para uma noite de
aromaterapia, mesmo depois de ter recusado meu convite — acusou.
Pisquei, abrindo e fechando a boca, em choque.
Virei para Renato, tentando confirmar se ele havia escutado aquilo e
pela maneira como a sua testa ganhou um vinco, soube que sim, Frederico
havia conseguido deixá-lo confuso.
Olhei para o sócio sênior, vendo que ele parecia realmente magoado.
Fred balançou a mão, impedindo que qualquer um de nós dissesse alguma
coisa.
— Nem tentem negar, estou sentindo o cheiro de calêndula e sândalo
— disse, e senti os ombros relaxarem ao constatar que Frederico não tinha
percebido o que interrompeu.
O alívio que me atingiu foi tão violento que o meu peito vibrou e a
minha cabeça pendeu para trás, acompanhando a gargalhada que escapou.
Não soube dizer se estava rindo de nervoso ou por diversão, talvez fossem
os dois.
— Ai, meu Deus… — ofeguei, enxugando as lágrimas que escaparam
e balancei a cabeça, libertando-me do aperto de Renato e me levantei,
aproveitando para arrumar minha roupa, discretamente.
— Você ri? — perguntou Fred, ofendido. — Pensei que éramos
amigos, mas você aceitou uma noite de aromaterapia com ele, e não
comigo.
Sorri, engolindo uma risada e meio mancando, atravessei a sala e
peguei a embalagem da pomada anestésica que Gabriel havia me dado,
mostrando para ele.
— Machuquei o tornozelo e estou usando essa pomada, Fred —
expliquei, apontando para as duas palavras que esclareciam o cheiro que ele
havia sentido. — Renato só estava me ajudando com isso, não é uma sessão
de aromaterapia.
A rigidez em seu olhar cedeu, ainda desconfiado, Fred pegou o tubo
da minha mão e leu o que estava escrito, virando para Renato e dando um
meio sorriso, como quem se desculpava. Precisei o acompanhar,
encontrando o semblante de Renato ser tomado por diversão.
— Sessão de aromaterapia? — perguntou, engolindo o riso.
Fred concordou, empolgado.
— Sim, é ótimo como um tratamento não-convencional para
enxaquecas — argumentou, me arrancando um sorriso. — Tentei convencer
a Nathalia a fazer uma vez por semana, mas ela recusou.
Suspirei, sentando-me em cima da mesa e vendo Renato se
aproximar. Meus olhos desceram para um ponto específico, notando que
apesar do volume ainda aparente, Renato tinha conseguido disfarçar.
— Você é um ótimo amigo, Fred — disse ele, elogiando o homem e
guardando as mãos nos bolsos, sorrindo atencioso para o nosso sócio.
— Obrigado, Renato… — respondeu, emocionado —, mas não é
nada, precisamos cuidar da nossa garota.
O CEO trouxe o olhar para mim e sorriu, risonho. Balancei a cabeça,
cravando a minha atenção nele e pedindo para que entrasse na mentira que
contei, ou estaria muito encrencado. Afinal, havia sido ele quem causou a
situação, quando começou a me atiçar.
— Realmente, precisamos cuidar dela — falou, possessivo, sem
esconder que não tinha apreciado que Frederico se referiu a mim como algo
que poderia ser compartilhado.
Sorri, voltando a olhar para o outro homem que era ingênuo demais
para notar qualquer coisa. Era por isso que eu amava tanto Frederico
Bellegard. Sabia que se tivesse realmente visto algo, ele nunca me julgaria.
Ao contrário, era capaz de ficar exultante e marcar um casamento na manhã
seguinte. E esse era o problema, ele era péssimo em guardar segredos e todo
o escritório estaria sabendo do que ele viu naquela noite.
Bellegard espreitou os olhos em mim, examinando-me
meticulosamente e meio que por instinto, passei as mãos pelo meu cabelo
para checar se estava tudo no lugar.
— O quê?
Fred inclinou a cabeça, como se tivesse visto algo. Olhei para Renato
como quem pedia socorro. Se o homem não tinha percebido nada antes,
quando deu um passo perto, eu soube que fomos descobertos.
— Sua pele está incrível — disse Fred, analítico.
Pisquei, perdida.
— Hã… obrigada?
Olhei para Renato, o vinco em sua testa aumentou. Frederico daria
um nó em nosso cérebro até o fim daquela noite.
— O que você fez? — investigou.
— Como assim?
Ele se aproximou mais e eu prendi o fôlego. Ainda me sentia úmida e
não duvidava que se chegasse perto demais, poderia sentir o cheiro da
minha excitação.
Dios mío… acho que vou desmaiar.
Renato deu um passo para frente, entrando discretamente no meio do
caminho e impedindo que Frederico se aproximasse demais. Ele, que estava
tão concentrado em mim, sequer estranhou aquele comportamento.
— O que fez para ficar com essa pele sedosa? — inquiriu e senti o ar
falhar nos meus pulmões. — Sua pele está brilhando e com um rubor
adorável, tão natural…
Socorro Deus.
— Eu… hã… yoga — menti, atrapalhada.
Renato, que estava conseguindo sustentar o personagem até aquele
momento, gargalhou em resposta.
— Isso é ótimo! — Fred comemorou, empolgado. — Já está em quais
posições? Svanasana? Halasana?
Arregalei os olhos, sem saber o que responder. Abri e fechei a boca,
tentando encontrar uma resposta. Claro que Frederico precisava conhecer as
posições de yoga, não seria uma surpresa para mim que ele fosse um
praticante.
— Algumas mais… hã… específicas e intensas — balbuciei, sentindo
o meu rosto esquentar mais.
Olhei para o teto branco, clamando ao Universo que se fosse minha
hora de partir para o descanso eterno, aquele era o momento ideal para me
levar.
— Ela ficou linda, né? — Fred virou para Renato, que semicerrou os
olhos em mim, sem conter o seu entretenimento com aquela merda.
— Deslumbrante.
Meu rosto fumegou, minhas bochechas arderam violentamente e quis
me enfiar em um buraco.
Filho de uma maldita mãe, eu juro que vou te matar!
— Obrigada — rosnei, fuzilando-o com o olhar.
— Faz um tempo desde que fiz aulas de yoga, mas posso ajustar
minha agenda para fazer companhia para você. — A voz de Frederico me
fez virar para ele e Renato precisou se afastar, incapaz de conter a própria
risada.
Ah, pronto.
— Acredito que as aulas são mais eficazes a dois — argumentou
Renato, atraindo a indignação de Frederico.
— Claro que não! Quanto mais pessoas, melhor! Podemos nos
matricular em uma turma de cinco, o que acham? Bianca e Leandro podem
nos acompanhar — ofereceu o sócio, e eu quis morrer.
Encarei o meu chefe, querendo estrangulá-lo.
— Eu… acho que não tem como, o meu instrutor é… hã… — forcei
meu cérebro a encontrar uma forma de me livrar daquela merda. — Sabe,
eu não pratico com frequência, na verdade… acho que eu vou precisar
parar.
A risada silenciosa de Renato morreu e ele me olhou, como um
cachorro arrependido.
Ah, agora decidiu lembrar que foi você que me colocou nessa
situação?
— Não acho que deveria parar — defendeu, atrevido. Cretino! —
Como o Fred disse, isso claramente está te fazendo bem.
Olhei para ele, pasma.
— Concordo com o Renatinho — falou Fred, nos lembrando de que
ele estava ali. — Seja qual for o método que o seu instrutor está usando…
não pare. — Sua sugestão era quase uma ordem, e ele foi endossado pelo
miserável ao seu lado. — Continue fazendo todos os dias. Três vezes no
mínimo! — recomendou.
Renato engoliu uma gargalhada, meneando a cabeça.
— Concordo — incitou.
Estreitei os olhos nele, deixando que soubesse que se os seus planos
envolviam sexo naquela noite, os meus envolviam dançar em volta da sua
sepultura como vingança por aquilo.
— Vou me lembrar disso, Fred. — Sorri, educada. Mas Renato sabia
que, na verdade, aquilo era um aviso para ele. — Do que precisa?
Frederico gesticulou, dispensando a minha pergunta.
— Não se preocupe, só queria saber se estava bem e como tinha sido
o seu feriado.
Meu orgasmo foi interrompido por causa disso?
A frustração me atingiu em cheio e encarei o responsável.
Era oficial, Renato Trevisan estava com os dias de vida contados.
Quando as portas do elevador se abriram, acompanhei dois pescoços
girarem na direção para checar quem havia acabado de chegar.
Mara foi a primeira a nos alcançar, envolvendo Nathalia em um
abraço apertado e a tirando de dentro do elevador. Como eu precisaria ficar
no escritório até mais tarde por causa de uma reunião com um cliente,
acabei passando no campus em que Nathalia se reunia com o orientador
duas vezes por semana, para trazê-la para casa.
— Papaaai! — Matheus vibrou, levantando-se no sofá e pulando na
minha direção para que o pegasse no colo, deixando um beijo estalado na
bochecha.
— Vocês não deveriam estar dormindo? — perguntei, olhando de um
para o outro.
Igor desviou sua atenção de Nathalia para mim e deu de ombros.
— Matheus estava sem sono — explicou, voltando a olhar para a
morena, que ria de algo que a sua antiga babá falou —, decidimos esperar
você chegar.
Anuí, deixando um beijo em sua testa.
— Tudo bem — falei, voltando para o pirralho que estava ligado na
tomada e observava as duas mulheres atrás de mim. — Nathalia vai dormir
aqui essa noite, tudo bem por vocês?
Apesar de serem crianças, eu sempre tentava manter uma conversa
franca com os dois, principalmente com o meu primogênito que entendia
muito mais do que o caçula.
Nunca trouxe uma mulher com quem estava saindo para casa. Sempre
preservei meus filhos, e eles nunca conheceram ninguém com quem eu
tivesse um relacionamento casual. No entanto, com Nathalia era diferente.
Ela tinha se enraizado sutilmente em nossa rotina, a ponto de se tornar um
assunto frequente entre meus filhos, mesmo quando ela não estava presente.
Eles gostavam dela.
Conversei com a Dra. Luiza sobre a situação e ela sugeriu que eu
testasse como os meninos lidariam com a presença de Nathalia em casa por
uma noite. A partir dessa experiência, eu poderia definir como conduzir a
minha conversa com os dois.
— Sim! — disse Matheus, prontamente.
Ele aproveitou que Mara se afastou para buscar suas coisas e correu
na direção de Nathalia, que o prendeu em um abraço apertado.
Voltei para Igor que apertou os olhos nela, refletindo sobre o que
responderia e quando retornou para mim, meneou a cabeça e sorriu fraco.
— Por mim, tudo bem.
Nathalia se aproximou com Matheus agarrado nela e sorriu
abertamente para Igor, inclinando-se para deixar um beijo em sua testa.
— Como você está, pequeno?
— Sou grande — resmungou em resposta ao apelido.
Nathalia riu baixinho, concordando.
— Sim, você é. Se continuar crescendo assim, vai me ultrapassar —
disse, afagando a bochecha dele com a mão livre.
Não estava nos meus planos que os meninos estivessem acordados,
passava de 23h e eles costumavam dormir cedo, mas quando me afastei
para falar com Mara, soube que dormiram a tarde inteira, o que explicava o
pico de energia.
— Tentei colocá-los na cama, mas sabe como eles são — disse,
culpada.
Sorri, concordando.
— Não tem problema — tranquilizei, recebendo a informação de que
o segurança dos garotos estava na garagem, esperando para levá-la para
casa. — Marcus está te esperando, mais uma vez, obrigado por salvar a
minha pele.
Mara sorriu, divertida.
— Esqueceu que trabalhei para Miguel Gama, querido? Estou mais
do que acostumada com a rotina maluca de vocês — falou, acariciando o
meu rosto, ternamente. — Eles jantaram no horário de sempre e terminaram
todos os deveres do colégio. Se você quiser, posso chegar mais cedo
amanhã…
— Não tem necessidade, pode vir no horário de sempre — falei,
acompanhando-a para o elevador. — Seu filho ligou?
— Ligou, graças a Deus! — disse, massageando o peito em alívio. —
Mas vai me matar do coração, porque foi para um lugar que quase não tem
sinal de celular… e vai ficar lá por uma semana.
Sorri, achando graça em como ela falava do filho adulto como se
fosse uma criança.
— Tenho certeza de que ele ficará bem.
Mara sorriu e o elevador se abriu para que ela pudesse entrar. A
mulher desviou seu olhar de mim e voltou sua atenção para o ponto sobre
meus ombros, onde Nathalia estava ocupada com os dois garotos,
discutindo sobre o filme que estavam assistindo antes de chegarmos.
— Ela é uma boa garota, tá? — falou baixinho, apenas para que eu
escutasse. — Sei que não queria que os meninos tivessem visto vocês dois
chegarem… ficou visível pela cara que fez. — Apertou fraco o meu braço
que segurava a porta para que não fechasse. — Mas se for para trazer
alguém para fazer parte da vida deles, a bonequinha é a melhor pessoa.
— Bonequinha?
Ela sorriu, nostálgica.
— Um apelido carinhoso de quando eu cuidava dela.
Acenei, concordando.
— E eles gostam bastante dela… o Igor tentou disfarçar, mas ficou
bem óbvio que estava me interrogando hoje.
— Ele te perguntou sobre a Nathalia?
Mara assentiu, olhando por cima do meu ombro.
— Você tem um pequeno adulto em casa, Renato. Ele é muito
inteligente e não adianta tentar esconder dele, o menino sabe que o pai está
apaixonado.
Franzi o cenho.
— Ele sabe?
— Bem, se ele não soubesse, por que mais ele me perguntaria se eu
acho que Nathalia aceitaria ser sua namorada?
Porra.
— E o que você disse?
Mara deu de ombros, dando um passo para trás e apertando o botão
que a levaria para a garagem.
— A verdade, oras… — murmurou, com sabedoria —, ela seria uma
boba se não aceitasse. E como eu conheço bem a bonequinha, sei que não
há nada de estúpido nela. Teimosa e impulsiva? Sim, e vai te dar muito
trabalho. Burra? Certamente não.
Uma risada silenciosa escapou e aquiesci, dando um passo para trás.
— Boa noite, Mara.
— Noite, Renatinho, se cuidem!
Retornei para a sala após alguns minutos no escritório resolvendo
uma situação com um cliente da Espanha, e encontrei Nathalia concentrada
no filme que os meninos estavam assistindo.
Matheus tinha pegado no sono com ela fazendo carinho em seu
cabelo e Igor estava ao seu lado, compenetrado na cena em que Harry
Potter estava em frente ao espelho místico. Eu tinha assistido aquela saga
tantas vezes no último ano, que sabia as cenas de cor e salteado, e nunca
entenderia como ele simplesmente não enjoava. Toda vez que ele assistia,
ficava concentrado como se fosse a primeira vez.
Os dois viraram o rosto para mim e sorriram, simultaneamente.
— Hora de dormir, garotão — falei, olhando-o sério.
Eles não teriam aula pela manhã, mas não significava que poderiam
acordar tarde.
— Tá bom. — Igor se levantou, deixando a almofada de lado e mirou
Nathalia, curioso. — Você vai estar aqui de manhã?
Meu peito doeu ao saber que aquele questionamento tinha um
contexto muito mais profundo do que mera curiosidade. Nathalia
identificou o mesmo, seus olhos buscaram pelos meus e seus lábios se
inclinaram, evidenciando as covinhas em suas bochechas ao voltar a fitar
Igor.
— Sim — disse, sem titubear. — Nos vemos antes que eu vá para o
trabalho, tudo bem?
Igor escondeu as mãos nos bolsos do moletom e toquei seu ombro ao
vê-lo enrijecer o corpo.
— Vá se deitar, filho — pedi, calmo. — Vou colocar seu irmão na
cama e te encontro em seguida.
Ele acenou com a cabeça, desejando boa noite a ela, e subiu as
escadas, perdido em pensamentos. Voltei minha atenção para o garotinho
pequeno deitado em seu colo, percebendo que ele segurava firmemente a
outra mão dela.
— Deixei suas coisas no meu quarto — avisei, libertando Matheus da
manta quente e olhei para ela, que parecia genuinamente tímida. — Vou
conversar com eles sobre isso, não se preocupe.
Nathalia franziu o cenho.
— É normal que ele fique receoso… — disse, com calma. — Se você
pretende falar algo porque acha que me incomodei, não é necessário. Mas
se for por outro motivo… faça como achar melhor.
Ergui o queixo, vendo-a se soltar do aperto que a mão pequena de
Matheus a prendia e cravar os olhos grandes nos meus.
Assenti, compreendendo o que quis dizer e busquei pela sua mão,
depositando um beijo carinho no dorso.
— Escadas, única porta à esquerda — instrui.
Nathalia concordou e peguei Matheus no colo com cuidado para não
o acordar. Ele ameaçou abrir os olhos, mas envolveu meu pescoço com seus
braços e deitou a cabeça no meu ombro, aninhando-se e voltando ao sono
profundo.
Coloquei-o na cama, deixando um abajur aceso e o cobrindo.
Matheus resmungou palavras desconexas e tateou o colchão, buscando pela
pelúcia do Hulk que estava do outro lado da cama. Empurrei para perto e
dei uma olhada em volta, percebendo que a bagunça da noite passada havia
sido organizada e os novos brinquedos foram colocados na estante em
frente a cama.
Depois de verificar se a babá eletrônica estava ligada, saí do quarto
deixando a porta entreaberta e me apoiei na ombreira do quarto vizinho,
onde encontrei Igor indo para a cama depois de escovar os dentes. O projeto
da aula de ciências em que trabalhamos durante toda a manhã estava em
cima da escrivaninha, e ele havia adicionado mais elementos ao redor do
vulcão na minha ausência.
— Nathalia é a sua namorada? — inquiriu, direto.
— Ainda não. — Fui sincero. Não adiantava agir como se ele fosse
ingênuo como o Matheus. — Por enquanto, ela é uma amiga.
Ele meneou a cabeça, se aninhando nos travesseiros e me aproximei,
sentando-me na beirada da cama e o olhando com cautela.
— O que você pensa sobre isso? — investiguei, afinal, sua opinião
era importante.
Se meus filhos não conseguissem lidar com ela, não importava o que
eu sentia, sempre priorizaria eles e as suas necessidades.
Igor soltou um suspiro alto, dando um meio sorriso.
— Que você seria burro se não quisesse ela como namorada —
resmungou, divertido. — Ela é bonita, legal, joga tênis melhor do que o
meu padrinho… e é da sonserina.
Ri baixo.
— O lance dela ser da sonserina pesou bastante, hein?
Ele deu de ombros e manteve o semblante divertido.
— Significa que ela é inteligente.
Acenei, afastando alguns fios do seu cabelo da testa.
— Ainda é incerto — falei para ele, aproveitando para cobri-lo com o
edredom. Igor meneou a cabeça, quieto. — Preciso que tenha paciência,
tudo bem?
Eu tentava ter com os meus filhos a mesma relação que tinha com o
meu pai. Eduardo e eu sempre tivemos uma conexão diferente do que a
maioria dos meus amigos tiveram com os seus pais. Não era um problema
para mim pedir conselhos a ele, mesmo sendo um homem adulto, e eu
torcia para que no futuro, meus filhos também me vissem dessa forma.
Era por isso que sempre mantinha as coisas abertas com eles, na
medida do possível para as suas idades.
— Tudo bem… — disse, repuxando os cantos dos lábios e piscando
para mim, relaxado. — Falei sobre ela com a Dra. Luiza hoje.
— Falou?
Igor aquiesceu.
— Luiza disse que ela parece ser muito legal.
Sorri, concordando.
— Certo… agora vai dormir, ou vou vender todos os seus livros —
avisei, espalmando a coberta e ele riu, negando.
— Já estou indo… boa noite, pai.
— Boa noite, chefe! — desejei, apagando a luz do abajur ao seu lado.
Após tomar banho, Nathalia me encontrou na cozinha. Seus cabelos
estavam levemente úmidos. Os primeiros botões da minha camisa que ela
estava usando ainda estavam desabotoados, e não precisei me aproximar
para perceber que não usava nada por baixo.
Acompanhei quando parou a poucos passos de distância, ficando na
ponta dos pés e apoiando os antebraços sobre o mármore da ilha que a
mantinha afastada. Seu olhar subiu para mim e um sorrisinho atrevido
escapou dos seus lábios.
— Sabe do que me lembrei? — indagou e espreitei os olhos,
negando. — Você tinha ido na minha sala para falar alguma coisa, mas
mudou de ideia e… — suas bochechas ruborizaram. — Fomos
interrompidos pelo Fred.
Finalizei o carbonara, servindo duas porções e coloquei na sua frente,
lembrando-me que ela não tinha parado para comer naquele dia. Era um dos
temas que pretendia conversar, mas acabei me distraindo e perdendo o foco.
Nathalia era uma grande distração e conseguia me fazer esquecer
completamente das responsabilidades. Era impossível não a tornar minha
prioridade quando o seu corpo ficava tão próximo do meu.
Cogitei abrir uma garrafa de vinho, mas como ela estava tomando
analgésicos por causa da entorse, devolvi o rótulo para o seu lugar e voltei
para a ilha com uma jarra de suco.
— Preferia o vinho — disse, fazendo beicinho.
— Claro que preferia, espertinha. — Puxei seu banco, mantendo-a
perto.
Não menti para ela alguns dias atrás. Não importava o quão perto
Nathalia estivesse, ainda não era o suficiente.
— Precisamos alinhar suas responsabilidades — expliquei, vendo-a
enrolar o espaguete no garfo. Um vinco surgiu em sua testa e ela me fitou,
sem compreender o significado disso. — Conversei com Letícia mais cedo,
e a partir de amanhã ela começará a realizar entrevistas para contratar uma
secretária.
— Você precisa de uma nova secretária?
Sorri, apertando meus dedos em sua coxa desnuda, sentindo a pele
esquentar sob meu toque.
— Você precisa — comuniquei, assistindo seus olhos se arregalarem
levemente. — E antes que comece a dizer que está lidando bem sozinha,
saiba que essa decisão já foi tomada, e você terá que se adaptar a essa nova
realidade. Até lá, minha secretária irá cuidar de sua agenda.
Apesar das palavras soarem mais rudes, eu estava calmo.
Eu precisava fazer Nathalia entender que esse assunto não estava
aberto a argumentações contrárias. Sua função não era carregar todo o
escritório nas costas. Não importava se ela conseguia lidar com todas as
tarefas que assumia, ela precisava de tempo para descansar, ou então tudo
sairia do controle.
— Soube que você se afastou no ano passado — prossegui, vendo
seus ombros enrijecerem —, não vou permitir que se sobrecarregue de
novo, tudo bem?
Nathalia abandonou os talheres e inspirou profundamente, e pude ver
aquela mesma insegurança de quando compartilhou comigo sobre como
estava se sentindo naquela manhã. Ela não precisava me provar que era boa
no que fazia, eu tinha conhecimento daquele fato. Havia sido por isso que a
promovi para o cargo, e se não julgasse que ela faria um excelente trabalho
na posição, a teria colocado como uma sócia sênior, assim como Fred,
Celine e todos os outros.
— Não me serve de nada que você possa cuidar de atender os seus
clientes, da Roberta; dos assuntos administrativos e operacionais… se no
processo você acaba não se alimentando, vivendo à base de cafeína e tendo
crises de enxaqueca — expliquei sinceramente. — Não vou permitir que
sua saúde seja prejudicada.
— Mas eu tenho a Bianca…
— Bianca está de licença do escritório por tempo indeterminado —
falei, vendo-a franzir o cenho. — Ela não te contou?
Nathalia balançou a cabeça, confusa.
— Ela me ligou para pedir desculpas por não ter conseguido ir para o
escritório, explicou sobre Adelaide ter piorado e conversamos
pessoalmente. Deixei claro que ela pode ficar fora pelo tempo que precisar,
sob efeito imediato.
— Conversaram pessoalmente?
— No hospital.
— Ela te deixou ir ao hospital? — perguntou, assombrada.
Bianca tinha me explicado sobre não querer que outras pessoas
soubessem sobre a situação da sua mãe, e apesar de não acreditar que
manter aquilo em segredo fosse necessário, respeitaria a sua decisão.
— Ela não teve muita escolha — falei, casualmente. — Assim como,
esse assunto sobre contratar alguém não está aberto para debate.
Nathalia aquiesceu.
— Que tóxico da sua parte! — resmungou, fingida.
— Cuidar de você me torna uma pessoa tóxica? — fingi confusão, e
ela escondeu um sorriso antes de concordar. — Tudo bem, posso aceitar
isso. Bem-vinda a um relacionamento muito tóxico.
Revirei os olhos, ouvindo uma risadinha escapar dos seus lábios.
Era irônico como ela queria cuidar de tudo para todos, mas não ficava
confortável quando alguém tentava fazer o mesmo por ela. Eu sabia que se
tivesse informado aquela questão e deixado em suas mãos para dar
andamento, Nathalia enrolaria uma vida inteira para o fazer. Sua própria
amiga havia me dito sobre a sua dificuldade em aceitar ajuda.
Segundo Bianca, ela começou a trabalhar como assistente de Nathalia
devido a uma situação ocorrida na Alpha, onde ela trabalhava
anteriormente, e que a obrigou a sair.
— Posso ao menos participar das entrevistas? — indagou, sem
esconder o quanto era controladora.
— Letícia vai te enviar os melhores currículos assim que terminar o
processo seletivo — assegurei, dando um tapinha em sua perna. — Agora,
coma. Já avisei a Letícia que a candidata que se comprometer a garantir que
você se alimente nos horários corretos terá prioridade na contratação.
Nathalia riu, batendo continência e voltando a comer o carbonara. Eu
não era um chefe de cozinha, mas como acabei morando com os meus
amigos por um tempo, meio que se tornou obrigatório que eu soubesse me
virar. E pelo suspiro satisfeito que escapou de seus lábios, soube que ela
tinha aprovado.
Enquanto comíamos, conversamos entre risadas sobre a situação com
Fred mais cedo.
Ainda me parecia inacreditável que ele não tenha percebido o que
realmente aconteceu. E pior ainda, eu não sabia se devia me preocupar com
o fato de que um dos meus sócios era tão ingênuo a ponto de acreditar na
história da massagem com pomada e aulas de yoga, ou se deveria ficar
aliviado pelo fato de Nathalia ser tão querida por ele que sua primeira
suposição tivesse sido a aromaterapia para suas crises de enxaqueca.
— Ele é completamente fora da casinha — disse ela, dando risada e
abandonando o copo em cima da bancada. — Mas é um amor e me vê como
uma espécie de divindade na vida dele.
— Ele me contou que você o ajudou com a situação com Cinthia.
Nathalia aquiesceu, sorrindo fraco.
— Eu tentei. Gosto de brincar de cupido de vez em quando, é um dos
meus talentos… — piscou, soberba.
Alcei a sobrancelha, entretido pelo seu divertimento.
— De todos os sócios, você é mais próxima dele?
Nathalia pensou por um instante e aquilo pareceu a chatear, e ao
repensar sobre o meu questionamento, entendi o motivo.
Ela era próxima da Roberta.
— Me aproximei muito mais do Fred depois que a Cinthia e ele
terminaram. Eu me senti culpada pela fossa que ele entrou, então… passei a
acompanhá-lo em todos os lugares e aceitei participar da noite das garotas.
— Noite das garotas? — Engoli uma risada.
— Sim, uma noite em que Fred é a garota mais importante para mim,
Bianca e Olívia. — Sorriu, terna. — Ele é muito desprendido, sei lá, Fred é
um doce de pessoa. Melhor do que muitos outros caras no escritório que
tiram sarro dele por ser… ele, sabe?
Assenti, compreendendo.
— Enfim, tinha a Olívia, que ainda é uma das minhas melhores
amigas, mas acabou saindo do escritório depois de uma discussão com a
Roberta. — Nathalia fez uma careta, tamborilando os dedos no mármore.
— Elas discutiram por causa de um cliente, não conseguiram chegar em
consenso… então, Liv acabou aceitando a proposta de uma gestora.
Ela bebeu um gole do suco, pensativa.
— Também tem a Celine que foi quem me colocou na RCI. —
Sorriu, carinhosa. — Nós temos uma relação bem próxima. Quando tem um
problema, ela vem até mim e vice-versa. É amizade mesmo, sabe? Com
altos e baixos. Eu a amo como amiga, mas temos muitos atritos no quesito
profissional. O que diminuiu drasticamente as nossas interações no
escritório nos últimos meses.
— Por quê?
Nathalia torceu os lábios em uma careta.
— Você quer mesmo ouvir isso? Vou estrear um episódio do TED
Talks[25] no meio da sua cozinha.
— Posso escutar você falando sobre qualquer assunto e não me
canso, diabinha — disse, franco.
Era prazeroso observá-la enquanto me explicava as coisas sob sua
perspectiva, revelando seus valores e convicções. Desde nossa primeira
conversa, ela sempre foi aberta e honesta em cada palavra que saía de seus
lábios. Era raro encontrar alguém assim, alguém que se sentava e falava
sem se apegar a um roteiro premeditado para me agradar ou provar o quão
competente ela era no que fazia.
Nathalia prendeu a ponta da língua entre os dentes e girou o corpo
para ficar de frente para mim, pensativa.
— Leve em conta que isso não é uma verdade absoluta, tudo bem?
— Não estou te julgando.
Ela fez uma careta.
— Mas talvez possa julgar depois que eu terminar… todo mundo faz
isso — disse, cautelosa.
Levantei as mãos, abrindo e fechando as palmas.
— Como pode ver, não estou segurando nenhuma pedra.
Nathalia sorriu e soltou um suspiro.
— Celine é bem mais velha do que eu e você — esclareceu. Sim, se
não estava enganado, ela tinha por volta de cinquenta anos. — Ela vem de
uma versão do mercado que representa tudo que eu mais abomino, sabe? E
por mais que ela negue, alguns comportamentos que eram exigidos das
mulheres naquela época ainda estão muito enraizados, porque foi como o
cérebro dela se moldou para conseguir se encaixar no meio.
Franzi o cenho, sem compreender aonde ela queria chegar.
— O mercado é machista, e ela perpetua isso de forma involuntária,
sabe? Sem militância, juro! Mas no dia a dia, fora os comentários toscos do
tipo: “mulheres não precisam ser inteligentes, Nathalia, só precisam saber
se vestir e como agir em uma reunião” — prosseguiu, tentando imitar a voz
da mulher e me arrancou um pequeno sorriso —, ela realmente incorpora o
estereótipo da mulher no mercado financeiro da década de 80. A diferença
de comportamento é gritante quando ela atende um cliente sozinho em
comparação a quando ele aparece acompanhado da esposa.
Nathalia suspirou e buscou pelo copo, bebendo um gole de suco.
— Eu já expliquei tudo isso para ela, entende? Não é como se eu
estivesse falando sobre isso nas suas costas. Mas ela mesma reconhece que
se veste de maneira mais sensual quando sabe que o cliente vai aparecer
sozinho, porque foi assim que a ensinaram a fechar negócios. Seduzindo o
cliente, usando o corpo como forma de atrair atenção… tanto que todos os
portfólios dela são criados e definidos por mim. — Revirou os olhos,
chateada. — Se um cliente precisa de uma explicação sobre o que está
sendo proposto? Eu tenho que participar, porque para a Celine essa parte
técnica não é necessária. Ela só precisa ser atraente e cativar o cliente com a
lábia.
Outra careta tomou seu rosto.
— Então, fora o estereótipo que propaga… eu ainda preciso fazer o
trabalho que deveria ser dela. E não importa quantas vezes eu explique; é
como falar com uma porta. Ela não quer mudar, não precisa… deve se
aposentar daqui a dois ou cinco anos? — Estalou a língua, dando de
ombros. — Não é válido para ela mudar nessa altura do campeonato. E ela
prefere desse jeito porque se garante e adora a atenção que recebe por isso.
Nathalia me olhou, como se estivesse culpada por compartilhar
aquilo.
— Ela é uma ótima pessoa, juro que é. Mas me irrita tanto quando
faz isso, que eu acabo perdendo as estribeiras. — Nathalia torceu os lábios,
fazendo uma careta. — Por isso concordamos que, no escritório, ela só me
procura para o que for estritamente necessário.
Aquiesci, compreendendo seu sentimento.
— Bom… não acho que tenho qualquer direito de contrariar o que
você disse — falei sincero, estava ciente de como aquele ambiente era uma
merda para qualquer mulher que tentava entrar nele.
— É frustrante… — suspirou, chateada. — Sabe, eu lembro que o
primeiro cliente que atendi não era meu, mas da Celine. E foi tão…
desconfortável. Ele não tirava os olhos da minha bunda, me fazia levantar
para pegar água o tempo inteiro e derrubava as coisas no chão só me para
olhar por baixo da mesa.
Engoli em seco, sentindo um lampejo de raiva me atravessar.
— Sei que a Celine está acostumada e que não se importa, mas, eu
não me conformo que ela não consegue entender que, quando aceita isso,
ela normaliza esse tipo de comportamento; e submete outras mulheres a
sofrerem com os assédios — resmungou, ressentida. — Naquele dia, eu não
me senti bem quando terminei a reunião, na verdade, sequer terminei.
Estava tão enojada com tudo aquilo que precisei abandonar a explicação e o
Fred assumiu no meu lugar.
Respirei fundo, aumentando o aperto dos meus dedos e ela olhou para
mim, chateada.
— Quando expliquei para ela e para a Roberta o que houve, elas me
disseram que era normal… que eu precisava me acostumar se quisesse
trabalhar com isso, que eu tinha que aprender a ter jogo de cintura para
passar por cima e seguir adiante… — seu rosto foi tomado por melancolia.
— Mas por que eu tenho que me acostumar a ser assediada? Não é justo
que eu tenha que ouvir que se quiser ter uma carreira… preciso aceitar que
vou ser importunada o tempo inteiro, e que preciso agir como se não fosse
nada demais.
Eu não sabia o que dizer para ela.
Minha mente estava tomada por raiva.
— Isso aconteceu outras vezes? — interroguei, entredentes. Nathalia
assentiu. — Quantas?
Ela riu, sombria.
— Chegou em um ponto que eu perdi a conta. — Deu de ombros,
fazendo com que minha fúria me cegasse. — Só que… é uma merda, sabe?
Quando não é cliente, é alguém do meio.
— Isso já aconteceu com os seus clientes?
Nathalia negou prontamente.
— Não, nunca. — Assegurou. — Quer dizer, teve um cliente. Mas eu
me recusei a trabalhar com ele, então, não conto. Teve uns… — apertou os
olhos, encarando o armário atrás de mim, pensativa —, quatro que eram da
Roberta, alguns de outros sócios…, mas a maior parte, eram da Celine.
Balancei a cabeça, sem saber o que dizer.
Nathalia fez careta, culpada.
— Estraguei a noite, não foi?
Neguei, segurando o seu queixo e trazendo seu rosto para perto,
deixando um beijo demorado em sua testa.
— Eu precisava saber — falei, sério. — Sinto muito por isso, anjo.
Ela pendeu a cabeça para trás, seus olhos buscaram pelos meus e
soltou um suspiro fraco.
— Você está com raiva?
— Não — omiti miseravelmente. Minha entonação entregava a ira
que estava queimando nas minhas veias.
— Você é um péssimo mentiroso — disse, deixando um beijo na
ponta do meu queixo, doce e delicado. — Mas quando você fica com raiva,
uma veia salta na sua testa e seu olho esquerdo treme. — Apontou,
esticando a mão e massageando a região.
— Não sei o que dizer — confessei, capturando o seu pulso e
depositando um beijo nele.
— Você não precisa me dizer nada, não é a sua responsabilidade —
tranquilizou, terna. — Só te expliquei como esse mundo funciona para as
mulheres, sabe? Sei que conversou com os rapazes sobre isso e fico feliz
por ter consciência, mas é uma merda que você tenha que lembrar um
bando de marmanjo que eles não devem assediar outras mulheres.
Soltei seu rosto, deixando minha mão escorregar para a sua nuca.
— Ainda atende os clientes da Celine?
Nathalia negou.
— Não desde que perdi a calma e enfiei a mão na cara de um deles.
— Deu de ombros, pacífica. — Ninguém te contou isso? — perguntou,
surpresa ao ver a minha confusão. Neguei, perdido. — Que milagre! Porque
depois disso, os rapazes nunca mais me chamaram para sair e me
apelidaram de “Dama de Aço”. Eles meio que contam essa história para
todo operador novo que chega e pensa que vai conseguir me convencer a
sair para um encontro.
Aquiesci, nada contente com toda aquela história.
— Não hesite em fazer isso novamente, caso aconteça.
Nathalia sorriu, entusiasmada.
— Você é o melhor chefe do mundo, já te falei isso? — perguntou,
levantando-se e envolvendo meu pescoço com os seus braços, ela ficou na
ponta dos pés. — Essa permissão vale só para clientes ou está valendo para
qualquer um que me irritar?
Uma risada escapou e balancei a cabeça, sem acreditar em como ela
conseguia ir de zero a cem, em um piscar de olhos.
Seus olhos me fitavam em expectativa, eufóricos com a ideia. Meu
braço livre enlaçou sua cintura, impulsionando-a para cima e Nathalia
prendeu as pernas no meu corpo quando me levantei, caminhando com ela
para fora da cozinha.
— Qualquer um que pisar no seu calo, pode enfiar o soco — falei e
refleti por um instante. — Você já praticou boxe?
Nathalia engoliu uma risada, negando.
— Algum professor para me recomendar?
— Vou falar com a sua próxima assistente para que ela encaixe um
horário com ele, vai fazer parte das suas funções obrigatórias.
Nathalia arqueou a sobrancelha, endireitou-se e soltou um suspiro,
acomodando-se em meu colo quando me sentei no sofá.
— E posso saber quem será o professor? — indagou, curiosa.
— Eu, obviamente.
Nathalia estalou a língua, atrevida.
— Você é um homem de muitos talentos, Sr. Trevisan… guia de
turismo, massagista, instrutor de yoga, cozinheiro e agora, professor de
boxe? — Ela estreitou os olhos, sorrindo maliciosamente. — Estou
começando a reconsiderar a história do divórcio.
Arrastei os dedos em suas coxas, sentindo-a estremecer.
— Você sairia no prejuízo.
Ela sorriu, concordando.
— Acho que sim, falso esposo — cantarolou, mordiscando meu
queixo delicadamente e se jogou no sofá ao meu lado, batendo os cílios.
Seria um ato quase angelical se ela não estivesse praticamente nua ao meu
lado. — O que você conhece sobre séries dos anos 2000?
— Meu conhecimento sobre Prison Break serve?
Nathalia fez uma careta, negando.
— Quer conhecer a série com o melhor casal do mundo?
Alcei a sobrancelha, achando graça em sua empolgação.
— Que são…?
— Seth Cohen e Summer Roberts, obviamente. — Rolou os olhos,
vasculhando o catálogo do serviço de streaming e selecionou a série The
O.C.
Como previsto, Nathalia mais uma vez me mostrou que não
conseguia prever como seriam os momentos ao seu lado. Nas horas
seguintes, dividi a minha atenção entre os episódios da série antiga e o seu
rosto lindo, enquanto ela descansava a cabeça no meu peito e acompanhava
atentamente o desenrolar da trama.
Não me lembrava de quando foi a última vez que passei a noite com
uma mulher e que a programação consistiu em ficar em frente da televisão,
mas Nathalia era um evento único e depois da nossa conversa, eu entendia
que não tinha clima para acabar a noite de outra forma.
A noção da ausência de um corpo na cama, me despertou.
Abri os olhos, buscando pela mulher que deveria estar nos meus
braços e não a encontrei em lugar nenhum.
Era por volta de 05h00 da manhã, a porta do quarto estava semiaberta
e o celular de Nathalia vibrava incessantemente devido às notificações que
não paravam de chegar.
Confuso, levantei-me e caminhei para fora, buscando pela diaba que
deveria estar na cama comigo. No meio do caminho, encontrei uma luz
fraca vindo da cozinha e soube que era onde ela se encontrava.
Assim que alcancei o arco de entrada para o cômodo, capturei o exato
momento em que Nathalia deslizou a colher cheia de arequipe no morango
e soltou um suspiro, alto e extremamente satisfeito.
Como tinha visitado o meu apartamento várias vezes enquanto
trabalhávamos no projeto de inscrição para o estágio, pedi para que
providenciassem um estoque do doce que ela tanto adorava.
— Bom dia, formiga — falei, guardando as mãos nos bolsos da calça
de moletom.
Seus olhos me encontraram e ela murmurou em resposta, mordendo
outro pedaço da fruta e acompanhando enquanto eu me aproximava.
Nathalia estava sentada em cima da ilha com uma travessa de
morangos e o pote de doce, quase intocado, ao seu lado. Pelo sorriso
preguiçoso e sonolento que dançou em seus lábios, soube que não fazia
muito tempo que havia acordado.
— Bom dia!
Suas pernas enlaçaram meu corpo, levando-me para perto e a sua
mão livre alcançou o meu rosto, deixando um afago gostoso na minha pele.
— Algum motivo para estar acordada tão cedo? — investiguei,
procurando em seu rosto algum sinal de problema, mas tudo parecia
perfeitamente bem.
Nathalia sorriu, arrastando as unhas na minha pele com leveza. Ela
acenou com a cabeça, pensativa. Seu olhar atravessou o meu, aprisionandome na sua aura angelical.
— Perdi o sono… fiquei revirando na cama e acabei desistindo —
explicou, tranquila. — Não quis correr o risco de te acordar.
Minhas mãos seguraram seu quadril, trazendo-a para perto e a
encaixando em mim, sem um mísero centímetro de distância entre nós.
Nathalia buscou por outro morango e ocupou suas mãos com a fruta e o
doce de leite colombiano.
Ela tinha um certo vício naquela combinação.
Nathalia insistia que o gosto era completamente diferente do que era
fabricado no Brasil; e que comparar os dois produtos seria um crime
inafiançável. E eu meio que estava me tornando um viciado em apreciá-la
se deleitando com aquilo como se fosse a oitava maravilha do mundo, e
talvez, pudesse afirmar o mesmo caso alguém quisesse compará-la com
outra coisa.
Era um evento extraordinário, assim como ela.
Seu rosto inteiro se iluminava com uma pequena mordida, em
seguida, ela fechava os olhos, jogava a cabeça para trás, expondo o pescoço
delicado e deixava escapar dos lábios um som delicioso e profundo.
E porra… quando o gemido escapou do fundo da sua garganta, meu
pau despertou e anunciou que estava ansioso para ser o motivo para que
aquele som reverberasse pela minha casa.
Em transe, acompanhei quando um fio grosso do doce deslizou e caiu
em seu colo — no vão entre os seios médios. Nathalia abriu os olhos e
mirou o ponto, seus lábios se apertaram em um beicinho inocente e ela
suspirou baixinho. Como se não fosse nada demais, ela ignorou a lambança
e recheou outro morango, oferecendo-me para que eu provasse o motivo da
sua alegria.
Minha mente enevoou e o meu aperto na cintura delgada tornou-se
mais bruto e ávido. Ainda tínhamos um assunto pendente e como a nossa
conversa havia sido interrompida, eu devia a ela um orgasmo.
— Quer? — ofereceu, referindo-se ao doce, inocente pra caralho.
— Prefiro provar com outra coisa — admiti, abaixando meu rosto
onde havia caído o arequipe. Sem pressa, deslizei a língua por toda a sua
pele, desde o espaço estreito entre os seus seios até o seu pescoço,
chupando e prendendo o lóbulo da sua orelha entre os dentes. — Acho que
encontrei a minha combinação preferida — confidenciei, minha voz não
passando de um sopro rouco.
Nathalia estremeceu.
— Tem certeza disso?
Sua pele ficou arrepiada sob o meu toque e suas pupilas se
ampliaram, afetadas.
Nathalia já era tão minha que eu não precisava de muito para deixá-la
pronta. Eu não tinha dúvidas de que estava melada. Cada parte do meu
corpo ganhou consciência do quanto eu sentia falta da sua boceta quente me
apertando em seu interior.
— Sou um homem de certezas, diabinha…, mas se você quiser,
podemos tentar uma contraprova.
Provando que era a mulher certa para mim, Nathalia abandonou o
morango de canto e arrastou a colher pelo doce, recolhendo uma quantidade
generosa; ela levou aos lábios, lambendo-a de um jeito pornográfico.
Bastou um simples movimento para que me fizesse perder o rumo
dos pensamentos e, hipnotizado, acompanhei quando abriu os botões
restantes da camisa — deixando-a escorregar pelos seus braços; expondo a
sua nudez.
Os seios fartos à disposição para o que eu quisesse. Seus olhos não se
distanciaram dos meus e ela sorriu, repetindo o movimento para encher a
colher com o maldito arequipe.
Dessa vez, Nathalia fez algo que deveria ser considerada a
profanidade mais deliciosa já cometida por um anjo.
Porra.
Minha boca salivou ao vê-la arrastar o metal prateado em seu colo,
melando seu seio esquerdo com o doce de leite, o sorriso devasso não saiu
dos seus lábios, e como se fosse pouco, ela fez o mesmo com o direito,
descendo a colher e espalhando o restante pela barriga, parando pouco
acima da sua virilha.
A tatuagem estava exposta, lembrando-me exatamente o que ela era.
Uma putinha diabólica que me levaria direto para o inferno, e como
um maldito devoto, eu iria de boa vontade.
— Fique à vontade para se servir e conseguir a sua contraprova —
disse, trêmula e rouca.
Seus olhos estavam acesos, as maçãs do rosto ruborizaram e seu lábio
inferior foi massacrado pelos seus dentes.
Ela estava gostosa pra caralho.
Desvencilhei-me do aperto de suas pernas, dando um passo curto para
trás, apreciando o banquete que estava sendo servido para que eu me
saciasse, e nunca na minha vida me senti tão faminto.
Ela era a responsável por aquela fome implacável que nunca cessava,
independentemente de quantas vezes tivesse fodido com ela nos últimos
dias, ainda não tive o suficiente.
Nathalia espalmou as mãos no mármore frio e o olhar que me lançou
era a permissão que eu precisava para avançar. O cheiro doce da sua pele
mesclado ao sabor do arequipe era, definitivamente, a minha combinação
preferida e eu poderia provar aquilo todo santo dia, sem enjoar. Ela
estremeceu, e o seu corpo se arrepiou por completo quando abocanhei um
seio, chupando-o com fome.
Seu quadril ondulou, movendo-se contra a minha ereção latejante e
gemendo conforme minha boca se dedicava aos seus seios, lambendo,
sugando, chupando, beijando, mordiscando — alternando entre eles e
tirando dela os sons mais gostosos que já escutei em toda a minha vida.
Seus dedos puxaram meu cabelo, tentando aliviar o desespero
crescente em seu interior e quando finalizei o seio direito, subindo pelo seu
colo e alcançando o seu pescoço, Nathalia me puxou para si, colando a sua
boca na minha, brusca e aflita.
O gosto do doce e do morango em seus lábios era bom, mas nada
superaria o sabor da boceta apertada que pulsava sob o meu toque.
Espalmei a mão na fenda melada, sentindo o seu calor e desejando me
afundar nele.
Nathalia gemeu contra os meus lábios quando circulei os dedos no
clitóris sensível. Suas unhas afiadas mergulharam na minha pele, ansiando
para ser invadida e, sem ter como fugir do seu comando, concedi
exatamente o que ela desejava; deixando que três dedos escorregassem para
o seu calor.
— Definitivamente… qualquer coisa fica uma delícia em você —
confessei, contra os seus lábios e ela sorriu, puxando meu cabelo e
pendendo a cabeça para trás, rebolando contra as investidas dos meus
dedos.
Abocanhei outro seio, prendendo o bico intumescido entre os dentes e
fazendo a pressão certa para tê-la gemendo alto; pedindo por mais e para
que eu fosse mais rápido. E dei exatamente o que ela queria, apreciando seu
descontrole conforme o orgasmo se aproximava.
Porra, daria qualquer merda para estar dentro dela agora.
— Goza pra mim, diabinha — ordenei, apertando os dedos em seu
cabelo e impelindo-a sustentar o meu olhar.
Seus olhos enturvaram e ela apertou os lábios para abafar um gemido
alto, suas bochechas ganharam um tom de vermelho vivo e suas íris
colidiram com as minhas, transbordando luxúria.
Ela era um primor, uma maldita obra de arte em carne e osso.
Nathalia era tão teimosa que mesmo à beira do limite, com suas
paredes massacrando os meus dedos, ela não cedeu ao comando.
— Não segura — adverti, aumentando as investidas, forte, bruto, sem
folga —, deixa vir.
— Quero você — lamentou, rouca.
E me odiei por não ter a porra de uma camisinha por perto.
— Ainda temos tempo, amor.
Ela negou, agarrando meu pulso e me impedindo de me movimentar.
Seus olhos cravaram nos meus com tamanha volúpia que perdi o fôlego
quando escutei as palavras que escaparam dos seus lábios.
— Preciso de você agora, Renato. Quero gozar com você dentro de
mim, me comendo com força — suplicou, necessitada. — Uso
contraceptivo e…
Não dei tempo para que concluísse, minha boca tomou a sua com
fúria e seus dedos tomaram a frente, descendo o tecido do meu moletom e
masturbando o meu pau, tão duro que estava dolorido e sensível ao seu
toque.
Eu deveria ser responsável, deveria negar o seu pedido…, mas que
tipo de filho da puta eu seria se recusasse quando queria aquilo tanto quanto
ela?
A minha saúde era ótima e eu fazia testes com recorrência, a última
relação que tive sem camisinha havia sido a responsável por trazer Matheus
ao mundo, e depois daquilo, nunca mais saí de casa sem ao menos uma
embalagem. E eu não tinha a menor dúvida de que Nathalia se cuidava e…
caralho!
A ideia de foder com ela sem aquela merda era uma tentação que eu
não podia recusar.
Maldita diaba.
Minha mente não me ajudou e projetou a imagem dela com a boceta
cheia da minha porra, e quando a sua mão me encaixou na sua entrada, mal
tive tempo de tentar confirmar se ela estava certa daquilo. Nathalia enlaçou
o meu quadril e quando a sua boca buscou pela minha, a invadi da maneira
que pediu.
Com força, entrando de uma única vez, fundo.
Seu calor me envolveu e um gemido alto e descontrolado escapou dos
seus lábios inchados. Porra, ela estrangulou o meu pau, impedindo-me de
me mover enquanto pulsava, apertada e quente como o inferno.
— Você é o meu tormento particular, diaba — rosnei, fechando a mão
livre em sua garganta, mantendo o seu olhar no meu e ela sorriu em
resposta, embriagada, safada e gostosa demais.
A cada investida, Nathalia implorava por mais.
Com cada nova estocada, o seu calor aumentava a ponto de quase me
cegar.
Sua boceta era o meu paraíso, e eu pagaria o preço que fosse
necessário para morar ali.
Cravando as unhas nas minhas costas, Nathalia deixou a minha pele
marcada com o seu descontrole e de todas as coisas que havia feito na vida
que me proporcionaram cicatrizes, aquelas seriam as minhas preferidas. Seu
quadril se movia contra o meu, o som dos nossos corpos colidindo ecoava
pela cozinha e a cada estocada, fiz questão de marcar em sua pele que ela
era minha.
Não me importava com porra nenhuma, apenas com ela.
Aquela garota me pertencia de todas as formas existentes e não
existia a menor possibilidade de que eu abrisse mão dela.
Eu seria capaz de atravessar o inferno por ela.
Não existia nada em mim que duvidasse daquela certeza.
Eu renunciaria ao que fosse, por ela.
— Olhe pra mim, diabinha — comandei, aumentando o aperto dos
meus dedos na sua garganta, fazendo-a abrir os olhos.
Ela piscou, atordoada, e mirou o meu rosto, suplicante.
— Não tire os olhos de mim — avisei, descendo a mão livre pelo seu
corpo, sentindo-a estremecer sob o meu toque.
Como se temesse que eu me afastasse, Nathalia aumentou o aperto
das suas pernas ao meu redor e sorri, mordaz. Não existia nenhuma chance
de que eu sairia de dentro dela enquanto não estivesse com cada gota do
meu gozo dentro da sua boceta.
Seu calor se intensificou e meus dedos alcançaram seu clitóris,
estimulando e o meu nome escapou dos seus lábios em forma de gemido.
Seus olhos giraram nas órbitas, mas ela não os fechou.
Obediente, Nathalia enterrou a sua atenção em mim com tanta
impetuosidade que eu perdi o restante do controle ao qual estava me
agarrando. Precisei cobrir a sua boca para abafar o grito que escapou
quando o seu orgasmo finalmente se libertou.
Incapaz de conter o meu próprio corpo, parei de segurar o meu limite
e enchi a sua boceta com a minha porra. Afastei a mão da sua boca,
escorregando para a sua nuca e a segurando firme — porque o seu corpo
amoleceu por inteiro, as suas pernas tremiam e a sua respiração ficou uma
completa bagunça.
Nathalia gemeu enfraquecida, os meus olhos desceram para o ponto
entre as suas coxas, sentindo um instinto selvagem me acometer quando o
meu gozo escorreu dela, conforme eu me retirava.
Minha mão livre encontrou o caminho para ela e deslizei dois dedos
na fenda melada, espalhando o meu sémen em sua boceta. A diaba
estremeceu, ameaçando fechar as pernas para me impedir e o meu aperto
em seu cabelo aumentou, arrancando um lamento dolorido dela.
— Não se atreva — rosnei, descendo a atenção para o centro quente,
deixando os meus dedos escorregarem de volta para dentro dela,
lubrificados pela minha porra.
Hipnotizado, voltei a foder Nathalia com os dedos e ela choramingou,
mole e sensível. Sua boca buscou pela minha, tentando de alguma forma
conter os gemidos que escapavam dos seus lábios, mas eles só me deram
combustível para intensificar as investidas, querendo tudo que ela pudesse
oferecer.
Nathalia prendeu o meu lábio inferior entre os dentes, mordiscando
com força e descontei aquilo na sua boceta — consequentemente, ganhei
novos arranhões como punição pelo castigo que apliquei nela.
A diabinha estava tão sensível que não demorou a gozar novamente;
suas paredes moendo os meus dedos com violência. Sua mão livre segurou
o meu pulso, impedindo-me de continuar a me movimentar.
— Posso me acostumar com esse café da manhã todos os dias — falei
contra os seus lábios.
Nathalia sorriu, amolecida.
— Você é uma péssima influência, Sr. Trevisan. Acho que vou chegar
atrasada no trabalho por sua culpa… — suspirou, esgotada. — Como vou
justificar para o meu chefe que me atrasei porque estava transando? —
Piscou, inocente.
Mordisquei o seu queixo, sentindo-a se arrepiar.
— Tenho certeza de que ele vai ser muito compreensivo — incitei,
passando o braço em volta da sua cintura para pegá-la no colo.
Ainda não havia amanhecido, tínhamos tempo até o horário que os
garotos costumavam acordar e ela poderia descansar antes de irmos para o
escritório.
— Banho? — Ofereci e ela balançou a cabeça, envolvendo o meu
pescoço com os braços e me deixando carregá-la de volta para o nosso
quarto.
Não meu, nosso.
Porque a minha cama pertenceria a ela pelo tempo que quisesse.
Por volta de 08h00, precisei sair da cama e deixar Nathalia descansar
antes de irmos para o escritório. Como os garotos dormiram tarde, deixaria
que dormissem mais um pouco também.
Assim que alcancei o piso da sala de estar, a porta do elevador foi
aberta e Pedro a ultrapassou olhando em volta, intrigado.
— Pensei que tivesse morrido essa manhã — comentou, me seguindo
para a cozinha.
Eu tinha descido pouco depois do banho e todos os resquícios do que
aconteceu mais cedo foram apagados, mas ficariam vivos em minha
memória por muito tempo.
Mirei o meu amigo, confuso com o seu comentário.
— Por quê?
Pedro franziu o cenho, esquadrinhando o meu rosto em busca de
alguma coisa e ao encontrar, pareceu ainda mais perdido.
— Você acabou de acordar?
Assenti, tinha cochilado por alguns minutos antes de me levantar para
começar o dia. Mas aquela confirmação pareceu assombrar o meu amigo;
que se sentou próximo da bancada e apoiou os braços, examinando-me com
preocupação.
— Está doente?
— Não.
— Conheço você há mais de vinte anos e nunca te vi dormir até esse
horário — explicou, e dei de ombros, despreocupado.
Não tive tempo de respondê-lo porque o meu filho mais velho
atravessou o arco da cozinha; olhando ao redor e buscando por uma pessoa
específica, ele estava tão concentrado que sequer notou o seu padrinho.
— Filho, dê bom dia ao Pedro.
Igor semicerrou os olhos em mim.
— Cadê ela?
— No quarto, dormindo — falei, tranquilizando-o e os seus ombros
relaxaram.
Meu filho desviou a atenção para o Pedro que ainda estava confuso.
— Ela? — Seu questionamento não foi para mim, mas para o meu
filho que assentiu, inocente. Zimmermann me encarou, tenso. — Agora a
garota dorme aqui?
— Sim.
Pedro meneou a cabeça, entrelaçando as mãos em cima do mármore e
olhou para o meu filho, como se quisesse checar que ele estava de acordo
com aquilo também. Igor, no entanto, aproximou-se da bancada com
tranquilidade e o cumprimentou, depois ele se virou para mim.
— Podemos fazer panqueca?
Alcei a sobrancelha, surpreso.
— Pensei que as minhas panquecas fossem péssimas.
Ele imitou a postura de Pedro, entrelaçando as mãos em cima da
bancada e torceu os lábios, refletindo.
— Verdade… omeletes? — Sugeriu —, ela gosta de comer o quê?
Pedro olhou de mim para Igor e balançou a cabeça, sem acreditar que
o meu primogênito estava lidando com aquilo tão serenamente. Não o
julgava por estranhar, a única vez que apresentei uma mulher para Igor e
Matheus, havia sido Roberta — quando a fusão se tornou uma certeza —, e
eles mal me deixaram terminar de falar antes de demonstrar
descontentamento.
Normalmente, tanto Matheus quanto Igor não lidavam bem com
qualquer figura que ameaçasse roubar a minha atenção deles, os dois eram
ciumentos e possessivos — algo que eu precisava confessar que herdaram
de mim —, e eu não sabia dizer se ficava contente com aquilo ou se tinha
que me preocupar.
Mas não era uma surpresa que estivessem fascinados por Nathalia.
Ela era como um ponto de luz que arrebatava qualquer um que colocasse os
olhos nela — até mesmo o homem que estava tão desgostoso com a sua
presença.
Na manhã passada, Pedro me ligou para informar que estava
passando pela quadra de tênis e encontrou a Nathalia treinando de maneira
incansável, visivelmente incomodada com alguma coisa e que, por isso, se
aproximou para verificar se era algo com o professor que estava a
acompanhando.
Por algum motivo, Pedro decidiu ajudá-la a se distrair e minutos
depois, ela acabou na enfermaria do clube.
Zimmermann veio me ver após deixá-la em casa e narrou toda a
conversa que tiveram no carro, ele insistiu que eu falasse com Nathalia
porque existia algo que estava a incomodando muito antes da discussão
deles.
E eu conhecia Pedro o suficiente para saber que ele só reparava em
algo quando se afeiçoava a alguém. Se existisse qualquer parte dele que não
estivesse cativada por Nathalia, ele sequer teria notado que havia algo
errado com ela no clube.
Identificar as emoções não era a sua maior habilidade, mas Pedro se
dedicava a tentar compreender o que acontecia com quem se importava — e
do seu jeito torto, dava um jeito de demonstrar. Ele se preocupou em
garantir que ela seria bem atendida no clube, em levá-la para casa e me
deixou claro que só arrumou briga com a Nathalia para mantê-la distraída
da crise de ansiedade que estava enfrentando.
O motivo de estar demorando tanto para deixar o receio com ela de
lado, era apenas sua maneira de agir com tudo que era novo e o tirava da
zona de conforto.
Se eu pensasse bem, Igor não havia sido o meu primeiro filho.
Os meus amigos assumiam aquele posto com tranquilidade.
— Bom… só vim verificar — murmurou, ameaçando se levantar, mas
quando Nathalia entrou na cozinha e sorriu lindamente, ele mudou de ideia.
— Bom dia, Pedro — cantarolou ela, como se aquilo fosse habitual e
se aproximou de Igor, deixando um beijo em seu cabelo —, e bom dia para
você, meu bem.
Meu filho sorriu, bobo.
Entretanto, o meu outro filho — que tinha a minha idade —,
congelou ao ouvi-la falar o seu nome.
Nathalia deu a volta na ilha e piscou para mim, sentando-se ao lado
do Igor.
— Nath, você come omeletes? É a única coisa que o meu pai sabe
fazer que eu tenho certeza de que vai gostar — disse o meu filho, gentil
como coice de um cavalo.
Nathalia olhou para mim, engolindo uma risada.
— Que tal se eu preparar o café da manhã?
— Não precisa — falei, totalmente em vão.
— Acho uma boa ideia — contrapôs Igor, dando a palavra final para
a morena, que se levantou e concordou.
Ela já estava pronta para ir para o escritório, ainda assim, deu a volta
na ilha e mirou o Pedro que ameaçou se levantar de fininho e sair do
apartamento.
— Você fica — decretou, firme e séria. Pedro olhou para ela,
incrédulo. Nathalia desviou o olhar para mim e sorriu, doce —, você chama
o Matheus?
Uma risada silenciosa me escapou e concordei, deixando os três
sozinhos. Parei no meio do corredor, a tempo de ver o que veio a seguir:
— Os dois vão me ajudar — avisou Nathalia, espalmando as mãos na
bancada e os olhando com uma falsa seriedade. — Pedro, você busca os
ovos e a farinha. Igor, você pega os morangos. Dale![26]
E sob o comando dela, os dois se movimentaram pela cozinha.
Pedro teve permissão para sair do apartamento depois que terminou
de tomar café da manhã conosco e ouviu toda a história que a pequena
diaba contou aos meus filhos para explicar como conseguiu torcer o
tornozelo.
Depois disso, Nathalia subiu para o quarto para terminar de se
arrumar e fiquei responsável por limpar a bagunça que eles fizeram na
cozinha, enquanto escutava Igor narrar os prós e contras da decisão que eu
precisava tomar.
Por estudarem em um colégio norte-americano, era normal que
houvesse a possibilidade de avançarem um ano na grade curricular. A
diretoria prezava para que os alunos estivessem em turmas condizentes com
seus conhecimentos e aptidões. Segundo a dirigente do colégio, Igor
possuía todos os requisitos necessários para avançar um ano. Em vez de
acompanhar sua turma no final do semestre e ingressar no 3º ano, ele
poderia ir diretamente para o 4º ano.
— Vou ter provas mais difíceis…, mas vai ser bom, eu já sei tudo que
os professores ensinam, fico entediado na maioria das aulas — argumentou,
pensativo —, e… é só um ano.
Virei-me para ele, paciente.
— É o que você quer? — investiguei. — Consegue entender que,
dessa forma, terá mais responsabilidades, mais aulas e muito mais
atividades para fazer em casa?
Não era a minha função dizer para Igor se ele deveria ou não aceitar
aquela mudança, era uma escolha que cabia apenas a ele. E como seu pai,
tudo o que eu podia fazer era auxiliá-lo a analisar o panorama com calma e
cuidado, para que não metesse os pés pelas mãos por causa da euforia.
— Acho que sim — disse, ainda incerto. Ele apertou os dedos
nervosamente e soltou um suspiro alto, absorto. — Posso pensar mais um
pouco?
Anuí, afastando alguns fios castanhos da sua testa que ameaçavam
alcançar os seus olhos.
— Sem pressa, temos até o fim do semestre para você decidir —
avisei, piscando para ele. — No sábado vamos cortar o cabelo, ok? Antes
que uma certa pessoa acabe encontrando uma tesoura perdida.
Igor riu, concordando, e desceu do banco para subir para o seu
quarto.
Hoje, eles entrariam no colégio após o almoço e isso me
impossibilitava de levá-los, devido a uma reunião que eu teria no escritório.
Por isso, iriam com o segurança, Marcus.
Depois de guardar a jarra de suco, atravessei o espaço para alcançar a
varanda, observando enquanto Matheus se distraía espalhando o giz
vermelho pela folha, acompanhando as instruções numéricas e aos poucos,
o uniforme do Homem-Aranha ia ganhando forma.
— Ei, pequeno Hulk — falei, agachando-me na sua frente e seus
olhos espertos vieram para mim, sorrindo graciosamente —, posso saber o
que está fazendo escondido aqui?
Ele riu, expondo as covinhas e empurrou a folha para que eu
analisasse o seu projeto em andamento. Era um ótimo trabalho, Matheus se
atentava em seguir as linhas da folha, sem ultrapassar a margem. Nunca
entenderia a sua obsessão por heróis, assim como não compreendia a de
Igor pelo mundo dos bruxos, mas tentava ao máximo ficar por dentro do
que os dois gostavam.
— Essa é a teia dele? — indaguei, apontando para o emaranhado de
riscos pretos e ele assentiu. — E quem é essa mulher?
Seu esboço do amigo da vizinhança estava segurando a mão de uma
mulher que não estava no desenho pré-pronto. Havia sido ele quem
desenhou os palitinhos desengonçados.
— A Nath — disse, dando de ombros. — Papai… — apontou para o
super-herói —, e a Nath. — Indicou a mulher feita de palitos tortos, mais
abaixo existiam outros dois desenhos feitos por ele. — Guigo —referiu-se
ao maior e depois para o menor —, e eu.
Um vinco cobriu minha testa e passei os olhos pelos outros desenhos,
notando que ele havia feito a mesma coisa em todos. Seu olhar voltou para
mim, inocente e doce, esboçando um sorriso que rasgava os seus lábios e
fazia com que as orbes verdes brilhassem.
— Ficaram muito bons — elogiei, recebendo um sorriso maior e ele
contornou a mesa, envolvendo o meu pescoço em um abraço apertado.
— Te amo, papai — confidenciou, sussurrando no meu ouvido e me
tornando o homem mais mole que existia no planeta.
Era difícil encontrar palavras para explicar como eu me sentia
realizado sempre que escutava aquelas declarações vindas dos dois.
— Também amo você, pequeno Hulk — cochichei de volta, vendo-o
enrugar o nariz e apertar os seus dedos na minha bochecha.
Peguei o pirralho no colo, apertando-o em um abraço e ouvindo a sua
gargalhada alta e gostosa ecoar no apartamento, enquanto jogava o corpo
para trás para fugir do abraço de urso que o prendi.
Seus pés chacoalharam, agitados, tentando alcançar o chão e o
devolvi quando percebi que Nathalia estava ali — teimosa como sempre,
em cima de saltos altos — e terrivelmente deliciosa em uma saia de couro e
uma camisa de mangas branca, que proporcionava um decote generoso em
seu colo.
Ela recostou o corpo na coluna, nos observando com admiração e
quando o seu olhar colidiu com o meu, seu rosto se iluminou com um
sorriso lindo e cativante.
— Você já vai? — perguntou Matheus, fazendo bico ao perceber a
bolsa na mão dela.
Nathalia o imitou e se abaixou para receber o abraço que meu filho
ofereceu, escondendo o rosto no pescoço dele e o apertando contra o seu
corpo de forma extremamente carinhosa.
Incapaz de desviar a atenção, acompanhei quando Matheus segurou o
rosto de Nathalia em suas mãos e grudou a sua testa na dela. Um sorriso
tomou os meus lábios ao vê-los roçarem os narizes em um beijo de
esquimó.
Era… pura sintonia e conexão.
Meu pai estava certo sobre aquilo, Nathalia e os meus filhos se
atrelaram de um jeito tão surreal que conversavam a mesma língua, eles se
entendiam como se conhecessem a vida inteira.
Nathalia trouxe os olhos para mim e sorriu, tímida.
— Vamos? — perguntou e concordei, chamando Igor para me
despedir antes de irmos para o escritório.
Desliguei o motor do carro e virei o rosto para Nathalia, vendo que
ela parecia confusa com alguma coisa que estava acontecendo.
Seu celular não parava de vibrar desde o início da madrugada e desde
que entramos no carro, o turbilhão de mensagens recomeçou.
— O que houve?
— Não sei… são tantas mensagens que desisti de tentar entender… —
suspirou, voltando para o navegador aberto na página online da
Bloomberg
[27]
—, mas não achei nada de tão extraordinário para esse
escândalo todo. Os sauditas voltaram atrás e vão seguir o preço do mercado
— murmurou, deslizando pela tela e lendo os principais títulos.
Franzi o cenho, acompanhando enquanto Nathalia repassava todas as
notícias expostas na página inicial. Estávamos um pouco atrasados, o
mercado estava aberto e pelo aplicativo no meu celular, eu conseguia
acompanhar o que estava acontecendo. Pela primeira vez em dias, tudo
estava tranquilo — o que era um verdadeiro milagre.
— Não deve ser nada demais… a corretora Gideon vai sediar um
evento com o Benjamin Hathaway no fim do mês que vem, provavelmente,
é por causa disso — falei, apertando a mão em sua coxa e ela assentiu,
devolvendo o celular para a bolsa e trouxe os olhos para mim, sorrindo
fraco.
— Obrigada — disse, me deixando confuso.
— Pelo que está me agradecendo, anjo?
As íris cintilaram e eu estava me tornando um viciado em apreciar
como seu rosto se iluminava quando a chamava daquele jeito. Era um
apelido que combinava tanto com ela que surgiu instantaneamente quando a
conheci.
Eu não sabia como os anjos se pareciam, mas tinha certeza de que se
existirem, eles têm a aparência dela.
Minha mão encontrou caminho para o seu rosto, trazendo-a para
perto e Nathalia veio sem titubear, roçando os lábios nos meus e soltando
um suspiro baixinho, amolecido.
Merda, como era possível ter tido tanto dela e ainda não estar
satisfeito?
— Por ontem, sei que os seus planos envolviam outra coisa… e que
não tinha nada a ver com assistir uma série adolescente — falou, abrindo os
olhos e cravando nos meus.
Arrastei o polegar em sua pele, descendo para o seu queixo e
contornando o desenho bem definido dos lábios grossos e rosados,
acompanhando como sua respiração se tornava errática com o meu toque
mais sutil.
Definitivamente, eu era viciado em tocar na sua pele.
— Meu único plano era ficar com você — confessei, sincero. Subi os
olhos para os seus, encontrando aquele brilho cativante. — Qualquer coisa
que te envolva é o suficiente para mim, diabinha… você fodeu com a minha
cabeça.
Nathalia arquejou baixinho.
— Isso é ruim? — indagou, curiosa.
— Nenhum pouco — soprei contra os seus lábios, descendo para a
sua mandíbula e mordiscando a sua pele, sentindo as unhas afiadas
alcançarem o meu braço. — Ao contrário, é ótimo porque eu sei que você
se sente da mesma forma.
Ela inclinou a cabeça para o lado, tão suscetível e entregue, que
precisei dar tudo de mim para não a trazer para o meu colo e foder com ela
aqui mesmo, na porra do estacionamento, onde qualquer um poderia nos
assistir.
Uma risadinha fraca escapou dos seus lábios, em uma tentativa inútil
de mostrar equilíbrio.
— Alguém já disse que você pode soar um pouco prepotente? —
provocou, e enrolei seu cabelo macio no meu pulso, segurando firme
enquanto a minha língua trilhava um caminho contínuo até o ponto mais
sensível do seu pescoço, onde uma veia pulsava freneticamente.
Um gemidinho escapou do fundo da sua garganta e a minha mão livre
alcançou o cinto de segurança, libertando-a dele. No segundo seguinte,
Nathalia estava no meu colo, a sua boca capturou a minha e o meu pau doeu
de necessidade de tê-la ao seu redor, apertando e soltando, me
estrangulando dentro de si.
Para a nossa sorte, os vidros do meu carro eram escuros e o
estacionamento era privativo e usado apenas pela equipe da RCI — e
devido ao horário, o movimento era mais restrito já que todos estavam no
escritório.
Eu me sentia um adolescente com os hormônios no pico e que não
conseguia pensar em outra coisa que não fosse sexo. Era o efeito dela em
mim. Ela era como uma maldita droga; chegava de mansinho e quando
alcançava o sistema nervoso, não tinha mais chance de evitar ser intoxicado
pelos seus efeitos colaterais — porque já tinha se espalhado por toda a
corrente sanguínea.
Cada maldito pedaço do meu corpo, implorava por ela.
Como um mantra, uma oração e uma súplica.
De todas as drogas, Nathalia era a mais perigosa e, certamente, não
existia reabilitação que seria capaz de me curar do vício nela.
Quando o barulho de um carro entrando no estacionamento soou, ela
se afastou bruscamente. Suas mãos espalmaram meu peito e seus olhos se
arregalaram, temendo ter sido flagrada. Mas não aconteceu, a única forma
de verem o que estava acontecendo aqui, seria caso se aproximassem para
bisbilhotar no para-brisa — todos os outros eram escuros.
Ela soltou um suspiro, aliviada, e trouxe os olhos para mim,
encontrando o sorriso convencido que estampava o meu rosto.
— Como disse, eu nunca erro. — Lembrei-a, vendo seus ombros
relaxarem e Nathalia revirou os olhos, trazendo o seu rosto lindo para perto
e mordiscando o meu queixo.
— Preciso ficar longe de você, pelo bem da minha integridade.
Afundei os dedos na sua cintura, odiando aquela ideia.
— É o que você quer, ou o que precisa?
Nathalia suspirou, me roubando um beijo.
— Que sorte a sua que eu costumo, quase sempre, fazer o que eu
quero — disse, apenas, antes de sair do meu colo e abrir a porta do carro,
piscando em despedida. — Nos vemos no escritório, Sr. Trevisan.
Acompanhei pelo retrovisor a diaba caminhar tranquilamente pelo
estacionamento, rumo ao elevador — como se não tivesse sido tão afetada
por aqueles últimos minutos quanto eu.
Nathalia olhou por cima dos ombros, sorrindo em minha direção,
ciente de que estava a acompanhando e entrou na caixa de aço, deixandome sozinho com uma ereção que custaria a passar.
No mercado de capitais, existia uma maneira muito singular de prever
um desastre iminente e se resumia ao comportamento dos operadores.
Apesar de ser jovem comparada a maioria deles, cresci naquela
bolha.
A minha infância havia sido marcada por grandes três crises, em que
o meu pai entrava no piloto automático e tudo na nossa casa, girava em
torno do acontecimento. Duas afetaram o mercado global, e uma apenas o
meu pai — quando ele descobriu que Charles estava defraudando os
clientes.
Então, se existia uma situação naquele mundo que eu sabia prever;
era uma crise iminente.
E quando as portas do elevador se abriram no lobby e caminhei em
passos doloridos rumo a entrada, bastou um olhar de Samantha em minha
direção para que eu soubesse que havia algo muito errado.
Estive com aquele pressentimento me atormentando desde o início da
madrugada — quando acordei com o celular vibrando incessantemente.
Não tinha visto as mensagens ainda, porque era comum que aquele tipo de
coisa acontecesse quando um evento em específico acontecia, e por mais
que uma voz na minha cabeça estivesse gritando em completo pânico, tentei
me agarrar na certeza de que não era nada que me envolvia.
Contudo, aquele sentimento que nunca passava e vivia à espreita para
voltar a me atormentar, estava ameaçando se desvencilhar da prisão em que
o mantinha e me colocar em colapso.
— Bom dia, Nathalia — disse Samantha, azeda e com uma falsa
simpatia que nunca me enganava.
Ela me detestava desde que apareci no escritório pela primeira vez,
nunca escondeu o quanto sentia aversão por mim e era gratuito, não fiz
nada de errado para que ela se sentisse daquela maneira, e após dois anos
lidando com isso, desisti de tentar mudar sua opinião sobre mim.
— Dia, Samantha — respondi por educação, empurrando a porta de
vidro para entrar de uma vez no escritório.
Tudo estava estranhamente… quieto.
Meus olhos correram pelo piso, esquadrinhando os associados
espalhados pelo ambiente de coworking, os operadores dentro da sala de
RV, as secretárias de alguns sócios que pareciam compenetradas em suas
obrigações e até Dora que passou por mim com o carrinho de limpeza.
Todos pareciam concentrados no trabalho, o que não condizia com as
mensagens ininterruptas.
Ainda com aquele sentimento de que alguma coisa estava errada,
girei nos calcanhares e segui o caminho para a cozinha, me preparando para
fazer o meu café. Bianca morava perto de uma loja que vendia alguns
produtos importados e, em um dia qualquer, acabou encontrando uma lata
do meu café colombiano. Por isso, sempre tinha uma embalagem no
escritório — que era onde eu passava a maior parte do tempo.
Distraída, esperando que a máquina terminasse de moer os grãos,
senti uma aproximação familiar e a sua mão afagou minhas costas,
deixando um beijo no meu cabelo antes de se afastar e abrir o armário para
pegar uma caneca e se servir com o café da máquina tradicional.
Roubei a porcelana da sua mão antes que apertasse o botão e subi o
olhar para o seu, sorrindo fraco. Renato fez menção para dizer alguma
coisa, mas virou o rosto para o lado oposto, sorrindo para alguém que tinha
acabado de entrar.
— Bom dia, garoto — falou, de um jeito quase paternal e virei o
rosto, vendo Gabriel deixar a mochila em cima da cadeira e vir em nossa
direção.
— Bom dia, patrão — disse, dando um abraço no homem ao meu
lado, e o seu olhar veio para mim, mais simpático. — Nath, como você
está?
— Bem, e você?
— Exausto, passei a madrugada cuidando de uma análise sobre a
economia chinesa para a faculdade… preciso de café — resmungou, me
dando um beijo na bochecha que fez com que Renato semicerrasse os olhos
no garoto, nada contente com o contato.
Revirei os olhos, virando para Gabriel, que se enfiou entre nós dois,
construindo uma barreira enquanto apanhava uma caneca para se servir.
— Fiz um trabalho sobre a política econômica chinesa no primeiro
semestre, você quer os meus rascunhos emprestados? — Ofereci, e o par de
olhos castanhos me fitaram com um leve choque.
— Você me emprestaria? Ajudaria pra caralho.
Assenti, ignorando o olhar de Renato saltando de um para o outro, em
silêncio.
— Claro, te envio os arquivos por e-mail, pode ser?
Gabriel acenou, olhando para o Renato e sorriu largamente.
— Ela é foda demais, chefe.
Renato arqueou a sobrancelha, mirando o garoto com um misto de
intriga e ciúmes. Só não soube definir se ele estava com ciúmes de mim, ou
do seu protegido.
— Ela é.
Minhas bochechas esquentaram porque eu sabia que diferente do
elogio inocente de Gabriel, a concordância de Renato não tinha nada a ver
com a ajuda que eu estava oferecendo para o garoto. Meus olhos se
moveram para a máquina que terminou de preparar o café e servi as duas
canecas, empurrando uma na sua direção.
— Gab — chamei a atenção do garoto que se virou, atento. Renato
espreitou os olhos pelo uso do apelido e ignorei a sua curiosidade, a minha
era mais importante. — Sabe sobre o que eles estão falando desde o início
da madrugada?
O garoto fez uma careta, meneando a cabeça em concordância.
— Vazou um vídeo de sexo entre os sócios de uma gestora que fica
aqui no complexo — explicou, desgostoso.
Meu coração congelou por um milésimo de segundo e a minha
garganta fechou, me fazendo engasgar com o líquido quente. Renato pegou
a caneca da minha mão antes que me queimasse e tocou o centro das
minhas costas, deixando algumas palmadas para tentar me ajudar a
recuperar o controle.
Existiam seis gestoras no complexo de torres comerciais, eu não
conhecia todas as pessoas que trabalhavam nelas, mas tinha alguns
conhecidos que, eventualmente, esbarrava em um almoço ou outro.
— Quando vazou? — perguntei, aflita.
— Pelo que eu entendi, estava circulando desde quinta-feira, quando
foi gravado. Mas viralizou entre a galera essa madrugada, depois que todo
mundo voltou oficialmente do feriado. — Deu de ombros, bebendo um gole
do seu café. — Já foi até para o Twitter, o tweet que vazou tem mais de cem
mil curtidas. É uma merda. Principalmente, para a mulher envolvida…
porque é só dela que estão falando.
Senti um aperto incômodo no peito e Renato me pegou pelos ombros,
virando para que ficasse de frente para ele e me olhou, preocupado.
A diferença era que ele temia que eu sofresse um AVC, já eu…
— Quem é a mulher? — perguntei, temendo a resposta.
— Olívia Montenegro.
Meu estômago afundou e me afastei de Renato como se o toque dele
me queimasse.
Busquei pelo celular dentro da minha bolsa e entrei no aplicativo de
mensagens. A primeira conversa que encontrei era de Bianca, não era o
vídeo em si, mas um print de quando a bomba estourou e começou a ganhar
proporções estratosféricas.
Entrei em um grupo qualquer e senti o estômago embrulhar ao ler
algumas mensagens que estavam sendo enviadas, todos estavam tirando
sarro da situação, os culpando por terem sido expostos… e principalmente,
caindo matando em cima da Olívia.
Número desconhecido:
Agora sabemos como ela virou sócia kkkkkk
Número desconhecido:
É isso o que eu chamo de dar duro por uma promoção
Número desconhecido:
Adoro aplicações em fundos de investimentos, também queria estar
investindo nos fundos dela HAHAHAA
Número desconhecido:
Aplicou no fundo. Esse investiu pesado.
Número desconhecido:
E dizem que a galera do mercado não gosta de investir na
poupança…
E uma mensagem mais asquerosa do que a outra.
Todas voltadas para Olívia, como se ela fosse a única pessoa no vídeo
e Mário Rubens, CEO da gestora, não estivesse envolvido naquela merda
também. O pior de tudo, era que o vídeo havia sido filmado no escritório
deles. Como todas as salas eram fechadas por vidros, era possível ver
absolutamente tudo.
Senti-me tão nauseada e desconectada da realidade, que mal consegui
escutar o que Gabriel estava falando com Renato. Mas quando a mão do
meu chefe veio em minha direção, instintivamente, desviei do contato.
— Eu… preciso sair por algumas horas… — balbuciei, chamando por
um táxi, vendo no aplicativo que ele chegaria em cinco minutos.
— Nathalia, você está bem? — perguntou Renato, mas foi a pergunta
de Gabriel que me atentei.
— Ela é sua amiga, né?
Assenti, olhando para Renato e vendo o seu cenho se franzir em
preocupação, mas a única coisa que me passava pela cabeça era a Olívia.
Nós começamos a trabalhar na RCI ao mesmo tempo, ela era estagiária do
Frederico e dentre todas as pessoas que estavam aqui, era a que mais
entendia o que eu passava.
Senti-me a pior pessoa do mundo por não ter estado ao seu lado
quando aquela merda explodiu, principalmente, porque antes de ter Bianca
comigo no escritório, foi Olívia quem me apoiou em cada coisa que me
aconteceu.
Olívia saiu do escritório um pouco antes da fusão começar a ser
negociada, Roberta e ela viviam se estranhando e, por causa disso, Liv
acabou aceitando a proposta feita pela gestora de Rubens.
Ela acreditava que alavancaria a sua carreira lá.
Nauseada, saí do escritório sem olhar para trás e ignorando o
chamado de Renato.
Minutos depois, estava em frente ao prédio no Jardins e o porteiro,
que me conhecia de todas as noites regadas a vinho e reclamações sobre
nossas rotinas exaustivas, liberou minha entrada sem precisar anunciar ou
pedir por permissão.
No elevador, avisei Bianca que daria notícias sobre o estado de Olívia
e ignorei as mensagens de Renato, não estava com cabeça para conversar
com ele.
Desliguei o celular para que as mensagens parassem de chegar e eu
pudesse me concentrar na minha amiga. Longos minutos depois de tocar a
campainha, a porta foi aberta por uma Olívia destruída.
Os olhos verdes estavam inchados, vermelhos e com olheiras
profundas. O cabelo loiro, que sempre estava impecavelmente escovado,
não via um pente há dias, e quando o seu olhar encontrou com o meu, o
choro descontrolado a invadiu e apenas tive tempo de ampará-la nos meus
braços, sentindo-me responsável por aquilo estar acontecendo com ela.
— Amiga, eu só fiquei sabendo agora — falei, sentindo minha
própria voz falhar ao apertar seu corpo contra o meu, tentando, de alguma
maneira, cessar a dor que ela estava sentindo. — Por que não me ligou?
Olívia não conseguiu me responder, os soluços que escaparam do
fundo da sua garganta denunciavam que eu era a primeira pessoa em dias
que se preocupava com ela, e aquilo me partiu o coração de inúmeras
formas.
Era minha culpa que estivesse naquela situação.
Eu poderia ter comprado briga com Roberta para que ela ficasse na
firma e ganhasse a promoção que merecia. Se tivesse insistido mais,
ameaçado a minha permanência no escritório em troca daquilo, talvez,
Olívia não estivesse sendo exposta e ridicularizada para todo mundo.
Com cuidado, me afastei dela e busquei o seu rosto, notando que
estava um caco.
— Por que não me ligou, Liv?
Ela soluçou, enxugando as lágrimas.
— Você me disse que isso aconteceria — falou, em meio aos soluços.
— Eu fui teimosa, achei que comigo seria diferente e que se tomasse
cuidado o suficiente, não aconteceria…, mas agora…
Meu estômago afundou e senti como se ela tivesse me dado um tapa
bem no meio da cara.
Deixe que ela saiba o quanto você é hipócrita!
Aquela voz irritante na minha cabeça gritou, trazendo à tona a nossa
conversa de meses atrás, quando nos sentamos na minha sala de estar, e
Olívia me contou que estava interessada em Mário. Meu instinto de
proteção berrou na época, acendendo inúmeros alertas vermelhos e tentei,
por duas horas, aconselhá-la que não deveria sucumbir ao que estava
sentindo porque a história era sempre a mesma.
Depois daquele discurso gigante, era óbvio que Olívia não me
contaria que havia cedido e que estava transando com o seu chefe.
Ela sabia que eu não concordaria, que a lembraria de tudo o que
poderia acontecer de errado se mais alguém soubesse daquilo.
E tudo para o quê?
Eu estava fazendo a mesma coisa.
O prêmio de pessoa mais hipócrita do mundo seria meu.
Engoli em seco, sem saber como explicar para ela que não deveria se
culpar por ter cedido, eu a entendia completamente e nunca a julgaria por
aquilo. Mas não fui capaz de dizer nada porque o meu cérebro decidiu que
era um bom momento para me colocar em praça pública e me queimar
pelos meus erros.
Atordoada, mal tive tempo de pensar direito no que estava fazendo.
De forma mecânica, deixei a bolsa em um ponto qualquer da sua sala de
estar e a levei para o chuveiro. Fiquei ao seu lado na banheira, envolvendo
seus ombros em um abraço, afagando seus cabelos enquanto ela chorava
copiosamente… e eu tentava encontrar as palavras certas para amenizar o
que ela estava sentindo.
Mas não existia nada.
Não era apenas a sua carreira que havia sido arruinada com aquele
vídeo, aquilo era o que menos importava. Sua privacidade havia sido
invadida e ela tinha sido exposta para que centenas de pessoas rissem dela,
para que deduzissem o pior.
Conhecia Olívia o suficiente para saber que ela tinha lido cada
mensagem, cada comentário nos perfis do Instagram e Twitter, pois seu
nome estava circulando em todas as redes sociais. Ela seria o assunto
principal do mercado financeiro nos próximos dias, pois, além de ter tido
um vídeo vazado, sua mãe era juíza do Supremo Tribunal Federal.
— Liv… — chamei, sentindo a voz embargar quando meus olhos
pousaram na lixeira ao lado da sua escrivaninha.
Subi para o espelho, encontrando a sua atenção em mim e senti a
minha respiração falhar ao identificar as cartelas vazias de antidepressivos.
Afastei-me, vasculhando as gavetas e encontrando a receita mais recente.
— Quantos comprimidos você tomou?
— Quatro.
— Olívia! — repreendi, involuntariamente. Sentindo o desespero me
atingir como um tsunami destruidor. — Quando?
— Na terça-feira… já passou, eu só… queria fazer tudo parar por
alguns minutos… — e voltou a soluçar, escondendo o rosto em suas mãos.
Não soube o que dizer para ela, porque não existia nada que pudesse
falar que faria aquilo passar.
Brigar com Olívia não adiantaria de porra nenhuma, apenas a faria se
sentir pior.
Engoli minhas lágrimas, dando o meu melhor para tentar fazer com
que ela comesse algo e odiando cada pessoa que estava se dedicando a
reduzi-la a um vídeo de quarenta minutos.
E, principalmente, me odiando.
Era minha culpa.
Não a alertei o suficiente.
Não lutei pela permanência dela no escritório.
Fiquei tão presa nos meus objetivos que esqueci de falar com ela
sobre como andavam as coisas. Se eu tivesse feito, teria percebido que algo
estava acontecendo.
Estava tão imersa na bolha com Renato durante o feriado que não
verifiquei o celular a tempo de o pandemônio começar. Eu poderia ter
evitado que tudo desandasse se tivesse agido antes.
— O Mário…? — investiguei, receosa, mas aliviada depois de ter
conseguido fazê-la tomar uma sopa.
Olívia riu, sombria.
— O filho da puta viu que estávamos sendo filmados — disse,
raivosa. — Durante a gravação, ele olhou diretamente para onde o celular
estava e não me disse nada, ao contrário, me expôs ainda mais.
O choro retornou e ela se afundou no sofá, soluçando.
— Por que eu não escutei você? — perguntou a si mesma. — Você
me disse que eles eram todos iguais, que não importava o que dissessem,
eles sempre dariam um jeito de sair por cima daquela situação. — Raiva
tomou a sua voz e ela enxugou as lágrimas, as mãos trêmulas pairando sob
o rosto. — E sabe quem foi demitida? Eu! E ele? Estão pouco se fodendo
para ele. Mas eu fui demitida por constranger a imagem do escritório, e
ainda vou ser processada. Como se eu estivesse fazendo sexo sozinha,
Nathalia!
Não sabia o que dizer para ela.
Aquilo era injusto de tantas formas.
— Diz alguma coisa — pediu Olívia, a visão embaçada pelas
lágrimas que tentava segurar. — Pode dizer que me avisou, que estava certa
desde o início.
Culpa pungiu nas minhas veias com tanta violência que senti as
lágrimas rolarem pelas bochechas sem permissão.
Como julgaria Olívia se estava fazendo o mesmo?
Como explicaria para ela que o único motivo para não ter vindo vê-la
na hora que as mensagens começaram, era porque estava transando com o
meu chefe na cozinha do apartamento dele?
Como teria coragem de falar que tinha sido tão hipócrita, que quase
transei com ele no escritório, e que se Frederico não tivesse entrado na sala,
eu provavelmente estaria na mesma posição que ela?
A vergonha me atingiu de tantas formas que me calei.
Não existia nada que dissesse para ela, que não servisse para mim.
— Liv… — solucei, angustiada e cheia de remorso.
— Ele disse que estava apaixonado por mim — assoprou, tão baixo
que quase não pude a ouvir —, que não permitiria que nada disso
acontecesse comigo e que ia me proteger. E ontem, quando cheguei no
apartamento dele, desesperada para que me ajudasse a encontrar uma forma
de resolver isso… ele estava rindo de mim com os outros sócios. Contando
com detalhes em quantas posições me comeu.
Encolhi-me, calada.
— Sinto muito, Liv. — Enxuguei as lágrimas, sentindo meu peito ser
massacrado quando o seu olhar veio em minha direção.
— Você nunca passaria por isso. — Apertou minha mão, engolindo o
choro. — Eu deveria ter escutado o seu conselho. Porque agora a minha
carreira foi para o lixo, ninguém vai me contratar mais… e meus pais?
Deus! Eles vão me matar.
Outro tapa mental me atingiu, aumentando o nó que se enrolava na
minha garganta.
— Vou dar um jeito nisso, tudo bem? — Prometi, puxando-a para
perto e Olívia deitou a cabeça no meu ombro, voltando a chorar. — Juro
que vou dar um jeito de acertar as coisas.
Liv assentiu, confiando em mim.
Meus olhos subiram para o espelho em frente ao sofá, encarando meu
reflexo e me senti horrível. Consegui enxergar placas luminosas apontando
para mim, sinalizando o quanto eu era mentirosa.
Por que não tive coragem de contar para ela que não deveria me
tomar como exemplo?
Eu tinha caído naquela conversa também, deixei que a lábia do meu
chefe me levasse para o ponto em que me fez abdicar da minha única regra.
Cantei para os quatro cantos do mundo que não seria colocada
naquela posição, e era justamente nela que me encontrava.
Engoli em seco, desviando meu olhar para o chão, enojada de mim
mesma.
Hipócrita. Hipócrita. Hipócrita. Hipócrita.
Era tudo o que minha mente gritava.
Uma puta hipócrita do caralho, era isso o que eu era.
Antes de deixar Olívia sozinha com a sua irmã, que havia acabado de
chegar na cidade para levá-la para a casa da família em Belo Horizonte,
garanti que resolveria aquilo por ela e cumpriria a minha palavra.
Minha mente estava confusa, eu me sentia entorpecida após passar o
dia inteiro com minha amiga, e não tive energia para ir ao hospital falar
com Bianca. Sabia que ela seria mais uma pessoa que me lembraria de
como estava sendo uma amiga egoísta nos últimos dias, pensando apenas
em mim.
O homem loiro, alto, musculoso e simpático me olhava com
inquietação explícita nos olhos, quando as portas do elevador se abriram e
saí de dentro da caixa de aço, tendo o corpo envolvido por seu abraço
apertado.
— Gatinha… o que aconteceu?
Havia pedido para que Marc me encontrasse na entrada da firma de
advocacia que ele era dono. Não estava com muito tempo e precisava
explicar rapidamente o motivo de estar contratando seus serviços. Mas, de
toda forma, o seu abraço e carinho foram bem-vindos, ainda que me
sentisse anestesiada.
— Preciso dos seus serviços para um assunto em particular —
balbuciei, dando um passo para trás para escapar do seu abraço de urso e ele
meneou a cabeça, preocupado.
— Isso tem alguma coisa a ver com Olívia Montenegro? — indagou,
complacente. Franzi o cenho, confusa. — Renato me ligou, pediu para que
eu fizesse algo para remover o vídeo.
Aquilo me pegou de surpresa e foi o suficiente para me tirar do
torpor.
— Ele… por que ele fez isso?
Marc me olhou como se a resposta fosse óbvia, e era. O que tornava
tudo ainda pior. Renato havia se movimentado porque soube que Olívia era
minha amiga, e aquela constatação fez com que a minha visão embaçasse
novamente por causa das lágrimas.
— Uma notificação judicial já foi emitida, tanto para o Mário quanto
para os responsáveis pelo compartilhamento do vídeo… preciso do contato
da Olívia para entrarmos com um processo e…
Precisei interromper, estendendo o envelope que estava em minhas
mãos. Era uma carta assinada por Olívia, reconhecida em cartório, me
indicando como sua procuradora naquele caso. Ela se afastaria da cidade
por tempo indeterminado, mas eu estaria aqui, cuidando dos seus interesses.
— Isso é o suficiente para abrirmos o processo, meus associados
podem trabalhar nisso e amanhã mesmo emitimos…
— Não quero apenas processar — falei, firme. — Quero a cabeça do
Mário e que ele seja desligado da gestora. — Marc franziu o cenho e abriu a
boca para responder, mas não dei tempo.
O filho da puta havia publicado um comunicado naquela tarde
jogando toda a responsabilidade para Olívia, a culpando por tê-lo seduzido
e feito com que traísse a esposa — que minha amiga sequer sabia que ele
tinha.
Como se ela fosse a única responsável por toda aquela merda.
— Sei que ele é o CEO e que o escritório leva o nome dele, mas os
sócios terão que decidir se desejam salvá-lo ou manter a gestora
funcionando, porque quero eu quero cada centavo em suas contas — disse,
baixo.
Marc era conhecido por ser um excelente negociador, o melhor do
país. E se gabava constantemente por aquilo, era a sua chance de mostrar
que realmente fazia jus à fama que tinha pelo complexo.
— Sei que está com raiva, mas… tem certeza disso? Olívia arrumar
uma briga desse porte só vai prejudicar ainda mais a carreira dela — disse,
cauteloso.
Isso não importava.
Eu tinha conversado com o Mauricio, um headhunter renomado no
mercado, durante todo o percurso de volta para o escritório. Ele deixou
claro que nenhum escritório na cidade iria querer se associar a Olívia tão
cedo, e o comunicado que Mário soltou no site da gestora piorou a imagem
dela. Se era assim que o filho da puta agiria, eu poderia jogar aquele jogo
também.
Uma maldita carreira pela outra, se ela ficaria na merda, ele iria junto.
— Só consiga isso — pedi, irredutível. — E quero um comunicado à
imprensa idêntico ao que fizeram sobre ela, para anunciar a saída dele.
Marc soltou um suspiro, concordando.
— Como quiser, gatinha.
Acenei, agradecida.
Chamei pelo elevador que não demorou a chegar e me despedi
rapidamente de Marc, que me garantiu que conseguiria o que pedi.
Busquei pelo celular, vendo as chamadas perdidas de Renato e as
mensagens sem responder e permaneci o ignorando, eu sabia que ele estava
no escritório e era a minha próxima parada.
Mas antes, eu precisava passar em outro lugar e quando as portas se
abriram diretamente para a sala de espera de Pietro Belchior, fui
recepcionada pela ruiva esbelta que sorriu abertamente.
— Srta. Gama! — saudou, educada. — O Sr. Belchior está te
aguardando na sala dele.
Aquiesci, agradecendo e caminhando em passos firmes em direção à
sala que eu conhecia perfeitamente. Havia estado ali mais vezes do que
podia contar durante seis longos meses de um relacionamento casual que
tivemos, por pura diversão.
Não precisei bater e entrei de uma vez, afinal, ele estava me
esperando. Eu tinha avisado que viria e não duvidava que a sua secretaria
estivesse interfonando para ele naquele exato segundo para avisar eu havia
chegado.
Com um sorriso charmoso, Pietro Belchior me recepcionou e se
levantou de sua cadeira, caminhando ao meu encontro com os braços
abertos.
— Faz tanto tempo que não te vejo, que estou começando a cogitar
que mudou de escritório e esqueceu de me avisar, Nathalia — falou,
deixando um beijo no meu rosto e se afastou, convidando para que eu me
sentasse no sofá de couro preto. — Vinho ou uísque?
— Uísque.
Ele acenou, servindo uma dose caprichada e me entregou. Não
esperei pelo brinde que ofereceu, não havia nada bom para brindarmos e
não pretendia me alongar aqui.
O uísque era para a conversa que eu teria quando fosse para a RCI.
— Do que precisa? — perguntou, sentando-se ao meu lado com um
vinco na testa e virei o corpo, ficando de frente para ele.
— Você me deve.
Pietro sorriu, jocoso.
— Então, finalmente chegou o dia… — comentou, divertido. —
Admito que estava curioso para saber quando isso aconteceria… não fico
confortável com a ideia de estar em débito com você.
Revirei os olhos, ignorando o seu olhar arrogante.
Pietro tinha disputado a presidência da holding da sua família com
um primo, que retornou de uma longa temporada em Dubai apenas para
assumir os negócios.
Como o avô de Pietro era um dos meus primeiros clientes, ele
confiava no meu julgamento. E com os contatos certos, eu consegui reunir
material suficiente para Pietro provar ao avô e o conselho quem realmente
merecia o controle do império.
Eu não me importava com qual deles ficaria no comando, mas Pietro
conseguiu a minha simpatia e, em troca de me dever um favor, não foi um
sacrifício cruzar algumas linhas para ajudá-lo.
— O que você precisa?
— Quero a MR Investimentos fora daqui — anunciei, vendo-o franzir
o cenho, perdido. — E quando digo isso, estou me referindo a todos os
complexos que você administra e tem influência.
Os edifícios comerciais mais disputados na cidade eram as torres de
Pietro Belchior. Foram anos de dedicação de sua família para construir os
complexos corporativos mais exclusivos do país. Qualquer empresa que
desejasse transmitir uma imagem de prestígio e sucesso teria seu escritório
em um dos andares administrados por Pietro na cidade. Além disso, ele
exercia grande influência no ramo. Se Belchior decidisse banir a gestora da
cidade, nenhum edifício respeitado aceitaria alugar um espaço para eles.
— Quer que eu despeje um dos meus clientes mais antigos? —
indagou, como se estivesse esperando que eu dissesse que era apenas uma
brincadeira. — Isso tem alguma coisa a ver com a situação com a Olívia?
— Tudo a ver com ela.
— Nathalia, querida… — murmurou, mas o interrompi.
— Pietro, eu contratei o Marc Menezes para arrancar cada mísero
centavo que aquele lugar tiver na conta bancária, e você conhece o histórico
dele — falei, pegando a minha bolsa e deixando o copo vazio em cima da
mesa de centro. — Aproveite para sair lucrando, tenho certeza de que essa
merda fere alguma cláusula do contrato de locação.
Pietro meneou a cabeça, confirmando. Era claro que eu tinha
conhecimento da existência dela, porque estava no nosso contrato de
locação. Qualquer coisa que o escritório fizesse que pudesse manchar a
imagem do complexo, acarretaria na quebra de contrato.
Acompanhei o homem de pele marrom-clara passar a mão pelo
cabelo curto, ponderando sobre o que faria e trouxe os olhos para mim, que
aguardava a sua confirmação.
— Se eu fizer isso, estamos quites? De tudo?
Sorri, confirmando.
— Considere-se uma pessoa com uma ficha limpa.
Belchior respirou fundo, bebendo o restante do líquido âmbar em seu
copo e o abandonou na mesa. Ele se levantou calmamente, estendendo a
mão na minha direção e disse por fim:
— Como quiser, boneca.
Joguei o meu corpo no sofá da minha sala e fechei os olhos,
ignorando o celular que não parava de tocar e inspirei lentamente,
obrigando o oxigênio a alcançar os meus pulmões e torcendo para que
aquilo fosse o suficiente para me livrar da aflição que queimava meu peito.
Não funcionou.
Duas doses de vodca com gelo e aquilo ainda me incomodava.
E continuaria por muito tempo.
Engoli em seco, mirando o copo vazio por um longo tempo, sem
conseguir chegar em conclusão alguma para a minha situação. Ao menos,
não uma que tornasse tudo um pouco menos complicado.
Senti-me pesada e cansada mentalmente.
Passar a tarde inteira escutando Olívia se martirizando por ter sido
ingênua, me atingiu.
Não deveria, mas perdi a conta de quantas vezes enquanto contava
sobre os últimos meses naquele caso com Mário, eu me vi nela.
Era tão… deprimente.
Olívia tinha se esforçado tanto para conseguir a sociedade, era tão
dedicada e inteligente, e agora seria reduzida a um erro, um mero momento
de fraqueza arruinaria todos os seus planos.
Fitei o meu celular, vendo a resposta de Augusto, CEO da Fly
Investimentos, e senti os meus olhos arderem ao ler sua mensagem.
Augusto Ricci:
Nath, sinto muito pela Olívia, mas é uma situação complicada. Você
entende melhor do que ninguém que meus sócios nunca aceitariam que a
contratasse depois disso. O currículo dela é, de fato, extraordinário. Mas
por pior que soe, isso se trata muito mais sobre a imagem dela do que sobre
as aptidões.
Não me dignei a responder, voltei para a tela inicial e encontrei a
resposta de Gaspar Mancini, COO da BP Investimentos:
Gaspar Mancini:
Sinto muito, Nath. Mas não posso colocar o meu na reta por causa da
Olívia. Bruno nunca aprovaria a contratação dela, principalmente porque
só se fala disso essa semana e ele acabou de comprar com uma gestora em
NY. Ele não vai querer arriscar perder o holofote pra isso.
Desci para outros três contatos meus, pessoas que eram influentes e
trabalhavam nas maiores corretoras e gestoras do país… e nenhum
considerou sequer pensar em dar uma chance para Olívia. Porque a merda
da reputação era a única coisa que importava e aquele vídeo tinha acabado
com a dela.
Senti um bolo na garganta e bloqueei a tela do celular, piscando para
espantar as lágrimas, mas aquilo fez com que elas rolassem pelas minhas
bochechas e desencadeassem o choro que estava tentando conter desde que
saí do apartamento de Olívia.
Nervosa, levantei-me e enviei uma mensagem para o Caique,
avisando que desceria em dez minutos, ele estava me esperando no
estacionamento desde que me buscou na casa da minha amiga. Respondi a
mensagem do meu pai, prometendo que conversaríamos assim que eu
chegasse em casa.
Com um peso nas costas que demoraria muito tempo para passar,
forcei meus pés a se moverem e me levarem para fora da sala.
Inspirei o ar, buscando por equilíbrio e enxuguei as lágrimas que
ainda rolavam sem a minha permissão. Nunca imaginei que bater em uma
porta pudesse me causar tamanha aflição, quanto a que estava sentindo ao
obrigar o meu punho a tocar na madeira escura.
A autorização para entrar demorou alguns segundos, mas quando
soou, senti o corpo travar no lugar. Cinco segundos atrás, estava decidida de
que era o certo a se fazer, mas não me sentia mais tão confiante de que
aquela era a escolha que eu queria fazer.
Não é a que você quer, mas é a que precisa.
Minha consciência se manifestou, empurrando para que eu me
lembrasse de como tinha me dedicado intensamente nos últimos anos para
que as pessoas me respeitassem pela profissional que eu era.
Não podia colocar tudo aquilo a perder.
Meu maior erro havia sido deixar que aquele feriado me fizesse
cogitar que estaria isenta de passar por aquilo.
Foi burrice da minha parte.
Olívia tinha pensado o mesmo que eu, que se tomasse cuidado o
suficiente, não estaria naquela posição e por mais egoísta que fosse, eu
tomaria aquilo como um sinal do Universo para mim.
Eu estava completamente errada.
Aquilo não valia o risco.
Não valia a pena colocar tudo a perder por causa de um caso de
Carnaval.
Minha demora fez com que a porta fosse aberta e a minha visão
embaçada foi coberta por Renato. Em um instante, eu estava parada em
frente à sua porta pronta para explicar todos os motivos que me fizeram
tomar aquela decisão, e no seguinte, estava sendo levada para os seus
braços e chorando mais do que nunca.
Era egoísmo da minha parte me sentir tão mal por algo que sequer
havia acontecido comigo? Talvez. Mas Olívia era minha amiga, nós éramos
tão parecidas em tantas coisas que ver o que aconteceu com ela, tinha sido
como ser colocada diante de um espelho que refletiu o meu futuro.
O que me garantia que, em algumas semanas ou meses, não seria eu
naquela posição?
E no meu caso seria infinitamente pior, porque não seria a única
prejudicada. Todos lembrariam de quem eu era filha, e meu pai seria
igualmente ridicularizado.
Arruinaria a minha reputação e a dele no processo.
E tudo por quê?
Por que fui estúpida ao ponto de me apaixonar por Renato?
Valia mesmo a pena arriscar tudo que o meu pai passou a vida inteira
construindo, por causa dele?
O choro descontrolado que escapou do fundo do meu peito estava
carregado de tantos sentimentos, que apenas naquele momento me dei conta
do quanto estava cansada daquela situação de merda. Para cada dez degraus
que subisse, bastaria um deslize… uma situação boba… e me empurrariam
para o fim da escada.
Não importava o quanto eu tentasse, o quanto me esforçasse, nunca
seria o suficiente.
— Anjo, fale comigo — pediu Renato, dolorido.
Suas mãos capturaram meu rosto e tive um vislumbre do seu
semblante aflito. Aquilo era um milhão de vezes pior.
— Nathalia…
Balancei a cabeça, usando uma mão para afastá-lo e pisquei, tentando
espantar as lágrimas que me impediam de vê-lo com nitidez. Minha cabeça
estava doendo, mas não machucava mais do que a dor que se espalhava
pelo meu corpo.
Eu estava me sentindo impotente.
Não adiantava de nada querer uma coisa, se para isso eu teria que
sacrificar várias outras.
Por que eu pensei que aguentaria as consequências?
— Eu falo primeiro — pedi, erguendo o queixo para mirar seu rosto.
Pela primeira vez, Renato demonstrou perturbação. Aquele olhar
indecifrável havia sido deixado de lado e ele parecia tão angustiado quanto
eu com toda aquela situação.
Renato me conhecia, eu não saberia explicar como conseguimos
entender tanto um ao outro em tão pouco tempo, mas ele conseguia me ler
sem que precisasse colocar as palavras em voz alta.
— Pensei muito sobre o que aconteceu hoje — murmurei, tentando
lidar com a angústia que apenas crescia. — E sobre como esse tipo de
situação acontece com tanta frequência… que só me dei conta do erro que
estava cometendo porque aconteceu com alguém que eu me importo.
Ele esperou pacientemente para que eu dissesse o que queria.
— Olívia disse que achou que nunca aconteceria com ela… que
tomou todos os cuidados do mundo para que ninguém soubesse. E ainda
assim, passei as últimas horas escutando todas as pessoas que conheço, me
falarem que a carreira dela foi arruinada por causa de um erro. — Engoli
em seco, sentindo a visão embaçar novamente. — Ela se esforçou tanto
para conseguir aquele cargo, para chegar onde chegou… e por causa de uma
noite em que se descuidou, tudo o que construiu… desmoronou.
Renato tinha os olhos cravados em mim, atento a cada palavra que
saía dos meus lábios.
— Ver o que ela passou, me fez perceber que eu estava cometendo o
mesmo erro — falei, deslizando a mão pelas bochechas para secar as
lágrimas. — Eu pensei que dava conta e que se tomasse cuidado… esse tipo
de situação não aconteceria, e por isso, me deixei envolver e fiz besteira.
Mas sabe o que é pior? — indaguei, retórica. — Olívia olhou para mim e
disse que deveria ter me escutado… que a alertei do que aconteceria. E tudo
o que eu conseguia pensar era no quanto eu sou uma hipócrita.
Ele se aproximou, meticulosamente.
— Olívia estava aqui quando entrei no escritório, ela era a única
pessoa que entendia a merda que era estar na minha pele… a única que
entendia que qualquer erro que cometesse seria usado para me lembrar que
aqui não é o meu lugar. — Solucei, exausta. — E ver ela daquele jeito, foi…
como ter um vislumbre do meu futuro.
Renato enrijeceu os ombros, olhando-me firme.
— Eu nunca permitiria que isso acontecesse.
Sorri, entristecida.
— Acredito em você, Renato — assegurei, sincera.
Por mais estúpido que pudesse ser, colocaria a mão no fogo pela
certeza de que ele nunca permitiria que algo assim acontecesse comigo. Eu
acreditava piamente em sua palavra, porque Renato demonstrava, em cada
mínima atitude, o quanto se preocupava comigo.
— Mas… isso não é uma coisa que você pode controlar — continuei,
rouca. — Hoje, quase transamos no estacionamento do prédio. Correndo o
risco de qualquer um nos encontrar e filmar. Ontem… quase fomos
flagrados pelo Fred, e tenho que dar graças a Deus que foi ele, não a
Roberta ou qualquer outro sócio.
Renato engoliu as palavras, dando um passo em minha direção, e eu
precisei dar dois para trás. Tê-lo por perto me deixava zonza, embriagada e
intoxicada. Me fazia esquecer das minhas inseguranças, do mundo em que
estávamos inseridos e de como estávamos dando combustível para uma
bomba que explodiria e acabaria nos arruinando… ou melhor, me
arruinando.
Era melhor dar um fim para aquilo enquanto era cedo e tínhamos
chance de controlar os riscos, antes que alguém acabasse se machucando
feio.
E, por mais que tentasse muito, sabia que a maior afetada naquela
explosão seria eu. Assim como todas as outras que estiveram em posições
semelhantes no passado. Olívia era apenas mais uma que perdeu tudo por
fazer a escolha errada… eu não podia permitir que fosse a próxima.
— Nathalia…
— Não posso correr o risco de deixar isso acontecer comigo, Renato.
— Não vai acontecer.
— Eu sei — murmurei, melancólica. — Porque isso… — apontei
para nós dois —, precisa acabar enquanto ainda é tempo.
Renato deu mais um passo, tentando se aproximar e minhas costas
tocaram a porta, sem saída, acuada. E isso o fez parar no lugar.
— Nathalia, por favor, vamos conversar como dois adultos… — ele
praticamente suplicou.
Respirei fundo, engolindo o nó que estava me sufocando e tentei
conter as lágrimas que rolavam contra a minha vontade.
— Não temos nada para conversar. — Endireitei os ombros, olhandoo de relance. — Acredite em mim, é o melhor para os dois.
Nunca pensei que ficaria tão mal por voltar para casa.
Mas naquela madrugada, quando o helicóptero me buscou no
aeroporto de Medellín e pousou no heliponto da fazenda dos meus avós, eu
estava arrasada.
Passava de 03h00 da madrugada quando localizei o homem mais
incrível do mundo parado a poucos passos de distância, e o soluço preso na
garganta ameaçou escapar, trazendo as lágrimas que eu estava segurando
desde que deixei o escritório.
Como se soubesse que havia um problema, Miguel não esperou que
as hélices parassem completamente antes de abrir a porta e me arrastar para
os seus braços.
— Minha menina — confortou, terno e protetor, esmagando-me no
seu abraço de urso, pronto para cometer um crime em minha defesa. — O
que houve?
Não soube por onde começar a explicar minha situação para o meu
pai e, como sempre, ele soube que eu precisava de alguns minutos antes de
começar a descarregar tudo em cima dele.
Quando liguei, pouco depois de sair do apartamento de Olívia, e pedi
para que mandasse um avião me buscar, Miguel soube imediatamente que
alguma coisa havia acontecido.
Durante toda a minha vida, houve apenas duas ocasiões em que fiz
uma viagem emergencial para a fazenda no meio da madrugada. A primeira
foi quando meu avô foi levado às pressas para o pronto-socorro após sofrer
uma parada cardíaca. Eu tinha dezesseis anos e estava sozinha em Boston,
passando as férias com minha mãe. A segunda ocasião ocorreu quando eu
tinha dezoito anos. Acabara de conhecer Bianca e precisava levá-la a um
lugar onde pudesse se recuperar de tudo que havia passado.
Por isso, quando liguei mais cedo e implorei para que conseguisse um
vôo urgente, sem qualquer explicação, sabia que o deixei pensando no pior.
Contudo, conforme atravessávamos o jardim e caminhávamos para a
casa principal, a única coisa que meu pai fez foi retirar o seu casaco e jogar
por cima dos meus ombros para me proteger do vento gelado que
ricocheteava em nossa direção.
A fazenda ficava em um ponto alto de um arquipélago próximo da
costa de Medellín, escondida entre as montanhas e com uma vasta praia
privativa. Dali de cima, eu conseguia ouvir as ondas quebrando na orla.
Era por isso que amava tanto visitar esse lugar.
A fazenda era oposta ao restante da minha vida, e aqui ninguém
ligava se eu era a filha do Miguel Gama, e minha mente se desligava das
cobranças excessivas e pensamentos ruins. Ali, eu era apenas a “menina” do
meu pai ou a…
— Tita! — chamou meu avô, descendo os degraus com certa pressa e
me envolvendo em um abraço apertado.
Respirei fundo e segurei o oxigênio nos pulmões por breves minutos,
tentando controlar o choro que quase escapou novamente. Meu avô afagou
meu cabelo, apertando-me contra si. Senti a dor no peito aliviar um pouco,
enquanto era preenchida pelo conforto que apenas a minha família era
capaz de proporcionar.
— Oi, Tito! Como você está? — perguntei, afastando-me dele o
suficiente para olhar em seu rosto.
As marcas da idade avançada não impediam que Elias Gama sentisse
como se não tivesse envelhecido um único dia, e era bom ter seus olhos
amorosos cravados em mim, repletos do sentimento mais genuíno que
existia no mundo.
— Estou ótimo, estava com saudades…, mas fiquei preocupado com o
motivo que te trouxe, então… trate de entrar, tome um banho quente e me
encontre aqui fora para contar tudo — ordenou, como um general, soltandome para bater com a bengala na minha panturrilha. — Dale, Tita, dale!
Suspirei, olhando feio para o meu pai.
Devido ao horário não estava esperando encontrar com os meus avós.
Eles dormiam cedo; se levantam junto com o sol e costumam caminhar pela
propriedade antes dos funcionários começarem a trabalhar. Sequer fazia
sentido que estivesse acordado ainda, mas, obviamente, ele não iria deitar
sabendo que eu estava a caminho no meio da noite.
— Precisava contar para ele?
— Por acaso, cê tá foragida pra querer vir escondida no meio da
madrugada? — questionou Elias, enfezado.
Revirei os olhos, erguendo as mãos em rendição.
Era inútil discutir com ele.
O cheiro de grama molhada que preenchia o ambiente era
reconfortante, me lembrava das minhas férias na fazenda quando era mais
nova. Estar aqui me trazia nostalgia de quando as coisas eram um pouco
menos complicadas, e as inúmeras fotos da minha infância espalhada nas
paredes eram ótimos lembretes de que, quase toda a minha vida, estava
registrada nesse lugar.
Na segurança do meu quarto, distante dos dois homens que eram
capazes de matar o responsável pelas lágrimas que não paravam de turvar a
minha visão, permiti que a exaustão me consumisse.
Abandonei a bolsa em cima de uma poltrona, caminhei em direção ao
banheiro e sorri ao perceber que os dois babões deixaram a banheira pronta
para que eu tomasse um banho longo e relaxante.
Havia saído do escritório poucos segundos depois de falar com
Renato, ele não disse nada. Nenhuma única palavra. Era como se soubesse
que não adiantaria discutir comigo e odiei a parte de mim que desejou que
tivesse dito algo.
Quão contraditória eu conseguia ser?
Tinha entrado na sua sala disposta a terminar o que sequer começou,
e ainda esperava que ele tentasse me fazer mudar de ideia.
Odiei pensar que Pedro havia acertado no que disse sobre mim.
Quando as coisas apertaram, eu desisti.
Meu avô também estava certo sobre eu ter saído de São Paulo como
uma foragida. Do escritório direto para o aeroporto, e sem avisar ninguém
para onde estava indo. Nem mesmo para a Bianca.
Não fiz as malas porque não era necessário. Minha avó amava
abarrotar meu armário com peças que adquiria durante as suas viagens, e
como a fazenda era a minha segunda casa, tinha tudo o que precisava para
passar alguns dias ali.
Exausta, abandonei o celular no carregador, sem dar atenção para as
mensagens, e muito mais tranquila por ter saído de todos os grupos que
estavam comentando sobre o vídeo de Olívia, e me despi para entrar na
banheira.
Com muita dificuldade, tentei desligar a cabeça por alguns minutos
para que pudesse descansar, mas tudo o que pensava era sobre Olívia, o
vídeo, Renato… e os meninos.
Eles perguntariam de mim? Se sim, o que Renato diria? Que fiz com
eles o mesmo que a genitora?
Engoli o nó que voltou a incomodar minha garganta e mirei o teto,
tentando miseravelmente tirar os três da minha cabeça, mas era impossível.
Como eu me apeguei tão rápido?
Fechei os olhos, me concentrando em meditar e controlar os
pensamentos obsessivos que não me deixavam em paz desde aquela manhã.
Foi uma tentativa inútil, ainda me sentia culpada.
O remorso me consumiria por ter entrado na vida de Matheus e Igor,
e acabaria comigo todas às vezes em que esbarrasse com Renato no
escritório…
Meu Deus!
Como vou lidar com ele na segunda-feira?
Grunhi, farta de estar na minha própria cabeça.
— Alexa, toque uma música — pedi, escutando o sistema responder
prontamente ao meu pedido.
Minutos mais tarde, caminhei para fora do meu quarto com um
pijama de moletom e encontrei o meu avô e meu pai jogando pôquer na
varanda.
Sem pressa, aproximei-me deles e acompanhei a disputa entre os
dois. Não importava quantos anos se passassem, aquilo sempre acontecia, e
ambos madrugavam para descobrir quem sairia vencedor daquela partida.
Os olhos do meu pai vieram em minha direção e ele abriu espaço para
que me sentasse ao seu lado. Prontamente, Miguel jogou o braço sobre
meus ombros e deixou um beijo demorado em meu cabelo, colocando toda
a sua concentração em mim, após fazer a sua jogada.
— Quem o papai precisa mandar matar, e o quanto a pessoa tem que
sofrer, fadinha? — interrogou, baixinho, enquanto meu avô decidia se
aceitaria o seu blefe.
— Ninguém.
— Alguém te fez chorar.
Balancei a cabeça, sem saber como explicar para o meu pai a bagunça
em que me enfiei.
— É só um dia ruim — murmurei, torcendo para que aceitasse aquela
resposta.
Meu avô, no entanto, nunca teve ressalvas para falar as coisas que se
passavam na sua cabeça, sem qualquer filtro e, enquanto meu pai analisava
suas cartas para decidir se aumentaria a aposta; meu avô me examinou
como se fosse um enigma que estava muito perto de ser desvendado.
Para a minha desgraça, quando um sorrisinho faceiro tomou os seus
lábios, soube que ele tinha descoberto o que estava acontecendo.
— Quem é o macho que te fez chorar, Tita?
Meu pai parou o que fazia e, lentamente, virou o rosto na minha
direção.
— Macho?
— Vovô!
Meu avô revirou os olhos e abandonou as cartas na mesa, viradas
para cima e entregando o seu jogo. A partida não importava mais para ele,
apenas a possibilidade da sua única neta estar sofrendo por amor.
— Não é nada disso, sossega essa bunda, velho maluco — ordenei,
vendo que estava pronto para se levantar e ir buscar o bendito facão.
Elias sempre disse que no dia que eu chegasse sofrendo por um
homem, ele usaria o facão do meu bisavô para “capar” o responsável pelo
meu sofrimento.
— Tá de chororô por causa de quem, Tita? Fale logo, olha teu pai
ficando todo azuado das ideias! — Apontou para o homem ao meu lado e,
de fato, faltava muito pouco para Miguel ter um AVC.
— Não me diga que é aquele tal de Salazar — suplicou, massageando
as têmporas. — Pelo amor de Deus, filha…
Sua pergunta fez com que uma risada sincera me escapasse. Balancei
a cabeça em negação e trouxe uma almofada para o colo. Não havia
escapatória, conhecia os dois o suficiente para saber que não me deixariam
em paz enquanto não conseguissem uma resposta.
— Não… o Renato.
— O que tem dois filhos? — indagou meu avô, exclusivamente para
o meu pai, pegando-me desprevenida.
— Você falou dele para os meus avós?
Meu pai me fitou, inocente.
— Teu avô praticamente me coloca na cadeira elétrica para saber de
você todo dia — retrucou em sua defesa, mas não demorou a franzir o
cenho, preocupado. — O que ele fez?
— Nada — assegurei. — Eu que terminei com ele… não que
tivéssemos algo, mas acabei com tudo antes de virar uma avalanche de
problemas, sabe?
Os dois homens mais importantes da minha vida menearam a cabeça,
refletindo sobre o que havia dito.
Nunca escondi nada do meu pai, ele sempre cultivou entre nós um
canal aberto para que me sentisse confortável para conversar sobre qualquer
assunto. Era comum que nos sentássemos na varanda em plena madrugada,
e ele escutasse todos os meus problemas como se fosse um dos meus
melhores amigos. E meio que, no fim das contas, ele era.
Miguel sempre foi muito mais do que o homem que me criou.
Durante toda a minha vida, meu pai se dedicou para que eu tivesse tudo o
que precisava, se moldou para ser o que necessitei em cada fase; ao ponto
de que, quando eu queria chorar, bastava pegar o telefone e não importava
se era dia ou madrugada, se estava em Nova Iorque ou em Xangai; no meio
de um encontro amoroso ou de uma reunião com o presidente do FED[28]

meu pai me atenderia e mandaria o mundo à merda para me dedicar toda a
sua atenção.
Então, sabia que se contasse o que deixei acontecer entre mim e
Renato, não seria julgada.
Diziam que o amor incondicional era perigoso, porque ele submetia
as pessoas a aceitarem qualquer coisa, mas o meu pai não se importava com
isso.
Ele me amava incondicionalmente e não existia nada no mundo que
eu fizesse, que seria capaz de fazer com que ele deixasse de me ver como a
sua menina; a garotinha arteira e esperta que corria atrás dele para aonde
quer que fosse, e que participou de todas as reuniões mais importantes da
sua carreira, sentada ao seu lado e segurando o seu dedo indicador; porque
estava assustada demais com toda a pressão do mundo exterior nas costas,
mesmo que ainda fosse uma criança.
Sorri fraco, descendo os olhos para a sua mão e percebendo que
mesmo com 23 anos, eu ainda tinha aquele hábito. Meus dedos envolviam
seu indicador, segurando firmemente. Meu pai também notou e, em
resposta, deixou outro beijo na minha têmpora.
— Ah, Deus… — meu avô ciciou, dramático, apertando os dedos nas
têmporas e massageando a região, como se sentisse dor apenas por tentar
pensar no meu motivo. — O que o rapaz fez?
Eu conversava todos os dias com os meus pais e avós por telefone, e
eles sabiam cada coisa que se passava comigo. Não escondi deles que
estava me envolvendo com um cara, mas acabei deixando de compartilhar
que ele era o meu chefe. Acho que, no fundo, temia ser julgada por eles.
Todavia, os dois eram espertos e rapidamente associaram que Renato era o
cara que eu havia comentado.
— Ele não fez nada, vovô — expliquei, sincera. — Aconteceu uma
coisa… e meio que precisei fazer uma escolha.
E escolhi a minha carreira.
Elias meneou a cabeça, buscando a sua bengala e impulsionou o
corpo para cima, passando a mão livre pelo queixo e coçando a barba
grisalha.
— Vou dormir porque tô sentindo que essa história vai me deixar é
abobalhado das ideias — resmungou, estressado. — Converse com a tua
avó amanhã, ela é ótima com esses conselhos cheios de frescura do coração.
Sorri, concordando.
Meu pai se afastou por tempo o suficiente para acompanhar meu avô
até o quarto, e de onde eu estava, consegui escutar o velho rabugento
reclamando que o filho o tratava como se estivesse com os dias de vida
contados.
Meu avô se esquecia constantemente que tinha um marca-passo no
coração, e que por isso, deveria ter um pouco mais de cuidado com o que
fazia. Se entendesse que estava com 79 anos nas costas, não teria mandado
construírem uma tirolesa na cachoeira da fazenda, quebrado a perna na
descida que fez sem monitoramento, e, consequentemente, não usaria a
bengala que tanto odiava e que usava para descontar o seu mau humor na
gente.
Ri baixinho, acompanhando as reclamações incessantes até que
desaparecessem dentro da casa. Desviei os olhos para a imensidão escura à
minha frente, aproveitando da calmaria que finalmente me atingiu por
alguns minutos.
— Álcool ou chocolate quente? — perguntou Miguel, sentando-se ao
meu lado com duas canecas de porcelana fumegando em mãos.
Ele sabia qual seria a resposta e isso me fez sorrir, me ajustei no
estofado e deixei que nos cobrisse com a manta grossa de lã.
— Então, você estava… namorando? — O desgosto que acompanhou
sua pergunta nada tinha a ver com a pessoa, mas com a ideia em si.
As pessoas que não me conheciam e ainda assim acreditavam
piamente que eu era prepotente e mesquinha, compreenderiam de onde
vinha aquela minha personalidade, se conhecessem o meu pai. Para Miguel
Gama, não existia uma única pessoa no mundo que seria digna de mim, se
Frederico me via como um símbolo para admiração, meu pai me enxergava
como uma divindade intocável.
Era fofo e contribuiu para que eu me tornasse um pouco egocêntrica
em alguns momentos, principalmente quando precisava usar aquilo para me
defender de pré-julgamentos.
Volvi a atenção para ele, aceitando a bebida quente e soltei um
suspiro longo, afundando as costas entre as almofadas.
— Não era namoro — falei. Mas estava começando a se parecer com
um. — Era… não sei, sabe? Não dei tempo para descobrir o que seria.
Quem eu estava querendo enganar? Renato não usou a palavra em si,
mas deixou claro o que queria de mim. E, definitivamente, não era apenas
sexo casual.
Se a palavra namoro não escapou dos seus lábios, havia sido porque
em uma conversa com Leandro e Bianca, eu deixei claro o quanto odiava
aquele tipo de pedido. Era brega e me fazia sentir constrangida.
Miguel meneou a cabeça, os seus olhos correram pelo meu rosto,
buscando por algo que poderia estar deixando de fora naquela conversa.
— Isso tem a ver com a posição dele na firma?
— Também. Mas… hoje, quer dizer, ontem… — torci os lábios,
lembrando que estávamos no meio da madrugada —, descobri que Olívia
estava se envolvendo com o Mário Rubens, sabe?
Meu pai assentiu, reconhecendo de quem eu estava falando, e pelos
minutos seguintes, compartilhei com ele tudo o que havia acontecido com
Olívia e aquele desgraçado.
Apesar de sempre estar no Twitter, meu pai não costumava ficar de
olho nos debates da timeline. Ele fazia a sua contribuição, acompanhava a
discussão que causou e depois seguia com a vida. Então, não era estranho
que não soubesse sobre o assunto do momento.
— Suponho que se sentiu culpada por estar na mesma situação —
deduziu sabiamente, assim que terminei de explicar toda a história. Anuí,
chateada. — E essa cabecinha começou a projetar uma dúzia de cenários
em que tudo daria errado.
Sorri, sem me incomodar com o quanto soava previsível para o meu
pai. Ele me conhecia bem o suficiente para saber como a minha cabeça
funcionava, e para entender que quando aquilo caiu no meu colo, tudo
estava fadado a acabar de uma forma ou outra. Nada que Renato me
dissesse seria capaz de apaziguar a bagunça que aquela situação causou na
minha cabeça.
— Na verdade, foram duas dúzias — corrigi, estalando a língua,
tentando fazer graça com a minha desgraça. — E, em todas elas… eu me
ferrava.
Miguel balançou a cabeça, ponderando.
— O que precisa que eu faça? — perguntou, complacente. — Sobre a
situação com Olívia.
Era por isso que o amava tanto. Meu pai não perdia tempo remoendo
o problema, sempre estava disposto a me oferecer uma solução.
— Ela não vai conseguir trabalhar tão cedo em qualquer outra asset…
ninguém quer se associar a uma sócia que acabou de ser exposta em um
vídeo gravado dentro do escritório em que trabalhava. — Deitei a cabeça
em seu ombro, sentindo o afago dos seus dedos em meu cabelo.
— Quer que eu a contrate? — Foi direto ao assunto e acenei. — Não
acho que isso ajudaria muito, minha menina. Se a questão é a repercussão,
ela continuaria convivendo com outras pessoas que sabem o que aconteceu.
Escutar aquilo foi como se jogassem um balde de água fria em mim.
Afastei-me, sem acreditar que escutaria aquele mesmo discurso que
todos os outros me deram, vindo do meu próprio pai.
— Não estou dizendo que não vou contratar a garota, fadinha…
abaixe as facas. — Dispensou a minha irritação e senti os ombros
relaxarem. — Estou explicando que se a intenção dela for deixar isso para
trás e focar na carreira, no escritório de São Paulo não vai ser a melhor
opção. Posso fazer uma reunião com a equipe inteira para garantir que isso
não será um problema? Sim. Mas ela vai continuar lidando com outros
colegas que viram o vídeo, de outras gestoras ou corretoras. Não posso ter
uma manager que não pode sair do escritório e frequentar reuniões
externas. Ela consegue lidar com isso?
Senti o nó em minha garganta retornar, sabendo que a resposta era a
mesma que estava explícita para o meu pai.
Olívia não aceitaria, ela poderia até se esforçar para tentar, mas
dificilmente conseguiria suportar viver com aquilo nas costas. Ofereci de
falar com Renato e conseguir de volta o emprego dela na RCI, mas Olívia
deixou claro que não pisaria naquele complexo nunca mais. Mesmo que ela
superasse isso, as pessoas ainda fariam com que se sentisse a pior pessoa do
mundo por aquilo.
— Então… é isso? — soprei, aflita. — Não tem nada que a gente
possa fazer? Você não consegue garantir nenhum privilégio para ela?
Miguel franziu o cenho e soltou um suspiro, me dando um aceno
fraco.
— Converse com Olívia. Se for uma mudança que está disposta a
aceitar… basta que ela escolha em qual escritório quer trabalhar — disse,
acariciando a minha bochecha. — Se não gostar das opções disponíveis,
estamos negociando a abertura de outros três pontos de atuação… viajo para
Sydney na semana que vem para acertar os últimos detalhes, e Antônio está
em Auckland resolvendo as pendências da obra que vamos começar…
— Vai abrir um escritório em Sydney?
— Sim… deveria ter feito isso há dois anos, mas consegui segurar por
um tempo. De toda forma, essa semana Antônio passou a ser responsável
por toda a divisão na América do Norte e, estou estudando a possibilidade
de entregar Madrid e Munique aos cuidados dele também… — murmurou,
cansado. — E claro, torcendo para que a minha garotinha cumpra com seus
objetivos o quanto antes. Preciso da minha aposentadoria.
Sorri, sentindo seus lábios tocarem minha testa com carinho.
— Você não vai se aposentar, Miguel. É soldado de guerra, vai
abandonar o barco agora que o mundo está pegando fogo e a economia
global está colapsando? — perguntei, arqueando a sobrancelha.
— Sou a favor de sair enquanto estou ganhando… — piscou, esperto.
— Mas tudo bem, vou esperar o nosso acordo.
Suspirei, lembrando-me da conversa que tivemos dois anos atrás,
quando o informei que mudaria para São Paulo e trabalharia em um
escritório que estava falindo.
Meu pai era extremamente teimoso e não conseguia entender o
motivo por trás da minha decisão de sair de um império consolidado que
esperava que eu assumisse, para ir para um lugar recentemente
desmantelado e em decadência. Ele apelidou a RCI de “Titanic” e disse que
eu era como os violinistas que continuavam tocando enquanto o navio
afundava.
De qualquer maneira, ele entendeu o que eu estava enfrentando e
percebeu que não adiantaria entrar na Alpha e assumir um cargo que
ninguém jamais respeitaria. Eles continuariam acreditando que eu não
merecia aquela posição e que só havia conseguido por ser sua filha.
Meu pai confiava que eu faria um excelente trabalho ao assumir a
gestão no lugar dele. Apesar de me ver como sua eterna menina que nunca
crescia, ele reconhecia o quanto me esforcei para ser a melhor em todas as
áreas.
Cada passo que dei na minha vida nos últimos anos, foi em busca da
liberdade de não ser associada a ele, e assumir a Alpha não era algo que eu
estava pronta, porque, no fundo, eu não saberia lidar com as pessoas
cochichando sobre mim nos corredores.
Que tipo de CEO seria, se as pessoas sob minha gestão não me
levassem a sério?
Por isso, fizemos um acordo que era simples. Ficaria na RCI até que
todos os meus planos para ela se consolidassem, tentaria o estágio na
Bentley & Hathaway e, quando fosse a hora certa, meu pai se afastaria e eu
assumiria o seu lugar na empresa da minha família.
— Quem diria… não queria nem que eu trabalhasse no mercado, e
agora está contando os dias para que assuma o seu lugar — provoquei,
torcendo os lábios em uma careta quase infantil e ele sorriu.
Não era como se meu pai tivesse se oposto à minha escolha de
profissão, mas ele preferia que eu liderasse uma das empresas dos meus
avós, me tornasse médica como a minha mãe… ou qualquer outra profissão
que não envolvesse o ambiente tóxico do mercado financeiro. Miguel
queria me proteger justamente do que mais me incomodava ali e, em dias
como aquele, me arrependia por ser tão teimosa e ter ignorado os seus
conselhos.
— O que posso fazer se você acabou se mostrando tão brilhante
quanto eu? — indagou, soberbo. — Não deveria me surpreender tanto,
afinal, é minha filha… teve a quem puxar.
Dei risada, balançando a cabeça.
— E ainda me perguntam por que eu sou desse jeito… — resmunguei,
descansando a cabeça em seu ombro e sentindo sua mão acariciar meu
braço, terno.
— Você é assim porque é minha filha e pode ser o que quiser, fadinha
— disse, me apertando contra si, protetor ao extremo. — Sou capaz de
derrubar todo esse mercado, se for preciso, para garantir que você alcance
tudo o que deseja.
Revirei os olhos para as suas hipérboles.
— Quem foi que te nomeou o rei do planeta?
— Sou autodeclarado desde o dia em que você nasceu, não sabia?
Pendi a cabeça para trás, olhando-o com tanto amor que nunca seria
capaz de colocar em palavras. Meu pai era tudo o que eu tinha de mais
valioso no mundo, e não existia nada que ele não seria capaz de fazer por
mim e pela minha felicidade. Miguel Gama mataria e morreria por mim, se
fosse preciso.
— Eu estava gostando dele — confessei, melancólica.
Meu pai trouxe a sua atenção, quieto, esperando que começasse a
derrubar em cima dele tudo o que estava passando pela minha cabeça. Era
sempre daquela maneira. Ele não precisava interrogar, bastava me deixar
confortável e uma hora ou outra, eu estaria o transformando em meu
terapeuta particular.
— Tipo, gostando muito. E sei que não deveria ter me deixado
envolver tanto… que estava indo muito rápido, mas quando estava com ele,
sentia que nos conhecíamos há muito tempo, sabe? — perguntei, as
lágrimas voltaram a turvar minha visão. — As coisas fluíam e quando me
dava conta… estava conversando com ele sobre coisas que não me sinto
confortável para falar com qualquer um… e era natural. Não lembro disso
ter acontecido com nenhum outro, e acho que foi por isso que me deixei
envolver tanto.
Senti seus dedos acariciando meu cabelo, sem desviar seu olhar e
prestando atenção em cada palavra que escapava da minha boca.
— E, talvez seja ingenuidade, mas uma parte de mim sente que se
algo do tipo acontecesse comigo… sei lá, não seria como aconteceu com as
outras garotas. — Ri, odiando o quanto aquela frase saiu boba e irracional.
— Foi por isso que decidi que tinha que acabar com aquilo. Quando Olívia
contou que deixou que as coisas tomassem aquela proporção, porque sentia
que se algo acontecesse, Mário a protegeria… percebi que estava me
enganando e repetindo os mesmos erros dela, sabe?
Ele franziu o cenho.
— Não conheço o Renato… quer dizer, conheço o que Ethan me
passou sobre ele…
Deu de ombros, jogando a bomba no meu colo como se não fosse
nada.
— Pediu para que Ethan investigasse o Renato?
— Claro que sim — falou, sereno. — Você não é uma pessoa
qualquer, Nathalia. Goste ou não, nem sempre as pessoas que se aproximam
de você farão isso com as intenções expostas. É minha função como seu pai
garantir que vai se envolver com alguém que esteja sendo sincero.
Pisquei, aturdida.
— Você é maluco.
Ele assentiu, concordando comigo.
— Quando você se tornar mãe, vai entender que não há limite que
não possa ser ultrapassado pelos seus filhos — disse ele, apertando meu
queixo. — Não quero que você passe pelas mesmas decepções que eu
enfrentei.
Soltei um suspiro, sabendo que ele estava falando sobre o genitor do
meu melhor amigo.
Charles Bellini fez com que meu pai se tornasse muito mais
desconfiado e cauteloso em relação às pessoas que entravam em nossas
vidas. Embora eu não concordasse totalmente com o fato dele submeter
todas as pessoas ao redor a uma análise detalhada por parte de Ethan, eu
tentava levar em consideração que ele estava apenas tentando me proteger.
Eu não era uma pessoa comum e precisava ter cuidado com quem permitia
entrar em meu círculo.
— Enfim, todo caso… — disse, retornando ao que falávamos. — Não
estou falando sobre ele, mas, sobre mim. Sabe que eu nunca permitiria que
nada acontecesse com você, minha menina. Não precisa ter medo de viver a
sua vida por causa de outras pessoas, se algo acontecer… terá todos os
recursos para dar a volta por cima. Você é privilegiada nesse ponto. —
Piscou para mim. — Se ficar com o Trevisan te faz feliz… fique com ele, e
não se preocupe com o que vão dizer. As pessoas sempre irão olhar para
uma situação com o filtro que melhor atender as necessidades do próprio
ego. Então… por que se privar de algo por causa dos julgamentos alheios?
Soltei um suspiro, cansada.
Nada adiantava, de toda forma, havia feito a minha escolha.
— E estou sempre na retaguarda para te proteger, esqueceu?
Fiz beicinho, odiando como ele conseguia amolecer o meu orgulho.
Era justamente por isso que me afastei da Alpha. Sabia que meu pai seria
capaz de se desfazer de todo o seu quadro de funcionários e sócios, apenas
por olharem feio para mim. E por mais que fosse adorável da sua parte, só
me fazia perceber que, no fim das contas, até o meu pai tinha um plano de
contingência pronto para me salvar se eu fizesse besteira.
— Eu sei…, mas a minha decisão se mantém.
— Mesmo que goste dele?
Assenti, dando de ombros e forçando um sorriso.
— São só sentimentos… — suspirei, começando a sentir o cansaço se
tornar insuportável. Precisava de algumas horas de sono para repor o pouco
descanso da última noite. — Eles vão embora, não é o que você sempre
diz?
Miguel concordou.
— Vá dormir, pequena — mandou, encerrando o assunto e deixando
um beijo demorado na minha testa.
Pela manhã, acordei com as cortinas do meu quarto sendo abertas e
sequer tive tempo de abrir os olhos, antes de ser arrastada para o abraço
apertado da única pessoa que era maluca o bastante para me despertar
daquele jeito.
— Mãe… você está esmagando os meus ossos — choraminguei,
ofegante e sofrida.
Cocei os olhos e odiei como o sol queimou minhas íris.
Isso por acaso é jeito de se acordar alguém?
— Estava com tanta saudade! — reclamou, soltando-me apenas para
segurar o meu rosto em suas mãos e enchê-lo de beijos.
— Dios mío, cálmate![29]
Demorei alguns segundos para ser liberada da bomba ambulante de
afeto e me joguei de volta na cama, tateando a mesa de cabeceira ao lado e
verificando o horário. Eu odiava que me acordassem.
Soltei um suspiro, girando no colchão e usando uma mão para
minimizar a claridade que incomodava. Minha mãe era como um furacão,
ela aparecia repentinamente, fazia a maior bagunça e depois que cumpria
com os seus objetivos, saía de fininho e fingia que não era a responsável
pelo caos criado.
— Nem começa — implorei, vendo que ela estava dentro do meu
armário, buscando por algo para que eu vestisse. — Ainda são dez da
manhã e estou morta de cansaço.
— E pode aproveitar para descansar enquanto recebe uma massagem,
isso não vai impedir que tenhamos uma conversa, florzinha — disse,
virando o rosto na minha direção.
Soltei um suspiro.
Sequer tinha saído da cama e me sentia exausta.
Meus olhos acompanharam enquanto Tatiana abria as gavetas de
biquínis e escolhia o que a agradava. Minutos depois, ela voltou para perto
da minha cama com todas as peças que queria. Seu olhar colidiu com o
meu, brilhando com o entusiasmo mais genuíno que uma pessoa poderia
sentir e foi inevitável sorrir.
Minha mãe era quase minha irmã gêmea.
No caso, eu era uma cópia fidedigna dela.
Meu pai dizia que havia pedido durante toda a gravidez para que
quando eu nascesse, tivesse os olhos dela. Aparentemente, o universo não
apenas atendeu ao seu pedido, como deu de presente uma cópia de Tatiana
Maia Stein. Dos pés à cabeça, eu era um reflexo dela. E segundo os meus
avós, apesar de muito mais contida, herdei parte da sua personalidade
também.
Tatiana era um pontinho de luz que não parava de brilhar nunca, ao
contrário, a cada vez que nos víamos sentia que estava brilhando mais.
Minha mãe era pessoa mais gentil, amorosa e altruísta que eu conheci em
toda a minha vida, e teria sorte se me tornasse metade da mulher que ela
era.
— Mami, eu te amo…, mas estou cansada — falei, em espanhol,
vendo-a dar a volta na cama e me alcançar, determinada a não me deixar
ficar mais nenhum minuto deitada. — Quem te disse que eu estaria aqui?
Foi o meu pai, não foi? Vou arrancar a cabeça dele.
Ela ignorou tudo o que falei e me arrastou para fora da cama,
exatamente como fazia quando eu era criança e estava atrasada para a aula
de ballet, mas não queria levantar para me arrumar. Suas mãos seguraram
os meus ombros e o seu olhar se apertou ao meu, irredutível.
— Cinco minutos e quero você lá embaixo.
Suspirei, resmungando baixinho como uma criança birrenta e a
acompanhei sair do quarto, me ignorando.
Escutei as risadas embaixo da varanda e praticamente me arrastei na
direção, apreciando como a luz do sol refletia na água do mar, fazendo-a
ficar em um tom de azul cristalino que se tornava impossível não ser
cativada pela vista.
Era por causa de detalhes como aqueles que a fazenda era o meu
lugar preferido no mundo. Em frente ao meu quarto, ficava a imensidão do
oceano e bastava virar um pouco o rosto para ser presenteada por todo o
verde da natureza preservada ao redor da propriedade.
Meu avô dizia que aquele era o lugar perfeito para colocar a cabeça
em ordem e se reconectar com o que realmente importava, e ele estava
certo.
— Ei, Tita… pensei que morreria na cama hoje — disse o velho, me
fazendo descer os olhos para o jardim abaixo da minha varanda.
Uma mesa retangular havia sido montada com todos os meus pratos
preferidos e eles estavam sentados, esperando por mim. Meu pai desviou o
olhar do Kindle e me deu um meio sorriso, ciente de que eu estava pronta
para brigar com ele por ter ligado para a minha mãe.
Tatiana não demorou a alcançar o jardim, ela se sentou ao seu lado e
sussurrou algo em seu ouvido, arrancando uma risada divertida do meu pai.
Eu amava ver como o divórcio não afetou a relação dos dois, eles
continuavam sendo os melhores amigos um do outro e nada mudaria aquilo.
— Você precisava ligar para ela? — indaguei, fingindo chateação ao
apoiar os antebraços no parapeito.
— Também amo você, florzinha — cantarolou, ofendida.
Meu pai olhou de mim para ela e sorriu.
Os dois sabiam que eu adorava as visitas surpresas da minha mãe,
mas também sabia que ela estava com uma paciente em situação delicada.
Não queria que abandonasse seu trabalho para vir correndo me acudir
porque estava chateada por bobagem.
— Cadê a minha abuelita?
— Cozinha — disseram os três e anuí, afastando-me para tomar uma
ducha e me juntar a eles.
Meu corpo foi envolvido pelos braços finos e amorosos de Ellen
assim que entrei na cozinha. As moças que trabalhavam na casa sorriram
para mim e acenei em cumprimento, retribuindo ao abraço apertado da
minha avó.
— Como você está, mi vida? — perguntou, afastando-se e me
olhando com carinho.
Os fios loiros escuros eram retocados com frequência porque ela
odiava os grisalhos que surgiam, e apesar de estar com quase 72 anos, Ellen
de Bazán se cuidava demais e estava no auge da terceira idade. Se eu
envelhecesse daquele jeito, morreria com a certeza de que absorvi todas as
lições de skincare que minha avó me ensinou desde criança.
Enquanto conversava com ela sobre amenidades e prometia que iria
visitar o pequeno laboratório que mantinha na fazenda — já que não
frequentava mais as fábricas, mas gostava de criar novos produtos no tempo
livre —, percebi que era daquilo que estava precisando nos últimos meses.
Alguns dias sem pensar no escritório, em Roberta, Guilherme ou nas
opiniões das pessoas sobre mim.
Minhas bochechas doíam de tanto rir por causa das provocações do
meu avô, que sempre irritavam minha avó. Quando saí da mesa, estava
empanturrada, já que Ellen tinha insistido em me fazer comer um pouco de
tudo, alegando que eu estava muito magra.
Após o café da manhã, minha mãe e eu caminhamos pela propriedade
em direção à praia. Enquanto a ouvia compartilhar sobre o homem com
quem estava saindo, pude ver seus olhos brilhando e um largo sorriso
estampado em seu rosto.
Minha mãe era uma romântica incurável, mesmo depois do divórcio
com o meu pai, ela ainda buscava pelo seu final de comédia romântica dos
anos 2000.
— Qual é nome dele? — perguntei, curiosa e protetora.
Apesar de insistir que meu pai era insano por ter investigado a vida
de Renato, sabia que aquilo era necessário para nos proteger e, pediria para
que fizesse o mesmo com o empresário que estava arrancando suspiros
abobalhados da minha mãe.
Se Roberta me achava ingênua, entraria em colapso ao conhecer
Tatiana.
— Sebastian — disse, sem esconder o sorriso ao falar o nome dele.
— Seu pai já foi atrás da ficha dele, se é com o que está preocupada. —
Revirou os olhos. — Não me conformo em como é idêntica a ele.
Ri baixinho.
— Que engraçado, ele diz o mesmo…, mas sobre ser parecida com
você.
Minha mãe estalou a língua, negando.
Seu braço se entrelaçou ao meu e descemos pela escadinha que nos
levava até a faixa de areia, onde algumas espreguiçadeiras estavam
dispostas. Mais adiante, consegui avistar as casas dos funcionários da
fazenda e reconheci alguns rostos que passavam pelo campo.
Existiam duas casas utilizadas pela minha família na propriedade. A
principal, onde meus avós viviam, ficava em uma área mais reservada. Ela
havia sido construída durante a minha infância e estava localizada próxima
ao heliponto, o que garantia um acesso rápido em caso de emergência. A
segunda casa era maior e mais antiga, e passou por reformas nos últimos
três anos para servir como acomodação para visitas.
Mais para frente, ficavam quilômetros de plantações próprias para
sustento da propriedade e um pasto para os animais que viviam ali. Era uma
propriedade da família da minha avó, que passou de geração para geração.
Era o lugar de escolha dos meus avós para viverem a aposentadoria, seria a
do meu pai e talvez, no futuro, a minha e dos meus filhos.
— Sobre o que está pensando? — Minha mãe perguntou, virando o
rosto para mim e tirando os óculos de sol para me olhar nos olhos. — Algo
a ver com o homem bonito que Bianca me mandou foto?
Revirei os olhos.
— Meu pai fofoqueiro ainda não te contou?
— Claro que contou… o mataria se tivesse escondido alguma coisa de
mim, mas sei que você não falou todos os detalhes para ele — disse,
confidente. — Quer se abrir com a mamãe?
— Você vai dizer que eu não deveria me importar com o que os
outros vão dizer? — indaguei, arqueando a sobrancelha.
Minha mãe sorriu.
— Claro que sim, porque é a verdade.
— Então, não quero ouvir.
— Mas vai contar tudo, vamos, abre a boca. Não existem segredos
entre nós duas — disse, olhando-me enfezada e ri baixinho, concordando.
Daquela vez, contei para a minha mãe tudo o que tinha acontecido
entre Renato e eu desde que esbarramos no corredor semanas atrás, com
exceção dos detalhes que não cabiam contar para ela, compartilhei cada
mínima interação entre nós dois.
E quando fechei a boca, soube que tinha cometido um grande erro.
Porque minha mãe começaria a ver minha vida como o roteiro de um dos
livros de romance que vivia lendo no tempo livre.
Acertei a mandíbula de Pedro com mais força que o necessário,
ouvindo sua reclamação ao erguer as mãos e desistir do confronto.
— Eu falei que era um risco subir no ringue com ele, Zimmermann
— cantarolou Leandro, virando um gole da sua cerveja e apoiando os
braços na corda que cercava o octógono. — O homem está sofrendo de
amor… achou mesmo que ele ia pegar leve contigo?
Respirei fundo, virando na direção do meu sócio e amigo,
considerando que enfiaria um soco no meio da sua cara se não começasse a
calar a boca.
— Ok, não está mais aqui quem falou. Calma aí, eremita! Quer um
tapetinho e incenso para meditar?
Revirei os olhos, livrando-me das luvas e pegando uma toalha de
rosto para enxugar o suor que escorria.
As duas últimas noites foram uma merda e Leandro me lembrando a
cada cinco minutos da conversa com Nathalia, não ajudava a melhorar o
meu humor.
Por mais que eu soubesse que ela estava passando por um momento
difícil por causa da situação de sua amiga, eu ainda tinha certeza de que
tudo seria mais fácil se ela tivesse me deixado falar primeiro antes de
compartilhar o que estava passando em sua cabeça. Ver seu choro e como
ela estava afetada mexeu comigo, mas percebi que não importava o que eu
dissesse naquele momento, não seria capaz de fazer com que ela mudasse
de ideia. Por isso, deixei-a sair sem oferecer uma resposta.
O que eu diria para ela? Que o sentimento que estava martelando em
sua cabeça era desproporcional para a realidade? No fundo, sabia que ela
tinha noção daquilo e que uma hora cairia a ficha de que cometeu um erro.
Nathalia voltaria, eu tinha certeza daquilo, ou ao menos, estava
tentando ter.
Mas a cada vez que Leandro trazia esse assunto de volta, ficava mais
difícil ignorar o fato de que ela não tinha respondido minha mensagem na
sexta-feira. E apesar de estar tentado a ligar e ouvir a sua voz, eu sabia que
existia uma linha tênue entre preocupação e importunação, e se Nathalia
precisava de distância para colocar os pensamentos em ordem, seria
exatamente o que eu daria — por mais angustiante que fosse não saber nada
sobre ela.
— Bianca não te disse nada? — perguntei, descendo do ringue e
olhando para o meu amigo, apanhando a garrafa de água e bebendo um gole
longo.
— Não estou falando com ela.
— Por quê?
— Divergências de opiniões — resmungou, sentando-se no banco e
apoiando os cotovelos nos joelhos. Leandro me fitou, curioso. — Quer que
eu ligue para a Miss Google?
Recusei, sabendo que era bastante provável que Nathalia não
atendesse. Como ela estava extremamente transtornada quando saiu do
escritório, pedi a Sérgio, meu chefe de segurança, que acompanhasse seu
carro para garantir que ela chegaria em casa em segurança. No entanto, ele
acabou seguindo-a até o aeroporto e não foi difícil descobrir que o avião
particular reservado para ela tinha como destino a cidade de Medellín.
A ausência dela e a falta de contato me fizeram perceber o quanto ela
havia se tornado importante na minha vida. Dois dias sem qualquer notícia
foi o suficiente para me desestabilizar e tirar o meu equilíbrio.
— Talvez seja melhor que ela se afaste mesmo — disse Pedro,
sentando-se no chão e apoiando as costas na base do octógono, ofegante. —
A garota tem o quê? Vinte anos?
— Vinte e três — corrigiu Leandro, despreocupado.
Zimmermann revirou os olhos.
— Tanto faz, ainda assim, ela pretende passar alguns meses em Nova
Iorque e deve ter outros planos que não envolvam morar permanentemente
em São Paulo… não daria certo.
Encarei-o, escutando Leandro bufar.
— Quem foi que te elegeu o conselheiro? — Salazar perguntou,
estressado.
— Estou falando a verdade, aparentemente, sou o único que está
sendo racional aqui — alegou, em sua defesa.
— Você não está sendo racional, está sendo implicante — rebateu
Leandro, apertando os olhos no engenheiro. — Como você faz com
absolutamente tudo.
Meus olhos saltaram de um para o outro, tentando entender em que
ponto da noite passada, eles decidiram que a minha vida estava aberta para
que discutissem e expusessem suas opiniões em relação ao que eu deveria
fazer.
— Não entendo por que você tem essa implicância com a Tia
Patinhas — disse Leandro, continuando. — Você sempre levou numa boa
com as outras mulheres, não me diga que está com ciúmes porque sabe que
nenhum de nós consegue competir com ela pela atenção do eremita… —
provocou.
Pedro revirou os olhos, optando por não dar mais atenção para aquele
assunto e se levantou, indo para o vestiário da academia. Igor e Isabelle
estavam na área externa, ocupados com o dever de casa daquele fim de
semana que deveria ser feito em dupla, e Matheus estava esparramado no
sofá atrás deles, assistindo um desenho no iPad.
Como Mara ficava de folga aos finais de semana, era normal que
enquanto estivesse treinando, os dois descessem comigo para o primeiro
piso da cobertura, assim eu poderia treinar e eles permaneceriam entretidos.
Voltei para Leandro que estava digitando avidamente no celular,
lembrei-me do novo apelido para se referir a Nathalia.
— Tia Patinhas?
Salazar sorriu, orgulhoso da própria criatividade.
— Sim, você já parou para pensar no tamanho da herança que ela
carrega? — disse, dando de ombros. — Perto dela, eu sou a Maria do
Bairro.
Franzi o cenho, completamente perdido naquela conversa.
— Maria do Bairro?
— É, uma novela mexicana que a Bianca gosta de assistir —
murmurou, como se não fosse nada demais. — Você precisa se atualizar na
cultura pop se quiser sair com uma novinha, eremita.
Balancei a cabeça, jogando a toalha no cesto e me sentei em um dos
bancos, olhando-o sem saber se ria ou se chorava com as pragas que o
destino colocou na minha vida para serem os meus amigos.
Leandro, Marc, Pedro e Fabio… se somasse os quatro, ainda não daria
uma mente estável e madura.
— Tenho certeza de que Nathalia não assiste novelas mexicanas.
Salazar torceu os lábios.
— É por isso que ela é uma chata que fugiu de um relacionamento
que tinha tudo para dar certo. Você deveria assistir, ficaria surpreso com a
baixaria que era normalizada nas produções… — falou, como se aquilo
fosse me incitar a ligar a televisão para assistir a uma novela. — Mas… e aí,
vai escutar o cosplay do Bruce Wayne e desistir da diabinha?
— Pare de chamá-la assim — ordenei, entredentes.
— Ah, não fode! Eu dei o apelido, você não tem o direito de
monopolizar… — meu olhar foi o suficiente para que Leandro erguesse as
mãos, rendendo-se. — Tá. Mas que fique registrado que eu não acho isso
justo.
Rolei os olhos, vendo o idiota se empertigar no banco, curioso.
— E então, é isso? Você vai desistir da diab… Nathalia? — corrigiu a
tempo.
— Não.
Leandro sorriu exultante, batendo as mãos no estofado do banco e se
empolgando com a resposta. O que era um tanto estranho, visto que sua
versão de três meses atrás teria me recriminado por aquilo. Aparentemente,
ele gostava tanto de Nathalia que estava disposto a deixar sua aversão a
relacionamentos de fora da equação.
— Então, vamos bolar algo para recuperar ela?
— Vamos? Por que você está se incluindo nisso?
Salazar entreabriu os lábios, ofendido.
— Não ouse me excluir disso, Renatinho. — Apontou o dedo em
minha direção, inconformado. — Faço parte dessa relação tanto quanto
qualquer um.
— Faz?
— Claro que sim! — Ele se levantou, dramático. — Quem foi que
organizou uma social só para vocês interagirem fora do escritório?
— Você fez isso para ter uma desculpa para passar a noite com a
Bianca.
— Isso não importa, os meus motivos não alteram os resultados.
Vocês se aproximaram por minha causa. — Leandro entrelaçou as mãos nas
costas, caminhando de um lado para o outro, em círculos. — Quem te
chamou para ir à sala dela na crise de enxaqueca? Pois bem, eu também. E
foi por causa disso que a diab… Tia Patinhas começou a frequentar a sua
casa e vocês foram se aproximando ainda mais — prosseguiu, franzindo o
cenho.
Era o que me faltava.
— E quem te convenceu a ir para uma viagem que nem queria ir por
que estava com aquela idiotice de “não atravessar os limites”? — Arqueou
a sobrancelha. — Exatamente, eu de novo. Santo Antônio nunca teve um
ajudante tão determinado quanto eu! Preciso ser idolatrado por você,
eremita. Tirei você de um celibato de anos!
Pedro retornou, passando pela varanda e perguntando algo para as
crianças que concordaram.
— Por isso, não me tire da equação quando digo que vamos encontrar
um jeito de…
— Leandro, pelo amor de Deus!
Ergui a mão, pedindo por um minuto de silêncio.
Não aguentava mais ele falando na minha orelha feito uma maritaca
desde sexta-feira. Preferia que Bianca e ele fizessem as pazes de uma vez
por todas, porque sentia que a minha cabeça explodiria se precisasse
continuar lidando com toda aquela energia acumulada.
Se não estivesse evitando admitir que estava interessado na loira
muito além da “amizade colorida” que vinham tendo há semanas, a sua vida
estaria muito mais simples; ele estaria transando e não gastando a energia
que normalmente esgotava com sexo, me perturbando a cabeça.
— Ele ainda está falando? — perguntou Pedro, cruzando os braços
em frente ao peito e observando enquanto Salazar continuava andando em
círculos, bolando um plano mirabolante.
— Honestamente, nem faço mais questão de escutar.
Pedro riu fraco, balançando a cabeça devagar.
— Fui sincero quando disse que acho que deveria deixar a garota se
afastar — esclareceu, baixo e cauteloso. — É o melhor para você e para ela,
preciso admitir que ela tomou a decisão certa.
— Pedro…
Ele se virou para mim, me interrompendo.
— Eu disse que é a decisão certa e que os dois deveriam manter as
coisas dessa maneira — apontou, irredutível. — Mas sei que não é o que
você quer, e pelo jeito como a pirralha se ofendeu na nossa conversa no
clube… suponho que também não seja o que ela quer. Então, faça o que for
te deixar feliz.
Uma risada silenciosa escapou do fundo da minha garganta e meneei
a cabeça, de acordo com aquela sugestão.
— Obrigado pela permissão, pai — disse, sarcástico.
Zimmermann revirou os olhos.
— Mas deixe anotado na sua cabeça que se der errado…
— Já entendi, Pedro.
Meu amigo meneou a cabeça, voltando a se concentrar em Leandro
que parou na minha frente e sorriu, radiante.
— Tive uma ideia!
— Não te pedi ajuda.
— Mas você precisa…
— Na verdade, eu disse explicitamente que não queria a sua ajuda —
insisti.
— Mas eu estou aqui mesmo assim, lide com isso!
Massageei as têmporas, sentindo a cabeça latejar.
— Leandro… por que você não vai atrás da Bianca e pede desculpas
de uma vez por todas?
Seu cenho se franziu, o peito inflou e ele cruzou os braços em frente
ao peito, defensivo.
— Por que você acha que é minha culpa?
A resposta era tão óbvia, que antes que eu respondesse, Zimmermann
havia feito, poupando-me de gastar saliva com aquilo.
— Seria uma surpresa se não fosse — zombou Pedro, revirando os
olhos.
Leandro olhou de um para o outro, balançando a cabeça e soltou um
suspiro falso e teatral, como se fosse um pobre coitado incompreendido.
— Como eu dizia, o plano para recuperar a…
— Puta merda, chega disso! — reclamei, irritado, esfreguei as mãos
no rosto, cansado daquele assunto. — Nathalia e eu vamos conversar
quando ela estiver pronta e mais calma. Isso é um assunto meu, não de
vocês. Não estou aberto a ouvir opiniões ou qualquer coisa do tipo.
Entenderam?
Pedro e Leandro se entreolharam, serenos, e ignorando
completamente o que eu havia acabado de dizer, Leandro recomeçou com o
falatório.
Na minha cabeça, comecei a fantasiar inúmeras maneiras de acabar
com a sua vida de uma vez por todas, e finalmente me livrar daquela sina
infernal que era ser o seu amigo.
Havia acabado de sair do banho, quando escutei o som do elevador se
abrindo na sala de estar — onde os meus filhos estavam sozinhos assistindo
filme.
Confuso, pois não estava esperando visitas e havíamos acabado de
voltar do clube, desci os degraus para verificar quem havia chegado. Senti
meus ombros se tensionarem ao ver meus filhos envolverem alguém em um
abraço apertado.
Era noite de domingo, meus pais foram para o interior para visitar os
meus avós maternos. E como larguei Leandro e Pedro com duas mulheres
no bar do clube, eu sabia que não era nenhum dos dois.
A única outra pessoa que tinha acesso liberado para entrar e sair do
meu apartamento no horário que quisesse, era a mulher linda que estava
sendo envolta pelos braços dos meus filhos.
— Pensei que você não viria — disse Igor, claramente magoado, ao
se afastar dela.
Nathalia afagou a sua bochecha e beijou sua testa, sorrindo doce.
— Prometi que viria sempre que chamasse, não foi? — indagou,
ternamente. Os dois concordaram, Matheus ainda tinha os braços em volta
do seu pescoço. — Eu sempre cumpro as minhas promessas.
Seu olhar colidiu com o meu assim que alcancei o último degrau, e se
antes eu acreditava que as únicas pessoas que eram capazes de me fazer
sentir tanta saudade eram os meus filhos…
Nathalia estava ali para provar que era a exceção.
Seu cabelo estava ligeiramente mais claro do que na sexta-feira,
algumas mechas ficaram tão douradas quanto o cabelo de Matheus, e de
onde eu estava, conseguia reconhecer que ela tinha pegado sol e descansado
bastante, era perceptível como estava mais relaxada.
— Desculpa não anunciar, o seu porteiro me deixou entrar direto. —
Ela se levantou, tendo as duas mãos entrelaçadas pelos meninos que a
arrastaram em direção ao sofá.
Talvez, a minha confusão estivesse explícita no meu rosto, mas não
era como se estivesse insatisfeito com a sua presença. Tê-la na minha casa
era um alívio que nunca encontraria palavras para explicar.
Eu tinha sentido falta do seu sorriso, da sua voz, do seu cheiro, da
maciez da sua pele contra a minha, do calor do seu corpo quando se
aninhava ao meu… merda, senti a falta dela pra caralho.
Entretanto, não entendia o motivo para que estivesse ali no meio da
minha sala. E, aparentemente, eu era o único que não estava
compreendendo o que havia acontecido.
— Vocês não o avisaram? — investigou, seu olhar fugindo de mim
para mirar os dois garotos que claramente tinham culpa no cartório.
— Esqueci — disse Igor, olhando-me com um sorriso fraco. — Nós
convidamos a Nath, pai.
Franzi o cenho, escondendo as mãos nos bolsos da calça de moletom
para refrear a ânsia de tocá-la e mirei os meus filhos, vendo seus sorrisos
arteiros se abrirem.
— Fiquei com saudades! — justificou Matheus, esticando as mãos
para que ela o pegasse no colo novamente.
Nathalia pareceu se dar conta de que eu não estava ciente da sua
visita e as suas bochechas ruborizaram, constrangida.
— Meninos, levem os brinquedos para o quarto — pedi, precisando
de alguns minutos a sós com ela.
Obedientes, Igor e Matheus recolheram os brinquedos que trouxeram
para a sala e jogaram nos dois carrinhos, arrastando para o corredor paralelo
onde havia uma sala de brinquedos.
— Nath — chamou Igor, parando no meio do caminho e atraindo a
atenção dela. — Por que não fica para jantar com a gente? — convidou,
esboçando um sorriso tímido. — É noite de pizza, né, pai?
Seu olhar veio para mim, em um pedido silencioso para que a
convencesse de aceitar o convite e meneei a cabeça, concordando.
Igor nos deu as costas, seguindo o irmão e como era de costume que
arrumassem todos os brinquedos nos devidos lugares que pegaram, eu sabia
que teria algum tempo de vantagem antes que retornassem para a sala.
— Como você está? — investiguei, aproximando-me com cautela e
observando como ela reagia.
Seus olhos desceram para o meu peito, trilhando lentamente pelo
abdômen exposto e ela piscou, aturdida. Nathalia afundou as mãos no bolso
do seu agasalho de moletom e sorriu fraco.
— Bem — mentiu descaradamente —, e você?
Parei diante dela, a poucos passos de distância, sentindo os dedos
formigarem, desejando acariciar suas bochechas macias e apreciar como ela
estremeceria com meu toque mais sutil.
— Com saudades — fui sincero.
Nathalia fisgou o lábio inferior entre os dentes, dando um passo para
ganhar distância e soltou um suspiro, a máscara segura que vinha
sustentando se desfez e ela me fitou, suplicante.
— Renato… por favor, não faz isso, ok? — pediu, seus olhos doces
me fitaram com aquela aura angelical que só ela sustentava. — Eu só passei
para dar um beijo nos meninos, mas o que falei na sexta-feira ainda se
mantém.
Sua boca havia dito uma coisa, mas o seu corpo falhou na tarefa de
seguir o roteiro que ela claramente tinha ensaiado para usar — caso eu
decidisse voltar atrás na sua decisão.
Enquanto as palavras escapavam dos seus lábios repletas de falsa
segurança, involuntariamente, o seu corpo se aproximou do meu. Nathalia
deitou a cabeça para trás, sem se dar conta do quanto estava perto. Pelo
brilho que percorreu suas íris, soube que ela sentia o mesmo que eu.
Não importava o quão perto estivesse, ainda não era o suficiente.
— Você não me deixou falar nada. — Subi meus dedos em direção ao
seu rosto, deslizando suavemente em sua pele, vendo Nathalia fechar os
olhos e entreabrir os lábios, tão entregue que mal podia conter o próprio
instinto. — E nós dois sabemos que você tomou essa decisão por impulso.
Ela abriu os olhos, tentando se recuperar e quando fez menção a se
afastar, meus dedos seguraram o seu queixo, mantendo-a perto e
concentrada em mim.
Um arquejo fraco escapou do fundo da sua garganta e ela cravou o
olhar no meu, aquela faísca arrebatada que acabava comigo estava presente,
tão intrínseca que por mais que tentasse esconder, ainda permanecia ali.
Queimando lentamente, enfraquecendo as suas barreiras e a deixando
vulnerável.
— Eu… acho melhor eu… — balbuciou, em um transe desconexo, e
demandou tudo de mim não calar a sua boca com a minha, antes que
dissesse algo que apagasse aquela chama entre nós. — Não posso — soprou
fraca, a voz tomada por melancolia.
Engoli em seco, soltando o seu rosto do meu aperto e deixando que a
minha mão escorregasse para a sua nuca, quebrando a distância
remanescente de uma vez por todas. Aproximei o rosto do seu, vendo-a
fechar os olhos e soltar um suspiro quando meus lábios roçaram em sua
pele.
Amava ver como Nathalia estremecia e se entregava para mim, como
a sua pele se arrepiava facilmente e estava me tornando viciado no som
gutural que escapava dos seus lábios quando meus dedos apertavam o seu
cabelo, obrigando-a inclinar um pouco a cabeça para o lado, dando espaço
para a minha exploração.
Suas mãos espalmaram o meu peito e o seu cheiro me invadiu. Doce,
afrodisíaco, único e altamente tóxico até para a mente mais sã. Suas unhas
se arrastaram na minha pele e um gemido escapou dos seus lábios; quando
deixei um beijo cálido na curva do seu pescoço, sentindo a boca formigar
para ser pressionada contra a sua.
— O que você não pode, anjo? — perguntei, rouco e aflito, colando
nossas testas e mantendo o seu olhar preso ao meu, odiando que ela
estivesse disposta a abrir mão daquela conexão por algo tão… estúpido.
Nunca a colocaria na mesma posição que a sua amiga ficou, e
acabaria com aquele escritório antes de permitir que qualquer um cogitasse
fazer algo do tipo com ela. Por mais que duvidasse, ela estava segura
comigo.
Nathalia arfou, quente e deliciosa, esmagando o lábio inferior entre
os dentes e mirou os meus olhos, suplicante e arrebatada.
Aquele desejo de ficar longe era mero teatro, um fingimento que ela
sequer era capaz de sustentar por muito tempo.
Na realidade, Nathalia sentiu tanto a minha falta, quanto eu havia
sentido a sua.
Seus lábios roçaram nos meus, cobiçosos. Ela estava por um triz de
abandonar aquela ideia insana de ficar longe de mim.
— Nath, você fica? — perguntou Igor, aproximando-se da sala,
distraído no cardápio da pizzaria que aproveitou para buscar no meu
escritório.
Contrariado, afastei-me e soltei Nathalia, que deu três passos para
longe e olhou na direção do meu filho, embriagada.
— Hã… meu bem… eu só passei…
— Por favor, Nath — pediu.
Ainda que estivesse muito tentado a deixar que o meu filho a
convencesse a ficar, não permitiria que Igor fosse usado como uma cartada
na manga. Ele não tinha acesso a um celular, e o meu esteve comigo
durante toda a nossa permanência no clube… o que significava que Leandro
era o responsável por ter colocado meus filhos em contato com ela, e eu
teria uma conversa séria com ele no dia seguinte.
— Nath, quer ver o meu desenho? — perguntou Matheus,
entrelaçando a sua mão na dela e praticamente a arrastando escada acima,
sem sequer esperar pela resposta.
— Matheus — repreendi.
Nathalia levantou a mão, dispensando a minha advertência e deu um
sorriso fraco, derrotada.
— Tudo bem — declarou. Seu olhar voltou para Igor e ela meneou a
cabeça, olhando-o cheia de ternura. — Fico para a pizza, ok?
Meu filho assentiu e se aproximou de mim, empurrando o cardápio.
Assim que Nathalia subiu as escadas com Matheus e desapareceu no
corredor, meus olhos recaíram em Igor com uma advertência explícita.
— O que nós conversamos sobre ter calma com as coisas?
Ele deu de ombros, indiferente.
— Ouvi você contando para os meus tios que ela terminou tudo —
disse, franco. — Gosto da Nath, pai… e você disse que ia fazer ela ficar.
Balancei a cabeça, descontente.
Agachei-me na sua frente, segurando seus ombros com cuidado e
mantendo meu rosto nivelado ao seu para que entendesse o que estava
falando.
Existiam certos limites que, uma hora ou outra, eu precisava impor ao
meu filho. Mas nunca pensei que um deles seria para que se mantivesse fora
da minha vida amorosa.
— Entendo que vocês gostam dela, Igor. Mas isso é um assunto de
adulto, tudo bem? — Olhei para ele, firme. — Leandro é um irresponsável
por envolver vocês nisso.
Igor franziu o cenho, confuso.
— Tio Leandro não fez nada.
— Não precisa proteger ele, filho.
Ele sacudiu a cabeça veementemente, sustentando a sua palavra.
— Não foi o tio Leandro que emprestou o telefone para que eu
ligasse — insistiu, irredutível. — Foi o meu padrinho.
Aquilo me pegou desprevenido.
Dentre todas as opções que eu tinha em mente, depois da sua
segurança ao afirmar que não havia sido Leandro, em nenhum cenário,
passaria pela minha cabeça que Pedro foi o responsável por aquela idiotice
sem tamanho.
Onde estava o seu discurso de manter os garotos longe daquilo?
Assenti, pegando o cardápio da sua mão para fazer o pedido.
— Vá tomar banho — falei, vendo-o acenar em concordância e se
afastar, pronto para subir as escadas.
— E pai… — chamou, parando no meio da escada e apoiando o
corpo no corrimão, olhando-me tranquilo —, liguei porque sei que você
sentiu saudades dela também — explicou, me dando as costas e sumindo do
meu campo de visão.
Respirei fundo, dividido em qual emoção iria direcionar a minha
atenção.
Eu estava preocupado com o envolvimento de Igor nessa situação
com Nathalia, apesar de me sentir aliviado em confirmar que Pedro estava
errado sobre ela. Não estávamos juntos, e ainda assim, ela estava ali, apenas
porque Igor e Matheus pediram.
Mas estava irritado pela irresponsabilidade e hipocrisia de Pedro.
Ele perturbou minha cabeça nos últimos dois dias insistindo que era
melhor manter Nathalia longe; que eu estava errado por deixar que ela se
aproximasse dos garotos… e ainda assim, ele havia cedido ferramentas para
que Igor entrasse em contato com ela e armasse aquela situação.
Tudo isso, após eu ter dito explicitamente que não queria que
Leandro e ele se envolvessem nessa história.
Após desligar o telefone com a pizzaria, busquei pelo número de
Pedro Zimmermann na lista de chamadas recentes e ele não demorou a
atender.
— Tenho uma explicação — disse, antes que eu falasse qualquer
coisa.
— Espero que seja uma boa.
— O garoto ouviu toda a nossa conversa na sexta-feira, Renato.
Escutou você dizer que estava apaixonado e que não queria perder a garota
— murmurou, resignado. — Ele me pediu para fazer uma ligação, achei
que a Nathalia não atenderia.
— Mas ela atendeu.
— E isso mudou alguma coisa? Ela nem apareceu!
Respirei fundo, acompanhando enquanto ela descia as escadas junto
com Matheus que contava sobre ter cortado o cabelo ontem à tarde.
— Na verdade, ela apareceu — esclareci, vendo os dois se sentarem
no sofá e Nathalia atender ao pedido do meu caçula de procurar por um
desenho animado.
— Ela… foi aí mesmo não estando com você? — perguntou,
assombrado.
Pelo visto, Pedro realmente acreditava que Nathalia não aceitaria o
pedido dos garotos e ele provaria que estava certo quanto ao que disse dela.
— Sim, Pedro. — Abandonei os utensílios em cima da bancada,
vendo Nathalia virar o rosto em minha direção. — Nunca mais use os meus
filhos para provar um ponto.
Meu amigo bufou, ofendido.
— Não foi isso. Igor só me pediu para falar com ela e quando
desligou… disse que ela tinha dito que estava em Medellín e que não
poderia ir vê-los.
— Quando foi isso?
— Um pouco depois que chegamos no clube. Você tinha se afastado
para falar com o Pietro Belchior.
Franzi o cenho, calculando o tempo médio e percebendo que Nathalia
precisaria ter saído da fazenda dos avós poucos minutos após encerrar a
chamada com o meu filho para chegar aqui naquele horário.
— Só… não faça isso outra vez, Pedro — pedi, pinçando a ponte do
nariz e fazendo um pouco de pressão para aliviar a frustração.
Encerrei a chamada com o padrinho do meu filho assim que a
portaria informou que meu pedido havia chegado, e passei no quarto para
vestir uma camiseta.
Minutos depois, estava retornando para a sala de estar com as pizzas
e me deparei com Igor e Matheus em volta dela, assistindo algo que
Nathalia mostrava no celular.
Pigarreei, atraindo a atenção dos três.
— Meninos, vão lavar as mãos e direto para a mesa — pedi, vendo os
dois se levantarem e caminharem apressados para o lavabo.
Ela se levantou, envergonhada, e se aproximou, acompanhando-me
direto para a sala de jantar.
— Como estamos? — indagou, me arrancando um sorriso ao
perceber que havia pegado meu hábito de fazer a pergunta daquela maneira.
Abandonei os embrulhos na mesa, girando nos calcanhares para ficar
de frente para ela e indiquei que se aproximasse.
Nathalia não relutou, tampouco tentou evitar que aquilo acontecesse.
Seu corpo se moveu em minha direção instintivamente, assim como a
minha mão encontrou o caminho em direção ao seu rosto. Arrastei o
polegar em sua bochecha, descendo rumo aos seus lábios e libertei o
inferior da prisão que ela o mantinha. Os olhos grandes e castanhos me
fitavam com tamanha veemência, que demandava tudo de mim não agir
como um maldito homem das cavernas.
— E se você ficar essa noite? — ofereci, baixo e calmo. E de
preferência, em todas as outras. — Não quero ficar longe de você, anjo. E
sei que se sente da mesma forma.
Nathalia piscou, a sua mão delicada tocou meu pulso e o apertou
levemente.
— Preciso ser racional, Renato — disse, sem fugir do meu olhar e
sendo aberta sobre o que sentia, como sempre era. — Querer ficar perto de
você não muda o fato de que, vou me colocar em uma posição vulnerável e
colocar em risco tudo pelo que tenho trabalhado, sabe?
— Nunca te colocaria em uma posição que prejudicaria a sua
carreira, Nathalia — falei, aumentando meu aperto na sua pele para garantir
que não iria se afastar. — E você não precisa abrir mão de algo, sabe
melhor do que ninguém que pode ter tudo.
Ela não precisava mesmo, era apenas a sua insegurança. Aquela voz
na sua cabeça que ficava a colocando para baixo e que, apesar de tentar
muito ignorar, Nathalia sempre acabava dando ouvidos e deixando que
falasse mais alto.
— Você diz isso porque tem a sua carreira consolidada — disse,
chateada. — Quando seu nome é dito em uma roda de conversa, tudo o que
falam é sobre o que fez para impedir que a Hambrook Equities quebrasse, e
em como criou uma operação que te garantiu dinheiro o suficiente para
nunca depender da herança do seu avô. — Ela deu um passo para trás,
engolindo em seco. — Sabe o que dizem de mim? A primeira coisa que
lembram é que sou filha do Miguel Gama, e depois disso… não tem mais
nada. Tudo gira em torno do meu pai. E sabe o que é pior? — perguntou
retórica. — Até eu penso assim! Quando imaginei o que aconteceria
comigo se algo semelhante ocorresse… o pensamento que me deu coragem
para ir até a sua sala foi a certeza de que, por um pequeno erro, eu
arruinaria a carreira que meu pai construiu durante trinta anos.
Sua mão subiu até a minha, que estava em seu rosto, tocando
delicadamente o dorso e tentando conter as lágrimas que se acumulavam.
— Não é só a minha carreira em jogo na aposta, Renato.
— Você está pensando nisso como se fosse algo fadado ao fracasso,
anjo.
Ela sorriu, aproximando-se de mim e passou os braços em volta do
meu corpo, aninhando-se ao meu peito. A sensação de ter o seu calor contra
o meu era acalentadora, despertava um sentimento tão visceral que era
impossível me distanciar dela.
Escondi o rosto em seu cabelo, buscando por uma maneira de fazer
com que Nathalia compreendesse que as pessoas sempre falariam sobre ela,
por bem ou por mal.
— Fique aqui essa noite — pedi, mergulhando os dedos em sua nuca,
fazendo-a olhar para mim.
— Não.
— Mesmo se eu te oferecer arequipe com morango? — indaguei,
vendo o seu olhar faiscar em pura luxúria, lembrando-se da mesma coisa
que eu. Ri baixo, beijando a sua testa. — Apenas o doce, anjo.
Ela piscou, assentindo.
— A resposta ainda é não — mentiu, tentando se agarrar naquilo.
— Nem se eu disser que enquanto esteve fora, assisti duas
temporadas de The O.C?
Aquilo a pegou desprevenida.
Nathalia deu um passo para trás, sem se afastar completamente e
piscou, perplexa.
— Você assistiu?
— Senti saudades de ter você aqui, achei que ver a sua série preferida
diminuiria a sua ausência.
Seus lábios se entreabriram e ela pareceu tentada a aceitar, apenas
pela curiosidade de saber a minha opinião sobre o que achava do drama
adolescente envolvendo Ryan, Marissa e seus protegidos, Seth Cohen e
Summer Roberts.
— Pizza! — comemorou Matheus, entrando na sala de jantar com as
duas mãos erguidas para cima, para me mostrar que as lavou.
Nathalia fez menção a se afastar, contudo, mantive a mão pesada em
seu quadril, impedindo que trouxesse aquela distância incômoda outra vez.
— Você é um perigo, meu bem — disse ela, descendo a mão livre
para o rosto de Matheus que se aproximou, fazendo beicinho. — Como que
alguém resiste a isso?
Matheus sorriu e puxou Nathalia pela mão para que se sentasse ao
seu lado. E quando Igor voltou para a sala, sentou comigo.
Enquanto servia os três, escutava os meus filhos interrogarem
Nathalia sobre o fim de semana na fazenda dos avós e pude ver o brilho nos
olhos de Matheus, ao escutar sobre a família de equinos com nomes de
constelações.
— Sr. Pulga? — Igor perguntou, apertando os lábios para conter a
risada ao escutar o nome do coelho gordo e orelhudo.
Nathalia sorriu.
— Sim, ele parecia uma pulguinha quando me deram — falou, dando
de ombros e deixou o copo de suco de lado, sem parar de fazer cafuné em
Matheus que estava quase dormindo com uma fatia de pizza de mozzarella
nas mãos.
Igor balançou a cabeça devagar, refletindo.
— Meu pai não me deixou ter um coelho — dedurou, como se eu
estivesse errado por aquilo.
— Moramos na cidade — expliquei pela décima vez. — O coelho
dela fica em uma fazenda, com outros animais e pessoas que cuidam dele o
dia inteiro.
Nathalia acenou, confirmando.
— Exatamente, e cuidar de um coelho dá bastante trabalho… —
suspirou, tateando a mesa para pegar o seu celular e virou para ele, dando
play em um vídeo.
A imagem do coelho saltando enquanto o que devia ser dois
funcionários da fazenda corriam atrás dele, arrancou uma gargalhada
divertida de Igor.
— Ele deu um trabalho enorme para o veterinário conseguir pegá-lo,
imagina o que faria aqui no apartamento? — incitou, fazendo o meu filho
estremecer com uma careta.
Igor era adepto a ter tudo no lugar e não gostava de grandes
mudanças. Ele definitivamente não saberia lidar com um coelho com aquele
pico de energia. Seu olhar veio para mim, arrependido por toda a insistência
dos últimos três anos para que eu cedesse a sua vontade.
Sorri, afastando o cabelo da sua testa.
— Não quero mais, pai.
Uma risada fraca escapou da minha garganta e acenei, concordando
com aquela escolha.
Ele não teria de qualquer maneira, mas o deixaria acreditar que
tomou aquela decisão sozinho.
— Tudo bem.
— Mas podemos ter outro animal — ponderou.
— Cachorro! — Matheus sugeriu, todo sujo com o molho de tomate
da pizza. Fiz menção a levantar para limpá-lo, mas Nathalia tomou a frente
e tirou o excesso de molho no canto dos lábios e das suas mãos.
— Certo, certo… vamos refletir mais um pouco, ok?
Eu não era contra animais de estimação, mas precisava ter certeza de
que eles realmente cuidariam do cachorro.
De nada adiantaria atender ao pedido e, no fim das contas, eles se
cansarem do filhote como acontecia com os brinquedos que enjoavam.
— Tudo bem — declarou Igor, voltando para Nathalia que nos
observava com um meio sorriso deslumbrado. — Nath, você vai dormir
aqui hoje?
Seu olhar veio para mim, pedindo por ajuda e voltei para o meu filho
que aguardava uma resposta.
— Por que não vai escolher um filme para assistirmos? — contrapus,
atraindo a sua atenção. — Vocês precisam ir dormir daqui a pouco, amanhã
voltam para as aulas matinais.
Igor acenou, calado.
— Mat, vem lavar as mãos — chamou o irmão, oferecendo a mão
para irem ao lavabo limpar a bagunça que o pequeno tinha feito com a sua
pizza.
Nathalia acompanhou os dois sumirem pelo corredor e voltou para
mim, apertando os dedos ao redor do copo de água com gás. Era perceptível
que estava agitada com alguma coisa.
— Vem cá — incentivei, calmo.
Não houve sinal de incerteza da sua parte.
Ela se levantou e deu a volta na mesa, afastei a cadeira; meu braço
envolveu a sua cintura e a trouxe para o meu colo. Era tão espontâneo e
certo, que tudo se encaixava naturalmente.
Nathalia passou os braços ao redor dos meus ombros e me fitou,
concentrada.
— Se quiser ir embora, tudo bem. Espere só os garotos dormirem e a
levo — falei, sem conseguir cogitar a ideia dela sair andando sozinha
naquele horário.
O condomínio que morava ficava a pouco menos de quinhentos
metros de distância, mas estávamos em uma área visada e ainda que
tivessem seguranças espalhados a cada cem metros — graças aos
restaurantes que ficavam espalhados pela rua, era comum que ficasse
movimentada por transeuntes.
— Mas… se minha vontade valer de algo, saiba que prefiro que passe
essa noite aqui — prossegui, apertando a sua coxa desnuda.
Ela tinha vindo direto do aeroporto e com exceção da bolsa que usava
quando saiu do escritório, Nathalia só estava com a roupa do corpo e que,
para a minha desgraça não passava de uma saia branca minúscula e um
moletom preto da universidade de Princeton. O cabelo estava solto e não
existia resquício de maquiagem no seu rosto, e ainda assim, ela estava linda.
Nathalia sorriu.
— Você realmente não entende nada sobre fins de relacionamentos…
— observou, soltando um suspiro baixo e trouxe o seu rosto para perto do
meu.
— Isso é um término? — perguntei, fingindo não levar em conta a
ideia absurda de não a ter mais na minha vida. — Pensei que tínhamos
concordado em aceitar a realidade.
Ela arqueou a sobrancelha e as suas unhas arranharam a minha nuca.
— Que realidade?
Aproximei nossos rostos, mordiscando o seu queixo e aspirando o seu
cheiro doce. Em resposta, os seus dedos mergulharam no meu cabelo curto
e ela apertou os fios, nervosamente.
Ela se agitou no meu colo, inquieta.
Mordisquei o lóbulo da sua orelha, sentindo seu corpo estremecer
sobre o meu.
— Que não existe volta para nós dois, diabinha. — Segurei o seu
rosto, impelindo-a olhar em meus olhos. — Negue o quanto quiser, mas
sabe disso melhor do que ninguém. Você nasceu para ser a minha mulher.
Sua atenção recaiu para a minha boca e ela balançou a cabeça,
recriminando-se por não resistir aos próprios desejos.
— Você é um castigo na minha vida, isso sim… — lamentou,
afastando-se de mim e levantou para ir embora. — O que não é justo.
Sempre fui uma boa garota; vivo fazendo boas ações… eu não merecia viver
com tamanha tentação — resmungou, melodramática.
Sorri, trazendo-a de volta e sentindo falta da sua boca gostosa contra
a minha.
— O que você quer, Nathalia?
Se ela insistisse que precisava de distância, eu seria obrigado a dar o
que queria — ainda que não fosse minha vontade. Mas se ela decidisse
deixar de lado o que as pessoas pensariam a seu respeito, não existia nada
que iria me impedir de tê-la.
Eu tinha feito uma escolha e estava seguro dela.
A diaba me fitou, indecisa, e torci para que quisesse o mesmo que eu.
Nathalia pensou por alguns segundos, tentando encontrar a melhor
resposta para aquela pergunta. Pude ver o lampejo de frustração que passou
em suas íris e soube que a sua escolha não seria a mesma que a minha.
Independentemente do que havia dito, suas inseguranças falaram mais alto e
Nathalia optou por atender ao pedido delas.
— Hoje, quero voltar para o meu apartamento — disse, relutante. —
Nos vemos amanhã, tudo bem?
Sorriu fraco e seus lábios tocaram os meus de um jeito tão leve e
sutil, que o único motivo para ter reconhecido aquele movimento, foi por
estar com os olhos abertos. Caso contrário, teria considerado que havia sido
fruto da minha imaginação.
— Desculpe por ter vindo sem avisar — disse, levantando-se do meu
colo e desvencilhando o pulso do meu aperto. — Boa noite, amor.
Meus olhos acompanharam a pessoa mais folgada do mundo
invadindo minha sala, como se fosse o dono dela, e se jogando no sofá,
usando a mesa de centro para apoiar os pés.
Minha voz foi tomada por sarcasmo quando seus olhos encontraram
os meus.
— Bom dia, querido.
Leandro sorriu, despreocupado.
— Vamos ter uma DR, cleputamaníaca.
Abandonei os documentos que precisava enviar para o setor de
arquivos e levantei, atravessando a sala para o alcançar do outro lado e me
sentar no espaço indicado por Leandro Salazar.
Apesar de estar agindo como sempre, existia uma mágoa contida em
seus olhos e eu sabia que tinha dado motivos para aquele sentimento existir.
— Desculpe por não ter atendido as suas ligações, meu bem — falei,
antecipando o assunto.
Soube que Bianca e ele discutiram naquele fim de semana, e apesar
de ter tentado descobrir através da minha amiga o que havia acontecido,
tudo o que ela me disse era que Leandro conseguia tirá-la do eixo e que eu
não deveria me preocupar com isso.
— Não, eu não desculpo — respondeu, birrento. — Não me importo
se vai ficar com o eremita ou não, mas isso não significa que o fato de
vocês brigarem; faz com que nós dois… — apontou de um para o outro —,
também tenhamos brigado.
Mordi as bochechas, engolindo a risada que ameaçou escapar e
assenti, de acordo com a sua condição.
— Desculpe por ter sido uma péssima amiga — disse, pegando em
sua mão e a apertando levemente. Era perceptível que ele estava
incomodado com alguma coisa. — Prometo que isso não vai se repetir, ok?
Quer conversar sobre o que está incomodando?
Leandro revirou os olhos, relaxando as costas no sofá e me levou para
perto, passando o braço sobre os meus ombros e deixando um beijo na
minha têmpora esquerda.
— Você está bem? — indagou, preocupado.
Senti seus dedos acariciarem o meu braço gentilmente.
Era engraçado pensar que na noite em que nos encontramos no bar de
um amigo em comum, ele disse em alto e bom som que não tinha amizade
com mulheres, e que tudo na sua vida girava em torno de sexo casual.
Ironicamente, Leandro vinha provando que era um idiota e que não sabia de
nada do que falava — em relação à amizade com mulheres.
Ele não era o primeiro babaca que eu ensinava a mudar aquele
pensamento estúpido. Antônio tinha sido o primeiro e o doutrinei quando
ainda era uma criança. Mas, sem dúvida alguma, Leandro Salazar seria o
que pagou com a língua mais rápido. Porque não bastava ter dito para Deus
e o mundo que não nutria amizade com o sexo feminino, ele também havia
dito que não se apaixonava.
E ele poderia negar o quanto quisesse, mas estava prestes a ganhar
uma coleirinha com o nome e sobrenome da minha melhor amiga.
— Estou bem.
— Então, a loucura de terminar com o eremita acabou? — investigou,
abrindo um sorriso quase infantil. — Finalmente, pensei que precisaria
levar o homem para tomar um porre.
Ri fraco, olhando para ele e o idiota sorriu, piscando para mim.
— Nada do que falei na sexta-feira mudou, Leandro.
Afastei-me, precisando de uma bebida para lidar com aquele assunto.
A oferta de Renato havia me feito cogitar voltar atrás na minha palavra e
aceitar seguir de onde paramos. Mas bastaram cinco segundos de reflexão
para que eu lembrasse o motivo para ter tomado aquela decisão.
— Que besteira, Nathalia. — Leandro me encarou, descontente. —
Renato nunca deixaria que nada disso acontecesse com você, não é possível
que seja tão estúpida ao ponto de comparar a sua situação com a da Olívia.
Engoli em seco, apertando os dedos em volta do copo e sentindo a
amargura começar a queimar nas minhas veias.
Era fácil me pedir para que não comparasse as situações, parecia
muito óbvio, mas o meu cérebro não funcionava daquela maneira.
A comparação me matava dia após dia, e por mais que eu fizesse
terapia para lidar com aquilo, ainda existiam momentos em que aquele
sentimento predominava e eu me sentia uma impostora na minha própria
vida. Situações como a de Olívia me davam um choque de realidade e
faziam com que me lembrasse de que tudo o que eu fazia, estava passível de
julgamentos.
Eu não podia vacilar.
Não adiantava falar que era estupidez me importar com aquilo, brigar
com aquele sentimento era inútil. Eu nunca ganhava, porque era uma
discussão fantasmagórica. Só existia na minha cabeça e era infernal.
— Não estou sendo estúpida, estou sendo realista — falei, sentindome atacada gratuitamente. — É muito fácil para vocês dois acharem que é
uma decisão simples, quando estão estáveis na carreira e não são
menosprezados o tempo inteiro.
Leandro revirou os olhos.
— E quem se importa com o que as pessoas falam?
— Eu me importo.
Ele se levantou, olhando-me como se existisse uma segunda cabeça
no meu pescoço e riu com escárnio.
— Então, você é imatura pra caralho.
Um tapa na minha cara teria doído menos.
Engoli em seco, sentindo os dedos esmagarem o copo na minha mão
enquanto o ar fugia dos meus pulmões. Pisquei, tentando confirmar se ele
realmente havia dito aquilo, mas a minha cabeça sequer se preocupou em
ouvir a explicação que veio quando ele percebeu que passou dos limites.
Imatura.
Até o Leandro me acha imatura.
Quem estou querendo enganar?
Leandro deu um passo para se aproximar, arrependido, mas era tarde
demais.
Tudo em que minha mente conseguiu se concentrar foram nas
palavras que escaparam de seus lábios, e isso foi o suficiente para abrir as
portas do pandemônio que existia dentro de mim e que eu tentava reprimir
intensamente.
— Nathalia… — ele falou, tentando remediar a situação, mas dei dois
passos para trás. — Só quis dizer que é lamentável que você gaste mais
tempo se preocupando com o que as pessoas pensam sobre sua vida em vez
de realmente vivê-la e…
Sacudi a cabeça, impedindo que continuasse falando; ao mesmo
tempo que tentava refrear aquela voz ácida que jogava na minha cara o
quanto eu era, no fim das contas, uma grande farsa.
Corram para longe, acabaram de descobrir que Nathalia Gama não
passa de uma fachada muito bem cuidada e alimentada por privilégios que
a fazem parecer interessante, madura e confiante…, mas que, na realidade,
não passa de uma criança imatura interpretando um papel que não lhe
cabe.
Encolhi os ombros, sentindo a garganta queimar pelo choro que
crescia e começava a me sufocar.
— Nathalia…
— Cala a boca, Leandro — grunhi, magoada. — Que direito você
acha que tem para falar alguma coisa para mim? — perguntei, furiosa. —
Sou imatura por priorizar minha carreira ao invés de uma relação que
sequer tinha começado… e você é o quê? — Ataquei, sem pensar direito.
Era puro instinto de autodefesa. — Você arruma um milhão de motivos para
se afastar da Bianca, só porque não consegue admitir que tem trinta anos, e
é um covarde que não sabe lidar com a ideia de estar gostando de outra
pessoa além de si mesmo!
Leandro me encarou, igualmente ressentido.
— Você não sabe porra nenhuma sobre a minha vida, Nathalia —
rosnou, cerrando os dentes com força.
Antes que eu pudesse jogar na sua cara que ele também não sabia
nada sobre a minha, a porta da sala foi aberta bruscamente e virei o rosto,
encontrando Renato olhando de um para o outro.
Seu olhar não era nada bom e ao perceber que Leandro e eu tínhamos
elevado o tom de voz, soube que qualquer um passando no corredor poderia
ter nos escutado — uma vez que a porta estava apenas encostada.
— O que está acontecendo aqui? — perguntou, descontente.
Engoli em seco, odiando reconhecer a insatisfação no seu rosto e
piorou quando vi que Roberta, Celine e Frederico estavam atrás dele,
provando que todos tinham escutado o que aconteceu aqui.
Abrindo caminho entre eles, meus olhos se encheram de lágrimas
quando o par de íris sombrias, bateram em mim. A expressão de desdém e
superioridade estava ali, assim como o sorriso de quem sabia que não
importava o que havia feito comigo alguns meses atrás, ele ainda estava na
firma porque a única pessoa que eu confiava me enfiou uma faca nas costas
e o deixou sair impune.
— É essa garota que você escolheu para ser diretora de operações? —
perguntou Guilherme, olhando para Renato cheio de cinismo.
— Saiam daqui. — Foi tudo o que ele disse.
Renato se virou para os outros e pude ver Celine e Frederico
titubearem. Meus ombros tremeram e a minha visão embaçou pelas
lágrimas que se acumulavam sem parar, fazendo com que os meus olhos
ardessem. Girei nos calcanhares, ficando de costas para ele e por um breve
momento, odiei Leandro.
Precisava descontar aquele sentimento horrível que estava pungindo
meu peito e me fazendo sentir a pior pessoa do mundo, e ele seria a vítima.
Não podia deixar que a minha mente descarregasse tudo em cima de mim
outra vez. Estava cansada de estar sob os ataques constantes daquela voz
insuportável. Sentia-me exausta de estar na minha própria cabeça.
Servi uma dose exagerada de vodca sem gelo, virando de uma única
vez e deixando que o gosto amargo descesse queimando na garganta.
Ignorei que Renato se desfez da pequena audiência que presenciou o meu
pequeno show.
E então, veio a culpa por ter dito o que falei.
Não era o que eu costumava fazer.
Minha raiva era direcionada apenas para mim, nunca descontava em
outra pessoa e costumava conseguir conter as coisas que se passavam na
minha cabeça. Mas escutar da boca do Leandro que ele também me achava
imatura… aquilo acertou em um ponto que me deixou cega.
— Vocês querem fazer o favor de explicar que porra foi essa? —
Renato interrogou, olhando de mim para o seu sócio e melhor amigo, mas
não consegui falar nada. Eu estava dando tudo de mim para conter o choro
que estava quase escapando.
Leandro balançou a cabeça.
— Ela está completamente descontrolada, é isso — disse, ressabiado
e magoado, dando-me as costas e caminhando para fora da sala, sem voltar
a me olhar e batendo a porta com força.
Pelo visto, eu também tinha acertado em um ponto que o feria.
E aquilo me fez sentir pior.
Renato trancou a porta, impedindo que alguém entrasse e se
aproximou da minha mesa, apanhando o telefone e ligando para alguém.
— Ananda, desmarque os compromissos da Nathalia pela manhã, por
favor… ela está indisposta — pediu para a sua secretária.
Não escutei o que a garota disse, mas ele confirmou e devolveu o
aparelho ao gancho. Sério, ele caminhou em minha direção e tirou o copo
vazio das minhas mãos trêmulas.
E me peguei completamente travada pelo remorso.
Eu não conseguia fazer nada certo?
Poderia ter encerrado aquela conversa de inúmeras maneiras sem ferir
Leandro no processo, mas a minha primeira resposta foi atacá-lo da mesma
forma que me senti atacada.
Era minha culpa estar naquela situação, eu não conseguia controlar a
minha própria cabeça e agora três sócios sabiam que bastava apertar um
pouco, e eu esqueceria da diplomacia e agiria como uma mimada.
Tudo aquilo era minha culpa.
O que aconteceu com Olívia também era minha culpa.
Não fui presente na vida dela, estava tão ocupada atrás das minhas
coisas que esqueci de ser uma amiga presente. Da mesma forma que estava
fazendo com Bianca, e para piorar tudo, ainda tinha tocado em uma ferida
de Leandro só porque não estava conseguindo lidar com o peso do remorso.
De repente, senti que havia sido a responsável pelos problemas de
todas as pessoas ao meu redor e, talvez, eu fosse mesmo.
— Ei, olhe para mim — Renato pediu, segurando o meu rosto em
suas mãos e girando o polegar na minha bochecha, espalhando calor nas
maçãs que estavam frias. — Anjo, olha para mim.
Pisquei, sentindo a respiração pesada nos meus pulmões.
— Nathalia!
A dureza em sua voz me obrigou a subir o olhar na sua direção,
encontrando as orbes castanhas enterradas no meu rosto. Um pequeno vinco
entre as sobrancelhas marcava a sua preocupação e quando uma mão
abandonou o meu rosto para tocar meu peito sobre a blusa, percebi que não
estava conseguindo respirar normalmente.
Aquela constatação foi o suficiente para que meus pulmões entrassem
em colapso total, buscando pelo ar que não conseguia chegar ao seu
destino.
Meu coração estava acelerado, batendo tão violento dentro do peito
que sentia que iria pular para fora a qualquer instante.
E doía, tornava ainda mais difícil a tentativa de continuar respirando.
Os braços de Renato me envolveram quando minhas pernas perderam
a força e ele me guiou para o sofá, obrigando-me a sentar. Seus ombros
estavam tensos e a sua mão buscou pelo celular e sem tirar os olhos de
mim, ele ligou para alguém.
O choro ameaçou escapar, descontrolado e irracional.
Não consegui identificar de onde aquilo estava vindo e,
consequentemente, não pude conter.
Renato segurou minhas mãos, trêmulas e suadas, falando com alguém
ao telefone e tentei me concentrar na sua voz, mas sentia como se fosse um
animal indo para o abate, prestes a ser atacada por algo na espreita;
fazendo-me sentir um medo incontrolável.
— Nathalia…
Minha visão embaçou e senti meus pulmões lutarem em busca de
oxigênio, mas a cada nova tentativa sentia que estava afogando mais
naquele desespero.
De repente, foi como se estivesse me afogando dentro de mim.
Nathalia estava tendo um ataque de pânico.
Assim que desliguei o telefone com um médico que ficava na mesma
torre e estava a caminho, corri os olhos por ela e abri alguns botões da sua
camisa para que aliviasse a sensação de falta de ar.
— Ei, anjo, fale comigo — pedi, preocupado e mantendo a calma.
Ela estava pálida, suada e trêmula, o único som que escapava dos
seus lábios era um chiado falhado e aflito.
— Feche os olhos — pedi, segurando o seu rosto e seus olhos
nublados fincaram nos meus —, por favor, anjo… feche os olhos e tente se
concentrar na sua respiração.
Ela demorou um pouco, mas atendeu ao meu pedido.
Nathalia inspirou o ar lentamente, segurando-o em seus pulmões por
alguns segundos e apertando a minha mão, me usando como uma âncora
para se manter presa a realidade.
Quando soltou o ar, refez aquele processo repetidamente até que se
acalmasse e sua respiração retornasse gradativamente ao normal.
Com calma e tentando ao máximo não a assustar, desvencilhei as
nossas mãos e capturei seu pulso, guiando-a para tocar o meu rosto. Seus
dedos roçaram na minha pele, acariciando a região áspera pela barba que
começava a crescer e mesmo quando soltei os seus pulsos, ainda me
mantive perto.
Seus dedos se arrastaram nas minhas bochechas, sem pressa, ainda
trêmulos e frios. Sua respiração oscilou um pouco, aquele chiado
atormentado ainda escapava dos seus lábios; me fazendo ter consciência de
que ela poderia se perder na própria mente outra vez.
— Abra os olhos, amor — pedi, acariciando seus joelhos que também
se moviam, agitados.
Nathalia atendeu ao pedido e cravou os olhos nos meus, e eu seria
capaz de matar o filho da puta que chamava de amigo por qualquer que
tenha sido a merda que falou para trazer aquela angústia à tona.
Deixei que uma mão subisse para o seu rosto e antes que a trouxesse
para perto, Nathalia jogou o corpo sobre mim. Seus braços me envolveram
em um abraço necessitado e atormentado; e os meus circundaram a sua
cintura, apertando-a e rezando para que aquilo fosse, de alguma forma,
capaz de ajudá-la a se livrar do que sentia.
Acariciei suas costas, deixando que meus dedos escorregassem pela
sua coluna e sentindo sua respiração pesada contra o meu pescoço, as
lágrimas silenciosas encharcaram a minha camisa.
— Tudo bem, anjo — falei, rouco. — Estou aqui com você e não vou
sair — prometi, sentindo-a me apertar mais.
Nathalia soluçou, indefesa.
Levantei-me devagar, tomando cuidado para não a soltar e a coloquei
sentada em meu colo no sofá. Ela se aninhou ao meu peito, aspirando meu
perfume como se aquilo fosse uma bússola e o meu abraço, o seu porto
seguro.
Sem a soltar, ajudei a se desfazer das tiras da sandália de salto que
usava e isso permitiu que Nathalia se encolhesse, vulnerável.
Sua mão ainda gelada, buscou pela minha e ela estremeceu.
Tentei buscar na minha mente algo que pudesse fazer para a distrair,
mas tudo o que estava conseguindo focar era na sua respiração que, apesar
de mais controlada, estava longe do normal.
— Ei… por que não me explica o motivo para gostar tanto daquele
casal? — sugeri, fazendo carinho em seu cabelo.
Nathalia pendeu a cabeça para trás, confusa.
— Que casal?
— Summer e… Scott.
Fingir ter esquecido o nome do personagem surtiu efeito.
Nathalia franziu o cenho e ao identificar de quem estava falando, me
olhou como se eu fosse maluco.
— É Seth!
Revirei os olhos, como se não fizesse diferença alguma.
— Isso, esse garoto aí — murmurei, fingido. — O que tem de mais
neles? Não são nem os protagonistas da série…
As orbes castanhas me fitaram com uma raiva genuína, como se
tivesse cutucado uma onça com vara curta. Nathalia se sentou, espalmando
as mãos em meu peito e me encarou com determinação.
— Não importa que não sejam os protagonistas, no fim, foram
maiores do que os outros dois — resmungou, azeda e ainda ofegante. —
Seth e Summer são incríveis justamente porque… de um jeito muito
estranho, combinam.
Alcei a sobrancelha, desconfiado.
— Isso me soa mais favoritismo do que um fato.
Foi a vez de Nathalia revirar os olhos, como se eu estivesse falando
bobagem.
— Seth era apaixonado por ela desde sempre, você tem noção do
quanto isso é fofo? Ele, literalmente, se apaixonou pela Summer quando
olhou para ela pela primeira vez — explicou, soltando um suspiro fraco,
quase idealista. — É o tipo de coisa que só acontece em filmes. Não que
não exista na vida real. É meio comum, mas estou falando do sentimento
que dura, sabe? Seth se apaixonou por ela e o sentimento continuou ali, não
passou… ao contrário, só cresceu. Mesmo com ela evitando e o
menosprezando.
Foi inevitável não sorrir ao apreciar a forma como o seu sorriso se
expandiu nos lábios, alcançando os olhos e os transformando em pequenas
fendas. As covinhas em suas bochechas roubavam a atenção e o seu rosto se
iluminou, denunciando a empolgação ao falar sobre o casal fictício.
— É um pouco irônico que você idealize um cara que se apaixonou à
primeira vista, e ainda assim esteja me dando um pé na bunda. Onde está o
meu final como Seth Cohen? — perguntei, fingindo tristeza.
Nathalia me encarou, os lábios se entreabriram e suas bochechas
ruborizaram violentamente.
— Então, você se apaixonou à primeira vista? — indagou, fisgando o
lábio inferior entre os dentes.
— Isso não ficou óbvio? — Franzi o cenho, confuso. — Que
estranho, não faço questão de disfarçar…
Ela riu.
O alívio tomou conta de mim ao perceber que Nathalia havia se
acalmado, os ombros estavam menos tensos, a sua respiração voltou ao
normal e apesar de suas mãos ainda tremerem um pouco, estava muito
melhor do que antes.
— Bom… pensando bem, isso justifica você ter usado a primeira
oportunidade que teve para me declarar sua esposa… — estalou a língua,
irônica.
Capturei a sua mão esquerda, trazendo-a para perto, atraindo o olhar
curioso de Nathalia para ela. Arrastei o polegar por cima do seu anelar,
tocando levemente a veia exposta. Nathalia tinha a pele tão clara, que eu
conseguia ter um vislumbre do contorno da veia que subia pelo seu dorso e
se perdia no antebraço.
— Você sabe por que quando as pessoas se casam, a aliança é
colocada na mão esquerda? — indaguei, esticando a mão para alcançar um
pedaço solto de post it rosa. Com a mão livre, enrolei-o calmamente para
que se transformasse em uma faixa de papel fina.
Nathalia franziu o cenho, intrigada com a minha pergunta.
— Não, por quê?
Soltei a sua mão, por tempo suficiente para moldar a fita de papel
rosa em um círculo que passaria com folga pelos seus dedos finos e
delicados.
— Na verdade, é uma lenda muito antiga — murmurei, capturando
sua mão novamente, deixando que meu polegar acariciasse a veia marcada
em seu anelar. — Os egípcios acreditavam que a veia do quarto dedo na
mão esquerda estava diretamente ligada ao coração. — Subi o olhar para o
seu rosto, encontrando a sua atenção compenetrada nas nossas mãos. —
Eles a chamaram de vena amoris… que é, basicamente, “veia do amor” em
tradução do latim.
Nathalia arqueou a sobrancelha, acompanhando enquanto o anel de
post it era empurrado pelo seu anelar. Tinha ficado um pouco frouxo, não
duraria muito tempo e ela provavelmente acabaria perdendo até o fim do
dia, mas não demoraria para que fosse substituído por um que perduraria
por longos anos.
— Dessa maneira, quando duas pessoas se casavam, aquela
cerimônia não era apenas a formalização de uma união entre as famílias.
Como acreditavam que o coração era a principal fonte e combustível da
alma, aquele casamento também seria uma conexão entre elas. — Seu olhar
subiu para mim, aquele brilho lindo queimava nas suas íris, lembrando-me
que ela seria capaz de iluminar uma cidade inteira, se assim desejasse. — E
como é um vínculo de almas, ele é inquebrável. Logo, nas crenças que
acreditam nos fundamentos da vida após a morte ou na própria
reencarnação… a vena amoris é vista como uma forma de garantir que
aquela conexão vai se manter naquela, e em todas as outras vidas que
aquele casal se encontrar.
Nathalia sorriu, libertando a sua mão da minha e examinando o anel
de papel como se fosse a joia mais preciosa que viu na vida. Quando o seu
olhar voltou para mim, as suas mãos não tremiam mais. Não havia qualquer
resquício de que alguns minutos atrás, ela estava tendo um ataque de
pânico.
— Isso é um pedido de casamento, Sr. Trevisan? — brincou,
descansando a mão sobre a minha e trouxe o seu rosto para perto, deixando
um beijo em sua testa.
— Pensei que já estivéssemos casados, Sra. Trevisan — falei, vendo
o seu rosto se acender em felicidade genuína, deixando-a terrivelmente
linda.
— Certo, certo…, mas fique sabendo que acho muito brega ser
chamada de esposa — provocou, sorrindo travessa.
— Posso usar o termo: minha mulher, se preferir.
Ela estalou a língua, soltando um suspiro fraco.
— Consigo sentir cada gota de feminismo sair pelos meus poros.
Gostei da ideia…, mas, fique claro que ainda não vou fazer café para você
nessa… muito menos em outras vidas.
Dei risada, amando vê-la sendo petulante outra vez.
Aninhei minha mão livre em sua nuca e Nathalia deixou o rosto
pairando sobre o meu, permitindo que a sua boca roçasse na minha
levemente. Seus olhos se fecharam e ela entreabriu os lábios, ansiando pelo
contato que eu desejava desde o dia em que ela tentou me chutar para fora
da sua vida.
— Tudo bem. O que me interessa é que nessa e em outras vidas, você
me pertence — confidenciei, aumentando o aperto dos meus dedos na sua
nuca, ansiando pelo seu beijo.
Uma batida na porta fez com que Nathalia se afastasse assustada, e do
lado de fora escutei a voz de Ananda informando que o Dr. Lúcio havia
chegado para examinar a minha diabinha.
— Chamei um médico para ver como você está.
Em silêncio, ela sacudiu a cabeça em resposta, atordoada pelo
rompimento abrupto da bolha em que estávamos presos.
Nathalia se sentiu cansada após ser examinada pelo Dr. Lúcio, e ele
recomendou que descansasse pelo restante do dia.
Apesar de ter insistido em chamar um motorista particular, deixei
claro que a única maneira aceitável para que fosse embora do trabalho, seria
indo comigo. A última vez que a deixei sair por conta própria, ela pegou um
avião e foi direto para a Colômbia. E como a maior parte dos meus
compromissos daquele dia se resumiam a pendência administrativas do
escritório, eu conseguiria resolver em casa.
— Renato? — A voz de Ananda me fez virar, encontrando a garota
com um olhar curioso em minha direção. — O Sr. Bastos está chamando
todos os sócios para a sala de reunião C, ele disse que é um assunto de
extrema importância.
Revirei os olhos, duvidando da relevância da pauta que ele queria
tratar com os sócios e ainda que fosse, de fato, importante como ele
alegava, Nathalia estava acima daquilo e o seu bem-estar era a minha
prioridade. Qualquer outro assunto poderia ser acertado em outro horário,
previamente marcado. Ninguém ali era funcionário de Guilherme para ser
intimado quando ele bem-quisesse.
— Diga que estou de saída — falei, recolhendo todas as pastas e
deixando o que deveria ser enviado para a minha casa em uma pilha
separada. — Peça ao Luan que deixe esses documentos no meu escritório
em casa, vou verificar tudo à noite.
Ananda meneou a cabeça, mas, hesitou antes de sair da sala e chamou
a minha atenção.
— Não que eu esteja querendo me meter na sua vida pessoal…, mas
meio que me metendo um pouquinho — falou, olhando-me cheia de
curiosidade. — Essa escapada no meio do expediente tem algo a ver com a
visita que recebeu mais cedo da loira bonitona?
— Que loira?
A pergunta fez com que Ananda sobressaltasse, assustada.
Minha secretária girou nos calcanhares e deu de cara com Nathalia,
que não estava com a expressão mais amigável estampada no rosto. Seu
olhar veio em minha direção, aguardando por uma resposta para a sua
pergunta. Aquilo quase me arrancou um sorriso quando reconheci a
possessividade em seu olhar.
— Hã… oi Nath, que susto, mulher! — Ananda levou a mão ao peito,
fazendo uma careta dolorida. Não durou muito tempo, a fofoqueira não
demorou a explicar para Nathalia do que se tratava. — Uma mulher loira
que apareceu aqui antes do mercado abrir. Não quis falar o nome e veio
direto para a sala dele.
Se confidencialidade fosse um requisito para que Ananda conseguisse
qualquer emprego, ela estaria desempregada há muito tempo. Não era à toa
que se dava tão bem com Leandro — uma vez que os dois se divertiam em
debater sobre a vida dos outros como duas velhas desocupadas.
A resposta, no entanto, não agradou nenhum pouco o meu pequeno
anjo diabólico.
Nathalia semicerrou os olhos no meu rosto, esquartejando cada
mísero pedaço dele em sua mente e voltou para a minha secretária, forçando
um sorriso.
— Não me diga! — As palavras saíram entredentes, uma veia pulsou
em sua testa e Ananda confirmou, sem sequer se dar conta do problema em
que me colocou.
— Pois é… e agora, o homem mais workaholic que eu conheço vai
sair do trabalho no meio do expediente. Você sabia que em cinco anos
trabalhando para ele, as únicas vezes em que isso aconteceu foram porque
os meninos estavam doentes?
— Ananda, vá trabalhar, por favor.
Ela ergueu as mãos, como se não estivesse mais ali quem tinha aberto
a boca. A garota saiu da sala, deixando-me com a minha mulher por um triz
de enfiar as unhas nos meus olhos.
— Feche a porta, anjo.
Nathalia negou, teimosa.
— Não é necessário… só passei para avisar que estou saindo — disse,
emburrada. Ela segurou a maçaneta e fez menção a fechar a porta na minha
cara, mas algo passou em sua mente e ela fez o oposto. — Na verdade, eu
acho engraçado que você estava ontem mesmo me pedindo para dormir na
sua casa, alegando que tinha sentido minha falta e…
Ela não teve tempo de concluir, e agradeci mentalmente por ter
fechado a porta antes de avançar em minha direção como uma força da
natureza.
Minhas mãos enlaçaram o seu corpo e a aprisionaram contra o meu.
Quando seus lábios colidiram com os meus, bruscos e raivosos, tive um
vislumbre de como era alcançar o céu, antes de ser incendiado pelo calor do
seu corpo. Seus dedos agarraram o meu cabelo, puxando com força,
impedindo que eu me afastasse e o meu braço ao seu redor a sustentou
quando suas pernas ameaçaram perder o equilíbrio.
Nathalia gemeu contra a minha boca, e senti tanto a falta daquele som
doce que precisei de muito esforço e dedicação para mantê-la vestida, ou
acabaria fodendo-a em cima da minha mesa — apenas para tentar aplacar a
saudade que corroía meus ossos.
Infelizmente, não durou.
Ofegante e trêmula, Nathalia se afastou de mim.
— Você é um cretino! — grunhiu, enciumada.
Ela tentou aumentar a distância, mas minha mão pesada em seu
quadril impediu que obtivesse sucesso naquela tentativa.
— Não é nada do que está pensando, anjo — falei, calmo.
Aquilo a enfureceu ainda mais.
— É o que todo homem culpado diz!
Nathalia se desvencilhou, irracional.
— Ananda é intrometida e exagerada, não leve a sério tudo o que ela
diz — pedi, pegando em seu braço e a trazendo para perto novamente. —
Posso ter a chance de explicar quem veio aqui, antes de ser enviado para a
forca?
— Não.
— Era a Luiza.
— Não quero saber.
— Ela veio aqui…
— Eu disse que não quero saber!
Sorri, esmagando a sua cintura sob a minha mão e a mantive ali,
colada a mim. Seus braços estavam cruzados em frente ao peito,
sustentando uma distância que era desnecessária e o seu olhar tentou a todo
custo fugir do meu.
— Como eu estava dizendo, a Dra. Luiza veio aqui porque me pediu
para conversarmos sobre o Igor — expliquei, pacífico.
Aquilo atraiu a atenção de Nathalia e fez com que os seus ombros
relaxassem um pouco. A desconfiança ainda estava explícita em seus olhos,
mas ela sabia que eu jamais usaria os meus filhos para qualquer coisa,
principalmente, em uma mentira.
Um suspiro fraco e aliviado escapou do fundo da sua garganta, mas
ela era orgulhosa demais para deixar que aquilo ficasse evidente.
— O que tem o Igor? — perguntou, a sua voz dando lugar a
preocupação.
— A cada quinze dias nos reunimos para conversar sobre os garotos.
Normalmente, vou até o consultório dela, mas como hoje ela tinha um
compromisso aqui no complexo, decidimos conversar na minha sala —
elucidei, vendo sua respiração se acalmar e aquela possessividade que
queimava nos seus olhos cedeu um pouco. — Não expliquei para Ananda
sobre o que se tratava a reunião, porque não julguei que fosse necessário.
Nathalia meneou a cabeça, sem esconder o alívio.
— Ok.
Uma risada silenciosa me escapou e a fitei, intrigado com a sua
reação.
Nathalia tinha comentado sobre como era ciumenta na sorveteria,
mas julguei que estivesse exagerando para fazer com que Igor se sentisse
acolhido.
Pelo visto, era verdade.
Luiza e eu monitorávamos as oscilações de comportamento do Igor e
a terapeuta notou que o meu filho estava mais receptivo para conversar,
especialmente, nas últimas sessões. Pelas minhas contas, as datas batiam
com a conversa que tiveram sobre quando ela começou a frequentar a
terapia. A Dra. Luiza acreditava que havia a possibilidade dele ter sido
influenciado pelo relato de Nathalia.
Por isso, decidi compartilhar a informação com ela.
— Você acha que o influenciei a falar com a psicóloga? —
perguntou, pasma. — Mas eu não falei nada demais…
Sorri, deixando que meus dedos escorregassem nas suas costas.
— Luiza não acha que tenha sido algo que você disse explicitamente,
mas o fato de ter falado sobre, pode ter o ajudado a ver como algo positivo.
— Resumi o que a mulher havia me dito mais cedo.
Nathalia franziu o cenho, confusa.
— Mas você também fez. Ele não sabia disso antes?
Anuí, achando graça daquela constatação.
— Talvez… seja por você ter feito pelo mesmo motivo — ponderei.
Nathalia pensou um pouco, refletindo sobre aquela noite e soltou um
suspiro fraco.
— Acho que sim… isso é ruim?
— O quê?
— Não sei. É exatamente o que Pedro disse que aconteceria, não? —
questionou, incerta. — Não quero prejudicar…
— Anjo, você escutou o que eu falei? — indaguei, segurando o seu
rosto e a afastando daquela insegurança. — Isso é bom. Você não
prejudicou nada, foi o contrário.
Nathalia pareceu inquieta, mas não tivemos tempo para que dissesse
qualquer coisa. Uma batida na minha porta soou e o seu corpo se
desvencilhou do meu, ganhando uma distância considerável quando permiti
que entrassem.
Para a minha infelicidade, Guilherme passou por ela e moveu sua
atenção de mim para Nathalia que estava perto das janelas, fingindo olhar
para a Av. Paulista lá embaixo.
— Guilherme — cumprimentei, a contragosto. — O que foi?
— Existe algum motivo para que você não possa se reunir aos outros
sócios? — indagou, cruzando os braços em frente ao peito e me encarou,
prepotente.
Calmamente, recostei o corpo na minha mesa e o esquadrinhei,
tentando compreender como, durante três longos anos em que foi o
administrador da firma, nunca deixou que aquela personalidade fosse
exposta.
Não tínhamos contato frequente, quando aceitei o nomear como
administrador do escritório, eu queria me ver livre de todas as dores de
cabeça e ele executou perfeitamente o papel, sempre foi educado e solícito
durante as reuniões de prestações de contas.
Se não tivesse tido a ousadia de alterar cláusulas do contrato antes de
se reunir com Nathalia, seria o atual CEO da RCI. Era uma coisa que
aconteceria de qualquer forma porque nenhum dos sócios principais
queriam aquela responsabilidade.
Eu não sabia se recompensava a Nathalia por ter notado aquele
movimento antes que fosse tarde demais, ou se focava no desejo latente de
arrebentar a cara do filho da puta toda vez que o seu olhar se movia para
ela, e me lembrava do que Nathalia contou sobre o que aconteceu naquela
noite.
— Não lembro de você ter solicitado previamente uma reunião —
esclareci, levantando e dando alguns passos pela sala, me colocando entre
Nathalia e ele, incomodado com a sua atenção nela. — O único motivo que
considero aceitável para que você exija que eu abandone os meus
compromissos e participe de uma reunião de última hora, é se o mundo
tiver entrado em guerra e os mercados estiverem derretendo. Qualquer coisa
diferente disso, não é urgente e pode ser agendada.
Se fosse qualquer outro sócio fazendo aquilo, receberia a mesma
resposta. Se eu abrisse exceção para cada pessoa que aparecia com uma
demanda “urgente” e largasse tudo para lidar com o problema, não
trabalharia nunca.
Guilherme sorriu cínico e assentiu, desviando o seu olhar para
Nathalia atrás de mim e deu um passo para frente, deixando-me ver os dois
envelopes em sua mão.
— Eliane vai se casar no dia oito de março — anunciou,
abandonando os dois embrulhos refinados em cima da mesa. — Todos os
sócios foram convidados, e não preciso dizer o quanto ficaria feio se não
comparecerem na cerimônia de uma sócia.
Como havia previsto, era o tipo de assunto que não carecia da minha
presença, tampouco de ter feito todos pararem o que faziam para escutá-lo.
— Seria interessante que a nova diretora de operações confirmasse
presença também, já que ela não consegue atender uma simples ligação —
provocou, olhando diretamente para a minha mulher. — Entendeu,
Nathalia? Ou para te dizer isso também preciso passar pelo Renato?
— Guilherme — repreendi, entredentes.
Havia sido muito claro quando avisei que ele não tinha qualquer
assunto para tratar diretamente com Nathalia. Não apenas porque não o
queria perto dela, mas porque era um fato. Ele tinha a sua própria
supervisora de operações e não existia motivo para importunar Nathalia. O
cargo de COO a colocava à frente de funções sem qualquer vínculo com o
que ele fazia no Rio.
Ele sorriu, ciente de que havia ultrapassado um limite.
— Não esqueçam. A ausência de qualquer sócio vai ser o suficiente
para causar uma péssima impressão sobre a firma. Toda a imprensa carioca
foi convidada, e será importante para os negócios.
Acenei, deixando claro que tínhamos compreendido.
Eliane se casaria com um publicitário que cuidava da assessoria de
imagem de metade das celebridades que viviam no Rio, era um evento que
teria repercussão nacional e se tratava mais de uma imagem a se vender do
que o casamento em si. Seria uma transação de negócios para os dois,
importante para ambas as carreiras.
— Estaremos lá — falei, encerrando a conversa e deixando claro que
era a sua hora de ir embora.
Assim que ele fechou a porta sem se dar ao trabalho de se despedir,
girei nos calcanhares e encontrei Nathalia pálida, apertando as unhas nas
palmas das mãos e flagelando toda a sua irritação em si mesma.
— Vem aqui, anjo — chamei, ela soltou o ar que estava segurando e
quebrou a distância entre nós, aninhando-se em meus braços.
A semana passou rapidamente, num piscar de olhos, o oposto do que
eu imaginava após ser forçada a me afastar do escritório por alguns dias.
— O que você acha que motivou o ataque de pânico? — Pilar
perguntou, analisando-me através da tela.
Mesmo que nossas consultas fossem feitas à distância, a atenção e o
olhar que direcionava não me fazia sentir nenhuma diferença entre as
consultas presenciais e on-lines. De todas as maneiras, aquela mulher era
capaz de arrancar cada mísero pensamento que ocupava espaço na minha
cabeça. Às vezes, ela encontrava alguns que eu sequer sabia que existiam,
mas que estavam ali, alugando um triplex e aguardando o momento ideal
para dar as caras.
— Acúmulo de estresse — falei, sem hesitar. — Estava lidando com
muitas coisas ao mesmo tempo: a fusão, os problemas com Guilherme e
Roberta, o caos no mercado antes do Carnaval… o novo cargo, o estágio na
B&H, o vídeo da Olívia e o “término” com o Renato — enumerei todas as
coisas com as quais tive que lidar nas últimas semanas. — Quando Leandro
me chamou de imatura, acho que foi a gota d’água para eu explodir.
Pilar sorriu, apreciando a minha facilidade em reconhecer o que
desencadeou a crise no início da semana.
— Conversamos sobre isso em diversas sessões, Nathalia. Quando
você ignora um problema e o joga de lado, ele nunca vai embora de
verdade. O assunto continua na sua mente e vai se acumulando com todas
as outras pequenas coisas que você achou que não eram tão importantes
para resolver. — Ela me olhou com calma por baixo dos cílios grossos. —
E então… o seu cérebro aproveita um simples pensamento intrusivo para
trazer à tona todas essas pendências que você julgou anteriormente como
não tão importantes. É um padrão comportamental vicioso que alimenta a
sua autossabotagem. E o que você precisa fazer para interromper esses
episódios?
Soltei um suspiro, pegando a garrafa de água e bebendo um gole
longo.
Conhecia aquele discurso de cor e salteado, mas estava tão cansada
de ficar constantemente lutando com a minha própria cabeça pelo controle,
que não tive forças para lembrar ao meu cérebro que nada do que aquela
voz irritante falava era verdade.
Foi ao contrário.
Graças ao estresse por tudo o que vinha acontecendo, permiti que as
minhas defesas cedessem e entrei no modo sobrevivência. Minha discussão
com Leandro acabou sendo o limite, mas poderia ter acontecido com
qualquer pessoa.
Era uma daquelas situações: hora e lugar errado.
Me culpava por ter descontado em cima dele, e por isso, estava
evitando suas mensagens desde o início da noite de segunda-feira.
Na verdade, se fosse ser honesta, uma parte de mim agradecia
imensamente por Renato ter insistido que eu ficasse longe do escritório por
alguns dias.
Estava cansada.
De todas as formas possíveis.
Era exaustivo não conseguir conviver com a própria mente sem estar
em constante alerta, sempre pronta para rebater cada pensamento
autodepreciativo e sabotador que ameaçava escapar.
Era deprimente não conseguir aceitar um elogio porque sentia que
não o merecia, mas ainda precisar sorrir e fingir que não apenas acreditava
piamente que era digna, como não tinha dúvidas de que deveria receber
todos os méritos pelas minhas ações.
Eu sabia que era boa no que fazia, melhor do que muitos outros.
Tinha ciência de que não deveria me comparar com ninguém além de mim,
mas ainda assim… aquela pressão me perseguia e me fazia duvidar de tudo
o que conquistava.
Era mais fácil aceitar uma crítica do que um elogio.
Era mais simples levar um comentário maldoso como verdade
absoluta.
Era muito mais plausível presumir que um olhar torto, significava que
todos me detestavam — e não apenas a pessoa que fez com que eu me
sentisse assim.
Era normal assumir que um mísero erro atestava a minha completa
incompetência.
E de algum jeito, consegui falhar miseravelmente em cada coisa que
tentei nas últimas semanas.
Falhei em ser uma boa amiga para Olívia e Bianca. Fracassei em
sustentar a escolha que tinha feito semanas atrás em Ilhabela, e ferrei com
tudo quando soltei a minha bagunça em cima de Leandro.
Não me sentia uma boa companhia, ainda assim, isso não impediu
que Renato viesse me ver todos os dias.
Algumas horas depois de encerrar a terceira consulta daquela semana
com a Dra. Pilar, meus olhos se moveram para a porta que havia acabado de
ser destrancada.
Bianca e Leandro foram passar o fim de semana em Ilhabela com a
sobrinha do Salazar, e eu sabia que não podia ser os meus pais ou Antônio.
O que significava que era a única outra pessoa que conseguiu acesso livre
para entrar e sair da minha casa quando quisesse.
Meu porteiro havia se acostumado com a presença recorrente dele
nos últimos dias, e não se dava mais ao trabalho de avisar que Renato tinha
entrado no prédio. E levando em conta o horário, eu sabia que os garotos
ainda estavam no colégio e isso significava que, além de ter cancelado a
viagem que deveria fazer naquela semana para encontrar com um cliente
em Miami, Renato também cancelou parte dos seus compromissos da tarde
para me fazer companhia. Outra vez.
Não soube definir se ficava ainda mais encantada por ele, ou se me
odiava por estar dando tanto trabalho.
O prêmio de pior COO do mundo seria meu.
Mal tinha assumido o cargo e colecionava mais faltas no trabalho do
que quando era apenas a faz-tudo da Roberta.
Aquele era só mais um item na lista das coisas que consegui fracassar
nas últimas semanas.
Renato deveria se arrepender por não ter escutado Roberta quando ela
disse que eu não estava pronta para ser promovida. Se o tivesse feito, teria
se poupado de toda a dor de cabeça que o acompanhou nos últimos dias.
Deitei-me no sofá, desejando que meu corpo fosse engolido pelo
estofado e acompanhei enquanto ele falava ao telefone com um cliente
espanhol.
Soltei um suspiro, cansada.
Era bizarro que estivesse exausta — considerando que sequer havia
saído de casa. Nos últimos dias, eu queria poder dormir até que a minha
mente voltasse ao que era antes da última sexta-feira.
Minha cabeça pesava e dava nós intermináveis a cada fração de
segundo, e só queria me sentir melhor outra vez. Um pouco mais parecida
com o que costumava ser nos dias bons, não aquela bagunça deprimente dos
dias ruins.
Sentei-me no sofá ao vê-lo entrar no meu campo de visão e meus
olhos se fixaram nas flores que ele havia trazido. Renato deixou a chave do
carro em cima do aparador e correu seus olhos pelo apartamento,
enterrando a sua atenção em mim e respondendo algo que perguntaram
meio que de forma mecânica.
Com a cabeça pesando uma tonelada, levantei-me e caminhei na sua
direção, analisando o arranjo de peônias cor de rosa que havia sido
cuidadosamente montado com alguns ramos de gipsófilas. Era a minha flor
preferida e, por isso, sabia que era raro encontrar uma floricultura que a
tinha na estufa. Em São Paulo, eu só conhecia um lugar e ficava tão longe
quanto a confeitaria que fazia meus doces preferidos — e que Renato
também tinha visitado, devido à sacola delicada que segurava.
Soltei um suspiro, afetada.
Antes que quebrasse a distância entre nós, Renato se despediu da
pessoa com quem conversava e abandonou o celular. Sua mão mergulhou
em meu cabelo e me guiou para perto, deixando um beijo demorado na
minha testa.
— Você é o sonho de consumo de toda garota para um ex-ficante —
resmunguei, jogando a cabeça para trás para ver o seu rosto bonito. — E o
pesadelo de qualquer homem que apareça depois de você.
Ele sorriu, apertando os dedos na minha nuca e me entregando o
buquê de flores.
— Como você está se sentindo? — investigou, preocupado.
Depois que saímos do escritório na segunda-feira, Renato me trouxe
para casa e ficou me fazendo companhia durante toda a tarde. Ele não
precisava, porque tudo o que fiz foi chorar copiosamente, e se fosse mais
inteligente, teria se poupado daquilo tudo. Pensei que não o veria pelo resto
da semana, mas ele voltou todas as manhãs, ficou comigo por algumas
horas e retornou no início de cada tarde.
Não estamos em uma relação séria ou casual, tecnicamente,
terminamos. Mas isso não o impedia de ser… ele.
Atencioso. Carinhoso. Protetor.
E era tão irritante porque Renato vinha estabelecendo padrões muito
altos e que nenhum homem conseguiria ultrapassar.
— Melhor — falei, o que não era tão mentira assim.
Se fosse calcular o meu avanço nos últimos três dias e definir um
percentual para os pontos positivos e negativos, eu poderia afirmar que
estava… vinte por cento melhor do que na manhã de terça-feira.
Em minha defesa, consegui sair da cama por vontade própria e
coloquei os trabalhos da especialização em ordem.
Tudo bem que o Prof. Otto informou que havia sido mediano para os
meus padrões? Tudo certo. Estava tudo bem, eu me sentia mediana naquela
semana.
Era justo e eu aceitaria aquele feedback sem enlouquecer.
Renato não acreditou na minha resposta, era quase como se ele
conseguisse ler os meus pensamentos e se isso fosse humanamente possível,
era mais um motivo para me questionar sobre os motivos dele estar fazendo
tudo aquilo.
Sendo companheiro, compreensivo, atencioso, protetor… ele não
estava ganhando nada em troca.
Desci a atenção para as flores, me dando conta de outro detalhe.
Nunca contei para ele sobre minha obsessão por peônias, mas bastava
analisar meu apartamento com um pouquinho mais de atenção do que o
normal, e ficava explícito.
Em uma parede, existiam vários quadros com as flores pintadas
cuidadosamente — algumas mais brutas e outras delicadas. E, eu também
tinha uma tatuagem no corpo, era pequena e feita com traços finíssimos,
mas ocupava alguns centímetros da minha costela direita.
A maioria das pessoas não percebiam aquilo e se o faziam, não eram
capazes de ligar os pontos, mas Renato era uma raridade, e a cada dia que
se passava ele comprovava a minha teoria de que havia sido
cuidadosamente criado por uma divindade muito dedicada em criar a
epítome de um homem perfeito.
— Você almoçou? — questionou e balancei a cabeça, negando. —
Certo, vamos resolver isso.
Não estava com fome, mas ao perceber que ele tinha passado no
restaurante do Alexandre Bianchi, meio que me senti impelida a comer só
um pouquinho. O cheiro estava bom e, pelo visto, ele deu uma enorme volta
pela cidade antes de vir me ver.
— Você não deveria estar ocupado com coisas mais importantes? —
perguntei, arrastando os dedos com cuidado sobre as pétalas das peônias.
— Quem disse que não estou?
Soltei um suspiro, sentindo meu ânimo melhorar um pouco ao
terminar de colocar as flores no vaso e dei a volta na ilha, buscando pelos
utensílios para almoçarmos.
Mordi as bochechas para evitar que as perguntas desconfiadas e
repletas de autodepreciação escapassem. Quando nos sentamos na mesa da
varanda, agradeci mentalmente por ele ter puxado a minha cadeira para
perto. Descansando a mão na minha coxa, Renato cativou a minha atenção
inteiramente para si.
— Como soube das peônias?
A pergunta escapou antes que eu pudesse repensar se queria mesmo
saber a resposta. Mas era um tanto curioso que entre tantas linhas de
pensamentos, Renato tivesse ido justamente na que era correta.
— Um palpite. — Seus dedos acariciaram minha pele,
vagarosamente. Era como se ele não pudesse ficar muito tempo sem me
tocar. — Suponho que acertei?
Demais.
— Ninguém teve um palpite tão certeiro quanto esse — confessei,
engolindo em seco. Nem mesmo o meu pai, que julgava ser a pessoa que
conseguia me ler melhor do que ninguém. — Gosto de flores no geral, mas
tenho um apego especial com as peônias.
Renato meneou a cabeça, observando-me como se fosse a coisa mais
fascinante que ele tinha o prazer de admirar. Era uma sensação boa, que se
infiltrava dentro de mim com uma intensidade assustadora.
— Algum motivo específico?
Sorri, virando o rosto para ele e assenti.
— Minha avó materna… ela era florista — falei, puxando uma perna
para cima da cadeira e abraçando-a, distraída. — Se você perguntasse sobre
qualquer flor, ela contaria cinquenta lendas sobre a origem. Para ela, era
mais do que uma profissão, era algo pelo qual era devotada — expliquei e
Renato acenou, acompanhando-me divagar entre as lembranças. — Quando
eu soube do diagnóstico de Alzheimer, percebi que a minha avó esqueceria
de mim em algum momento… e que eu não tinha passado quase nenhum
tempo com ela, sabe?
Senti o nó se instalar em minha garganta e a saudade retornou ao meu
peito.
— Isso piorou quando descobri que fazia dois anos que ela tinha sido
diagnosticada, mas que não me disseram nada a pedido dela. Eu estava no
primeiro ano da faculdade, e acho que ninguém escutou mais sobre as
minhas aspirações de futuro do que ela… — ri baixinho, ignorando a visão
embaçada devido as lágrimas —, Lilian achava que se eu soubesse, largaria
tudo para ficar com ela… e estava certa.
Dei de ombros, esboçando um sorriso fraco.
— Quando ela piorou, minha mãe decidiu que não podia mais ficar
sem me contar e larguei tudo o que estava fazendo no campus para pegar
um avião e ir direto para Lisse[30]
, onde estava morando desde que se
divorciou do meu avô. — Meus dedos tamborilaram na mesa, conforme
algumas lembranças daquelas semanas passavam pela minha cabeça. —
Depois que saiu do hospital, ela ficou “estável” por alguns dias… os
medicamentos ajudavam, mas podia ter outro lapso e… poderia ser
definitivo, sabe? Por isso, passei a ficar com ela durante todo o tempo que
podia.
Renato não desviou a atenção nem por um instante, mal piscava,
atento a cada detalhe.
— Aprendi mais sobre floricultura naquelas semanas do que poderia
aprender em qualquer outro momento da vida, e ela sempre sabia me contar
tudo. Cada lenda, por mais boba que fosse, Lilian se recordava de toda a
história por trás…, mas não lembrava quem eu era. — Senti as lágrimas
rolarem involuntariamente. — Durante aquelas duas semanas, ela me
ensinou tudo o que sabia sobre as flores; como plantar, cuidar e cortar…
Soltei um suspiro, sentindo a garganta queimar devido ao choro
entalado, era uma lembrança agridoce. Ainda que soasse muito triste que
Lilian tivesse falecido sem se lembrar quem eu era, sei que no fundo do seu
coração, ela sabia que eu era a sua neta.
— Então, um dia ela acordou e era uma manhã como todas as outras.
Tomamos café da manhã na varanda, enquanto ela recitava o monólogo
sobre a importância das flores; como se não tivéssemos tido aquela mesma
conversa em todos os outros dias. — Ri fraco, sentindo a mão dele acariciar
o meu rosto e seu polegar se arrastou na minha pele, enxugando a lágrima
teimosa. — E, do nada, Lilian me olhou e disse que eu parecia com uma
peônia.
Sorri, nostálgica.
Eu ainda conseguia ver claramente o sorriso e o brilho nos olhos da
minha avó ao fazer aquela comparação.
— Então, ela explicou que apesar da peônia ser uma flor muito
delicada, consegue ser perene. Ela floresce na primavera e, é capaz de
perdurar mesmo nos invernos mais violentos. Uma única flor, pode ter mais
de cinquenta pétalas e ela é tão especial que, antigamente, apenas os
grandes líderes de dinastias tinham acesso. Não era uma flor para qualquer
um… só quem entendia a sua peculiaridade era capaz de ser digno dela.
Seus olhos se agarraram aos meus com força, sem perder uma única
palavra que escapava dos meus lábios.
— No dia seguinte, quando acordou, minha avó se lembrava da
comparação. O médico disse que o cérebro dela me associou a flor e me
manteve na sua memória na forma do que Lilian mais amava. Ela não
lembrava o meu nome e quem eu representava na sua vida, mas se
recordava de me conhecer como a menina que parecia com uma peônia, a
flor que ela mais amava.
Renato sorriu fraco e com carinho, deixou um beijo no dorso da
minha mão.
— Quando ela faleceu?
— Três dias depois — murmurei, voltando a atenção para o meu
prato que estava praticamente intocado. — Aliás, você é a única pessoa que
sabe disso.
Era uma lembrança muito pessoal dos últimos dias de vida da minha
avó materna. Não compartilhei nem mesmo com os meus pais. Era uma
coisa que eu gostava de guardar para mim, porque às vezes as pessoas viam
aquele apego como algo bobo.
Afinal, Lilian estava senil, nos últimos dias de vida e não pensava
direito. Aquilo não significava nada. Mas eu gostava de acreditar na teoria
do médico de que ela encontrou uma maneira de me guardar na memória.
— Nem sei por que contei isso… — suspirei, enxugando as lágrimas.
Renato arrastou a minha cadeira para perto, não permitindo que
houvesse um mísero centímetro de distância entre nós dois.
— Prometo que não vou contar para ninguém.
Sorri, deitando a cabeça no encosto da cadeira e olhando-o nos olhos.
— Terminei de ler o livro da sua mãe — comentei, mudando de
assunto e ele arqueou a sobrancelha, curioso. — Ela escreve muito bem,
praticamente engoli setecentas páginas em uma madrugada e me senti órfã
quando terminei.
Ele sorriu.
— Tenho certeza de que ela vai apreciar esse feedback — falou,
dando uma palmada na minha coxa —, agora coma, espertinha.
Suspirei, endireitando-me na cadeira e voltando a atenção para o
prato, enquanto respondia todas as perguntas de Renato sobre o que achei
do livro de Amália.
Era uma história instigante e extremamente erótica envolvendo um
candidato a presidência da república e sua gerenciadora de crises. Como
peguei o número de Amália e estávamos sempre conversando por
mensagem, não me contive em mandar uma série de áudios para ela,
detalhando os surtos que tive durante a leitura e compartilhando minhas
teorias de conspiração sobre o fim do primeiro livro da duologia.
— Ela disse que só vai começar a escrever o segundo livro depois do
lançamento… e isso vai ser no segundo semestre, tem noção de que vou
morrer de ansiedade até lá? — perguntei, arregalando os olhos em pura
aflição. — Ao menos ela começou a escrever outro livro e me chamou para
ser leitora beta, é sobre um delegado da polícia e já rolou sacanagem no
capítulo seis.
Renato riu, empurrando o sorvete que havia ido buscar na cozinha
depois que terminamos de almoçar. Afundei a colher no creme de pistache,
distraída, enquanto ele contornava a mesa e se sentava ao meu lado.
— Você nunca leu nenhum livro dela?
— Ah… já — disse, fazendo uma careta. — Um tempo atrás ela me
pediu para ler um capítulo específico, enquanto gravava a minha reação…
soube pelo Leandro que ela publicou no Twitter para atiçar as leitoras.
Arregalei os olhos, buscando pelo meu celular e entrando no
aplicativo.
— Onde está esse vídeo que eu nunca vi? — perguntei, sem acreditar
que Bianca, que era a maior fã de Amália, nunca compartilhou essa
informação comigo. — Tenho certeza de que não foi a curiosidade que
atiçou as leitoras.
— Não, ela me usou como marketing… e eu nem recebi um cachê
para isso! — reclamou, fingido.
Estava começando a sentir as bochechas doerem de tanto que sorria
quando estava ao lado dele.
— É tranquilo para você? Sabe, a sua mãe escrever romances
eróticos.
Renato aquiesceu, relaxado.
— São livros, como qualquer outro. — Deu de ombros, jogando o
braço sobre o apoio da cadeira e me observando enquanto eu tomava o
sorvete. — Não vejo um motivo para tratarem como tabu. As pessoas fazem
sexo na vida real, de todas as formas imagináveis, por que reprimir isso na
ficção?
Concordei com ele, virando o rosto para encará-lo diretamente.
— Bianca adoraria falar com você sobre isso, ela pode passar o dia
inteiro apresentando argumentos para defender a literatura erótica.
Renato riu.
— A Gabriela também — disse, fazendo uma careta ao se lembrar da
sobrinha do Leandro. — Sempre que converso com ela, essa garota me faz
sentir um idoso recluso de 96 anos que não sabe mais nada sobre como o
mundo funciona.
Arqueei a sobrancelha, curiosa.
— Por quê?
Renato afundou a mão no bolso, buscando pelo seu celular e entrou
em uma conversa com a garota. E por quase dez minutos, Gabriela
discorreu em treze áudios extremamente longos, sobre como o mundo ainda
era extremamente tóxico para as mulheres, principalmente, em ramos em
que elas eram minorias; e sobre a cultura machista de constranger uma
mulher por fazer sexo — ao mesmo tempo que enalteciam um homem pelo
mesmo.
Minha atenção ficou dividida entre ouvir todos os argumentos da
garota e apreciar as expressões que tomavam o rosto de Renato. Hora ele
meneava a cabeça e concordava com ela, noutra apenas fazia uma careta
confusa, mas era visível que escutou cada palavra.
— Por que ela fez esse discurso todo? — perguntei, engolindo uma
risada ao ver seus ombros relaxarem quando o último áudio acabou.
— Leandro contou para ela que tomei um pé na bunda — falou,
revirando os olhos e me arrancou a risada que estava tentando conter.
— Sério… como você lida com ele?
Renato fez uma careta, balançando a cabeça e fingindo frustração.
— Não escuto metade das idiotices que saem da boca dele —
confessou, piscando para mim. — Com a convivência você vai acabar
desenvolvendo essa habilidade também.
— Ele não é tão ruim assim — defendi, sentindo a angústia retornar
ao me lembrar que estava ignorando suas mensagens. — Inclusive, eu estou
devendo um pedido de desculpas para ele.
Renato negou.
— Não se preocupe com isso. Leandro nem se lembra mais do
motivo para se desentenderem.
— Porque não teve um. Eu que perdi a cabeça e joguei minha merda
em cima dele.
— Não teria feito isso se ele não estivesse se envolvendo em um
assunto que não era da conta dele — argumentou Renato, apertando minha
mão. — Não esqueça que te falei para enfiar a mão em qualquer um que te
irritar — brincou.
Sorri, olhando-o divertida.
— Até mesmo no seu amigo?
— Principalmente ele — confirmou, sem titubear. — Aproveite e se
vingue por todos os anos em que me tirou do sério.
Revirei os olhos, enfiando uma colher cheia de sorvete na boca e
corri a atenção pelo apartamento. Meu humor havia melhorado bastante, e
era graças ao Renato. Ele não precisava ir tão longe para buscar flores,
macarons e uma refeição exclusiva de um chefe renomado, mas tinha feito.
E mesmo se não o tivesse, a sua presença bastava para me fazer sentir
melhor.
Abandonei a taça de sorvete vazia e Renato aproveitou para me puxar
para perto. Meu corpo que deveria refrear aquele movimento, entrou na
onda e se aninhou no seu colo. Meus braços envolveram seu pescoço ao
sentir suas mãos me fazendo carinho — uma subia e descia pelas minhas
costas, enquanto a outra arrastava as pontas dos dedos na minha coxa.
Senti seus lábios deixarem um beijo no meu ombro desnudo, e odiei
como a minha pele se arrepiou e meus seios intumesceram em resposta,
marcando o tecido fino e justo da camiseta que eu usava.
Aquilo não passou despercebido pelo homem mais intenso e gostoso
que já esbarrei. Renato poderia concorrer tranquilamente ao prêmio de
homem perfeito e venceria por unanimidade dos votos.
— Você tinha que ser meu chefe? — inquiri, desanimada.
A pergunta escapou de forma impensada, contudo não me preocupei
em tentar mudar de assunto.
Meus dedos mergulharam no seu cabelo curto e detestei como cada
parte de mim, quis ter o seu corpo sobre o meu; as suas mãos grandes
esmagando minha carne e deixando marcas que perduravam por vários dias.
A realidade precisava mesmo ter interrompido o que estávamos
tendo? Não dava esperar só mais alguns dias? Ao menos, o suficiente para
que eu enjoasse dele como acontecia com todos os outros?
— Posso te demitir, se você preferir — ofereceu, irônico.
— E aí, eu viro uma esposa troféu? — perguntei, fingindo pensar na
possibilidade.
Foi o suficiente para arrancar uma gargalhada de Renato, porque ele
sabia que eu preferiria perfurar meus dois olhos com as unhas antes de
qualquer coisa parecida com aquilo. Nada contra, mas não era o que eu
planejava para o meu futuro.
— Prefiro que você se demita e vire meu esposo troféu, chamo isso
de reparação histórica. Tenho certeza de que a Gabi concordaria comigo…
— ponderei, vendo seus olhos se apertarem em mim.
— É o preço que preciso pagar para ter você? Acho que posso pensar
em aceitar.
Estalei a língua, divertida.
— Claro que pode. É o privilégio de ser bilionário.
Rolei os olhos, e me afastei ao perceber que meu celular estava
vibrando. Normalmente, quando estava com Renato não me atentava muito
ao aparelho, mas como sabia muito bem para que caminho estávamos
trilhando, optei por esticar a mão e verificar o que estava acontecendo.
— Que estranho… — murmurei, confusa.
Antônio nunca me ligava.
Na verdade, o certo seria pontuar que ele só me ligava em casos
urgentes, de vida ou morte.
— Algum problema? — Renato questionou, me soltando para que
pudesse levantar.
Não tive tempo de atender a chamada ou de responder o Renato,
porque a porta de entrada se abriu, e uma mala foi empurrada para dentro,
sendo acompanhada pelo homem alto e forte, usando óculos de sol e com o
cabelo preto extremamente desgrenhado.
Pela maneira como a sua camisa estava amarrotada e faltando alguns
botões, considerei duas possibilidades:
1. Ele foi assaltado.
2. Ele foi sexualmente atacado.
E dado ao fato da pessoa que o acompanhava, igualmente amarrotada
e desgrenhada, eu soube que nos próximos segundos, ele seria assassinado.
Levantei-me do colo de Renato, ficando em pé e aproximando-me
dos recém-chegados.
— Prima! — vibrou Larissa, caminhando em minha direção em
passos largos e com um sorriso falsamente alegre.
Não me passou despercebido como seus olhos azuis pousaram em
Renato, descendo por todo o corpo dele e depois, voltaram-se para mim
com um questionamento explícito.
Como se ela tivesse qualquer direito de ser informada sobre as coisas
que aconteciam na minha vida.
— Larissa.
Seu nome escapou dos meus lábios como um rosnado raivoso, que
ela prontamente ignorou. Meu olhar se deslocou para Antônio, sem
esconder a irritação com a situação e quando Larissa fez menção a me
abraçar, dei um passo para trás.
— Não força — falei, seca. — O que você faz aqui?
— Soube que está doente e que foi afastada do trabalho. Coitadinha…
não aguentou a pressão, né? — ironizou, apertando os lábios em um falso
sorriso de preocupação.
Estava para nascer pessoa mais cínica naquele mundo do que ela.
— Antônio?! — Exigi uma explicação, sem me dar ao trabalho de
fingir simpatia. — Posso saber o que você tinha na cabeça quando decidiu
trazer ela aqui?
Ele revirou os olhos, aproximando-se e me puxou para um abraço
apertado que eu retribuiria, se não estivesse me segurando muito para não o
executar da forma mais dolorosa possível. Dei um passo para o lado,
descontente com a situação.
— Sério, prima… depois de tanto tempo, você ainda está com raiva?
— perguntou ela, se metendo entre o meu ex-melhor amigo e eu.
Dei um passo para trás, sentindo a atenção de Renato alternar entre
nós três, completamente confuso.
O problema era que diferente de Larissa, eu não fingia simpatia com
as pessoas com quem tinha divergências morais.
Larissa era minha prima por parte de mãe e apesar de ter vivido no
Brasil a maior parte do tempo, isso não a impediu de fazer da minha vida
um inferno. E se não bastasse eu ter lidado com os seus abusos durante
minha adolescência inteira, ela também foi a responsável por alimentar toda
a babaquice que aconteceu durante a minha tentativa de trabalhar na gestora
do meu pai.
Olá, responsável por todos os meus traumas e inseguranças, como
você está depois de ter fodido com a minha cabeça?
No colégio, eu não precisei me preocupar com os bullies[31]
.
Infelizmente, cresci com uma garota que até hoje, mesmo com 26 anos,
sofria com a síndrome de Regina George.
Para Larissa, nada que eu fazia era bom o suficiente.
Tudo o que eu tinha, era graças ao meu pai e ao dinheiro que a minha
família possuía, e por isso, eu não merecia nada e ela tinha o direito de
tomar tudo de mim. Então, por um motivo completamente mesquinho, ela
passou a competir comigo pela atenção do meu próprio pai, pelo respeito
dos sócios da Alpha e, no passado, até com namorados.
Se eu gostava de um cara; Larissa começava a namorar ele. Se eu
começava a fazer aulas de um idioma, ela se tornava a melhor aluna da
turma. Se eu queria entrar numa Ivy League[32]
; minha amada prima passava
por cima de mim e entrava na frente. Quando decidi que cursaria Economia,
a querida trocou o curso que estava fazendo para o mesmo que o meu.
Atualmente, ela trabalhava na Alpha como administradora de um
fundo de investimentos. E como se fosse pouco querer competir comigo
pelo meu pai e pela minha empresa — Larissa ainda transava com o meu
melhor amigo.
Entretanto, o meu maior problema com ela não era por isso,
tampouco por pensar que conseguiria diminuir a minha importância na vida
dos dois.
Nosso conflito se tornou insustentável quando ela usou a Bianca para
me atingir e humilhou a minha amiga na frente de todos os funcionários,
causando a sua demissão. Aquilo não teria acontecido se meu pai, Antônio
ou Jessica estivessem na cidade, por isso, ela esperou o momento em que os
três estariam em uma conferência no Japão para expor Bianca na frente de
todos os sócios — que votaram na saída imediata da minha amiga.
Quando o meu pai voltou, aquilo foi ignorado completamente.
Larissa não tinha poder para fazer algo assim. Mas Bianca não quis pisar
naquele escritório nunca mais e, por isso, a levei para trabalhar comigo na
RCI.
— Sai da minha casa, Larissa. Ou juro por tudo nesse mundo, que
não existe nada e nem ninguém que vai me impedir de enfiar a minha mão
no meio da sua cara — falei, entredentes.
Renato envolveu a minha cintura, impedindo que eu avançasse na
direção dela e Antônio acompanhou aquele movimento com interesse, ao
mesmo tempo que colocava a sua mão entre nós duas, impedindo que
minha prima se aproximasse.
— Ok, chega. — Antônio virou o rosto para ela, sério. — Você disse
que queria vir porque estava preocupada com a sua prima. Se não é por
isso, pode dar meia volta e ir embora.
Larissa olhou de um para o outro, sem acreditar que Antônio
concordou comigo e a mandou sair da minha casa.
Ela conseguia extrapolar todos os limites do bom senso e,
consequentemente, da minha paciência.
— Você é tão infantil, Nathalia… sinceramente! — Suspirou, e a sua
sorte foi que Renato me segurou firme, caso contrário, minhas unhas teriam
sido enfiadas nos seus olhos azuis.
Minha prima girou nos calcanhares, resmungando que todos sempre
faziam as minhas vontades e que por isso, eu era uma grande mimada. E
quando ouvi o barulho do elevador se fechar, virei para o meu melhor
amigo, possessa.
— Que merda você tinha na sua cabeça?
Sturzenecker ergueu as mãos, como se fosse inocente.
— Ela é sua prima, porra. Não é você que bate na tecla de que a
família está acima de qualquer merda? — devolveu.
Peguei uma almofada que estava perto, atirando em sua direção e
fazendo o mesmo com a pantufa que estava usando, depois com a outra.
Precisava descontar a minha ira em alguém, e pela primeira vez em dias, o
faria em cima da pessoa responsável por me tirar do sério.
— Se houver lealdade, caralho! Aquela garota só é leal a ela mesma!
Dois braços me envolveram, tirando-me do chão antes que eu voasse
em cima de Antônio, que para piorar mais a sua situação, estava rindo de
mim.
— Tudo bem, fique calma, pequena Mike Tyson — disse Renato,
levando-me para longe do babaca que era meu melhor amigo.
— Você disse que eu podia esmurrar quem me irritasse!
Renato riu, ele deu uma palmada na minha bunda e me obrigou a
sentar no sofá. Bem longe do idiota que gargalhava pelo meu surto.
Calmamente, Renato pegou a escultura de gesso que sequer percebi que
estava segurando e quase joguei em Antônio.
— Preciso de uma bebida, pelo visto, a minha noite vai ser longa —
zombou o desgraçado, em meio as risadas, sumindo do meu campo de
visão.
— Você deveria ter me deixado bater nele — falei, me virando para o
homem agachado na minha frente. — Agora, por culpa dele, preciso
chamar; um xamã, dois monges, três padres e cinco médiuns para exorcizar
a minha casa da energia negativa daquela garota!
Renato achou graça do meu drama, mas não era brincadeira.
— Ela é tão ruim assim?
— Faço terapia até hoje por causa do inferno que ela fez na minha
vida.
Ele meneou a cabeça, compreendendo, e virou para o meu amigo que
caminhava na nossa direção com três taças. Antônio e Renato se
entreolharam por um longo tempo, mais do que era necessário para uma
interação casual, e ao reconhecer o ciúme e a possessividade nos seus
olhares, precisei intervir.
— Bebê, esse é o Renato Trevisan.
Apresentei, vendo o olhar do meu amigo se voltar para mim,
inquirindo uma resposta que nem mesmo eu tinha. Aluguei Antônio por
toda a madrugada do último domingo para contar tudo o que havia
acontecido entre o meu chefe e eu. Jurei por tudo que ele acreditava que não
mudaria de ideia, mas aqui estava eu; odiando o fato de que estava na hora
dele ir embora.
— Renato… meu melhor amigo, Antônio Sturzenecker.
Trevisan se levantou, endireitando a postura e estendeu a mão para o
meu amigo, em um cumprimento polido e enciumado.
Sturzenecker não fez diferente, seus ombros se ergueram e o
divertimento pelo meu pequeno surto se esvaiu, dando lugar àquele olhar
prepotente e egocêntrico de sempre.
O clima pesou.
Os dois apertaram as mãos de um jeito esquisito e ameaçador,
aplicando mais força que o necessário. Quando não quebraram o contato,
precisei me levantar e colocar a mão sobre a deles para fisgar a atenção de
ambos.
— Por favor, não se matem… eu amo os dois e não quero precisar ir
ao enterro de um de vocês.
Olhei de um para o outro, pacífica.
Eles se detestarem era a única coisa que faltava para essa semana
terminar de desmoronar.
Antônio e Renato desviaram sua atenção para mim e acenaram em
resposta. Era evidente que não se deram bem, mas estavam dispostos a
fingir que se suportavam para me deixar feliz.
Senti meus ombros relaxarem quando eles abandonaram suas
posturas rígidas e começaram a conversar sobre o que, pelo visto, era um
assunto em comum.
A minha excelentíssima pessoa.
Desviei a atenção de Matheus que empurrou a boia para longe da
piscina, e virei para o meu pai que se aproximava com duas doses de
uísque.
Como fazia muito calor naquele sábado, trouxe os garotos para
visitarem os meus pais — que chegaram na noite passada de viagem.
Fitei a mulher agachada em frente a piscina, ajustando o boné que
Matheus usava para proteger o rosto do sol e o seu olhar veio de encontro
ao meu.
Amália piscou, amorosa, e aceitei a bebida que meu pai ofereceu.
— Deveria trazer os garotos mais vezes, é a única forma da sua mãe
sair um pouco daquele computador e descansar — disse. — Ela mal
terminou um livro e está escrevendo outro.
— Pensei que tivessem concordado em diminuir um pouco o ritmo.
— Concordamos, mas a criatividade da sua mãe não pensa da mesma
forma. — Deu de ombros, mas não parecia incomodado com aquilo, ao
contrário, era nítida a admiração que sentia. — De toda forma, ela fica
radiante quando passa o dia com os garotos.
Acenei.
— Se dependesse dela, viveríamos aqui.
Eduardo sorriu, erguendo o seu copo e brindamos.
— Ela ama vocês, quem pode a julgar por isso? O amor de mãe é uma
coisa que não diminui, só cresce.
Engoli em seco, sentindo o uísque descer amargo na garganta.
Era sortudo pela família em que cresci, com dois pais que me
queriam, planejaram e deram o melhor para me criar. Era exatamente o que
eu queria ter proporcionado aos meus filhos.
Se a vida acompanhasse o roteiro que havia planejado, Igor e Matheus
teriam tido a chance de ter uma pessoa boa como genitora. Uma que os
queria por perto sempre, não apenas quando precisava de um lugar para
ficar entre uma farra e outra.
Era frustrante pensar que entre todas as mulheres com quem transei
naquela época, minha sorte havia falhado justamente com Flávia.
— Como andam as coisas com a Nathalia? Leandro me contou que
ela terminou com você — disse meu pai, atraindo minha atenção de volta
para ele.
— Existe algo sobre mim que não seja contado pelos meus amigos?
Eduardo sorriu, jogando-se na espreguiçadeira em frente a piscina e
cobrindo os fios grisalhos com um boné, dando de ombros.
— Fico feliz que eles me mantenham informado, caso contrário,
saberia muito pouco sobre o que se passa na sua vida amorosa. — Ergueu o
copo, brindando de longe. — Aliás, vida essa que pela primeira vez está
movimentada.
Revirei os olhos, ignorando o tom sarcástico que usou.
Meus pais nunca se incomodaram com o fato de não apresentar uma
mulher para eles, ao contrário, sempre disseram que deveria fazer aquela
escolha de maneira sábia. Entrar em uma relação apenas por carência; sem
equilíbrio, maturidade e diálogo nunca deveria ser uma opção. E eu seguia
aquele conselho com sabedoria, por isso, nunca tive pressa em me
comprometer.
Por bem ou mal, aquilo me poupou de ter carros quebrados,
humilhações em praça pública pelo perdão da parceira e milhares de reais
gastos em um casamento que nunca ocorreu. O pior que me acometeu, foi
ter tido uma péssima progenitora para os meus filhos, de restante, eu estava
no lucro comparado a Pedro, Leandro, Marc e Fabio.
— As coisas estão… indo — falei, em resposta ao seu
questionamento. — Nathalia precisa lidar com alguns problemas, mas, sei
que quando conseguir ver o que eu vejo, vai perceber que essa decisão não
era necessária.
Gostaria que Nathalia conseguisse se ver através dos meus olhos, ela
se surpreenderia com o que estaria na sua frente. Não existia uma mulher
que fosse tão intrigante; determinada, inteligente, bem-humorada,
carismática, linda e absurdamente encantadora — como ela.
Nathalia era como um cometa que passava pelo céu a cada dez mil
anos, e poucos eram agraciados com a honra de apreciar sua passagem. Ela
era imperfeitamente perfeita. E era frustrante que, apesar de agir como se
soubesse, ela não tinha a menor noção do quanto era extraordinária. Se
soubesse, pouco se importaria com a opinião alheia.
Meu pai acenou, compreensivo.
— Ela parece ser uma boa garota.
— Ela é ótima.
— E tem certeza de que ela vai chegar nessa conclusão e voltar atrás
na escolha que fez? — indagou, intrigado.
Bebi um gole longo, refletindo sobre a pergunta.
Tinha certeza de que Nathalia mudaria de ideia? Não, ela era uma
caixinha de surpresas. Mas sei que não me senti assim com nenhuma outra
antes dela. E o jeito que ela me olhava, deixava claro que Nathalia também
nunca passou por uma experiência similar.
No fim das contas, era uma aposta que eu estava fazendo.
Estava torcendo para que Nathalia confiasse na certeza de que eu
nunca permitiria que ninguém a subestimasse ou a desrespeitasse por
qualquer motivo, principalmente, por estar comigo. Bastava que ela
dissesse que também queria fazer aquela aposta, e eu cuidaria para que
ninguém entrasse em nosso caminho.
Mas era isso. Eu precisava que ela superasse a insegurança, e visse o
que estava diante dos seus olhos.
Estava apaixonado por Nathalia, e faria qualquer coisa pela sua
felicidade. E desistir de estar com ela por conta de algo que poderíamos
lidar juntos, não era uma das coisas que eu estava disposto, mas seria feito
se ela confirmasse que não havia chance de mudar de ideia.
Porém, enquanto eu conseguisse enxergar aquele sentimento
queimando em seus olhos lindos, permaneceria perto pelo tempo que me
fosse permitido.
— É mais um palpite — murmurei, evitando ir adiante naquele
assunto ao ver minha mãe caminhar em nossa direção, as íris castanhas
brilhando de curiosidade.
— Sobre o que os amores da minha vida estão cochichando? —
interrogou, sentando-se ao lado do meu pai e me olhando com interesse. —
Alguma chance de ser sobre a minha nora?
— Sua nora?
— Nathalia, óbvio.
Rolei os olhos.
— Mãe.
— O quê? Não posso falar o que está estampado nessa sua carinha
linda que eu fiz transando com o seu pai? — perguntou, inocente.
E detestei ser lembrado daquela última informação. A careta que
cobriu o meu rosto foi o suficiente para que soubessem que era o tipo de
coisa que não precisavam compartilhar comigo.
Definitivamente, não era do meu interesse ser lembrado que meus
pais transavam.
Matheus estava dormindo desde que voltamos da casa dos meus pais.
Em um primeiro momento, considerei que fosse cansaço por ter
ficado durante horas brincando na piscina, debaixo do sol forte. Contudo,
quando subi para o acordar no início da noite, percebi que algo não estava
certo.
Suas bochechas estavam coradas e ele suava frio, afastei os fios
grudados em sua testa devido ao suor e toquei sua testa com o dorso da
mão, reconhecendo que o pequeno ardia em febre.
— Filho, acorda — chamei, sentando-me na beirada da cama após
voltar para o quarto com um termômetro. — Ei, pequeno Hulk.
Soltei um suspiro de alívio quando suas pálpebras lentamente se
abriram e o par de olhos verdes se fixaram em mim. Matheus fez beicinho,
cheio de preguiça e manha. Sua atenção desceu para o termômetro debaixo
do seu braço que apitou, confirmando que a sua temperatura estava alta
demais. Mal tive tempo de guardar o aparelho, antes que ele começasse a
chorar e pedir por colo.
Aproveitei para livrá-lo do moletom pesado e quente que havia
colocado quando chegamos em casa. Um gemido baixinho e dolorido
escapou da sua garganta — quando toquei sua barriga inchada e Matheus
resmungou de dor na região.
Se fosse apenas febre, eu teria resolvido em casa, como havia feito em
outras vezes que aquilo ocorreu, contudo, Matheus não era uma criança que
se queixava de dores e raramente ficava doente. Era a segunda vez, em
menos de dois meses, que eu precisava ir ao hospital com ele.
Nos minutos seguintes, tudo aconteceu de forma mecânica.
Dei um banho rápido nele para ver se a febre cedia um pouco, ao
mesmo passo que ligava para que Pedro viesse buscar Igor. Não queria
levar os dois garotos para o hospital e como meu amigo morava na torre
vizinha, sabia que ele viria sem hesitar.
— O que o pirralho tem? — perguntou, assim que atravessou as
portas do elevador.
— Não sei. Ele está reclamando de dor na barriga.
Ele não comeu nada diferente naquele dia e sua alimentação em casa
era sempre equilibrada, raramente comia doces ou comidas que não eram
tão saudáveis, e eu sempre tomava cuidado com a procedência de tudo o
que comiam. Honestamente, era quase neurótico com aquela questão, por
isso, duvidava muito que pudesse ser uma intoxicação alimentar ou
qualquer coisa parecida.
Pedro e eu conversamos rapidamente a caminho do estacionamento, e
Igor o acompanhou para a torre em que Pedro morava, me pedindo para
informar assim que soubesse o que o irmão tinha.
Choramingando de dor, passei o trajeto até o hospital conversando
com Matheus e o distraindo do que sentia.
Funcionou, consegui arrancar uma risadinha dolorida dele e agradeci
mentalmente por morar em uma região que estava próximo de tudo que era
importante. Com exceção do tempo gasto com os inúmeros semáforos da
Av. Paulista, o hospital não era tão distante.
— Papai — chamou minha atenção, enquanto terminava de assinar os
documentos da sua entrada e via uma enfermeira caminhar em nossa
direção. — Cadê a Nath?
Franzi o cenho, confuso com a pergunta repentina.
Os garotos não viam Nathalia desde que foi embora no domingo à
noite, e com tudo o que aconteceu no decorrer da semana, sequer me dei
conta de que eles poderiam ter sentido a ausência dela.
— Nathalia está na casa dela, filho. Por quê?
Matheus fez beicinho, deitando a cabeça no meu ombro e soltou um
suspiro entristecido.
— Eu pode falar com ela? — pediu, e senti os ombros enrijecerem.
— Depois, tudo bem?
Ele aumentou o bico, mas aceitou.
Dentro do consultório, o pediatra seguiu todos os procedimentos
necessários para encontrar um diagnóstico. O tempo todo, Matheus pediu
pela Nathalia. O médico solicitou uma ultrassonografia abdominal e como o
resultado sairia em duas horas, fomos deslocados para um quarto na
companhia de uma enfermeira que, cuidadosamente, inseria a agulha no
braço do meu filho para aplicar a medicação.
— Que garoto forte! — A senhora brincou ao ver que Matheus sequer
fez careta com a picada.
Ele me olhou e sorriu preguiçoso.
— Eu sou um super-herói!
Afaguei o seu cabelo, vendo a mulher me olhar de relance com um
meio sorriso estampado.
— Acho que ele é a primeira criança que dá risada, enquanto estou o
furando com uma agulha.
Sorri, concordando.
— Imagine a felicidade das enfermeiras quando foram aplicar as
primeiras vacinas, e ele não deu um pio — brinquei, vendo o par de olhos
espertos subirem para o meu rosto.
Ele estava segurando o meu celular desbloqueado, tínhamos acabado
de desligar uma chamada com Igor.
— Ele não chorou?
— Nem resmungou.
Matheus sempre foi muito resistente a dor, e com um pouco de
distração na medida certa, sequer se deu conta de que as duas mulheres
tinham o furado. Ele estava tão concentrado em mim que ficou alheio a
elas. Segundo as duas enfermeiras, havia sido um feito e tanto da minha
parte.
A enfermeira simpática continuou conversando conosco por alguns
minutos e quando se despediu, meu filho esticou o celular e fez o beicinho
que costumava usar quando queria pedir algo.
— Liga pra Nath!
Respirei fundo.
Não tinha certeza se era uma boa ideia, mas ele estava insistindo tanto
naquilo que não estava me deixando com muitas opções.
Como Antônio Sturzenecker chegou na cidade, eu duvidava muito
que Nathalia estivesse disponível para atender aquela ligação no início da
madrugada. Pouco antes de deixar o seu apartamento na noite passada,
Antônio tentava convencê-la a fazer as malas para que passassem o fim de
semana no resort da família dela em Trancoso.
Ainda assim, para atender ao pedido do meu filho, disquei o número e
a chamada foi diretamente para a caixa postal. Pude ver a chateação no
rosto de Matheus quando escutou a voz automática, e senti-me
imensamente culpado por ter permitido que se acostumasse tanto com a
presença dela.
Nathalia não tinha qualquer obrigação com os meninos, mas na
cabeça dos dois, ela era a representação da figura materna que eles nunca
tiveram e eu deveria ter sido mais responsável ao permitir que convivessem
tanto.
Por sorte, distrair Matheus não era difícil, e entre uma palhaçada e
outra, a sua risada acabou predominando o silêncio do quarto.
Por volta de 02h00 da manhã, precisei deixar o quarto para assinar
alguns documentos para autorizar outros exames que seriam feitos a pedido
do pediatra.
Para isso, deixei Matheus sob os cuidados da enfermeira gentil que
ficou encantada por ele.
Na recepção, rubriquei as autorizações e aceitei mais duas folhas que
a garota me entregou.
— É tão difícil assim atender o telefone? — Sobressaltei quando a
voz irritada soou ao meu lado e virei o rosto, sendo surpreendido pela
pequena mulher furiosa. Estava tão concentrado checando a documentação
que não a vi chegar. — Sabe há quanto tempo estou te ligando?
Nathalia me encarava enfezada, e precisei levar mais tempo do que o
necessário para processar o que estava na minha frente.
Ela usava óculos escuros dentro do hospital e pela veia pulsante na
sua testa, não foi difícil reconhecer que estava sofrendo com uma crise de
enxaqueca, o que também explicava o humor irritadiço.
— O que você está fazendo aqui?
— Onde o Matheus está? — devolveu, sem dar atenção ao meu
questionamento. Seu olhar se voltou para a recepcionista que a observava
com antipatia. — O Dr. Augusto está de plantão?
— Hã… sim.
— Certo, diga que Nathalia Gama está aqui, por favor — pediu,
ranzinza. Seu olhar retornou para mim, tirando os óculos escuros e me
permitindo vislumbrar os seus olhos vermelhos. Ela apertou as têmporas
como se isso pudesse aliviar o incômodo que sentia. — Matheus — repetiu,
estressada —, onde ele está?
— Você está bem?
Ela torceu os lábios, torturada.
— Sinto que têm um milhão de agulhas perfurando os meus olhos e o
meu crânio, mas está tudo bem… eu não atendi antes porque estava
dormindo — esclareceu. — O bebê… cadê ele?
— Você não precisava ter vindo, anjo.
Nathalia revirou os olhos e resmungou de frustração, pelo visto,
aquele simples gesto havia sido demais para ela.
— Dr. Augusto? — indaguei, preocupado.
— Neurologista, amigo da minha mãe — explicou e ergueu o olhar
para mim novamente, exigindo uma resposta imediata —, o que o Matheus
tem?
— O pediatra está suspeitando de apendicite, vamos fazer alguns
exames para confirmar — falei, vendo-a acenar vagarosamente.
— Só me deixe resolver essa dor agonizante e encontro vocês, tudo
bem?
— Você veio dirigindo?
Ela negou.
— Caique me trouxe.
De canto de olho, acompanhei um médico jovem se aproximar com a
atenção compenetrada em Nathalia. Inspirei o ar, sentindo os ombros
enrijecerem ao ver a sua mão afagar nas costas da garota, poucos
centímetros acima do quadril, de um jeito desnecessário e invasivo, ao
ponto de a assustar com o contato repentino.
— Na última vez que a vi… foi por conta da enxaqueca. Não me diga
que, finalmente, dei sorte de você vir aqui por minha causa? — indagou o
jovem médico, sorrindo para ela.
Estreitei os olhos nele, sentindo os punhos se fecharem.
— Apenas pela enxaqueca — respondeu ela, seca.
O médico desviou o olhar para mim, sem esconder a sua curiosidade
quando Nathalia se aproximou, descansando a mão pequena no meu peito e
me deu aquele sorriso lindo e doce. Apenas quando senti o seu toque gentil,
percebi como a minha respiração estava pesada e os meus ombros estavam
retesados.
Desci o olhar para o seu, encontrando aquele brilho angelical
queimando em suas íris.
— Fique calmo — pediu, baixinho. — Vejo você daqui a pouco, tudo
bem?
Concordei com um aceno, mas meus olhos se voltaram para o jovem
rapaz que estava parado a alguns metros do balcão, atento ao ambiente e
pronto para agir caso houvesse algum perigo para ela.
Caique notou meu olhar e eu fiz um gesto indicando que ele
acompanhasse Nathalia pelo corredor, onde o tal Augusto a estava
conduzindo.
Quando o pediatra nos deixou a sós, Nathalia entrou como um
furacão.
Ela sequer olhou em minha direção, o seu destino estava deitado e
parecia minúsculo na cama enorme. E ao vê-la cruzar as portas, Matheus
abriu um sorriso largo e abriu os braços, agitado.
— Nath!
— Oi, meu amor!
Em um instante, meu filho passou os braços em volta dos ombros
dela, apertando-a em um abraço saudoso que Nathalia correspondeu na
mesma intensidade, arrancando uma risada dele com a maneira quase
possessiva que o apertou.
— Não me dê um susto desses outra vez, ouviu? — pediu, fingindo
chateação. Matheus sorriu mais, meio dopado pelos antibióticos que tomou
e Nathalia voltou a atenção para mim. — É apendicite mesmo?
Aquiesci.
— Vão tentar tratar com medicação, mas se não melhorar, ele vai
passar por cirurgia. — Repeti o que o doutor havia acabado de explicar.
Nathalia meneou a cabeça, ligeiramente aliviada.
Apesar das olheiras que denunciavam o seu cansaço, aquela veia
pulsante não estava mais visível e ela parecia menos incomodada com a dor
e a claridade. Independentemente da babaquice do neurologista ao se dirigir
a ela na recepção, ele tinha a ajudado com o problema.
Matheus passaria as próximas doze horas em observação no hospital,
o que me garantiria alguns minutos de cochilo na poltrona pelo restante da
madrugada. No entanto, me preocupava em como Nathalia voltaria para
casa.
Caique ainda estava a esperando?
Após informar Pedro do diagnóstico, retornei para o quarto com uma
garrafa de água e entreguei para Nathalia que agradeceu.
Seus dedos acariciavam o cabelo de Matheus que acabou pegando no
sono, agarrado nela.
— Quer que eu ligue para alguém? — investiguei, atraindo a sua
atenção.
O par de olhos castanhos se estreitaram, ofendidos.
— Quer que eu vá embora?
Sorri para a sua pergunta.
Aquela era, sem dúvida, a última coisa que eu desejava, mas não
havia necessidade dela passar a madrugada no hospital conosco.
— Pensei que você iria para Trancoso — comentei, mudando de
assunto ao compreender que nada que dissesse a faria sair daqui.
— Eu ia. Mas vimos que estaria chovendo durante todo o fim de
semana e decidimos ficar na cidade — explicou, olhando-me de canto, sua
atenção estava no meu filho que dormia serenamente nos seus braços. — E
você? Quais eram os planos antes de vir parar na emergência? Alguma loira
misteriosa que invadiu a sua sala outra vez? — provocou.
— Nenhuma loira.
— Morena? — questionou, sem esconder o ciúme.
Ela não esqueceria tão cedo do comentário da minha secretária.
Escondi as mãos nos bolsos da calça e a observei deitada na cama de
hospital ao lado do meu filho, envolvendo-o como se a segurança dele
estivesse em risco e ela fosse a sua única defensora. Matheus apertava o seu
dedo anelar com força, impedindo que ela se afastasse sem o acordar —
enquanto com a mão livre, Nathalia não parava de fazer cafuné no cabelo
dele.
— A única pessoa que anda invadindo o meu escritório é você, anjo
— falei, e ela me espreitou por baixo dos cílios longos, desconfiada.
— Claro que sim.
— E o Antônio…?
Ela fez uma careta.
— Saiu. Larissa o chamou para ir ao apartamento dela — disse, a
contragosto.
Não era difícil entender que Nathalia não suportava a própria prima, e
considerando que ela raramente tinha problemas com alguém, aquilo era o
suficiente para suspeitar que a garota não era tão gentil como tentou
aparentar na sexta-feira.
— Você comentou sobre fazer terapia por causa dela.
Nathalia riu, fraco e ácida.
— Tudo bem, foi um pouco egoísta da minha parte colocar toda a
culpa nela. Larissa foi só a pontinha do iceberg.
Ela revirou os olhos, desceu a atenção para o meu filho que se mexeu
e inspirou o ar lentamente, antes de voltar a me encarar.
— Como disse, comecei a fazer terapia por conta da dificuldade que
eu tinha em compartilhar as coisas. Minha terapeuta identificou que a raiz
disso era, na verdade, insegurança e baixa autoestima. —Riu baixinho,
notando a ironia daquilo, já que ela podia ser tão convencida quanto
insegura. — Como as pessoas se aproximavam de mim para chegar nos
meus pais e avós; e depois iam embora quando conseguiam, eu desenvolvi
problemas com confiança. Só que ao invés de desconfiar dos outros, passei
a me enxergar como o problema… até porque eu era a única constante. Se as
pessoas nunca me viam como um motivo para permanecer, então… talvez,
realmente houvesse algum problema comigo, não?
Ela sorriu, melancólica.
— Enfim, quando comecei a trabalhar na Alpha, as coisas saíram
completamente dos trilhos na minha cabeça. E a Larissa garantiu que a
minha permanência lá fosse um completo desastre.
Nathalia soltou o ar, concentrada nas lembranças.
— Era meio que uma tradição na Alpha que quando um funcionário
novo chegasse, ele sofresse algumas pegadinhas do restante da equipe,
sabe? Quase como um trote universitário. Então, eu sabia disso. — Deu de
ombros. — O problema foi que ela usou a minha relação com o meu pai
para me atacar e fazer piada, e depois disso, eu virei a “filha do chefe” para
todo mundo. O nepotismo é relevado em muitas áreas, exceto no mercado,
sabia? Se você for uma mulher… é pior ainda. — Ela riu baixinho, trazendo
seu olhar para o meu. — No fim, sempre que eu tentava falar, alguém fazia
questão de deixar claro que o único motivo para me ouvirem, era por medo
da demissão.
“A Larissa sabia que meu pai nunca me deu qualquer privilégio por
ser filha dele, eu comecei como qualquer outro, mas lidava com o dobro da
cobrança. Ser filha dele significava que eu tinha que ser excelente em tudo,
e eu dava o meu melhor para não decepcionar ninguém. Mas… chegou num
ponto, que as piadinhas se tornaram insustentáveis. Elas deixaram de ser
uma brincadeira de iniciação para virar perseguição e assédio moral.
Quando não me enviavam memorandos[33]
falsos, cediam relatórios
adulterados que me faziam causar prejuízos enormes para o fundo que eu
estava trabalhando. Com o tempo, nenhum administrador me queria na
equipe.”
Ela fez uma careta, chateada.
— Parece bobeira, né? Sei que deveria saber lidar com isso, mas… era
foda. Ninguém me levava a sério e, mesmo quando fazia algo certo,
alegavam que era por causa do meu pai, ou, porque o Antônio moveu os
pauzinhos para me ajudar. Nada nunca era mérito meu, exceto se dava
errado e causava prejuízos, para isso, eu sempre era a culpada… mesmo que
não estivesse dentro da operação. E se eu tentasse me posicionar? Era
rechaçada. Se eu precisasse de ajuda? Ninguém se importava, e se
pedisse… era ridicularizada.
Um vinco surgiu em sua testa e a sua voz foi tomada por amargura.
— Todo ano, várias empresas contratam a Alpha para administrar a
abertura de capital na NYSE[34]
. Normalmente, a equipe que participa desse
processo é selecionada pelo manager que vai ficar responsável por aquele
IPO, com base nos requisitos que ele mesmo define.
“Miguel tem um critério que é imutável. Resultados. Os estagiários
que têm os melhores números do semestre, integram a sua equipe. Então,
quando começou a trabalhar no IPO de uma multinacional chinesa, ele
pediu para que o time de performance enviasse uma lista com os dez
melhores associados e estagiários. O único critério que deveria ser aplicado
pelo sistema: eram os números que se destacavam. Eu dei sorte, porque
apesar de toda a perseguição e manipulação para me fazer parecer uma
imbecil, consegui um administrador que era imparcial e que me dava
espaço para crescer. Quando a lista chegou nas mãos do Miguel, eu estava
no topo dela. Era a associada que tinha os melhores resultados e que
passava mais horas no escritório, mesmo estudando em New Jersey…”
“Por fim, quando meu pai me chamou para conversar, pedi para que
me descartasse e chamasse outra pessoa, porque eu sabia o que aconteceria
e o que diriam. Mas Miguel insistiu que respeitariam a lista, porque a
seleção tinha sido imparcial, feita por um sistema que não diferenciava se
eu era ou não a sua filha. — Seu olhar veio para mim e ela sorriu,
ressentida. — Alerta de spoiler: não adiantou.
Matheus se mexeu na cama, aninhando-se mais ao peito dela e
Nathalia o fitou, deixando um beijo suave em seu cabelo dourado.
— Bem, no dia seguinte, meu pai viajou para Pequim para encontrar
com o CEO da empresa para alinhar todas as questões do IPO. — As íris
brilhantes perderam um pouco da vivacidade, escurecendo e denunciando
sua melancolia. — Quando eu cheguei no escritório, todas as paredes foram
cobertas por montagens do meu rosto, no corpo de uma stripper seminua
em um pole dance; em frente ao palco, havia um homem sentado com uma
ereção visível enquanto jogava notas de cem dólares na direção da
“dançarina”. — Seu olhar recaiu sobre mim, amarga. — Não preciso dizer
que foram doentes o suficiente para colocar o rosto do meu pai no homem,
né?
Franzi o cenho, processando a história.
— Embaixo da foto, escreveram: “Intelligence is not necessary, just
have your own sugar daddy”[35]
. — Náusea a atingiu e ela torceu os lábios
em uma careta. — Em todos os seis andares que faziam parte do escritório,
não existia um único cubículo que não estivesse ocupado pelo cartaz.
Ela enxugou uma lágrima teimosa que rolou em sua bochecha e
engoliu em seco.
— A minha mesa e cadeira foram decoradas com mais de trezentos
post its com opiniões anônimas sobre mim. Todo mundo que tinha algum
problema comigo, decidiu que poderia deixar um bilhete grudado na mesa
para que eu soubesse o que pensavam sobre a minha presença ali. Mimada.
Sem conteúdo. Fútil. Patricinha. Burra. Esses foram os mais leves. —
Ergueu um dedo em riste, esboçando um falso sorriso de diversão. — Eu
lembro do que estava escrito em cada post it, como se isso tivesse
acontecido ontem. A última coisa que lembro depois disso, foi de ter um
ataque de pânico, de sentir que estava morrendo e do Antônio gritando com
todo mundo.
Senti meus ombros enrijecerem, porque era perceptível em seu rosto o
quanto era difícil se lembrar daquilo, ainda que estivesse tentando
transparecer que havia superado.
— Naquela semana, a Alpha demitiu 637 funcionários. Entre
operadores de renda variável, analistas, estagiários, associados, sócios
juniores, recepcionistas… todos que apareceram nas câmeras de segurança
ajudando a colar uma foto ou bilhete, foram embora. Meu pai demitiu
todos… exceto, a responsável por organizar tudo. — Sorriu entristecida,
dando de ombros. — Ninguém entregou ela, e Larissa foi inteligente o
suficiente para plantar a ideia e sair pela tangente. Depois que todos foram
demitidos… ela fez questão de ir à minha casa, e me acusou de ter exigido a
demissão em massa e afirmou que todos no mercado saberiam que eu era
incapaz de me defender sozinha, sem a ajuda do meu pai e do Antônio.
Nathalia desceu a sua atenção para Matheus que se mexeu outra vez,
resmungando palavras desconexas.
— É idiotice, eu sei.
— Não é.
Ela estalou a língua, entristecida.
— Bom, eu acho. E me sinto estúpida por ter deixado que aquilo me
abalasse tanto — confessou, frustrada. — No fim, não consegui voltar para
a Alpha depois daquilo, mesmo sabendo que, quem permaneceu não dava a
mínima para o que houve, eu sentia que todos me culpavam pelo desfalque
que a gestora sofreu. — Deu de ombros, fingindo indiferença. — Foi
quando decidi sair e me dedicar apenas aos estudos. Tentei estagiar em
outras gestoras, mas… ou os recrutadores deixavam claro que estavam me
entrevistando por causa do meu pai. Ou, eu descobria que uma pessoa que
esteve envolvida no trote estava trabalhando naquele lugar. Depois de um
tempo, vim para o Brasil nas vésperas da minha formatura, conheci a
Roberta… e o fim da história você já conhece.
Aquiesci, quieto.
De repente, a maneira como reagiu após à exposição de Olívia fez
mais sentido.
— Nos primeiros meses na RCI, percebi que não importava o quanto
eu me esforçasse… sempre tinha uma voz na minha cabeça dizendo que
todos sabiam que eu não era boa o suficiente, que todos me olhavam e viam
que era apenas a filha do Miguel. — Confessou, baixinho, como se me
confidenciasse um segredo. — E para cada dez degraus que eu subia na
carreira, minha cabeça me fazia sentir que tinha despencado vinte. Foi
quando a Dra. Pilar, indicou que eu conversasse com um psiquiatra e
encontrei a Dra. Cecília Bacci.
O nome não me era estranho e busquei na memória de onde a
conhecia. Levei um tempo considerável para associar o sobrenome à
mulher, mas a conhecia por ter atendido Pedro na adolescência.
— Depois de alguns meses, ela deu um nome para a voz na minha
cabeça: Síndrome do Impostor — disse, envergonhada. — Não importa o
quanto tente, essa voz me lembra constantemente que ninguém me leva a
sério e que… no meu menor erro, por mais bobo que ele seja, todos vão
descobrir que sou uma fraude.
— Você não é uma fraude — frisei, encarando-a sério.
Um esboço de sorriso escapou de seus lábios e ela meneou a cabeça,
fingindo concordar.
— Sei que acha que não estou contigo só por causa da minha carreira,
mas… é muito mais, sabe? Não importa o que você diga, nada vai tirar de
mim a sensação de que, quando descobrirem que cedi e me envolvi com
você, tudo o que disseram vai se provar verdade… e vou confirmar para
todo mundo que eu preciso de um homem para conquistar algo. — Ela
soltou um suspiro, ressentida. — Não me arrependo de ter ficado com você,
juro que não. Mas não posso lidar com a atenção que isso atrairia. E sei que
é egoísta…
— Você não está sendo egoísta — falei, a tranquilizando.
Ela sorriu fraco, agradecida pela compreensão.
— Mas você ainda acha que foi uma decisão errada.
Relaxei os ombros, dando um passo para perto da cama e afaguei o
seu cabelo macio.
— Honestamente? — indaguei e ela acenou —, não posso
dimensionar o que dói em você, anjo. Só você sabe dizer o que te machuca.
Mas espero que entenda, em algum momento, que não pode deixar de fazer
o que deseja, por causa do que desconhecidos vão pressupor. Cada pessoa
que passar por você na vida, vai te olhar com o filtro que ela quiser. Você
poderia hoje mesmo inventar algo que mudaria a economia global, e ainda
assim, continuariam te vendo apenas como acredita que a veem. — Arrastei
os dedos em sua bochecha, deixando o polegar roçar em sua pele macia. —
Mas, se você pudesse ver o que eu vejo sempre que olho para você,
entenderia que eles não fazem ideia do que estão falando… porque você é
extraordinária, Nathalia.
Ela fez beicinho.
— Você diz isso porque gosta de mim.
— Digo isso porque é a verdade — retruquei, apertando os dedos em
seu queixo e impelindo que continuasse me olhando. — Eu soube o quanto
você é brilhante antes mesmo de te conhecer, anjo. Você acredita que todos
te subestimam, porque está dando ouvidos para as pessoas erradas. Não é
qualquer um que consegue reconhecer a beleza de uma peônia, esqueceu?
Seus olhos permaneceram fixos em mim, absorvendo cada palavra
que eu dizia, e pude notar um brilho doce atravessá-los quando mencionei
sua flor favorita.
— Você, com quase vinte e três anos, coleciona mais feitos do que
pessoas que estão trabalhando no mercado há anos, Nathalia. Entre mais de
duzentos alunos na sua turma, foi a mais jovem a se formar e ainda foi
selecionada para uma especialização extremamente concorrida. Tem noção
de que só isso já te torna excepcional?
Era tão absurdo que ela não percebesse isso.
— Eu sei.
— Saber, é diferente de acreditar, anjo. — Apertei seu queixo, um
pouco mais firme. — Não me importo com quanto tempo você vai ficar
longe, porque eu sei que, eventualmente, vai ser minha de novo. Mas me
preocupo que você se importe mais com o que as pessoas que não te
conhecem pensam, do que com as coisas que aqueles que convivem com
você sabem.
Nathalia ficou em silêncio, mas seus olhos se mantiveram nos meus,
refletindo sobre o que eu havia dito. E estava sendo honesto em cada
palavra. Quando tinha a sua idade, não fiz um terço do que ela foi capaz de
executar. Nada daquilo foi construído pelo Miguel, apenas por ela e a sua
ambição.
Se ela não conseguia reconhecer os próprios feitos, nada do que
queria construir para a sua carreira seria suficiente para superar o
sentimento de que não pertencia ao mercado.
— Você sabe que a minha mãe escreve romances eróticos, certo? —
murmurei, vendo-a acenar em concordância. — E que por mais que seja
completamente diferente, as pessoas insistem em alegar que é a mesma
coisa que pornografia. — Nathalia franziu o cenho, sem entender aonde eu
queria chegar. — Acha que ninguém nunca usou isso para me
desqualificar? Que nunca fizeram piada sobre esse assunto numa mesa de
operações ou em reunião com clientes?
— Fizeram?
— Claro que sim, anjo. Porque é assim que o mundo funciona. As
pessoas sempre vão tentar usar algo para te desestabilizar, porque no fundo,
não são capazes de fazer um terço do que você faz… e a única forma que
eles têm de tentar igualar o placar, é jogando assim. — Dei de ombros,
indiferente. — Se eu tivesse dado ouvidos para cada pessoa que disse que
não merecia estar onde estou… minha carreira teria ido à merda há muito
tempo. No fim das contas, é uma matemática simples: quem não consegue,
sabota quem tem potencial. É mais fácil para eles fazerem com que você
duvide de si mesma, do que tentar percorrer metade do caminho que você
percorreu.
Ela fisgou o lábio inferior entre os dentes, distraída.
— Não sabia que sofreu bullying dos seus colegas… pensei que esse
rostinho lindo era o suficiente para todos abrirem as portas para você —
implicou, travessa.
Revirei os olhos, descendo o rosto em sua direção e deixando um
beijo na curva do seu pescoço, sentindo-a estremecer em resposta.
Nathalia encaixou a mão em minha nuca, impedindo que eu me
afastasse e virou o rosto, cruzando o seu olhar no meu.
— Não é justo o jeito que o mundo funciona — sussurrou.
— Não, não é — concordei, fazendo carinho em seu rosto. — E, é por
isso que você não pode pautar o seu merecimento com base no que os
outros pensam. Sempre vai existir alguém que acredita que merece mais,
que se dedica mais e que trabalha mais que você. A grande questão é, vale a
pena viver uma vida pautada em atender as expectativas dos outros, e deixar
de lado o que você realmente quer?
Nathalia piscou, deixando um pequeno vinco em sua testa sobressair e
subi um pouco o rosto, depositando um beijo na região.
— E se eu não tiver certeza de que estou pronta para lidar com os
riscos do que quero? — soprou, incerta.
A pergunta era ambígua, valia tanto para a carreira quanto para a sua
vida pessoal, mas a resposta me parecia um tanto óbvia para as duas.
— Você ainda é jovem, tem todo o tempo do mundo para decidir.
Seus olhos miraram os meus, nublados de sentimentos conflitantes.
— Independentemente do que decidir, estou aqui para você —
assegurei, franco. — Você é a minha maior aposta.
Nathalia sorriu e acenou, deitando a cabeça no travesseiro e passando
o braço em volta do corpo pequeno de Matheus, que aproveitou para se
achegar mais nela.
— Se importa se eu cochilar cinco minutos?
— Posso pedir para o Sérgio te levar para casa, ou para onde você
quiser… — ofereci, preocupado com a ideia dela passar a noite no hospital.
Nathalia negou, me dando um sorriso preguiçoso e sussurrou:
— Já estou onde eu quero estar.
No início da semana, Renato e eu nos vimos fora do escritório todos
os dias.
Matheus estava manhoso, pedindo por colo e atenção o tempo inteiro
— o que fez com que Renato optasse por trabalhar em casa. E assim como
fez comigo na semana anterior, passei no seu apartamento todos os dias
para ver como os garotos e ele estavam.
Como nada podia ser simples na minha vida, nos últimos dias, o meu
orientador passou a me criticar com mais frequência que o habitual. Mesmo
que todos os trabalhos estivessem em dia, entregues com antecedência, e
avaliados com as maiores notas da turma… para o Prof. Becker não era o
suficiente.
Talvez fosse pura implicância comigo.
Contudo, deixei aquilo de lado porque vinha tentando praticar o
pensamento de que estava fazendo o meu melhor e, apesar de às vezes
querer muito, eu não era um robô e tinha limitações.
Dra. Pilar voltou a me atender duas vezes por semana e
permaneceríamos com essa rotina por um tempo, até que eu conseguisse
reaver completamente o controle da minha cabeça.
Em uma das sessões, falei com Pilar sobre Renato e compartilhei
nossa última conversa no hospital. Por mais que tentasse se manter
imparcial, ficou perceptível que minha terapeuta também se juntou ao grupo
de pessoas que adoram Renato Trevisan e acreditavam piamente que ele me
fazia bem.
Na noite passada, enquanto eu estava no apartamento de Renato para
ver os garotos, meu pai me ligou e conversou com ele por um bom tempo.
Pouco antes de dormir, recebi uma mensagem de Miguel falando que
Renato era “surpreendentemente bem-educado e inteligente” mesmo sendo
neto de Vicente Monteiro. E como meu pai não tinha o hábito de elogiar
facilmente, considerei que o seu comentário significava uma coisa positiva.
Renato e eu também não conversamos novamente sobre o nosso
envolvimento. Ele foi claro quando disse que deixaria que eu tomasse o
tempo que fosse necessário para decidir o que queria, e estava cumprindo
com a sua palavra.
Não havia exigência em nossas interações, conversávamos sobre os
garotos, nossas vidas e objetivos individuais, os nossos amigos, desafetos e
bobagens aleatórias.
Fizemos um acordo de não falarmos sobre nada que envolvesse o
escritório, nós dois ou o motivo para que eu tivesse colocado um ponto final
no nosso envolvimento.
A verdade era que na cabeça de Renato não existia um ponto final
naquela história, no máximo reticências. E eu não sabia se deveria
agradecer por essa segurança que ele nutria, ou se ficava irritada por toda a
autoconfiança que exalava.
Ele realmente estava confiante de que me estragou para qualquer
outro homem, e o pior de tudo? Meu corpo concordava.
Na noite passada, Gustavo me convidou para um encontro casual e a
única coisa que meu cérebro registrou, foi o fato de que não existia a menor
chance de que eu quisesse me sentar e conversar com o meu ex-ficante. No
entanto, bastou que Renato enviasse uma mensagem me convidando para
jantar com ele e os garotos, para que eu me sentisse faminta e
extremamente entusiasmada.
No fim, era certo afirmar que meu corpo e cabeça preferiam a
companhia de Renato, mesmo que nada acontecesse entre nós dois.
Era irritante como tudo era natural.
Ele me chamava para perto, e meu corpo ganhava vida própria e se
movia em sua direção.
Ele se afastava, e não importava o quanto eu estivesse concentrada no
que Matheus e Igor contavam, meu cérebro registrava e reclamava pela
distância imposta.
Seus lábios não tocavam os meus, mas cada beijo singelo que deixava
nos meus ombros, pescoço, testa e mãos, era o suficiente para que eu me
lembrasse o quanto sentia falta de ser nocauteada pelo impacto do seu beijo.
Ele não avançou nenhum limite, mas cada vez que me abraçava,
tocava e guiava para perto, era o suficiente para proporcionar os espasmos e
arrepios mais intensos que experimentei na vida.
A realidade parecia estar me dando tapas para que eu admitisse de
uma vez por todas que Renato estava certo em ter toda aquela confiança
sobre nosso envolvimento. Meu corpo me entregava, mesmo que minha
mente continuasse agarrada à escolha que fiz.
— Sobre o que está pensando tanto? — perguntou Antônio, sentandose na minha frente e empurrando uma porção de ovos mexidos.
Encarei o meu amigo e soltei um suspiro, atordoada.
Antônio estava passando alguns dias comigo por conta do ataque de
pânico que tive na semana passada. O único motivo para não ter vindo
assim que contei o que houve, foi porque o proibi de abandonar seus
compromissos em Xangai para vir ao meu socorro, caso contrário, teria
chegado no dia seguinte.
Desde que chegou, ele vinha se dedicando a me dar toda a atenção e
apoio — do seu jeito peculiar e irritante —, em cada minuto dos últimos
dias. E por mais que fosse egoísta, eu estava chateada por saber que ele
retornaria para Xangai naquela tarde, gostava de o ter perto e precisava
admitir que sentia falta dele perturbando minha paz a cada segundo.
— Renato — confessei, concentrando a atenção nas rebarbas do pão
que eu tanto detestava.
— O que tem ele? — Um vinco ocupou a testa do meu amigo,
denunciando a sua confusão.
— O que não tem, no caso.
— Que seria…?
— Pelo visto, defeitos. — Torci os lábios, subindo meu olhar para
Antônio que parecia perdido no assunto. — Ele é atencioso, inteligente…
Sturzenecker riu, interrompendo-me antes que começasse a lista que
parecia crescer a cada dia.
— Ele é homem, você esqueceu? — Zombou, como se aquilo fosse
algo ruim.
E eu sabia o que Antônio queria dizer.
Não era nenhuma garota bobinha e ingênua que nunca se envolveu
com um cara um pouco mais velho, e por isso, se encantava por qualquer
coisa ligeiramente acima da média. Era o contrário, eu sabia exatamente
como eles costumavam construir um personagem perfeito para enganar e
manipular as mulheres.
Cresci rodeada por esse tipo de homem na Alpha, eles nunca se
importaram de contar vantagem na minha frente. Meu melhor amigo era o
maior canalha que existia em Wall Street; e colecionava uma lista
interminável de garotas que acharam que seriam capazes de mudá-lo, mas
que no fim, ele só via como mais um caso que passou pela sua cama.
Eu sabia de tudo, conhecia todo tipo de variante da espécie
masculina.
E por mais estúpido e ingênuo que pudesse ser, ainda defendia a
hipótese de que Renato não era como os outros.
— Você não entende… ele é mesmo diferente.
Antônio riu, ferino.
— Bebê, você realmente acredita nisso?
— Sim.
— Meu Deus, eu falhei mesmo com você — lamentou, apoiando os
cotovelos sobre a mesa e apertou os olhos, esquadrinhando cada centímetro
do meu rosto. — Tudo bem, vamos supor que ele não seja como qualquer
outro homem… o que acho bem improvável, mas vamos embarcar no
mundo fantástico em que a Nathalia acredita em unicórnios e…
— Ele não é — insisti, irritada pela falsa condescendência.
Antônio revirou os olhos, sem esconder o ceticismo.
Ele sempre diz que era a razão, e eu, a emoção. Por isso, não me
ofendi pelo seu deboche em relação ao que eu acreditava. Antônio sempre
me protegeria de qualquer coisa, inclusive, de mim mesma. E, no fim das
contas, eu sabia que se ele se sentasse e conversasse de verdade com o
Renato, também chegaria naquela conclusão.
— Não estou dizendo que ele é perfeito, ok? Ninguém é — defendi,
olhando-o séria. — Mas eu coleciono uma lista bem grandinha de cafajestes
e, é sério… ele não é como qualquer outro.
— Não significa que ele não possa fazer merda — ponderou,
desconfiado.
— Não, não significa.
Antônio meneou a cabeça, compreendendo que eu estava ciente de
tudo o que poderia acontecer.
Meu melhor amigo sabia da escolha que havia feito, inclusive, a
apoiava e me parabenizou por ter sido racional. Mas sei que se eu tivesse
apertado o foda-se e ido adiante, depois de uma série de alerta e prováveis
ameaças violentas e sanguinárias direcionadas ao Renato… eu tinha certeza
de que o ogro me apoiaria.
Do seu jeito torto e indelicado, Antônio cuidava das pessoas que
amava e, acima de tudo, era leal a mim. Ele estaria comigo nas trincheiras
se minhas escolhas me levassem para uma guerra, e isso me deixava
tranquila para arriscar.
— Então, você está pensando em reconsiderar a decisão que tomou?
— investigou, bebendo um gole de café preto.
— Não sei — confessei, sincera. — Se você me fizesse essa pergunta
duas semanas atrás, a resposta seria não.
— E o que mudou?
Olhei-o, angustiada.
— Eu não sei.
Antônio riu, meneando a cabeça e indicou que eu comesse de uma
vez por todas.
— Que milagre — debochou, esboçando um sorriso torto. — Ele
merece os créditos só por ter te quebrado e deixado sem saber de algo.
Ergui o dedo do meio, mandando-o para um lugar nada educado, o
que só arrancou outra risada dele.
— Só me avise quando tomar uma decisão, ok? — pediu, espalhando
uma quantidade generosa de arequipe em cima de uma torrada e me
entregando. — Preciso ter uma conversa com ele sobre o que acontece se
fizer mal para você.
Sorri, achando aquilo uma fofura. Levantei-me, contornando a mesa e
deixando um beijo em seu cabelo escuro.
— Também amo você, bebê.
— Não falei que eu te amo.
Claro que não, ele nunca falava.
Antônio se julgava incapaz de proferir tais palavras.
— Sim, você disse, do seu jeito meio psicopata-protetor. Nós dois
sabemos que não vive sem mim.
Antônio revirou os olhos, puxando uma mecha do meu cabelo como
uma criancinha implicante e mandou que eu me sentasse para comer, já que
me deixaria no escritório antes de ir para o aeroporto.
— Se eu te disser que você é a melhor pessoa que existe nesse mundo
inteiro… posso ganhar cinco minutos de papo furado com a minha melhor
amiga no meio do expediente, como todo pobre proletariado faz? — Bianca
perguntou, entrando na sala com dois copos grandes da cafeteria que ficava
no jardim do complexo.
Sorri, abandonando os relatórios que estava estudando de uma
operação da Devilish Angel que eu iria executar naquela semana.
— Depende, é o café ruim e caro, ou o capuccino que mesmo com
um vidro de adoçante, não deixa de ficar ruim? — Arqueei a sobrancelha,
empurrando a poltrona para trás e me levantando para contornar a mesa
larga.
— Existe coisa melhor do que reclamar da ousadia deles de venderem
o pior café do mundo por cinquenta e dois reais?
Ela soltou um suspiro longo, empurrando a porta com o pé e
caminhando em minha direção. No meu copo, Bianca mandou colocar o
nome: Mia Colucci, e no dela, Lupita Fernández.
Bianca era obcecada por RBD — e novelas mexicanas, no geral.
Segundo ela, se fôssemos personagens da novela; eu seria a garota popular
e mimada que tinha um pai muito rico, e ela a pobre bolsista que nenhuma
criança queria ser.
Aceitei o copo, dando um abraço apertado e cheio de saudade na
minha amiga que não a via há alguns dias. Quando não estava no hospital
com a Adelaide, estava com Leandro — que era outro que eu precisava
encarar o quanto antes para resolvermos a situação da semana passada.
Bianca se jogou no sofá e apenas pelo olhar que me direcionou, soube
que algo não estava certo.
— Vocês brigaram?
— Mais ou menos — resmungou, e aproveitei para me sentar ao seu
lado. — É… difícil estar tanto tempo com a mesma pessoa, sem definir o
que nós temos, sabe? Porque se não é um relacionamento e não temos
exclusividade, por que ele fica tão estressado com a ideia de eu estar saindo
com outras pessoas?
Bebi um gole do meu café, tentando pensar em uma resposta para
aquilo que não fosse tão direta. Conhecia a minha amiga o suficiente para
saber que quanto mais direta fosse, mais ela se fecharia e ignoraria o que eu
falasse.
Leandro e Bianca eram complexos e tinham seus motivos para não
estarem dispostos a assumir um relacionamento. Eu conhecia os da minha
amiga, e apesar de não concordar com a sua maneira de pensar, acreditava
que Bianca precisava cuidar de si mesma e se perdoar pelas escolhas que
fez no passado. Quando isso acontecesse, as coisas seriam um pouco mais
simples. Não era justo que ela continuasse se recriminando e punindo pelo
que não era sua culpa.
Mas os motivos do Leandro eram um mistério para mim. Tudo o que
ele me contou em todo esse tempo, foi que aprendeu que não deveria
confiar nas mulheres, porque quando fazia isso, estava sujeito a ser usado e
manipulado. Ele não quis dizer o motivo, mas não impediu que minha
cabeça criasse um milhão de teorias com o pouco que compartilhou.
De toda forma, eu não sabia o que eles tinham.
Um dia estavam bem, no outro queriam se estrangular até a morte.
Em uma semana, eles sabiam exatamente o que tinham, e na outra,
brigavam por não terem uma definição.
E eu, no meio daquilo me sentia mais perdida que tudo, porque no
fim das contas, tudo poderia ter sido resolvido com um simples diálogo.
O problema era que Bianca e Leandro compartilhavam uma
característica: ambos agiam como rosas espinhosas, prontos para nos ferir
se ousássemos invadir o jardim onde se escondiam.
O café ruim me ajudou a ter foco no problema, o que era bom,
clareava a minha cabeça para encontrar uma solução para eles. Vire-me para
Bianca, notando que ela não dormiu naquela noite e anotei de conversar
sobre aquilo depois.
— Talvez, ele esteja confuso também. — Optei por comer pelas
beiradas. — Como você se sentiria se soubesse que o Leandro está saindo
com outras mulheres?
Bianca riu, meio nervosa e indiferente.
Seus olhos fugiram dos meus e ela bebeu um gole longo do café,
soltando um suspiro demorado e falsamente satisfeito, como se aquilo fosse
a melhor coisa que experimentou em toda a sua vida.
— Eu não daria a mínima.
— Que mentira, Bianca! — Ri, vendo que a sua pálpebra esquerda
começou a contrair de nervosismo com a ideia. — Só de pensar você está
quase sofrendo um AVC.
Uma almofada veio na minha direção, esbofeteando meu rosto e me
arrancando outra risada.
— Cala a boca, sabe o que é isso? Falta de pau! — falou, indignada.
— Ou talvez excesso, pensando bem… existe a chance do Renato ter
desalinhado seu cérebro enquanto transavam, depende, conta para mim.
Qual o tamanho? Só para que eu faça os cálculos…
Foi a minha vez de jogar a almofada em sua direção, o que fez a
idiota ameaçar jogar seu café em mim. E levando em conta que Bianca não
brincava, eu saí correndo e ganhei uma distância segura entre nós duas,
antes de soltar a realidade na sua cara.
— Sabe, talvez, o problema de vocês dois seja que acabaram
desenvolvendo sentimentos um pelo outro e…
— Cala a boca! — Bianca arremessou a almofada na minha direção,
mas me abaixei a tempo.
Estava pronta para dar risada da sua cara, até perceber que a minha
amiga estava com os olhos arregalados, fitando algo atrás de mim. Fechei
os olhos, sentindo minha alma sair do corpo e voltar três vezes. Aproveitei
para rezar para algumas divindades, antes de girar nos calcanhares e encarar
o que estava bem ali.
A visão, no entanto, não era agradável e estar a pouco menos de dois
passos de distância dele, fez com que uma náusea horrível se instalasse no
meu estômago. Instintivamente, dei um passo para trás e inspirei o ar,
tentando manter cada batimento do meu coração em ordem, ou acabaria
tendo um ataque.
O seu cheiro forte me atingiu, trazendo memórias indesejáveis e
causando um embrulho no meu estômago que fez uma ânsia incontrolável
subir pela minha garganta.
— Guilherme. — Seu nome escapou como veneno dos meus lábios,
deixando um gosto amargo e uma sensação ruim no meu peito.
— Saia — ordenou, diretamente para Bianca que não demorou a ficar
atrás de mim, defensiva e pronta para avançar em cima dele.
— Quem você pensa que é, seu…
— Bianca — repreendi, sentindo um desconforto que eu precisava
aprender a ignorar, ou seria inviável permanecer no cargo em que estava —,
tá tudo bem. Nos falamos daqui a pouco, ok?
Minha amiga me olhou como se eu fosse louca.
De todo jeito, eu precisaria aprender a lidar com o Guilherme e
esquecer que, graças ao feito de Roberta, ele conseguiu cotas de sócio
sênior na fusão e não seria possível tirá-lo do escritório tão facilmente.
Como sabia que era impossível que conseguíssemos levantar votos o
suficiente para convidá-lo a se retirar da firma, me restava engolir a sua
presença. E eu não queria precisar me esconder atrás da proteção do Renato
toda vez que esse homem estivesse por perto. Não foi assim que os meus
pais me criaram.
Afinal, gostando ou não, eu carregava o sobrenome Bazán-Gama. Eu
não podia ser facilmente amedrontada. As pessoas que deveriam se sentir
intimidadas por mim, nunca o contrário.
Bianca me olhou alarmada, duvidando da minha sanidade, mas
acabou saindo, nos deixando a sós. Assim que sumiu do meu campo de
visão, Guilherme deu outro passo para adentrar na sala e fez menção a
fechar a porta.
— Ela fica aberta.
— É um assunto particular — rezingou.
— A porta fica aberta — insisti, irredutível.
Se ele queria conversar qualquer coisa comigo sobre o escritório,
seria daquela maneira.
Contrariado, Guilherme entrou na sala e me afastei, ganhando certa
distância dele ao voltar para perto da mesa, deixando um peso de papel
próximo da minha mão para o caso de ser necessário.
Renato tinha dito que eu poderia me defender, certo?
Então, ele arcaria com os custos judiciais para me livrar de um
assassinato — caso Guilherme avançasse algum limite.
Sentei-me na poltrona, mantendo a mesa espaçosa como uma barreira
entre nós dois e acompanhei enquanto Guilherme se sentava na minha
frente.
Seu olhar percorreu a sala, examinando cada centímetro que seus
olhos puderam alcançar e quando retornaram para mim, estavam repletos de
antipatia e arrogância.
— Suponho que esteja aproveitando o seu novo cargo.
— Você veio aqui para isso? — indaguei, franzindo o cenho —,
porque duvido muito que queira me dar os parabéns.
Guilherme sorriu de um jeito esquisito, arrastou as pontas dos dedos
na barba curta e desceu os olhos para o meu colo. Eu não usava nada
decotado, minha blusa era de um tecido grosso com gola alta, deixando
apenas os meus braços expostos. Ainda assim, ele conseguiu me fazer sentir
desconfortável.
— Parabenizamos quem realmente merece estar em uma posição,
linda — disse, forçando um sorriso e se levantou, apoiando as mãos na
madeira opaca e inclinando o corpo sobre mim, em uma tentativa de me
intimidar. — E nós dois sabemos que no seu caso, só existem duas formas
para essa promoção ter acontecido: o papai interferiu e usou os contatos
para te dar, ou você abriu as pernas e usou a boceta para…
Guilherme não teve tempo de concluir.
Meu punho fechado acertou o seu rosto com tanta força que senti os
nós dos dedos queimarem. Ele não esperava por aquilo, levou dois
segundos para que raciocinasse o que aconteceu e mais dois para que
quebrasse a distância entre a gente.
Tudo aconteceu em um piscar de olhos.
Em um instante, Guilherme avançou em minha direção com o punho
fechado e o rosto tomado por ódio; levantei-me e tentei fugir, mas minhas
costas colidiram com o móvel atrás de mim. No segundo seguinte, o carioca
foi arremessado ao chão e Leandro acertou um soco em sua mandíbula.
Minha sala se tornou uma confusão insana e Leandro esmurrou o
Bastos outra vez, e mais uma… outra, e então Guilherme revidou.
Pisquei, catatônica.
Minha boca abriu e fechou, tentando emitir som, mas tudo o que
consegui registrar foi o fato de que, se Leandro não tivesse chegado naquele
exato segundo, Guilherme Bastos teria me batido.
Tentei me mover, mas o meu corpo entrou em completo choque e não
consegui sair do lugar.
Eu não pensei nas consequências, tudo o que a minha mente registrou
foi aquele desgraçado dando a entender que transei com alguém para
conseguir o cargo, e quando me dei conta, era tarde demais.
Fui impulsiva, irresponsável e não pensei na possibilidade de que
Guilherme pudesse revidar.
Que merda eu tinha na cabeça?
E se Leandro não tivesse chegado a tempo?
Minha visão embaçou e senti meus batimentos cardíacos acelerarem,
um vulto atravessou minha sala e pisquei, tentando desanuviar a visão.
Renato entrou como um tornado, puxou Leandro de cima de Guilherme e o
levou para longe.
A sala foi tomada por gritos incompreensíveis.
O ar se esvaiu dos meus pulmões.
Os meus lábios se entreabriram para alertar que eu não estava
conseguindo respirar, mas nenhum som escapou.
Um desespero fora do normal pungiu o meu peito e senti como se
uma mão estivesse em volta da minha garganta, impedindo-me de respirar.
Cambaleei, vendo os vultos altos e opulentos se moverem agitados na
minha frente, tentei avisar que estava passando mal, que os meus pulmões
não estavam funcionando…, mas foi em vão.
Espalmei a mesa, tentando me sustentar e a última coisa que vi antes
dos meus joelhos cederem, foi um vulto correndo em minha direção.
Senti uma mão quente e delicada afagar meu rosto e escutei algumas
vozes cochichando não muito longe.
Parecia uma discussão.
Meu nome foi dito várias vezes e tentei forçar meus olhos a se
abrirem, mas não senti que tinha a energia necessária para aquilo.
— Amiga? — A voz baixa e preocupada de Bianca soou distante,
mesmo que eu soubesse que ela estava perto.
Forcei as pálpebras a se moverem, sentindo-as pesadas demais.
A claridade da sala quase me cegou, mas não incomodou mais do que
a latência em minha cabeça.
Lamentei baixinho, levando a mão para a região e tentei me sentar,
mas aquele movimento foi o suficiente para fazer com que a minha visão
escurecesse e eu voltasse a me deitar, reconhecendo que estava usando as
pernas de Bianca como apoio.
Pisquei, obrigando meus olhos a se fixarem nela e encontrei o par de
íris tão escuras quanto serendibite[36]
me fitando com apreensão.
Um senhor de cabelos grisalhos e óculos com lentes grossas que
faziam seus olhos ficarem minúsculos também me observava. Sem
delicadeza, ele abriu as minhas pálpebras com os dedos e jogou uma luz
forte na direção. Levei alguns minutos para compreender que ele estava me
examinando e meio zonza, segui suas indicações.
— Ela está bem, Renato. Foi apenas uma síncope, provavelmente,
resultado do estresse. — O desconhecido nada simpático informou,
afastando-se e me deixando sozinha com a minha amiga.
Levei a mão para a testa, massageando a região e soltei um suspiro,
espalmando a almofada macia embaixo de mim; Bianca me ajudou a sentar
novamente. O médico falava sem parar, usando um milhão de termos
clínicos e não me atentei a prestar atenção, porque Renato e Leandro
estavam fazendo isso.
Bianca se afastou um pouco para buscar um copo d’água.
E enquanto eu bebia, meus olhos capturaram Renato com uma
expressão péssima no rosto. Ele parecia prestes a atacar alguém e Leandro
estava da mesma forma.
— O que aconteceu? — perguntei, apenas para que a Bia ouvisse e
ela me fitou, preocupada.
— Não lembra?
Neguei, a minha cabeça doía e as minhas lembranças estavam
enroladas em um nevoeiro escuro.
— Guilherme apareceu e quis falar com você a sós, e você me
mandou deixar os dois sozinhos. Eu sabia que ia dar merda e fui chamar o
Renato, mas ele estava com um cliente… então, chamei o Leandro. Mal deu
tempo dele vir para cá, e o Renato saiu da reunião e veio também. Quando
cheguei aqui, Leandro já estava em cima do Guilherme e Renato o tirou da
confusão…
Conforme Bianca falava, as coisas foram ganhando clareza na minha
cabeça até se libertarem da névoa densa que as escondia.
Eu tinha começado toda a confusão. Era minha culpa e…
Renato se aproximou, agachando na minha frente. Sua mão capturou
meu queixo, enquanto os seus olhos esquadrinhavam cada centímetro do
meu rosto buscando por um machucado.
— Como está se sentindo? — perguntou, distante e frio.
Ele está com raiva de mim?
— Hã… tudo bem — menti, mas ele me olhou deixando claro que
não tinha acreditado. — Só com um pouco de dor de cabeça.
Renato aquiesceu e Bianca se afastou, avisando que desceria para
comprar um analgésico. Leandro a acompanhou.
Pelo jeito que Renato parecia prestes a arrancar meu fígado, me vi
tentada a pedir para que não me deixassem sozinha com ele, mas os dois
não deram a menor atenção e saíram rapidamente, fechando a porta.
Engoli em seco, virando para o homem parado na minha frente,
aguardando por uma explicação.
As juntas dos meus dedos estavam doendo muito. Abri e fechei,
esticando os metacarpos, e isso foi o suficiente para fazer com que Renato
descesse a atenção para a minha mão ferida, reconhecendo alguns
hematomas entre os nós dos dedos.
— Eu bati nele — expliquei, enquanto ele analisava as lesões
causadas pelo soco. Respirei fundo ao ver sua mandíbula endurecer, sua
mão envolveu a minha com uma delicadeza que contrastava com seu olhar
duro. — Não pensei que ele fosse vir para cima, fui estúpida e…
Aquela última frase atraiu a atenção de Renato, de imediato.
Se antes achei que ele fosse arrancar meu fígado, naquele instante,
considerei que meu corpo inteiro seria esquartejado e jogado aos lobos. No
entanto, ao ver seus ombros enrijecerem e os punhos se fecharem, soube
que não era para mim que aquela raiva estava sendo direcionada.
— Ele encostou em você? — averiguou, entredentes.
Sua voz soou tão profunda e sombria que quase não a reconheci.
— Não, o Leandro chegou antes…
Renato se levantou e pela primeira vez desde que o conheci, escutei
um palavrão sair da sua boca em um diálogo que não envolvia sexo. Ele se
afastou e foi até a mesa, discando o número de alguém e quando respondeu,
soube que falava com a equipe de segurança do prédio.
— Ele saiu faz tempo? — indagou e pela expressão de raiva contida
em seu rosto, soube que Guilherme foi embora há algum tempo. — Corte o
acesso dele para entrar no complexo. A partir de hoje, Guilherme Bastos
não entra nesse prédio sem que eu saiba.
Abri a boca para dizer que não deveria fazer aquilo, que eu estava tão
errada quanto; e que Guilherme poderia pedir a minha cabeça ao conselho
de sócios — uma vez que o agredi dentro da empresa, e isso feria uma das
regras mais importantes do código de conduta que fiz cada funcionário
desse escritório assinar após a fusão.
Ainda que estivesse muito tentada a intervir, uma voz na minha
cabeça me mandou calar a boca e deixar que Renato fizesse o que achava
melhor, e não demorou para que retornasse para perto de mim.
— Juro que…
— Pare de se explicar, Nathalia. Se fez isso, foi porque ele deu
motivos.
— Mas…
Calei-me.
No fim das contas, eu estava errada.
E se explicasse ao Renato o motivo, era capaz de piorar a situação.
Pensei que Guilherme seria racional e não provocaria uma discussão,
mas ele não dava a mínima para mim ou para o profissionalismo.
Guilherme Bastos era só mais um babaca machista como todos os
outros que eu lidava diariamente, com a diferença que vinha com o bônus
de ser agressivo e assediador.
— Se importa se eu for para casa? — pedi, cansada e sentindo o
corpo inteiro dolorido.
— Levo você.
Balancei a cabeça, negando.
Renato estava transtornado e eu não queria fazê-lo perder todos os
compromissos daquela tarde por minha causa.
— Não precisa. — Levantei-me, sentindo o chão se mover um pouco
sob os meus pés. O braço de Renato me envolveu, impedindo que me
desestabilizasse. — Estou de carro e quero ficar um pouco sozinha.
— Você não vai dirigir assim.
— A Bianca dirige.
— Nathalia… — o interrompi.
— Preciso ficar sozinha por hoje, Renato. Só isso, tá? — pedi,
desvencilhando-me dele.
Conhecia muito bem a equipe que trabalhava conosco, e eu sabia que
a essa altura do campeonato, as fofocas estavam se espalhando pelos
corredores. Permitir que Renato me levasse para casa, só daria mais
material para que criassem teorias.
Se isso acontecesse, não demoraria até que o escritório inteiro
começasse a pensar o mesmo que Guilherme.
Na sexta-feira, Leandro invadiu minha sala com um sorriso
preguiçoso, um pequeno hematoma no lábio inferior e uma garrafa de Don
Julio.
— São quatro da tarde — frisei, vendo-o se aproximar e servir a
bebida em dois copos com gelo, antes de se sentar ao meu lado e me
entregar um. — Já encerrou o dia?
— Claro, que graça teria ser o chefe e ainda ficar trabalhando até
tarde? — perguntou, irônico. — Bora, larga isso e vem conversar comigo.
— Indicou para os papéis que estavam no meu colo.
Revirei os olhos, lendo os percentuais de lucros descritos no último
parágrafo do relatório e ao confirmar que tudo estava em ordem, o assinei e
coloquei na pilha de documentos que deveriam ser arquivados. Dobrei uma
perna, apoiando-a em cima do sofá e aceitei o brinde que Leandro puxou,
sentindo-me apreensiva com o seu silêncio.
— Desculpa — falei, de uma vez por todas o que estava entalado na
garganta há dias. — Pelo que eu falei naquele dia, não estava me sentindo
bem e não tinha o direito de descontar em você.
Leandro espreitou os olhos em mim, fingindo seriedade por meio
segundo antes de dispensar meu pedido de desculpas com um gesto de mão.
— Relaxa, segundo a Babi, eu lido com os meus traumas usando o
humor para esconder os sentimentos — disse, sério. — Brigar com a minha
melhor amiga? — Estalou a língua. — Rendeu um repertório para os
próximos dez anos.
Sorri, bebendo um gole da tequila e soltando uma risadinha baixa.
— Você é um idiota.
Salazar levou a mão ao peito, fingindo estar emocionado.
— Eu sou, por isso que sou inestimável. Não existe nenhum outro
como eu… — ostentou, arrogante. — Mas você estava certa, não se
martirize tanto por ter jogado verdades na minha cara. Alguém precisava
me dizer aquilo.
Esquadrinhei seu rosto buscando por um sinal de que aquilo era outra
brincadeira, mas Leandro falava sério. O sorriso divertido sumiu, ele
parecia incomodado com alguma coisa e levando em conta que quase nada
o deixava desconfortável, coloquei a minha mão sobre a sua; oferecendo
conforto.
— Está tudo bem?
Salazar ficou em silêncio por alguns segundos, ponderando sobre
como responder a minha pergunta.
— Fernanda — anunciou, como se eu soubesse do que se tratava. Um
lampejo de dor perpassou nas íris avelãs, tirando todo o resquício de bom
humor dele. — O motivo para que eu não lide bem com mulheres e
relacionamentos — esclareceu.
Acenei, tentando buscar por um momento entre nossas conversas em
que Leandro deixou algo sobre ela escapar, mas não encontrei porque nunca
houve. Apenas pela forma como o nome escapou dos seus lábios, dava para
perceber que não era um assunto que ele tocava com frequência.
— Quer conversar sobre isso?
Ele fez uma careta, virando todo o líquido e abandonou o copo em
cima da mesa de centro.
— Não. — Seu corpo virou para mim, relaxando no sofá. — Vamos
falar sobre você e o Renatinho.
— Não tem o que falar sobre isso.
— Como não? — perguntou, afrontado. — Vocês são minha
obsessão! Passo oitenta por cento do tempo falando sobre vocês e nos vinte
por cento restantes, torço para que alguém fale… só para que eu consiga
falar mais um pouco!
Engoli uma risada ao escutar o que o idiota disse.
Era inacreditável como Leandro conseguia desviar o rumo de todas as
conversas para uma bobagem sem importância.
— Isso foi uma referência a Meninas Malvadas?
— Sim, Bianca e Gabriela me fizeram assistir na noite passada.
Confesso que achei a Regina George um ícone incompreendido. — Ele se
levantou, pegou a garrafa do bar e serviu outra dose para nós dois.
— Claro que achou, você é a versão masculina dela na vida dos seus
amigos — caçoei.
Leandro levou a mão ao peito e sorriu exultante.
Aquilo, na perspectiva do idiota, era um elogio e tanto.
— Sabe que ela era a vilã, né?
— Quem é mais relevante para a cultura pop? Regina ou a ruiva lá?
— Cady?
— Quem?
Revirei os olhos.
— A protagonista, Leandro.
— Ah, a Lindsay Lohan… viu? Completamente irrelevante, lembro o
nome da atriz, mas não da personagem. — Deu de ombros, entregando o
copo reabastecido e mirou a cidade atrás de mim. — Enfim, sou o maior fã
de vocês dois. Precisamos acertar os detalhes do casamento, inclusive…
Arregalei os olhos, vendo o idiota andar de um lado para o outro,
como se estivéssemos confabulando um plano ultrassecreto para salvar o
mundo de uma catástrofe, e no caso, para Leandro Salazar esse problema se
resolveria com o casamento do seu melhor amigo.
— O que acha do início de Outono? — ofereceu, sentando-se ao meu
lado, ele realmente estava levando aquilo a sério. — Acho que abril seria
um bom mês, mas… — massageou o queixo, reflexivo. — Não, esquece! É
melhor que seja em março, o que acha do dia 23?
— Quer que eu me case em menos de um mês? — questionei,
engolindo uma risada.
— Verdade, trinta de março é melhor. Você sabe que tipo de vestido
de noiva quer? — investigou, arqueando a sobrancelha e buscou o celular,
verificando a sua agenda. — Não… mudança de planos. Tem um torneio de
pôquer nesse dia e passei o ano inteiro praticando para vencer o Pedro,
melhor no dia primeiro de abril? Não, espera… é Dia da Mentira, vai que
ninguém aparece porque pensa que é trote e…
Abri a boca, tentando emitir um mísero som que pudesse expressar o
quanto achava que ele era um idiota. Mas, desisti e relevei. Do seu jeito
maluco, Leandro estava implicando comigo, o que significava que estava
tudo bem entre nós dois.
— Senti sua falta, caipiranha… — fiz beicinho, sincera.
— Claro que sentiu, que graça teria a sua vida sem mim?
Pisquei, ignorando a sua arrogância e estapeei seu ombro.
— Deixa de palhaçada, nós dois sabemos que é você quem não vive
sem mim!
Leandro me olhou dos pés à cabeça, cheio de provocação e deu um
peteleco na minha testa.
— Talvez…, mas agora você só liga para os eremitinhas.
— Eremitinhas?
— Sim, Renato é o eremita-pai, Matheus e Igor os eremitinhas.
Gargalhei, sem conseguir me conformar que aquele cara era de
verdade.
— Você ri, mas isso faz de você a eremita-mãe, viu?
— Leandro… — enxuguei as lágrimas que rolavam pela gargalhada.
Respirei fundo, tentando controlar o riso e balancei a cabeça, descrente. —
Sério, eu preciso perguntar para a sua mãe quantas vezes você caiu do
berço.
— Foram dezesseis. Ela me levou para fazer vários exames.
— E?
— Eu sou perfeito.
— Perfeito não sei, mas… excêntrico? Com certeza.
Leo revirou os olhos, relaxando as costas no sofá e trouxe a sua
atenção de volta para mim.
— Estamos bem?
Sorri, mais tranquila que antes.
— Estamos bem — confirmei.
Mal tive tempo de atravessar os portões da propriedade,
acompanhada por Carol e Fabio, amigos de Renato, antes de ser abordada
por uma meia dúzia de crianças eufóricas.
Com tudo o que aconteceu nas últimas semanas, acabei não
conseguindo vir ao instituto, e como Carol também esteve ocupada com
assuntos da Haddock Motors, deixamos para visitar o instituto naquele fim
de semana.
Como de costume, eu trouxe caixas de brinquedos novos e dois
voluntários ajudaram Fabio a pegar tudo do meu carro, enquanto as crianças
me metralhavam com tudo que aconteceu durante a minha ausência.
Entre apreciar as paredes repletas de desenhos que fizeram e o novo
playground que havia terminado de ser construído, enviei fotos e vídeos
para os meus pais, acompanhados de áudios das crianças dizendo o quanto
sentiam a falta deles.
Tanto Carolina quanto Fabio foram levados pela irmã Carina para
conhecerem a propriedade e conversarem sobre como funcionaria, caso
quisessem seguir adiante com uma adoção.
Carina era a pessoa que estava à frente do projeto, e dedicava cada
dia da sua vida para cuidar daquelas crianças. Era admirável o amor e
cuidado que ela tinha com cada um, e sempre que podia, eu vinha ajudar de
alguma forma.
— Ei, Nath! — chamou Diego, sentado no meio da grama e com as
mãos sujas de tinta guache. — Não sabia que você viria hoje.
Sorri fraco, aproximando-me de duas garotinhas que trabalhavam em
uma obra de arte na tela apoiada na grama. Elas me encararam, abrindo um
sorriso largo e banguela.
— Tia Nath!
— Oi princesas, estão dando trabalho para ele? — perguntei, vendo o
rosto de Diego todo sujo de tinta, alguns fios castanhos estavam manchados
com a cor lilás.
As meninas o olharam e sorriram deslumbradas, era perceptível a
admiração que tinham por ele. Como a Alpha era associada a várias
instituições e promovia anualmente um evento para recolher fundos para a
caridade, era comum que os funcionários e sócios da gestora fossem
voluntários em alguns lugares.
Diego era um sócio júnior que adorava o projeto do instituto, e as
crianças o amavam na mesma proporção. Talvez, gostassem mais dele do
que de mim. Era uma possibilidade. Diego vinha todos os domingos, sem
exceção. Era uma presença constante na vida delas e eu o admirava demais
por aquele cuidado com os pequenos.
— Princesas, vocês se importam se eu for lavar as mãos com a tia
Nath? — perguntou e as duas negaram, voltando a se concentrar no desenho
que pintavam na tela.
Diego sinalizou para um outro voluntário cuidar das meninas, e me
levou para caminhar pela propriedade. Enquanto lavava a tinta das mãos,
ele me atualizou de tudo o que foi feito na propriedade durante a minha
ausência.
— O que houve com a oficina? — perguntei, vendo que o telhado
estava quebrado.
— Um filho da puta arremessou um tijolo no início da madrugada —
falou, e foi meio que instintivo que o nosso olhar se movesse para o
pequeno prédio que estava sendo construído ao lado.
— Acha que foram tão babacas, a ponto de fazer isso de propósito?
Meu pai comprou o terreno que ficava ao lado da igreja há alguns
anos, e acabou entrando em uma briga com um vereador local que almejava
construir um prédio no terreno. De acordo com o político, não seria bom
para os negócios que os moradores acordassem com crianças gritando e
brincando ao lado de suas janelas.
Apesar das inúmeras tentativas do vereador de prejudicar a compra
do terreno com a prefeitura, os advogados da Alpha garantiram que a
propriedade fosse arrematada, e nos últimos anos vínhamos trabalhando em
melhorar o espaço para as crianças.
O político mesquinho até tentou embargar a obra inúmeras vezes,
mas o projeto estava andando sob os cuidados da ZAE[37]
. A oficina era um
espaço temporário para que as crianças pudessem ter aula, enquanto a
construção da escola não era concluída.
— O maior problema é que choveu a madrugada inteira, então, todos
os livros que estavam daquele lado estragaram… e a equipe da ZAE só
retorna na quarta-feira para arrumar. — Diego cobriu os olhos com a mão
ao olhar para cima, tentando calcular de que andar o tijolo poderia ter
vindo.
— Tem que ser muito infeliz para fazer uma coisa dessas… —
resmunguei, buscando o meu celular e mandando uma mensagem para
Arthur Zimmermann, que era o responsável por aquele projeto. — Eles
perderam muita coisa?
— A maior parte do material didático.
Franzi o cenho, confusa.
— Por que a Carina não me contou?
— Ela está tentando levantar fundos com outros doadores, sabe?
Carina insiste que está exigindo muito de vocês.
Acenei, procurando pelo contato do responsável por todos os
assuntos que envolviam as instituições que a gestora patrocinava, e pedi
para que providenciasse o reenvio de todo o material perdido.
Diego e eu ficamos alguns minutos conversando sobre as crianças,
que andavam aprontando bastante. Eu amava passar os meus domingos
livres com eles, e estava feliz em ter conseguido um espaço na agenda para
acompanhar a Carol e o Fabio. Ficaria ainda mais se eles adotassem uma
das minhas crianças.
Debaixo da sombra de uma árvore, senti o coração vacilar no peito,
graças ao pedaço de gente, pirracento e de humor volátil, que caminhava
em minha direção com um olhar nenhum pouco amigável.
— Nathalia Maia de Bazán Gama! — bradou, furiosa.
— Presente, senhora! — Bati continência, vendo a criaturinha colocar
as mãos na cintura e parar a poucos passos de distância, erguendo o queixo
para me encarar. — Quem é a Felícia[38]
mais lindinha do mundo inteiro?
— Você me abandonou!
— Claro que não, Rafa.
— Abandonou sim!
Suspirei, abaixando-me e nivelando nossa altura. Os olhos de Rafaela
faiscavam de ressentimento, era comum que aquilo ocorresse quando eu
acabava não conseguindo vir no fim de semana certo, mas naquela tarde,
Rafa parecia especialmente irritada.
— Você tem razão, eu pisei na bola. — Relaxei os ombros, ajustando
a gola da sua camiseta que estava torta e fitei seus olhinhos castanhos. —
Você me perdoa?
Rafaela apertou os lábios, cruzando os braços em frente ao peito e
desviou a atenção de mim para Diego, que nos observava com diversão.
— Você trouxe a minha boneca?
Levei a mão ao peito, fingindo mágoa.
— Só vai me perdoar se eu te der a sua boneca?
Rafaela revirou os olhos e rapidamente relaxou os ombros, passando
os bracinhos em volta do meu pescoço e me dando um abraço apertado,
cheio de saudade e quase sufocante.
Ela era a Felícia em carne e osso.
— Como você está, princesa?
— Cansada da Manuela, você acredita que ela cortou o meu cabelo
com uma tesoura da aula de educação artística?
— Não acredito nisso!
— Ela fez! Não foi, tio Diego?
Olhei para o rapaz que assistia tudo com um sorriso e ele acenou,
concordando.
— Viu? Ela pode ficar sem boneca, né, titia?
— Posso conversar com ela e conseguir um pedido de desculpas, isso
resolve o seu problema?
A pequena pensou um pouco, refletindo e acabou concordando,
aceitando que eu falaria com a sua irmã. Rafaela e Manuela eram as duas
garotinhas que faziam parte de um trio de gêmeos, e elas sozinhas
conseguiam dar mais trabalho do que o irmão, Gustavo.
— Cadê a Manu e o Gus?
— Manu tá com a tia Carina e uma moça bonita que eu não
conheço… — disse, chacoalhando os ombros. — Gus ajudando o tio
Ricardo na hortinha.
Acenei, apertando suas bochechas e deixei um beijo em seu cabelo
cacheado, levantando-me para falar com Diego. Entretanto, outra coisa
atraiu a minha atenção.
Caminhando em direção à oficina estavam Fabio, Leandro, Marc e
Renato. Eles carregavam ferramentas que não demoraram a espalhar pelo
gramado, enquanto erguiam a escada para trocar as telhas quebradas.
— Quem são aqueles? — perguntou Manu, puxando a barra da minha
blusa e desci a atenção para a pequena, sorrindo fraco.
— Meus amigos… por que não vai atrás da tia Lucia? Ela está com as
bonecas. — Sequer precisei insistir, Rafaela correu na direção que levava
para a casa principal e nos deixou para trás. — Hã… vou descer para
conversar com eles, tudo bem?
Diego acenou, aproximando-se e me prendeu em um abraço apertado
e demorado, antes de deixar um beijo em testa e dizer:
— Passa no escritório, faz tempo que você não dá as caras por lá. —
Ele me soltou, mas meus olhos colidiram com os de Renato que nos
observava.
Sorri fraco para o rapaz e acenei, confirmando que tentaria encontrar
uma brecha na agenda. Diego se afastou, retornando para onde as
garotinhas estavam pintando.
Confusa com a presença dos três homens ali, desci o gramado e
alcancei a trilha que levava para a oficina, o que me fez ser notada pelos
outros dois que ainda não tinham me visto naquele dia. Marc foi o primeiro
a se aproximar, seus braços me envolveram com aquela força esmagadora e
ele me levantou do chão, quebrando os meus ossos no processo.
— Oi, gatinha! — disse, dando um beijo estalado na minha bochecha.
— Que bom que está aqui… deixei um presente para você há dias e não tive
retorno. Passei dos limites?
Franzi o cenho, olhando-o confusa e aliviada por ter sido libertada do
abraço de urso.
— Que presente? Não recebi nada.
Marc levou dois segundos para processar o que eu disse e se virou
para Renato, indignado.
— Você não deu o presente dela?
Trevisan revirou os olhos, como se aquilo não fosse nada.
— Não a vi, logo, não tive a oportunidade.
— Pensei que estivessem se vendo todos os dias.
— Hã… não. — Afastei-me um pouco, vendo Leandro empurrar uma
telha para Fabio que estava em cima do telhado. — Mas que presente foi
esse, e por que achou que tinha passado dos limites?
Marc sorriu, cafajeste.
— Mandei um kit com os novos lançamentos do sex shop.
— Ah… — empalideci um pouco, conhecia Marc o suficiente para ter
uma breve noção do que poderia ter naquela caixa. — Por que não enviou
para o meu apartamento?
— Você acredita que não quiseram me dar o seu endereço? —
perguntou, ressentido.
Não precisei pensar muito para que os meus olhos se movessem para
Renato em uma indagação silenciosa. Ele semicerrou os cílios, da mesma
forma que fez quando Diego me abraçou e balançou os ombros
preguiçosamente.
— Estava tentando impedir que ele enviasse uma… como se chama
mesmo, Marc? — incentivou, falsamente inocente.
O loiro sorriu, animado com o assunto.
— Uma cadeira de balanço erótica — anunciou, sorridente.
Pisquei, confusa.
— O que seria uma… cadeira de balanço erótica?
A ingenuidade abandonou o seu rosto quase de imediato e deu lugar
àquele sorriso safado de sempre.
— Pense em uma cadeira de balanço, exatamente como aquela ali. —
Apontou para o brinquedo inocente no playground a poucos metros de
distância de nós. — A diferença é que na que eu queria te enviar, ela é
amarrada ao teto do seu quarto e você fica inteiramente deitada, com as
duas pernas amarradas, bem-abertas e suspensas…
Ai. Meu. Deus.
Senti o rosto ficar quente e olhei para Renato em choque. Minhas
mãos cobriram a boca de Marc, impedindo que concluísse o que o
brinquedo faria e olhei por cima dos ombros, aliviada que nenhuma criança
estivesse passando por perto.
— Você não me enviaria isso, né?
— Por que não?
— Marc! O que tem na caixa?
Renato caiu na risada e tive certeza de que eu arrancaria a cabeça do
armário musculoso e loiro. Marc se concedeu ao direito de manter suas
bolas intactas e se afastou, indo ajudar os outros dois homens. Acompanhei
o loiro perturbar a paz de Leandro, e senti um certo consolo ao saber que
existia alguém que conseguia ser mais pentelho do que o Salazar.
— Você abriu a caixa? — perguntei, cruzando os braços em frente ao
corpo e Renato se aproximou, enlaçando a minha cintura e me dando um
beijo demorado no ombro desnudo.
— Não.
— Por acaso, ela tem tamanho suficiente para caber um vibrador, mas
não é tão grande para uma arapuca de BDSM? — investiguei, inclinando
um pouco a cabeça para trás, o suficiente para encarar o seu rosto
irritantemente lindo.
Seus braços ainda me prendiam contra o seu corpo e não senti
vontade de me afastar.
— Então, você não se importaria com um vibrador?
Dei de ombros.
— Não.
— Mas uma… arapuca de BDSM, não?
Sorri, arteira.
— Bom… em primeiro lugar, depois de dar uma voltinha pelo
apartamento que o Antônio usa para se encontrar com as mulheres que ele
se envolve… tenho propriedade para falar que não tenho qualquer propensão
ao sadomasoquismo — informei, tentando fingir seriedade. — No caso,
estou falando do BDSM pesado, tá?
— Ah… os outros níveis por você, tudo bem? — perguntou,
divertido.
Estalei a língua, sentindo aquela leveza que ele trazia me preencher.
— O que custa explorar?
Não era como se eu pudesse bater na tecla e afirmar que nunca me
interessaria, mas… depois de frequentar um clube com Antônio e
acompanhar algumas práticas dos seus adeptos, tinha certeza de que
algumas coisas eram pesadas demais… até para mim.
— Entendo. — Sorriu cafajeste. — E em segundo lugar?
— Hã… segundo que…
Me perdi nas palavras ao sentir a sua mão deslizar delicadamente pela
minha costela por dentro da blusa. Ele arrastou os dedos alguns centímetros
abaixo do meu seio, descendo novamente e esmagando a minha cintura.
Renato aproveitou que nenhuma criança estava por perto — e que
seus amigos estavam mais concentrados em se xingarem por causa do
telhado —, para trazer o rosto para perto, mordiscando o meu queixo
levemente e arrastando os lábios na minha pele, subindo pela mandíbula e
sugando o lóbulo da minha orelha.
— Que…? — incentivou.
Pisquei, sem conseguir pensar no que dizer.
Meu corpo colapsou ao ouvir a sua voz grave e rouca ao pé do
ouvido, acompanhando as mãos fortes esmagando a minha cintura.
— O que vocês estão fazendo aqui? — indaguei, enfraquecida e
tentando manter a mente estável.
Renato sorriu, afastando-se um pouco e me fazendo sentir raiva de
mim mesma por detestar aquela distância entre nós dois. Arrastei as mãos
pelo tecido da minha calça, tentando esconder o nervosismo que ele me
causava e dei um passo para trás para recobrar o juízo.
— Fabio ligou pedindo ajuda com o telhado.
— Só faltou você ajudar, né? — resmungou Fabio, de pé ao lado do
buraco feito pelo tijolo.
Ri, ouvindo Renato mandar o amigo à merda e voltar a se concentrar
em mim.
— Posso te buscar para um jantar hoje?
O convite era tentador, estávamos sem conversar desde a confusão
com Guilherme na minha sala e eu sentia saudades dele.
Renato era uma daquelas pessoas cuja presença era tão marcante que
até nas coisas mais simples, como assistir a um filme e comer uma pizza,
parecia ser algo épico e memorável.
E quando não estava perto, toda aquela intensidade fazia falta.
— Eu adoraria, mas… preciso passar a noite trabalhando na minha
monografia.
A frustração foi palpável na minha voz, mas era uma coisa que eu
precisava me dedicar, afinal, era uma chance única e precisava ser bem
aproveitada.
Eu me formaria oficialmente em maio, mas o trabalho deveria ser
entregue antes do meio de abril, e apesar de ter uma base do que seria o
tema, ainda precisava me dedicar em pesquisar sobre a pauta. Meu
orientador não aceitaria nada menos que extraordinário, do tipo que me
concederia um Nobel, e a pressão em meus ombros aumentaria
consideravelmente nas próximas semanas.
Por isso, era melhor manter distância de Renato.
— Já escolheu o tema?
Anuí, sorrindo levemente.
— Posso te mostrar quando terminar e você me diz o quanto ficou
péssimo?
Renato revirou os olhos, mergulhando a mão em meu cabelo e
deixando um beijo demorado na minha testa.
— Tenho certeza de que vai estar excelente.
— Você nem sabe sobre o que é — impliquei, fingindo chateação —,
qualquer coisa que eu escreva, você vai achar incrível, não é?
— Nunca mentiria para você.
Suspirei, acreditando nele.
Dei um passo para me afastar e aproveitei para me despedir, ou
acabaria mergulhando naquela bolha para a qual Renato sempre me puxava.
Um dia, Maitê Belchior me enlouqueceria.
— Amiga, se acalme, tudo bem? — pedi, enquanto enviava uma
mensagem para o investigador particular do escritório.
No meio das reclamações e xingamentos dirigidos à sua diretoria, ela
soltava todo tipo de palavrão existente e até inventava alguns novos.
— Eles acham mesmo que podem mandar na minha empresa? —
grunhiu, raivosa.
— Não, eles não podem. Cuidamos disso, lembra?
— Sim, eu lembro. Mas eles estão vetando o meu orçamento e isso é
a mesma coisa que me impedir de fazer o meu trabalho! — Sua raiva era
palpável e eu não a julgaria. — O que eu posso fazer? Mandar matar?
— Claro que não, garota.
— Ah, me poupe desse puritanismo, eu preciso que você faça alguma
coisa. Eles estão me amarrando e não é do jeito que eu gosto!
Apesar da situação ser grave, era impossível não cair na risada com
as coisas que Maitê falava. Ela era como um trem desgovernado, e qualquer
um que cruzasse seu caminho corria o risco de ser atropelado, pois ela
nunca hesitava.
— Tudo bem, deixe que eu resolvo o problema com o conselho e
trabalhe na sua coleção, ok? — instruí, paciente.
Maitê e eu nos conhecemos no Niké, quando éramos duas
adolescentes cheias de aspirações e sonhos de construir carreiras
grandiosas.
Seus pais eram donos de um império de artigos femininos, e quando
ela decidiu assumir a empresa, mudou completamente a forma como faziam
o marketing e criavam os produtos. O resultado? As mudanças não
vingaram. A antiga marca era conhecida por produtos muito… tradicionais.
De ótima qualidade e queridinhos pela elite, mas não conversavam nenhum
pouco com o conceito que a maluca queria desenvolver.
Depois de quase matar os pais do coração ao declarar o encerramento
das operações da antiga marca, Maitê criou a D.A que tinha como objetivo
principal, conversar com o público feminino que não queria mais viver sob
o estereótipo de mocinhas recatadas.
Com uma campanha de divulgação pautada em espalhar o caos,
causar controvérsia e travar uma briga árdua contra os conservadores, Maitê
vinha há três anos consolidando a sua grife de lingerie na América Latina.
Contudo, ainda precisava lidar com os sócios que carregavam as
crenças da velha-guarda. Por duas horas ininterruptas, escutei a minha
amiga e cliente me contar como um dos sócios estava fazendo da sua vida
um completo inferno, e decidi que era nele que deveria me concentrar.
Quando encerrei a ligação com Maitê, era por volta de meio-dia e eu
me sentia faminta. O que me lembrava que entre a rotina de treinar no
clube, o encontro naquela manhã com o meu orientador e acompanhar a
abertura do mercado, não tive tempo para comer nada.
Digitei uma mensagem para Bianca, convidando-a para almoçar
comigo, mas antes que conseguisse enviar o convite, minha porta foi aberta
por Roberta que entrou na sala com uma caixa de documentos fechada e
cheia de poeira.
Franzi o cenho, confusa.
Roberta estava me evitando há semanas — desde a nossa última
conversa após a minha promoção —, ela não se importou de sequer
questionar o que havia acontecido na minha sala entre os três sócios alguns
dias atrás.
— Bom dia, Roberta. — Forcei um sorriso, lembrando-a da educação
que, aparentemente, havia perdido. — O que é isso?
Seus olhos me fitaram com rancor, o que não fazia o menor sentido.
Se eu que havia sido passada para trás e feita de idiota não estava
guardando ressentimento, por que ela teria?
— Bom dia, Nathalia. — Não existia resquício de sinceridade
naquele cumprimento.
Que irônico, uh? Foi só me priorizar um pouco e todo aquele carinho
que dizia sentir por mim, se foi…
— Carla precisou sair para resolver assuntos pessoais e preciso
desses documentos digitalizados e arquivados até o fim do dia. Tem outra
caixa na minha sala, e preciso que tudo seja anexado ao drive da Lester Oil.
Não soube dizer se era pela falta de comida ou porque nada do que
falou fazia o menor sentido, mas encarei Roberta por longos segundos,
esperando uma conclusão para o que estava querendo dizer… até que
compreendi.
— Você está me passando trabalho de secretária?
Nunca, em dois anos como seu braço-direito, Roberta me pediu para
escanear uma mísera página de contrato. Era para esse tipo de função que
tínhamos vários assistentes administrativos na folha de pagamento, e na
ausência da sua secretária, ela poderia ter passado aquela ordem para
qualquer um.
Ainda assim, Roberta teve o trabalho de percorrer um corredor
enorme, carregando aquela caixa pesada, passar por exatamente vinte e seis
portas no caminho… só para chegar aqui e jogar o trabalho na minha mesa.
E o problema não era ela me passar aquela tarefa, mas a mensagem
que esse pedido transmitia.
Engoli em seco, inspirando o ar lentamente e o segurando nos
pulmões por outros longos segundos, antes de soltar pelos lábios.
— Você sabe que sou a diretora de operações, não sabe? — O
questionamento escapou como uma última tentativa de fazê-la reavaliar o
que havia pedido. — E entende que minhas funções estão acima disso, e
que pode pedir…
— Sim, entendo. — Interrompeu, rude. — Mas preciso que isso
esteja no servidor antes do fim do dia. Tenho uma reunião com o presidente
da L.O às 17h e, para ficar pronto a tempo, preciso que comece a ser feito
agora e toda a equipe saiu para o almoço. — Deu um passo para trás, me
dando um meio sorriso. — Tenho certeza de que, como se provou apta a
entrar no cargo pulando todas as etapas e passando por cima de mim, pode
concluir essa tarefa em tempo hábil. Você adora lembrar do quanto é ótima
em tudo, não é?
Um tapa teria me deixado menos furiosa, mas a quantidade de vezes
em que respirei fundo e tentei não ser uma pessoa descontrolada e violenta,
permitiu que Roberta saísse da sala com tranquilidade.
Meus olhos desceram para a caixa fechada, repleta de documentos
que pareciam gargalhar da minha cara. Fechei os olhos, tentando me
reequilibrar e manter a paciência.
Ainda era segunda-feira e… eu precisaria estar no Rio de Janeiro em
dois dias, lidando com pessoas que eu não gostava e que não suportava ficar
perto, pelo bem da imagem do escritório. Eu não podia perder a cabeça por
causa de uma coisa tão… mesquinha.
Se Roberta queria ser uma megera, tudo bem, eu conseguia lidar com
isso. Ela queria os documentos? Os teria no servidor às quatro da tarde.
Ela queria esfregar na cara que não concordava com a minha
promoção? Tudo bem, era o seu direito e aceitaria a sua opinião. Mesmo
que fosse hipócrita pra caralho, afinal, ela só pode assinar aquela fusão por
causa do que eu fiz nos últimos dois anos.
E nem por isso, estava jogando qualquer merda na sua cara.
Mas se Roberta queria agir daquele jeito, tudo bem, eu lidaria com
isso nos meus termos.
Mentalmente, tentei me convencer de que aquilo falava mais sobre
ela do que sobre quem eu era.
Estava ciente de tudo o que fiz por ela.
Todas às vezes em que pensou em desistir e se aposentar, fui eu quem
segurou a sua mão e a ajudou a se reencontrar. Fui eu, quem falou com cada
um dos clientes para negociar a permanência deles no escritório, enquanto
ela sequer saiu da cama por semanas.
Nunca, mesmo com a quantidade de coisas que Roberta fez, falou ou
deixou subentendido — que me fizeram duvidar da sua capacidade de
administrar o escritório —, eu faltei com o respeito com ela e com o que
havia feito por mim.
Não era justo que ela agisse daquela maneira comigo.
Não depois de eu ter a carregado nas costas em todos os degraus que
escalamos nos últimos vinte e seis meses.
Quando uma batida ecoou na sala, desviei os olhos e concedi
permissão para que entrassem.
Não demorou para que Renato atravessasse a porta, procurando por
mim e ao me encontrar no sofá, entre inúmeros documentos e uma máquina
de digitalizar na mesa de centro, ele franziu o cenho.
— O que é isso?
— Papel, não está vendo? — retruquei, zangada.
Estava faminta, furiosa e minha alergia a poeira estava atacada. E à
medida que avançava no trabalho, eu me sentia mais humilhada.
Aquela era a maneira de Roberta me fazer sentir que não merecia o
cargo que havia conquistado? Bem, ela conseguiu, porque eu me sentia uma
completa incompetente, passando duas horas ocupada com aquela tarefa
enquanto deixava de lado o que realmente era minha função.
Renato fechou a porta e caminhou em minha direção, parando a
pouco menos de um passo de distância e me obrigou a olhar para ele. Seus
olhos esquadrinharam meu rosto, como se soubesse que existia algo errado
e quando seus dedos apertaram meu queixo; sua respiração escapou densa e
os ombros enrijeceram, eu soube que ele também estava furioso.
— De quem são esses documentos?
— Não importa.
— Nathalia…
— Não importa, Renato! — explodi, elevando o tom de voz e
soltando as folhas que segurava. — Estou fazendo o trabalho, ok? Não
importa de quem é.
Todavia, Renato sequer cogitou não insistir naquele assunto.
— Nathalia… é a última vez que vou perguntar — alertou, baixo e
tentando manter a calma —, de quem é essa documentação?
Minha visão embaçou devido às lágrimas que se acumularam em
meus olhos, e me senti uma estúpida por ter deixado que Roberta entrasse
na minha cabeça tão facilmente. Aquela voz irritante gritava em zombaria,
lembrando-me o quanto eu tinha sido idiota por acreditar que éramos
amigas ou que existia, ao menos, um pingo de respeito na nossa relação.
— Lester Oil — assoprei, imatura e fraca. Minha voz embargou e
Renato não reconheceu sobre o que se tratava, afinal, não era sua obrigação
conhecer todos os clientes da firma. — O cliente da Roberta que acabou de
transferir as operações para a Europa.
Imediatamente, me arrependi de ter explicado.
A expressão de Renato se transformou e mal tive tempo de tentar
remediar a situação, antes que ele começasse a marchar rumo a saída da
minha sala, prestes a cometer um assassinato. Se antes eu estava
preocupada com o meu ego ferido, naquele instante, temi que Renato
criasse uma cena para que todo o escritório o visse comprando outra briga
por minha causa.
Em dois meses de fusão ele tinha ido de um sócio pacífico; que nunca
se envolvia nos conflitos da equipe, para alguém disposto a estrangular
qualquer um que me olhasse torto.
Como tudo desandou tão rápido?
Angustiada, dei a volta na mesa e o alcancei antes que chegasse na
porta, entrando na sua frente e me sentindo acuada pelo olhar que me
lançou.
— Me deixe passar, Nathalia — pediu, dando tudo de si para manter
a calma comigo.
— Você não vai arrumar briga com ela por minha causa.
— Aquela mulher precisa ouvir algumas verdades e entender que não
tem o direito de te tratar como uma empregada. — Ele deu um passo à
frente, mas eu me pressionei contra a maçaneta da porta, impedindo-o de
alcançar a saída, sem me machucar no processo. — Nathalia. — Sua voz
saiu como um rosnado.
Bufei, irada.
— Estou tão irritada quanto você, ok? Na verdade, eu sou a única
pessoa que tem direito de estar com raiva por alguma coisa aqui. — Precisei
lembrá-lo de que aquilo era sobre mim, não sobre ele ou a Roberta. — E se
eu engoli e fiquei quieta, você também vai ficar. Ou esqueceu que como
CEO não deve se meter nesses assuntos?
Transtornado, Renato me encarou como se eu tivesse dito a maior
insanidade do mundo.
— Não vou permitir…
— Você não tem que permitir nada, Renato! — Cortei, antecipando o
que ele diria. — Não pode comprar todas as minhas brigas. Não é a sua
função, entendeu?
Ele se calou.
Um vinco surgiu na sua testa e seus olhos vasculharam meu rosto,
ponderando longamente sobre o que responderia.
Mantive a firmeza na expressão, deixando claro que não existia nada
que ele falasse, que me faria sair daquela porta. Eu conseguia aceitar que
assumisse as rédeas quando os meus confrontos eram com o Guilherme,
minhas experiências com o desgraçado me faziam ter certeza de que eu
deveria ficar o mais longe possível. Mas com a Roberta? Não era
necessário. Eu conseguia lidar com ela sozinha, não precisava que ele
entrasse no meio.
Demorou um pouco mais de dois minutos, até que ele desistisse. Seus
ombros relaxaram e a expressão dura foi se dissipando, gradativamente.
Aquilo me pegou um tanto desprevenida, não era o tipo de reação que
estava esperando e levando em conta o quanto ainda estava irritada, preferia
continuar discutindo com ele — ao menos até que aquele sentimento
incômodo se esvaísse do meu peito.
Odiava me sentir uma otária em relação às coisas que fazia por outras
pessoas, mas era justamente daquele jeito que eu estava me sentindo desde
que Roberta saiu da minha sala.
Parecia que não importava o quanto eu me esforçava para ajudar
todos a conquistarem os seus objetivos, quando se tratava de mim, as
mesmas pessoas que havia ajudado pouco se importavam.
Tudo era mais urgente do que o que eu precisava.
Qualquer coisa, era mais digna de atenção do que me dar um mero
empurrão quando estava vacilando.
Para Roberta, era mais importante ressaltar o quanto ela se sentia
traída pela minha promoção, do que se esforçar em tentar ficar contente por
mim.
Ela sabia do quanto eu precisava daquilo, e ainda assim, preferia
esfregar na cara que não concordava com a decisão de Renato; fazia
questão de evidenciar que não me considerava merecedora daquela posição
— mesmo sabendo como me sentia em relação a minha carreira.
Roberta sempre soube sobre os meus medos, anseios e inseguranças.
Ela sabia que o seu comportamento colocava a minha certeza sobre meu
merecimento em xeque, e ainda assim, usava aquilo para me punir.
Custava tanto assim ficar contente por mim?
Eu não fui uma pessoa ruim para ela, era o contrário.
Senti um nó apertar na garganta e Renato respirou duramente,
insatisfeito com a situação.
— Anjo, eu posso…
Balancei a cabeça, negando.
— Não, você não pode. Ela quer brigar comigo, não com você… —
murmurei, magoada —, e eu vou enfrentar essa briga sob os meus próprios
termos.
Renato apertou os lábios, consternado.
Levou alguns minutos até que aceitasse a sua derrota. Renato assentiu
e, delicadamente, capturou meu braço e me guiou para perto. Sem
relutância, aconcheguei-me ao seu peito e permiti que envolvesse meu
corpo com o seu calor e calmaria.
— Se mudar de ideia…
— Não vou — assegurei, apertando os braços ao seu redor, ao mesmo
tempo que brigava com o meu lado racional que ordenava que o afastasse.
— Você almoçou?
Balancei a cabeça, negando.
Renato inspirou o ar audivelmente, como se buscasse por paciência e
o senti esconder o rosto em meu cabelo, aspirando meu cheiro e o usando
como âncora para manter a serenidade, e aos poucos relaxou os músculos
tensos. Era fácil reconhecer esse comportamento, porque eu estava fazendo
a mesma coisa, enquanto escondia o rosto em seu peito.
— Posso te soltar agora, se quiser — disse, a contragosto.
Sua voz soou distante, enquanto minha atenção estava completamente
focada nas batidas ritmadas do seu coração.
— Só mais cinco minutos — pedi, baixinho.
Senti seus lábios se curvarem em um sorriso e Renato concordou em
atender ao meu pedido.
Horas depois, entrei na sala de Roberta com as duas caixas em mãos,
dando sorte de encontrá-la recolhendo as suas coisas para sair do escritório.
— Nathalia, não tenho tempo…
— Os arquivos já estão no servidor, então, será coisa rápida —
declarei, largando a pilha de documentos recém-digitalizados na sua mesa e
mirei o seu rosto, encontrando aquele rancor de mais cedo.
Ela se levantou, olhando-me impaciente.
— Desde o momento em que passei por essa porta, nós tínhamos um
acordo muito bem definido e que, por inúmeras vezes, eu permiti que você
burlasse e conseguisse arrancar um pouco mais. — Meu olhar não se
desviou do seu rosto. — Aceitei fechar os olhos para muita coisa que você
fez, permiti que me usasse como uma solução para todos os seus problemas.
Perdi sono, feriados, saúde, vida social, relacionamentos… enfim, eu permiti
que você montasse nas minhas costas para que eu te carregasse pelo tempo
que quisesse. E nunca, em momento algum, passou pela minha cabeça te
prejudicar ou passar por cima de você.
Roberta cravou os olhos em mim, impaciente.
— Eu sei que falei que tudo o que fiz por você foi pela amizade e que
não existia uma dívida que cobraria futuramente, e, diferente de você, eu
sustento cada palavra que disse naquela noite. — Inspirei o ar, mantendo a
calma, enquanto esboçava um meio sorriso. — Acredito que eu não precise
te lembrar que cumpri com todas as promessas que fiz. Portanto, estamos
quites. — Dei um passo para frente, colocando a chave do seu apartamento
sobre a mesa. — Essa foi a última vez que eu quebrei um galho para você,
em consideração ao vínculo que tínhamos.
Empurrei o pedaço de metal para perto dela, sem desviar o olhar do
seu rosto.
— A partir de hoje, nunca mais entre na minha sala pensando que
pode me dar ordens ou que sou sua empregada — esclareci, com firmeza.
— Refleti bastante sobre o que iria te dizer, ponderei se deveria ou não
fazer isso, mas acredito que é importante refrescar sua memória para que
esse tipo de situação não se repita novamente.
Roberta estreitou os olhos, aguardando pela conclusão, e eu afastei
aquela parte de mim que detestava jogar as coisas na cara das pessoas. Tudo
o que eu fazia era por pura vontade de ajudar, sem esperar nada em troca.
Mas se fosse necessário esclarecer as coisas e garantir que Roberta não
voltasse a me subestimar, eu estava disposta a colocar os pingos nos “is”.
— Lembre-se que se hoje está nesta posição e neste escritório, foi
graças ao que eu fiz nos últimos anos. Negue o quanto quiser, essa é a
realidade e todos sabem disso.
Forcei um sorriso, vendo-a apertar a mandíbula.
— Então, da próxima vez que pensar em fazer uma palhaçada dessas
com a intenção de me enviar uma mensagem, pense sobre suas ações e
lembre que é mais vantajoso me ter como amiga do que como inimiga. —
Recuei um passo, relaxando os ombros. — Agora que sei que nunca fomos
amigas de verdade, espero que tenha mais cuidado ao pisar no meu calo,
porque apesar de ser resistente, não vou mais tolerar esse tipo de situação
em silêncio.
Não precisava colocar em palavras explícitas o que aquilo
significava, porque Roberta sabia. Ela estava tão acostumada a me enxergar
como alguém que nunca teria coragem de revidar um ataque, que acabou
deixando muita merda exposta. Eu queria acreditar que jamais usaria algo
que me foi confidenciado em benefício próprio, mas não toleraria ser
menosprezada e enganada novamente.
Se ela queria guerra, eu poderia entrar nesse jogo também.
A diferença entre nós era que, eu sabia todas as vezes em que ela
passou dos limites e comprometeu a própria ética. Roberta não tinha o
mesmo tipo de informação sobre mim. Meu pai me ensinou a guardar
minha sujeira muito bem, assim ela não poderia ser usada contra mim.
Com o aviso dado, girei nos calcanhares e estava prestes a sair da
sala, quando Roberta me chamou, atraindo a minha atenção e me obrigando
a voltar a encará-la.
O erro havia sido meu, que deveria ter ido adiante e a ignorado.
— Há quanto tempo isso está acontecendo? — investigou,
espreitando os olhos nos meus de um jeito fulminante.
— Do que está falando?
Roberta sorriu, brutal.
— Não se faça de sonsa, o papel não lhe cai bem. — Cruzou os
braços em frente ao peito, recostando o corpo na base da mesa. — Começou
a transar com ele antes, ou depois da promoção?
— Do que você…
— Não adianta mentir! — interrompeu, irredutível. — Estou
observando vocês há dias. Sempre cochichando, trancados nas salas,
trocando olhares, chegando e saindo juntos… e eu sei que frequenta a casa
dele. Ou você achou que o Matheus não contaria para a minha filha sobre a
nova mamãe?
Inspirei o ar lentamente, sentindo uma irritação descomunal me
atravessar por ela citar o filho de Renato naquele tom cínico.
Com muito custo, me esforcei para ignorar a sua acusação.
— Eu presto contas para ele, como qualquer COO faria —
desconversei, sentindo as mãos trêmulas de raiva.
Seu olhar frio deixou claro que não acreditava naquilo.
Roberta sorriu, balançando a cabeça.
— Olha, eu soube que você era uma cobrinha no instante em que
mudou de lado. Mas não pensei que seria nesse nível. — Roberta estalou a
língua, venenosa. — Bastou que um homem passasse pela porta e te desse
um pouquinho de atenção… e toda a aversão que sentia em relação à fusão
sumiu magicamente, não foi?
Eu conseguia sentir o sangue fervendo em minhas veias.
Respirei fundo, sentindo as palmas da mão formigarem e precisei
apertar os nós dos dedos para conter o instinto primitivo de enfiar cinco
dedos na sua cara.
— Você sabe melhor do que ninguém que o único motivo para que eu
fosse contra a fusão era porque, além de estar acontecendo cedo demais,
você não estava sendo totalmente sincera sobre o que pretendia com ela —
defendi-me, sem acreditar que justo ela, entre todas as pessoas, seria a que
me acusaria de algo assim.
Vindo de Guilherme era típico, afinal, ele era homem.
Mas a acusação vir de outra mulher?
Principalmente, de uma que lidou com cada uma dessas acusações a
cada passo que ascendeu ao longo da carreira?
É muita hipocrisia!
Respirei fundo, tentando manter a diplomacia.
— E adivinhe só, Roberta… a fusão foi finalizada e os seus sócios
ainda não fazem a menor ideia de quais são as suas reais intenções nisso
tudo.
Roberta se afastou da mesa, escondendo as mãos nos bolsos e
inclinou a cabeça para o lado, olhando-me de cima a baixo, tomada por
arrogância.
Aquele comportamento era novo e inesperado.
Ela parecia uma leoa prestes a atacar uma presa para garantir a sua
sobrevivência.
— Não preciso que ninguém saiba dos meus planos, muito menos
você. Ou você esqueceu que este escritório era meu?
Que ironia, o discurso de dois anos atrás me incluía e era “tudo
nosso”. Bastou que suas vontades não fossem mais atendidas, e tudo passou
a ser exclusivamente dela.
— Não se preocupe, eu sempre soube que o escritório era seu, e
nunca considerei o contrário. Mas acho que você se esqueceu de que foi
justamente por esse tipo de pensamento que o seu antigo sócio te deu uma
rasteira e te deixou na merda. Ou se esqueceu das consequências da sua
obsessão em sempre fazer tudo do seu jeito?
Relembrar do golpe do seu antigo sócio sempre despertava uma
versão diferente de Roberta, eu sabia muito bem. Por isso, não me
surpreendi quando ela deu um passo largo em minha direção, irada.
Foi um golpe duro, afinal, ele não era apenas o seu parceiro
profissional; mas romântico.
— Acha mesmo que a minha intenção era fazer com eles o que
fizeram comigo?
— Se era, eu não posso afirmar, até porque não tenho provas. Mas
que os seus comportamentos são suspeitos, isso é um fato.
Ela me encarou, fulminante.
— Você é uma criança tão estúpida, Nathalia! — Elevou o tom de
voz, passando as mãos no rosto. — Você não entende como esse mundo
funciona porque sempre recebeu tudo de mão beijada. O maior drama da
sua vida, é não ser vinculada ao papai. Isso está longe de ser a pior coisa
que já me aconteceu, mas você é egoísta demais para olhar para além de si
mesma — acusou, transtornada.
Ela deu um passo adiante, aproximando-se de mim.
— Você fica aí, olhando para mim como se fosse a dona de toda a
razão e pudesse definir o que é certo ou errado, porque sabe que se não
conseguir as coisas pelos meios que alimentam o seu ego e te fazem sentir
superior aos outros, você tem Miguel para te colocar no comando de um
império. — Seus olhos me fuzilavam. — Acredite em mim, qualquer um
que precisasse de vantagem faria o mesmo que eu fiz. Você se ilude se acha
que o Renato e Leandro não teriam feito o mesmo se estivessem na minha
posição — afirmou, sem desviar os olhos dos meus.
— Eu não me importo com o que eles fariam em uma situação
hipotética, o que vale para mim é a realidade… e nela, a única pessoa que
me devia alguma coisa era você — retruquei, ressentida. — E sabe qual é o
maior problema aqui? Você está me atacando gratuitamente porque acha
que o nosso problema é por causa da merda da sociedade, quando tudo isso
aconteceu porque você mentiu. Eu sempre disse que faria qualquer coisa
por você, contanto que nunca me escondesse nada!
— Eu não menti! — defendeu-se, ofendida. — Você nunca parou
para questionar o motivo do Renato ter corrido para te contar? Do que ele ia
querer em troca ao te conceder a sociedade? Ou você realmente acredita
que a generosidade falou mais alto, e ele decidiu abrir mão de milhões
porque tem um coração benevolente? — questionou, arqueando a
sobrancelha e apertando os olhos nos meus.
Respirei fundo, tentando controlar o sangue que fervia em minhas
veias.
— Tudo com o que você se preocupa é com o que eu não te contei no
processo. Não no que você arriscou quando escolheu ser ingênua e acreditar
em um completo desconhecido, ao invés de escutar a minha versão dos
fatos.
Franzi o cenho, sem entender onde ela estava querendo chegar.
A intenção era me fazer recuar e começar a desconfiar dele? Porque
não aconteceria.
Renato tinha a minha confiança, e eu estava disposta a colocar a mão
no fogo em relação àquilo. Para cada coisa que acusou Roberta, ele veio
munido de provas.
Renato não apenas sentou e disse que ela me apunhalou pelas costas,
ele entregou inúmeros relatórios que contavam a história inteira. Diferente
dela, que vivia fugindo das explicações.
— Além disso, o que você acha que vai acontecer quando o Conselho
descobrir como se tornou diretora de operações? — ameaçou,
aproximando-se e meu olhar cravou em seu rosto, sentindo os ombros
enrijecerem. — Acha que eles vão manter você ou o Renato na firma,
depois que descobrirem que bastou que abrisse as pernas para que ele…
Roberta não teve tempo de concluir o que diria.
A fúria, o rancor e o asco que suas palavras trouxeram à tona me
cegaram.
O som do estalo repercutiu pela sala e no minuto seguinte, quando ela
ergueu a mão para devolver o tapa, uma montanha de músculos ocupou
meu campo de visão e segurou o pulso dela, impedindo o avanço.
— Não ouse a defender….
Pisquei, atordoada.
Olhando dela para o Renato que parou na minha frente. Eu não soube
dizer se era a minha raiva, a dele ou da Roberta que exalava na sala, mas
me senti a beira do limite do precipício.
— Já chega, Roberta — rosnou, exaltado, interrompendo a gritaria
que ela iniciou. — Eu cansei dessa palhaçada, e não vou tolerar nem por
mais um segundo que você falte com respeito com a Nathalia.
Ele a soltou, rude.
— A partir de hoje, a posição dela será respeitada por bem ou por
mal. Quer você goste disso ou não, seja adulta e lide com isso. — Não
havia abertura em sua fala para que ela rebatesse. — Se eu descobrir que
você disse uma única palavra sobre ela, estará com os dias contados não
apenas aqui, mas em qualquer outro escritório nesse país. — Seu tom de
voz deixava claro que não era uma ameaça da boca para fora. — Minha
paciência tem limite e, acredite no que eu digo, você não quer me ter como
inimigo. — Roberta piscou, espantada, mas ele permaneceu a encarando. —
Você me entendeu?
Ela acenou, automaticamente.
Desviei o olhar para Renato, sem palavras.
Não sabia o quanto ele tinha escutado, mas foi o suficiente para que
toda a sua calmaria desmoronasse diante dos meus olhos. Senti o olhar de
Roberta alternar entre nós dois e me vi tão chocada que mal consegui
processar quando ele saiu da sala, nos deixando a sós.
Que porra!
Toda aquela situação era uma grande merda.
Engoli em seco, balançando a cabeça negativamente.
— É muito foda que as coisas tenham chegado a esse ponto, sabe por
quê? — perguntei retoricamente, quase em um sussurro, exausta daquela
discussão. — Eu não fiz nada de errado. — Encarei Roberta, frustrada. —
Sinceramente, não sei qual é o seu problema comigo em tudo isso, e,
honestamente, não quero saber. Tenho certeza de que o problema não sou
eu, porque desde que cheguei, tudo o que fiz foi dar mais do que recebia, e
não existe nada que justifique toda essa palhaçada que você tem feito.
Soltei um suspiro, lançando um último olhar para a mulher que
durante dois anos eu admirei, antes de virar as costas e seguir em frente. No
que dependesse de mim, nossa relação tinha acabado de chegar ao fim, e
não havia possibilidade de retorno.
Eu não fiz nada para desencadear aquele comportamento.
E se para ter o mínimo respeito dela eu precisasse continuar sendo
passada para trás, era melhor que mantivéssemos uma relação estritamente
profissional.
Desde que a bomba estourou no meu colo, eu não pedi nada para ela.
Ela não precisava me tratar bem, mas também não precisava me tratar
tão mal.
Deixei a sala de Roberta para trás e caminhei pelo corredor largo,
hesitando na penúltima porta do corredor e encarando a entrada para o
escritório do meu vizinho.
Enrolei os dedos na minha maçaneta, mas meu corpo ganhou vida
própria e atravessei a porta ao lado, encontrando Renato em frente a parede
envidraçada, encarando o céu que estava escurecendo e a movimentação da
cidade do lado de fora.
Fechei a porta devagar, grudando as costas contra a madeira e o fitei.
Alguns botões da sua camisa branca estavam abertos, as mangas foram
dobradas até os cotovelos e enquanto uma mão estava escondida no bolso
da calça, a outra segurava um copo de uísque com gelo.
Os ombros rijos denunciavam seu aborrecimento e impaciência, e
uma parte de mim, estava incerta se deveria conversar com ele naquele
momento.
Ciente da minha presença, Renato virou em minha direção e me
encarou. Os olhos castanhos esquadrinharam o meu rosto, buscando por
algo que não pude identificar e ao soltar o ar que mantinha preso nos
pulmões, ele bebeu um gole longo da sua bebida e indicou que eu me
aproximasse.
Relaxei os ombros, forçando meus pés a quebrarem a distância entre
nós.
— Eu falei que resolveria isso do meu jeito — falei, constrangida.
Renato manteve o olhar preso ao meu e abandonou o copo vazio na mesa ao
lado. Ele me observou, quieto. — Você sabe que deveria me demitir, não
sabe?
Ele meneou a cabeça, guardando as mãos nos bolsos.
Em menos de um mês, agredi dois dos seus sócios fundadores.
E o pior de tudo, era que eu sequer sentia remorso por isso.
— Eu sei — murmurou, cravando os olhos nos meus, imperturbável.
— E o que você vai fazer?
Meu estômago afundou com a ideia de Renato me demitir, afinal, era
o que eu merecia. Que grande hipocrisia seria se não o fizesse, que
mensagem ele passaria aos demais funcionários?
— Vou encerrar o dia e ir para casa — disse, cansado.
Olhei para ele, aguardando uma resposta para o meu questionamento
anterior.
No entanto, Renato deu um passo em minha direção e deixou que a
sua mão mergulhasse no meu cabelo, aninhando-se aos fios soltos. Como se
fosse um dia qualquer, ele trouxe o rosto para perto do meu e, suavemente,
beijou a minha testa — antes de se afastar e caminhar para a mesa do outro
lado da sala.
Meus joelhos fraquejaram e aquele sentimento que apenas Renato
conseguia despertar se instalou no meu peito.
Era certo, avassalador e se enraizava dentro de mim a cada dia que
passava, me fazendo sentir saudade de ser inteiramente dele.
Balancei a cabeça, espantando aquele pensamento.
Nós tínhamos um problema, e ele precisava se posicionar em relação
ao meu comportamento.
— Renato?! — chamei, aproximando-me da sua mesa para atrair a
sua atenção.
— Não vou demitir você, Nathalia.
— Mas…
Ele se virou, os olhos escuros se enterraram nos meus, irredutíveis.
Imediatamente, eu me calei.
— Você só vai embora se for a sua vontade, e eu não puder fazer nada
para impedir — declarou, sério. — Qualquer um que pense diferente disso,
está convidado a se retirar desse maldito escritório — prosseguiu,
contornando a mesa, sem tirar os olhos de mim. — Se quiserem comprar
briga com você, terão comigo. Se olharem torto para você, garanto que será
a última vez que pisarão aqui. Não faço questão de tê-los, se para isso eu
tiver que perder você.
Respirei fundo, vendo-o fechar a gaveta e contornar a mesa.
Renato relaxou os ombros e segurou meu rosto, mantendo meus olhos
nos seus para que eu soubesse que estava falando sério.
— Se for preciso, convoco cada funcionário dessa firma para que
saibam a minha posição nessa situação — prosseguiu, apertando os dedos
em meu queixo, impedindo que eu me afastasse. — Não existe RCI sem
você, Nathalia. Coloque isso na sua cabeça de uma vez por todas, ou serei
obrigado a ser mais enfático, e tenho certeza de que você não vai aprovar o
que eu tenho em mente.
— Você é um péssimo CEO.
Os cantos dos seus lábios se curvaram e ele assentiu, acedendo.
— Talvez, mas não será por muito tempo.
Franzi o cenho, confusa.
Como assim? Ele pretendia abdicar do cargo? Leandro assumiria em
seu lugar? Ou pior, a Roberta? Uma pessoa de fora?
Minha mente pensou em um milhão de alternativas, mas Renato não
deu atenção para a confusão que instalou na minha cabeça. Ele apenas se
aproximou mais, afagou meu rosto com carinho e deixou um beijo casto na
curva do meu pescoço, antes de soprar contra os meus lábios:
— Bom descanso, pequena Mike Tyson — disse, deixando outro
beijo em minha testa. — Preciso tomar cuidado com você… se começar a
praticar boxe, logo estará nocauteando o escritório inteiro — implicou.
Revirei os olhos, odiando o sorriso estúpido que ocupou meus lábios
ao vê-lo sair da sala e me deixar sozinha.
Horas depois, abandonei o último relatório pendente para encerrar
aquele dia infernal e deixei minhas costas afundarem no estofado.
Tateei em busca do meu celular, confirmando que passava de dez da
noite. Sobre o ombro esquerdo, pude ver a chuva torrencial que naufragava
a cidade desde o fim de tarde.
Levantei-me, necessitando alongar o corpo após passar horas na
mesma posição. Contornei a mesa de centro, aproveitando o silêncio do
escritório vazio para refletir sobre o que havia acontecido naquele dia.
Nunca imaginei que perderia a cabeça com a Roberta, e por mais que
eu buscasse pela maldita voz que me culparia por ter deixado a situação
chegar naquele nível, não a encontrei. Nem mesmo a sabotadora que
adorava usar situações como essa para me colocar para baixo quis aparecer.
Sentia-me anestesiada e, de certa forma, revigorada.
No fundo, eu sabia que tinha aguentado muita coisa nos últimos anos
por parte da minha antiga chefe e amiga, e aquilo foi uma resposta do meu
emocional que chegou ao limite com as atitudes dela.
Não me orgulhava do meu comportamento, mas não iria me
recriminar pela maneira como reagi. Estava de saco cheio de ser
diariamente atacada por ela e manter a diplomacia. Minha paciência tinha
limites e eu podia me dar ao direito de explodir uma única vez — ao menos,
era o que estava tentando me convencer desde que retornei para a minha
sala.
Respirei fundo, aproximando-me dos vidros e observando as luzes
borradas na avenida lá embaixo. Estava tarde e sequer notei as horas
passarem.
Involuntariamente, a minha mente me arrastou de volta para a sala de
Renato, após toda a confusão.
Ele não me repudiou, mas deveria.
Por mais que julgasse que eu estava certa, nada justificaria agredir
um sócio, especialmente, se fosse a Roberta Faroni.
Ela sempre foi rancorosa.
E eu sabia que ela não ouviria o conselho de Renato e buscaria uma
maneira de nivelar o placar entre nós.
Para Roberta, tudo era uma disputa por poder, influência e respeito. E
eu apostava que ela não iria engolir ter sido colocada em uma posição
inferior à que acreditava merecer.
Principalmente, se fosse abaixo de mim. Afinal, tudo começou
quando nossas posições foram equiparadas e deixei de ser a sua marionete,
para virar uma jogadora na mesma liga.
Renato me deu um lugar à mesa, e ela odiava isso.
Uma parte bem pequena em mim gostava de saber que, apesar de
toda a sua frustração, eu não devia nada a ela depois de todos esses anos. Se
houvesse uma situação em que precisasse do meu apoio, não teria o que
usar para conseguir ajuda. E se fosse mais longe e pensasse como ela; o
problema era ainda maior porque, Renato e Leandro estavam na palma da
minha mão.
Eles eram leais a mim, não a ela. E isso a matava por dentro.
Eu a conhecia muito bem, apesar da máscara que sustentava, ela não
era diferente de todos os outros no mercado. Por dois anos, aprendi como
sua mente funcionava e se deixasse de lado o emocional, entendia o motivo
para tanto ressentimento contra mim.
No fim, para a Roberta nós sempre seríamos fantoches no meio da
sua busca implacável pelo que havia perdido, e se tirássemos dela a
vantagem; nos tornávamos inimigos.
Suspirei, servindo uma dose de vodca com gelo para aliviar o estresse
que ainda percorria o meu corpo.
No entanto, meus pensamentos retornaram para um ponto específico
da nossa discussão: eu não me importei que ela soubesse que eu estava me
envolvendo com o Renato.
Na verdade, o fato de ter dito que nos viu juntos só me afetou quando
o usou para justificar minha promoção.
Foi baixo, ofensivo e muito injusto da sua parte.
No passado, eu teria me descabelado e negado veementemente que
tinha transado com ele.
Por que eu não me incomodei com a ideia dela saber sobre nós?
Antes que meu cérebro pudesse discorrer uma resposta, a minha sala
foi invadida e girei nos calcanhares, assustada.
O alívio me atingiu ao reconhecer que não era um perigo, apenas um
Frederico muito agitado e prestes a entrar em erupção — seu rosto
completamente vermelho, as bochechas infladas e o peito estufado;
denunciavam que ele não respirava direito.
Franzi o cenho, confusa.
Frederico me encarou, pronto para jogar em cima de mim o motivo
de sua agitação, mas o seu foco foi desviado para outra coisa. Perturbado,
ele quebrou a distância entre nós e me esquadrinhou, como se uma segunda
cabeça tivesse nascido no meu pescoço.
— Que cara é essa? O que aconteceu? — Interrogou, e sem me dar
chance de pensar em uma resposta, Fred segurou meu rosto com as duas
mãos, mexendo de um lado para o outro. Frustrado, ele bufou. — Por que
parou de praticar yoga?
Quê?
Demorei alguns minutos para lembrar da conversa após o Carnaval;
quando ele invadiu a minha sala e por muito pouco, não me flagrou
gozando nos dedos de Renato.
— Como você…?
— Sua cara está péssima! Não que esteja feia, isso é humanamente
impossível, mas o brilho… — seus olhos voltaram a me analisar, intrigado.
— Ele sumiu. O que significa que parou de ir às aulas e suponho que seja
por causa do escritório. O que seria tolice porque…
Ah, meu Deus!
Era só isso que faltava para completar a cartela de bingo e encerrar
aquele dia trágico.
— Fred — chamei, forçando-o a se concentrar no motivo para invadir
minha sala. — O que você precisa?
— Onde está o Renato?
Ele sabia? Ou suspeitava?
Definitivamente, se precisasse ter uma conversa com Frederico sobre
a situação com o Renato, eu precisaria daquele cretino ao meu lado — caso
contrário, cairia dura no chão.
— Por que diabos eu saberia? — desconversei, fingindo indiferença.
Eu não queria ouvir mais acusações injustas sobre mim.
Por mais que eu soubesse que Frederico Bellegard nunca me
recriminaria — principalmente, pelo jeito que acreditava em romances
improváveis —, não queria que ele soubesse do que ocorreu. Eu ainda não
entendia como tudo saiu dos trilhos tão rápido e, com certeza, não
conseguiria explicar para ele.
Era o terceiro mês de fusão, e tudo estava tão caótico.
— Não sei, pensei que fossem melhores amigos agora, sempre que os
vejo, estão juntos. — Balançou os ombros, ingênuo. — Enfim, já que ele
não está… você serve.
No passado, talvez, eu me ofenderia por aquilo. Contudo, o
nervosismo e a preocupação com o seu estado não me permitiram focar
demais no fato de estar sendo feita de segunda opção.
— Do que…
Fred não me deu chance de concluir a pergunta e só faltou cuspir a
informação em cima de mim.
— Cinthia vai se casar!
Ah… uau!
Então… ela iria adiante com aquele relacionamento?
Não era como se a conhecesse perfeitamente, tivemos uma conversa
breve meses atrás — quando Fred me pediu para convencê-la a dar uma
nova chance para que ele explicasse como se sentia —, e era tão cristalino
quanto a água que Cinthia não amava o homem que era pai do seu filho. E,
se realmente ia adiante com o casamento, era por conta da criança recémnascida.
Por um momento, foi a minha vez de analisar o Frederico e tentar
entender o que estava acontecendo e como ele se sentia.
Não era fácil determinar se a sua vulnerabilidade emocional era uma
força ou uma fraqueza, mas ao ver seus olhos pequenos e escuros cheios de
lágrimas, senti meu coração se apertar pela primeira vez em dias.
— Sinto muito, Fred.
Ele manteve os olhos em mim, seus lábios tremularam devido ao
choro contido que, aos poucos, permitiu que escapasse.
Envergonhado, Fred se afastou, rejeitando a minha compaixão.
— Por quê? — perguntou, a voz trêmula como a de um animal ferido.
— Não sinta pena de mim. Eu mereço ver Cinthia se casando com outra
pessoa e construindo a vida que sei que poderíamos ter tido juntos… — sua
voz falhou, engasgada pelo choro contido. — Sei que o meu orgulho
atrapalhou nossa relação — lamentou, desolado. Um soluço escapou e mais
lágrimas rolaram, enquanto meu coração se partia em mil pedaços. — E
agora ela encontrou alguém que pensa que pode oferecer tudo o que eu sei
que seria capaz de dar…, mas não terei a chance. E tudo por quê?
Calei-me, sentindo o seu soluço atravessar meu corpo.
— Porque eu não tive coragem de me entregar; porque se fizesse isso,
teria que apostar mais do que estava disposto!
Engoli em seco, suas palavras me atingiram como um tapa violento.
Frederico levou a mão ao peito, como se sentisse a dor excruciante de
ter seu coração partido ao meio e, ainda assim, precisar encontrar uma
maneira de recolher os pedaços para seguir em frente.
Eu o conhecia melhor do que qualquer um, sabia como era
apaixonado pela Cinthia. E ainda assim, não consegui mensurar o quanto
doeu nele descobrir que perderia a mulher que amava, sendo que podia ter
evitado se fosse um pouco menos orgulhoso.
Não consegue mesmo?
Aquela voz irritante desdenhou e a empurrei para longe quando me
trouxe a imagem de Renato.
Não, não, não!
Eu fiz uma escolha.
A minha carreira antes de qualquer coisa, sempre.
Frederico se sentou, fraco demais para permanecer em pé e me fitou,
atormentado. Por instinto, aproximei-me e agachei na sua frente, segurando
suas mãos e notando como estavam frias.
— Fred…
Ele negou, interrompendo-me.
— Sabe o que é pior? — Suspirou, abatido. — Ela me enviou o
convite! E vou ter que engolir o maldito orgulho, sorrir e vê-la subindo ao
altar com outro homem que nunca será capaz de dedicar um terço da vida
para fazê-la mais feliz, do que eu poderia. E tudo porque fiquei com medo.
Porque fui um covarde. — Ele balançou a cabeça, com raiva de si mesmo.
— Só me concentrei nos riscos e na humilhação que seria quando todos
soubessem que eu quis continuar com ela, mesmo com o filho de outro
homem na jogada. Eu foquei em como usariam isso para prejudicar a minha
reputação e a perdi, Nathalia.
Ele deixou escapar outro soluço e mais lágrimas rolaram em seu
rosto.
— E tudo isso por quê? Me diz! Por que a minha reputação deveria
pesar mais do que meus sentimentos? — Ele cerrou os punhos, impotente.
— Por que as escolhas que faço na minha vida pessoal, deveriam ditar que
tipo de profissional eu sou?
E novamente, ele me deixou sem palavras.
Odiei como a minha mente traduziu suas palavras para a situação em
que eu estava naquele momento, e como cada frase que escapava de Fred
parecia me estapear em um alerta explícito de que… aquela seria eu.
Em alguns meses ou anos, Renato encontraria outra pessoa que
cativaria os seus filhos — porque realmente se importava, e não para se
aproximar do pai. Ele se cansaria de esperar que eu me decidisse sobre o
que era mais importante para mim, e desistiria de lidar com uma garota
imatura, boba e frágil; que deixava que as pessoas ditassem sua vida,
porque era covarde demais para aguentar os cochichos e olhares tortos.
Ele era um homem maduro, com dois filhos que dependiam dele e
que precisavam de uma pessoa que não fosse embora em uma manhã
qualquer, apenas porque não soube lidar com a possibilidade de enfrentar os
julgamentos alheios.
Mesmo com toda a minha covardia, Renato aguardava que eu desse o
primeiro passo para retomar o que interrompi na hora do medo.
Mas por quanto tempo ele vai te esperar?
E se aparecer uma outra pessoa que acredita ser capaz de dar a ele e
aos meninos tudo o que precisam?
Engoli o nó que se alojou na minha garganta, odiando como aquela
situação se encaixava perfeitamente na que eu me encontrava, e me
sentindo uma babaca por desviar os holofotes do problema de Frederico
para mim.
— Meu bem… eu não sei o que te dizer — confessei, apertando a sua
mão gelada e trêmula, sentindo-me horrível por não conseguir o ajudar de
maneira mais assertiva.
Eu sempre fui ótima com conselhos.
Por que não conseguia encontrar um que fosse bom o suficiente?
— Apenas seja sincera — pediu Fred, com a voz rouca e cabisbaixo.
— Eu perdi a mulher perfeita para mim, o amor da minha vida, por estar
mais preocupado com o que as outras pessoas pensariam sobre a nossa
relação. Quando ela me disse que estava grávida, agi por impulso, sem
pensar em nós dois e no que tínhamos vivido. Não levei em conta o quanto
ela significa para mim e como nada disso importa quando estou com ela…
— falou, indicando o escritório em que estávamos. — Eu só pensei nos
outros e nas consequências que teria que enfrentar quando descobrissem
que ela estava grávida de outro homem que não era eu.
Arrastei os dedos pelo seu rosto e enxuguei as lágrimas grossas que
molhavam suas bochechas e, em um piscar de olhos, sentei-me ao seu lado,
amparando-o enquanto chorava copiosamente no meu ombro.
Como se ele fosse uma criança indefesa, quando na verdade, era um
homem de quarenta e cinco anos que estava sofrendo com o fardo de uma
escolha que fez.
Uma muito parecida com a que eu fiz.
Tentei me retirar daquela equação, odiando o quão egoísta minha
mente conseguia ser ao transformar o problema de Fred em algo sobre mim,
mas não obtive sucesso.
O pânico me invadiu ao perceber que aquela cena se repetiria quando
eu estivesse chorando nos braços dele por ter sido convidada para o
casamento do Renato. Ou quando eu me desse conta de que não poderia
mais conviver com os garotos, pois outra mulher faria parte da vida deles e
não gostaria da minha proximidade com Igor e Matheus.
E eu não podia julgar a desconhecida sortuda por querer os três só
para ela.
Era difícil para mim aceitar que teria que dividir a atenção dos
garotos com outra pessoa, depois de ter provado ser a única com quem eles
se importavam.
Engoli o nó na garganta, afagando o cabelo curto de Frederico e soltei
um suspiro fraco e melancólico.
— Fred, eu… — respirei fundo, tentando manter a cabeça em ordem.
— Acho que o Renato estava certo — falei, repassando a conversa esquisita
que tivemos semanas atrás na cozinha.
Apesar de Renato e eu termos discordado quanto a ideia de Frederico
ir ao consultório de Cinthia para conversarem sobre o relacionamento e, de
alguma forma, termos conseguido transformar aquela pauta em uma
conversa estranha sobre nós dois… talvez, nessa altura do campeonato, a
sugestão de Renato não fosse tão irracional.
— Bom, considerando que Cinthia não fala com você há meses e,
ainda assim, enviou o convite do casamento… pode ser que ela esteja te
dando uma chance de procurá-la para uma última conversa. — Seu olhar
buscou pelo meu, atento ao que eu dizia. — Faça isso! E seja sincero sobre
o que está sentindo. Deixe que ela saiba que você ainda é uma opção.
Embora não pudesse afirmar com certeza as suas intenções, não
acreditava que Cinthia tivesse enviado aquele convite com a intenção de
ferir Fred. Ela nunca pareceu ser uma mulher cruel e vingativa, era o
oposto. Sempre muito doce, solícita e benevolente.
Lembro-me de como ela sempre esteve disposta a perdoar os vacilos
de Frederico, e de como estava aberta a recomeçar a relação mesmo depois
de tudo o que disseram um para o outro na hora da raiva. O problema era a
insegurança de Fred que sempre aparecia no pior momento.
E se aquele convite, fosse Cinthia dando um último sinal de que ainda
poderiam ter outra chance?
E se essa situação caindo no meu colo, for o universo me mandando
um sinal também?
— De qualquer forma, se a mera ideia da Cinthia estar prestes a se
casar com outra pessoa te atormenta tanto… você deveria falar com ela,
mesmo que seja para colocar um ponto final e virar a página.
Fred enxugou as lágrimas, negando.
— É egoísmo da minha parte fazer isso agora…
Quem sabe Frederico estivesse certo.
Talvez fosse egoísmo da sua parte voltar atrás em uma escolha que
fez quando estava tão ocupado pensando em si; que ignorou que havia outra
pessoa na equação que também tinha o direito de opinar.
Talvez fosse uma péssima ideia incentivá-lo a ir, apenas porque agora
se deu conta de que preferia estar com ela.
Talvez fosse egoísmo demais acreditar que uma pessoa podia mudar
de ideia, apenas porque odiou sentir o gosto amargo de perder quem amava.
— Então, seja egoísta. — Dei de ombros, num tom um tanto
inconsequente. — Você já sacrificou tantas coisas para se adequar ao que as
pessoas esperavam de você, Fred. Por que não tenta, pelo menos uma vez,
se concentrar no que realmente quer para a sua própria vida?
Minha mente gargalhou devido à ironia da situação.
Que grande hipócrita você é, Nathalia Gama!
— E se ela disser que não me quer mais?
Arrastei os dedos em sua bochecha, enxugando as lágrimas que ainda
rolavam e sorri fraco, deixando um beijo delicado em sua testa.
— Estarei aqui e serei seu ombro amigo pelo tempo que precisar.
Fred me olhou, inseguro.
— Promete?
— De dedinho e tudo! — Dei uma piscadela, erguendo o mindinho e
vendo-o endireitar a postura, entrelaçando o seu dedo ao meu.
Bellegard se levantou, engoliu o choro e me encarou; encorajado pelo
meu conselho que poderia acabar prejudicando mais a sua situação.
Ele saberia lidar com a rejeição? Com certeza, não! Frederico ficaria
devastado, e tudo porque eu dei um péssimo conselho.
— Obrigado, Nath!
— Só me agradeça se der certo.
Ele sorriu um pouco mais calmo e deixou um beijo terno no meu
cabelo.
— Pode ter certeza de que irei! — disse, afastando-se um pouco.
Pensei que ele fosse sair e me deixar sozinha, mas Fred semicerrou os
olhos. — Ei… não deixe que os problemas do escritório te impeçam de
continuar com a yoga, ok?
Encarei-o, confusa com o conselho repentino e fora de contexto.
— Era visível que te fazia bem. Você estava brilhando, literalmente.
Acho que foi a primeira vez, em dois anos, que eu te vi tão leve,
despreocupada e sorridente… — comentou, afagando o meu rosto, com
delicadeza. — Tenho certeza de que o Renato pode ajudar com isso. Sabe,
ele se preocupa bastante com o seu bem-estar.
Sorri triste e culpada pela mentira que contamos para ele.
— Obrigada, Fred… você é um bom amigo.
Ele dispensou o elogio, como se não fosse nada.
— Vai voltar para a yoga? — investigou, curioso.
Às vezes, a inocência de Frederico era encantadora.
No entanto, o seu questionamento me forçou a refletir sobre o meu
problema.
Estava disposta a deixar de lado a preocupação com o que as pessoas
falariam, caso descobrissem meu envolvimento com Renato? Eu seria capaz
de ser egoísta e pensar apenas no que eu queria para a minha vida, como
tinha acabado de aconselhar o Frederico?
A resposta era tão clara quanto o brilho intenso de um raio de sol que
atravessava as nuvens escuras após a tempestade. No entanto, minha
teimosia e orgulho me impediram de aceitá-la.
— Vou falar com o meu instrutor — menti.
Fred apertou o meu ombro, contente, e deu outro beijo estalado na
minha testa antes de se afastar.
— Somos uma boa dupla, sabia? Time BellGama!
— BellGama?
— Bellergard e Gama — cantarolou, olhando-me de um jeito
adorável. — O que acha de fazermos canecas?
Sorri, balançando a cabeça em descrença.
— Boa noite, Fred.
Todas as atitudes que eu tomei na vida costumavam ser
milimetricamente calculadas, visando antecipar as consequências que me
atingiriam, caso algo desse errado.
Avaliar panoramas e encontrar soluções práticas e emergenciais era a
minha especialidade. Sempre tentei agir da forma mais racional possível,
porque no mundo em que estava inserida, impulsividade só acarretava
problemas.
Mas a vida gostava de tirar com a minha cara, e quando Renato
surgiu no meu caminho; aquela voz na minha cabeça que martelava o tempo
inteiro para que eu avaliasse cada ação de forma lógica, simplesmente
desaparecia.
Desde o nosso primeiro encontro, o filtro que eu usava para me
relacionar com qualquer outra pessoa do escritório se desligava perto dele
e… tudo parecia certo.
Tão certo que aquele hábito de sempre buscar uma saída de
emergência foi deixado de escanteio, e mesmo depois de ter tentado me
afastar, eu ainda estava perto; porque ficar longe parecia errado.
Tudo com ele parecia natural, era como respirar. Não precisava
pensar demais, as coisas fluíam e se encaixavam sem esforço.
E isso era tão… desconcertante.
Depois que Fred deixou a minha sala, tentei me concentrar no
trabalho e nas tarefas que precisava concluir para aquela semana. Contudo,
suas palavras ecoavam em minha mente sem parar, perturbando-me.
Talvez fosse puro egoísmo, mas a imagem de Renato com outra
pessoa não me agradou.
Ao contrário, um sentimento de posse se alojou no meu peito, e por
mais que tentasse me desvencilhar dele, aquela emoção permanecia
enraizada tão profundamente que, somente quando tomei consciência da
sua existência, percebi que nunca estive no controle da situação.
O ciúme era um veneno que corria em minhas veias, dominando
meus pensamentos e me estimulando a agir de maneira impensada.
Eu detestava me sentir tão vulnerável e fora de controle, mas parecia
impossível escapar desse sentimento corrosivo.
No fundo, eu sabia que não ficaria em paz enquanto não me livrasse
daquele incômodo de uma vez por todas.
Após rolar na cama por incontáveis vezes, desisti de brigar com
aquela voz irritante e busquei por um agasalho sobretudo, colocando-o por
cima da camisola que estava usando e marchei para fora do apartamento,
sem pensar direito no que eu estava fazendo.
No hall do prédio, descobri que ainda chovia.
Aquilo não me impediu de atravessar o jardim e em passos firmes,
atravessei a portaria sem dar atenção aos comentários do Sr. Chico sobre o
dilúvio e o risco de pegar um resfriado, caso saísse sem proteção.
Meus olhos percorreram a rua vazia, a chuva caía violentamente no
asfalto, impedindo-me de enxergar com clareza. Senti as gotas grossas e
geladas baterem contra o meu rosto, enquanto buscava pelo conselho
racional da minha mente para que retornasse para casa.
Um relâmpago iluminou o céu e hesitei no trajeto, ponderando sobre
desistir da ideia insana de confrontar Renato com as minhas paranoias no
meio da madrugada. De repente, estava incerta sobre o que deveria fazer e
senti como se estivesse me afogando em sentimentos confusos.
Em resposta à minha hesitação, a voz de Frederico voltou a retumbar
no meu cérebro:
“(…) e vou ter que engolir o maldito orgulho, sorrir e vê-la subindo ao
altar com outro homem que nunca será capaz de dedicar um terço da vida
para fazê-la mais feliz, do que eu poderia. E tudo porque fiquei com medo.
Porque fui um covarde.”
Cérebro idiota!
Grunhi irritada.
Encharcada pela tempestade, atravessei a rua e caminhei em direção à
portaria vizinha que não ficava muito distante.
Não precisei me apresentar, o porteiro me conhecia e assim que
alcancei o primeiro degrau da calçada, ele abriu o portão e como se pudesse
mudar o quão ensopada eu estava, segurou um guarda-chuva para me guiar
para dentro da torre sul.
Ele não anunciou minha presença, tampouco perguntou se Renato
estava ciente da visita. Talvez estivesse tão familiarizado com as minhas
idas e vindas que não julgou que fosse necessário, e após me abandonar no
lobby de entrada, contei os segundos para alcançar a cobertura.
O elevador parecia se arrastar lentamente para cima, e me questionei
se ele realmente iria chegar ao último andar.
Cada segundo que passava parecia mais longo que o anterior, e eu me
vi desejando que Frederico não tivesse me arrastado para essa confusão
emocional em que me encontrava.
Minhas mãos tremiam de nervosismo, e eu comecei a me arrepender
da minha decisão impensada. Será que valia a pena? Eu poderia estar em
casa agora, quente e seca, em vez de tremer de frio nesse elevador.
Uma coisa era certa, meu corpo estava congelando, os meus lábios
formigavam, meus dedos estavam doloridos e rígidos e eu certamente
ganharia uma pneumonia — a qual culparia Frederico por ter enchido a
minha cabeça com os seus problemas.
Se ele tivesse ido atrás de uma terapeuta, eu não teria sido tomada
pelos pensamentos que estava conseguindo controlar perfeitamente até
algumas horas atrás.
Com um suspiro de alívio, atravessei as portas e adentrei o segundo
pavimento da cobertura. A sala de estar preencheu meu campo de visão,
recepcionando-me com aquela calmaria familiar e o aroma amadeirado com
notas de lavanda, que eu sempre associava à casa de Renato. O espaço
estava quente e acolhedor ou talvez fosse apenas meu corpo que estava
gelado o suficiente para notar o funcionamento do aquecedor.
Minhas roupas encharcadas pareciam pesar o dobro e uma poça
começou a se formar ao meu redor. O cheiro de chuva fresca não demorou a
se mesclar ao aroma suave da casa de Renato.
De alguma forma, a calmaria me atingiu e a sensação de conforto
tomou conta de mim, mesmo com aquele tremor incontrolável que
atravessava meu corpo.
Por um instante, tudo parecia quieto demais e a única coisa que me
impediu de retornar para dentro da caixa de aço, foi a conclusão iminente
de que Renato ainda estava acordado.
Ele acharia ruim que eu estivesse entrando na sua casa no início da
madrugada, sem aviso ou convite? Eu duvidava muito, se não esperasse
isso, não teria me dado passe livre para entrar e sair, certo?
Ao menos, foi a esse pensamento que eu me agarrei para não fugir
para a minha casa e marchar rumo ao corredor à direita, onde a luz do
escritório estava acesa.
Hesitei a pouco menos de dois passos da porta, quando escutei a
risada gostosa e familiar ressoar de dentro do cômodo, seguido do barulho
das bolas colidindo na mesa de bilhar.
Ele está acompanhado?
Engoli em seco, odiando a vertigem que me atingiu ao pensar na
possibilidade de ser uma outra mulher lhe fazendo companhia. A mera ideia
me fez sentir necessidade de dar meia volta e correr para o meu prédio.
Entretanto, o ciúme falou mais alto e me deu a força que precisava
para quebrar de vez a distância e parar no batente da porta.
Meu olhar percorreu o escritório como um falcão em busca da sua
presa e o ar que eu sequer percebi que havia segurado, esvaiu-se dos meus
pulmões ao reconhecer a silhueta de Pedro Zimmermann do outro lado da
mesa, segurando o taco em pé; enquanto observava a jogada de Renato —
que estava de costas para a entrada.
Os olhos castanhos e gélidos do engenheiro semicerraram no meu
rosto. Ele arqueou a sobrancelha e antes que eu pudesse dizer qualquer
coisa, o motivo da minha loucura momentânea girou nos calcanhares e
prendeu o seu olhar no meu.
— Nathalia?
Meu nome escapou com surpresa e satisfação dos seus lábios, as íris
castanhas-escuras incendiaram meu corpo com aquela intensidade
perturbadora e eu estremeci em resposta, refém da sua atenção.
Em um piscar de olhos, Renato se materializou na minha frente. A
surpresa deu lugar a preocupação e ele esquadrinhou o meu rosto, buscando
pelo problema que me motivou a atravessar aquela tempestade e aparecer
na sua casa.
— Pedro, encerramos a partida outro dia — disse, sem rodeios.
Não soube se houve resposta por parte do engenheiro. Tudo o que
consegui fazer foi olhar para Renato e buscar pelas respostas que eu tanto
precisava — mesmo que sequer soubesse quais eram as perguntas que ele
precisava responder.
Pedro murmurou algo ao passar por mim e nos deixar sozinhos, e
apenas quando o barulho do elevador se fechando ecoou, pude me atentar
ao que interrompi.
Uma garrafa de Hennessy pela metade, as bolas espalhadas pela mesa
e o placar anunciando a pontuação; denunciava que eles estavam jogando
há algum tempo.
— Nathalia? — Renato chamou novamente, perturbado com o meu
silêncio.
Suas mãos grandes e quentes me capturaram, ele vasculhou o meu
rosto e a minha mente simplesmente esqueceu de ajudar a explicar o motivo
da minha presença ali.
Em contrapartida, Renato se livrou do tecido de lã grosso e molhado
que deveria me aquecer e um vinco surgiu em sua testa ao notar que, sem
aquela peça, a única coisa que ainda me cobria era a camisola de cetim
vermelho.
— Qual é o problema, anjo? O que aconteceu?
Respirei fundo, sentindo o corpo estremecer pelo frio e o nervosismo.
A minha cabeça estava uma bagunça atrapalhada e antes que pudesse
impedir ou pensar melhor, as palavras escaparam dos meus lábios trêmulos:
— Merda… você aconteceu, Renato. Esse é o problema! — lamentei,
sentindo minha voz soar embargada.
Minha visão embaçou devido às lágrimas que se acumularam, e pude
ver o vinco em sua testa aumentar.
Um turbilhão de emoções confusas reverberava dentro de mim e,
mesmo sabendo que não faria qualquer sentido, apenas deixei que o que
sentia fosse exposto em alto e bom som.
— Você é um cretino! Desde que apareceu na minha vida, tem
mexido com a minha cabeça e me fazendo duvidar de todas as coisas que
antes, eu achava que tinha certeza. Você me tira da minha zona de conforto,
me faz sair do caos que estou acostumada… e me induz a ignorar tudo o que
eu acreditava ser importante para o meu futuro — minha voz falhou e senti
a garganta queimar pelo nó engasgado.
Renato franziu o cenho, olhando-me sem piscar.
— Mas de que adianta eu me sentir assim, senão consigo me
desvencilhar das minhas inseguranças e do que vão dizer quando souberem
que eu me apaixonei por você?! — Soquei seu peito, irritada e frustrada,
sentindo-me completamente fora da minha própria racionalidade.
Ele arqueou a sobrancelha, espreitando os olhos no meu rosto e
minha visão embaçou. Com raiva, esmurrei o seu peito novamente e ele
sequer impediu aquele movimento.
— Porque é claro que tinha que ser você! Uma centena de caras
naquele escritório… e o meu chefe precisava ser o único por quem eu me
interessaria. — Solucei, revoltada. — Como eu pude ser tão patética?
O polegar de Renato se arrastou gentilmente em minha pele,
delineando o contorno dos meus lábios trêmulos, sem afastar as íris escuras
e intensas dos meus olhos.
— Você é muitas coisas, mas, patética não é uma delas, Nathalia.
Engoli em seco, piscando para limpar a visão das lágrimas que se
acumulavam. Eu ainda me sentia tão… fora de mim, que não conseguia
refrear que as paranoias escapassem dos meus lábios:
— O pior é que, no fundo, eu sei que você vai se cansar da minha
imaturidade. Quanto tempo vai demorar para encontrar outra mulher e
aparecer noivo? Com o casamento marcado para o próximo mês? —
Arregalei os olhos, horrorizada com a ideia. O cenário que Fred pintou na
minha mente, me atormentaria para sempre. — Eu não vou conseguir ser
tão madura para aparecer no seu casamento. Não mesmo, não se atreva a
me convidar! — alertei, firme.
O choro voltou a me engasgar.
Que caos… eu sou uma completa bagunça!
Se antes o Renato se sentia perdido, com as maluquices que saíram da
minha boca, ele teve certeza de que não fazia a menor ideia do que se
passava na minha cabeça.
— O quê? Espera… casamento… do que você está falando, anjo?
Senti o choro enciumado e completamente desproporcional amarrar
um nó firme na minha garganta. Eu era orgulhosa demais para soltá-lo de
uma vez por todas.
Renato capturou o meu queixo, cravando os olhos nos meus e
exalando aquela calmaria inigualável, incentivou que eu respondesse ao seu
questionamento.
Suspirei.
— Frederico veio falar comigo hoje. Cinthia vai se casar e enviou o
convite para ele — anunciei, tentando colocar os pensamentos em ordem
para conseguir dizer algo que fizesse sentido.
Renato acenou, sem compreender o que aquilo tinha a ver conosco.
— Eu o consolei enquanto ele me contava como perdeu a mulher que
amava por causa do medo do que as pessoas poderiam dizer — elucidei,
deixando que ele enxugasse as lágrimas teimosas que ainda rolavam em
minhas bochechas. — Ele ficou falando sobre como terá que assistir ela se
casando com outra pessoa, e…
A clareza atingiu o Renato e a sua preocupação diminuiu, dando
lugar a um brilho divertido e um esboço de sorriso.
— Então, você presumiu que eu me casaria com outra mulher?
Meus lábios tremularam, sem ligar para o fato dele me achar uma
maluca.
Aquilo era culpa dele.
— Bom, você está ficando velho… meio que faz sentido —
resmunguei na defensiva, vendo o seu olhar se iluminar ao escutar a minha
justificativa.
Suspirei, sentindo uma onda de calor me atravessar quando o seu
braço enlaçou o meu corpo, guiando-me para perto. Sem se importar que eu
estava ensopada e iria molhá-lo.
— Nunca pensei que iria me identificar com uma situação da vida do
Frederico… tem ideia do quanto foi desesperador?
Ele riu baixo, meneando lentamente.
— Você ficaria mais tranquila se eu disser que não existe qualquer
outra, além de você? — indagou, aninhando seus dedos livres na minha
nuca, acariciando a região e aquecendo meu corpo com o seu, sem desviar
os olhos dos meus. — Porque não existe, anjo. Você é a única que passa
pela minha cabeça, desde que colocou esses olhos lindos em mim… —
confidenciou, o seu braço apertou minha cintura, aprisionando-me —, e a
ideia de te perder por qualquer coisa que seja, acaba comigo.
Renato arrastou o polegar na minha bochecha, alcançando o meu
lábio inferior e acompanhou o contorno, suavemente.
— Nunca existiu alguém que me fizesse sentir assim… você é
incomparável, coisinha orgulhosa e diabólica.
Engoli em seco, sentindo meus batimentos acelerarem drasticamente.
— Você se sentiria melhor se eu disser que estou perdidamente
apaixonado por você desde que te conheci e que, mesmo tendo conhecido
tantos outros sorrisos… nenhum foi capaz de fazer comigo o que o seu faz?
— perguntou, firmando os dedos no meu queixo, sem fugir do meu olhar e
me tocando em um ponto profundo. — E que mesmo tendo visto tantas
coisas nesse mundo, nada consegue ser tão lindo e extraordinário quanto
você?
Entreabri os lábios, tentando emitir uma resposta, mas todas as
palavras fugiram de mim.
Renato era a única pessoa no mundo que conseguia não apenas me
deixar sem palavras, mas completamente anestesiada com cada coisa que
falava para mim. Senti o coração acelerar no peito, batendo em um ritmo
desproporcional e perigoso.
— E se eu disser que quero você na minha vida, Nathalia Gama? —
Seu polegar pressionou o meu lábio inferior, libertando-o da prisão que
meus dentes o mantinham, sem quebrar aquela conexão arrebatadora —, e
se eu disser que quero que você seja a primeira e a última coisa que os meus
olhos verão até o meu último dia… e que, em nenhum maldito momento,
passou pela minha cabeça desejar isso com qualquer outra pessoa que não
fosse você. Porque sempre que penso no meu futuro, é você quem eu vejo
ao meu lado… se eu te disser tudo isso, você vai querer ficar? Vai aceitar de
uma vez por todas que é minha, e que nada e nem ninguém, vai mudar isso?
Meu coração parou.
Por meio segundo, senti que meu corpo inteiro parou de funcionar.
— E se eu quiser tudo isso? — A pergunta escapou dos meus lábios
em um sopro fraco, embriagado.
Renato afagou a minha bochecha, terno, e apertou o seu braço em
volta da minha cintura. Ele me fitou com aquela intensidade que me tirava
completamente o fôlego.
— Não terá volta, anjo. — Sua mão esmagou a minha cintura,
aquecendo meu corpo frio. — Porque não me restam dúvidas de que você é
tudo o que eu sempre quis na minha vida. E se você sentir a mesma coisa,
eu não vou permitir que nada fique entre nós.
Merda.
Tentei conter a bagunça que se instalou no meu peito e afastei os
lábios, buscando pelo fôlego que tinha perdido. O ar frio da madrugada
chuvosa invadiu meus pulmões, mas não foi suficiente para acalmar o calor
que começou a se espalhar pelo meu corpo.
Seus braços firmes em volta da minha cintura eram o único suporte
que me mantinha de pé, e eu podia sentir seu coração acelerado pulsando
contra o meu peito.
Seu perfume amadeirado e forte invadiu minhas narinas,
intensificando ainda as sensações que tomavam conta de mim.
Sequer tive forças para refletir sobre aquilo e agradeci mentalmente
por ele estar me sustentando de pé, ou minhas pernas bambas teriam me
feito ir direto ao chão.
E ainda que eu tentasse ponderar sobre a resposta, não existia a
menor chance de que estivesse disposta a abrir mão dele depois de tudo o
que falou.
Seria muita estupidez — até para a mim.
As orbes castanhas esquadrinharam meu rosto, buscando um sinal de
que eu não estava confiante daquela resposta, mas eu sabia que não
encontraria nada.
Se restava alguma hesitação ou medo do que aconteceria quando
soubessem do nosso envolvimento, eu não me importava mais. Nada
sobressairia a certeza cravada no meu peito de que era aquilo que eu queria,
e que estava disposta a apostar naquele sentimento que me consumia por
inteiro.
O aperto de Renato em minha cintura aumentou e o meu corpo que
antes tremia pelo frio, parecia ter sido incendiado por algo muito mais forte
do que qualquer outra coisa que senti na vida. A eletricidade que percorria
nossos corpos criava uma espécie de magnetismo que eu não conseguia me
desvencilhar, e eu podia sentir a vibração da sua voz quando falou:
— O que você me diz?
Não haveria volta depois daquela resposta, eu precisaria arcar com as
consequências do que aconteceria se isso desse errado.
E eu estava disposta.
— Eu quero ficar — assegurei, rouca e hipnotizada.
Minha voz saiu mais baixa do que eu esperava, quase um sussurro,
mas eu sabia que ele havia entendido. Minha mente trouxe à tona uma
conversa de semanas atrás na varanda do quarto de hóspedes em Ilhabela,
pouco depois dele confessar que queria ficar comigo.
— Pelo tempo que você me quiser — reiterei, usando suas palavras
para prometer o mesmo que ele me garantiu naquela noite.
Se eu estivesse com Renato ao meu lado, conseguiria lidar com
qualquer coisa que pudesse nos atingir… certo?
No fundo do meu coração, eu sabia que sim.
E foi àquela certeza que me agarrei, segundos antes da sua boca
colidir com a minha. O gosto de Hennessy que ele bebia antes da minha
chegada ainda estava presente, adicionando um sabor doce e forte ao beijo,
aquecendo meu corpo, de dentro para fora.
De repente, não havia mais inseguranças, julgamentos, preocupações
ou problemas… apenas o calor de Renato incendiando e me devastando por
completo.
Os últimos dias haviam sido um inferno sem Nathalia na minha
cama.
Ainda que estivéssemos interagindo com frequência dentro e fora do
escritório, a necessidade pungente que sentia de tocá-la e de sentir o seu
calor contra o meu, nunca era saciada.
Sentia-me viciado no seu cheiro, no seu sabor, na maciez da sua pele
contra os meus dedos, na maneira como ela estremecia sob o menor
contato; e os soluços sôfregos que escapavam do fundo da sua garganta
sempre que ficava à beira de um novo orgasmo.
Era uma visão perfeita pra caralho e eu estava com abstinência dela.
Nos últimos dias, cogitei que meu autocontrole e paciência
inabaláveis tinham, finalmente, encontrado uma oponente que era capaz de
estremecê-los como nenhuma outra fora.
Nathalia era uma joia preciosa.
Um presente do destino e a aposta mais certa que eu poderia fazer na
vida. Eu nunca me acostumaria com a rapidez com que ela se entranhou
dentro de mim, ao ponto de fazer com que a sua ausência fosse
insuportável.
Minha mão deslizou em sua nuca, ansiando pelo controle que ela
havia me tirado quando tentou romper com o que vínhamos construindo nas
últimas semanas.
Seu corpo gelado e encharcado pela tempestade que enfrentou para
chegar ao meu prédio, lembrou-me o quanto meu pequeno anjo era
completamente fora da curva.
Em que mundo Nathalia vivia para acreditar que, depois de tê-la, eu
seria capaz de me interessar por qualquer outra?
Claramente, um que não condizia com a realidade.
Seu corpo delicado colidiu com a parede atrás dela, e suas mãos
pequenas apertaram a minha nuca e ombro com violência. Como se eu
pudesse desaparecer, caso fizesse diferente.
De certa forma, acho que também me sentia assim e replicava a sua
ação, prendendo-a contra o concreto e o meu corpo, buscando acabar com a
distância que ainda existia entre nós, enquanto seus lábios tentavam travar
uma guerra inútil contra os meus.
Era estupidez da sua parte pensar que poderia assumir o controle
nessa situação. Eu seria capaz de ceder o comando para ela em inúmeras
ocasiões, exceto, no que se referia ao que acontecia entre quatro paredes.
Ali, ela sempre seria a minha putinha diabólica favorita, escondida
sob a feição de um anjo dócil e inocente.
Ela prendeu meu lábio inferior entre os dentes, aflita.
Em resposta, minha mão livre alcançou sua bunda, impulsionando
seu corpo para cima e deixando que suas pernas envolvessem meu quadril.
Apesar desse movimento acabar com a distância, o excesso de tecido
entre nós ainda era insuportável. No entanto, suas mãos ágeis não
demoraram a tatear meu peito e alcançar a bainha da camiseta que eu vestia,
forçando-me a afastar nossas bocas para que a peça saísse de uma vez por
todas.
— Renato… — meu nome escapou como uma melodia rouca e febril
dos seus lábios e, sem dúvidas, aquele era um dos meus sons preferidos.
As orbes castanho-escuros me fitaram com aquele brilho lascivo que
apenas Nathalia conseguia sustentar. Sedutora pra caralho. Capaz de
entorpecer como o canto de uma sereia, impedindo-me de ver e ouvir
qualquer coisa que não fosse ela.
— Você não faz ideia do inferno que foi passar as últimas noites sem
você, diabinha — soprei, rouco, aninhando a mão em sua bochecha macia e
aproximando o rosto do seu novamente.
Ela me olhou, compenetrada, sua respiração não passando de um
chiado entrecortado.
Meus olhos recaíram nos seus lábios inchados, e precisei conter o
som agudo que quase escapou do fundo da minha garganta ao pegá-la
prendendo o inferior entre os dentes.
Era uma visão deliciosa, e Nathalia sequer tinha dimensão de como
esse mero ato, por mais ingênuo e instintivo que fosse, parecia atear fogo
em minhas veias.
Ela afundou as unhas no meu ombro esquerdo, enquanto a outra mão
intensificava o aperto nos fios curtos do meu cabelo.
— Eu também senti a sua falta — confidenciou, soltando o lábio
inferior e me dando um sorrisinho cúmplice.
Calmamente, a pequena diaba aproximou o seu rosto e deixou que
seus lábios roçassem nos meus.
Em contrapartida, minha mão mergulhou por entre suas pernas e
alcançou o tecido úmido que escondia a sua boceta deliciosa.
Seu calor contrastou contra a peça gelada pelo banho de chuva,
fazendo com que o meu desejo pulsasse latente nas veias.
Em resposta, Nathalia soltou um suspiro arrebatado.
— Você realmente conseguiu me estragar… — assoprou, olhando-me
por baixo dos cílios grossos, a voz tão baixa que se minha atenção não
estivesse totalmente voltada para ela, duvidaria que havia dito algo. —
Espero que esteja contente com isso…
Sorri ferino, apreciando o tom provocativo que cobriu sua voz.
Sem delicadeza, enrolei os fios castanho-dourados em meu pulso e os
puxei o suficiente para que seu rosto ficasse nivelado ao meu. Nathalia
fisgou a carne grossa do lábio inferior entre os dentes novamente,
reprimindo um gemido que ameaçou escapar e sustentou o meu olhar.
— É uma pena que você tenha sido tão teimosa e tenha demorado
tanto para admitir o que sabíamos há semanas — murmurei, baixo e grave,
arrastando os lábios suavemente pelo contorno da sua mandíbula.
Eu conseguia sentir a pulsação acelerada, a respiração caótica e a
maneira como a sua pele se arrepiava com o meu toque mais sutil.
Nunca me acostumava com a forma que o seu corpo reagia sob o meu
domínio. Ele a oferecia para mim, ainda que a sua mente teimosa relutasse.
Bastava olhar para ela e seus instintos a traziam para a minha órbita. Eu a
tocava, e ela correspondia com a mesma avidez. Eu a beijava, e Nathalia se
desmanchava em meus braços. Mergulhar nessa entrega que ela sempre me
oferecia era como experimentar uma droga viciante, intoxicante, ao ponto
de me prender em frenesi.
Era uma experiência quase religiosa.
— Ainda não decidi se devo puni-la por pensar que poderia se afastar
de mim, diabinha — sussurrei próximo à sua orelha, mordiscando o lóbulo
e a sentindo estremecer.
Nathalia soltou um suspiro lânguido e eu sorri internamente.
Meus olhos percorreram o contorno do seu rosto, e capturei o
momento em que um sorriso lascivo tomou conta dos seus lábios.
Como se as suas reações estivessem expostas para mim em câmera
lenta, observei-a gemer quando meus dedos afastaram o tecido de renda,
mergulhando-os na fenda melada.
O desejo ardia em mim, incontrolável, e soube que não seria capaz de
resistir por tempo o suficiente para que a levasse direto para o meu quarto.
Eu precisava tê-la aqui mesmo, contra a maldita parede.
Intensifiquei o aperto em seu cabelo, impedindo que ela atrapalhasse
a minha visão e seu quadril ganhou vida, movendo-se contra os meus dedos
no seu interior, esfregando-se com tamanha fome que suas paredes se
fechavam cada vez mais, fodendo com a falsa calmaria que eu ainda estava
tentando sustentar.
Ela era tão quente e apertada que chegava a ser doloroso não estar
dentro dela.
O rubor em suas bochechas e a luta de suas pálpebras para se
manterem abertas, eram um espetáculo à parte.
Eu precisava da sua voz vibrando pelo escritório; queria que Nathalia
marcasse cada maldita parede com o som doce que escapava dos seus
lábios, assim eu conseguiria escutá-los, mesmo quando ela não estivesse
sob o meu domínio.
Hipnotizado, aumentei as investidas dos dedos, acrescentando um
terceiro à investida e mordisquei seu queixo, antes de arrastar os lábios para
os seus e fisgar a carne inferior entre os dentes, impedindo que ela
continuasse aprisionando os sons que me pertenciam.
— Somos só nós dois aqui, diabinha… — anunciei, capturando a sua
atenção ligeiramente atordoada —, não precisa se esconder de mim —
ordenei, suavemente, ao mesmo tempo que meu polegar circulava o clitóris
sensível e arrancava um tremor intenso do seu corpo pequeno.
As unhas de Nathalia afundaram em meus ombros com violência e o
seu interior ficou ainda mais apertado, anunciando o quão perto estava do
orgasmo.
Sorri fascinado, meus lábios se arrastaram em sua pele alva,
explorando o pescoço delicado, hora mordiscando e sugando a pele, noutra
arrastando a língua pela região e acompanhando como ela reagia a cada
estímulo, ao mesmo tempo que marcava sua pele para que não se
esquecesse da escolha que havia feito.
Seus gemidos ficaram mais altos e entregues a cada investida, sua
excitação escorria pelos meus dedos e minha boca salivou, ansiando por
experimentar seu gosto novamente. Fazia tanto tempo desde a última vez
que ela se desmanchou em minha língua, que parecia ter sido a uma
eternidade atrás.
— Ah… meu… Deus! — exclamou Nathalia, seu aperto se tornando
tão violento que a sua respiração falhou nos pulmões.
Seus dedos agarraram meu cabelo rente a nuca e, ferozmente, sua
boca colidiu com a minha como se precisasse disso para conseguir respirar
outra vez.
O sangue fervia em minhas veias, levando uma corrente de lava
ardente direto para o meu pau que pulsava, dolorido, suplicando pelo aperto
que ela estava concedendo aos meus dedos. A língua de Nathalia travou
uma guerra ridícula contra a minha e quando o orgasmo a atingiu, todo o
seu corpo foi arrebatado pelos espasmos que chacoalharam seus ossos.
Ofegante, Nathalia afastou os lábios dos meus e bateu os cílios,
tentando recuperar o fôlego. Sem pressa, libertei seu cabelo do aperto do
meu punho e arrastei os dedos em sua pele macia, aninhando-os em sua
bochecha e enxugando as lágrimas que rolavam pelas maçãs rubras.
— Linda pra caralho — constatei, ainda incrédulo com o quão
perfeita era a imagem diante de mim.
Seus olhos brilhavam em êxtase, os lábios grossos estavam mais
inchados e vermelhos do que o habitual; e o seu peito subia e descia,
acelerado. Aquela imagem era o completo oposto da que surgiu na minha
frente alguns minutos atrás.
Qualquer resquício de insegurança e perturbação que ela carregava
quando atravessou a tempestade, apenas para me dizer o quanto fodi com a
sua cabeça nas últimas semanas, agora era uma mera lembrança que
permaneceria gravada em minha memória.
Lentamente, retirei meus dedos de dentro dela, como se isso pudesse
me fazer absorver mais do seu gozo e os trouxe para o nosso campo de
visão. Minha boca salivou para prová-la, mas meus olhos se voltaram para
os lábios vermelhos e o meu demônio interno que era alimentado por ela,
ansiou por perverter a imagem angelical diante de mim.
Nathalia cravou os olhos nos meus, como se soubesse exatamente o
que eu pretendia e quando meus dedos roçaram em seus lábios, ela não se
demorou a entreabri-los e me deixar colocá-los em sua boca.
A diaba apertou seus dedos em torno do meu pulso, impedindo que
me afastasse e chupou os meus dedos lubrificados pelo seu próprio gozo.
Eu conseguia sentir a sua língua serpenteando, a pressão que suas
bochechas faziam ao redor; enquanto os seus olhos grandes e cobiçosos não
se afastavam dos meus, a filha da puta estava chupando meus dedos como
se estivesse com o meu pau entre seus lábios — e ele prontamente reagiu ao
estímulo.
Minhas bolas deveriam estar azuis nessa altura do campeonato. Eu
sempre gostei da atmosfera de antecipação antes do sexo, de aproveitar
cada segundo de preliminares que me fosse permitido e ver quais sensações
desencadeava nela, mas… porra. A imagem que Nathalia projetou em
minha mente, quase me fez gozar.
— Você é realmente uma putinha diabólica… — rosnei, afastando os
dedos dos seus lábios e capturando o seu queixo para erguer seu rosto,
sustentando o contato visual.
Nathalia sorriu, nenhum pouco ofendida pela acusação rude. Era
nítido como ela gostava de lidar com aquele meu lado sujo. Seus olhos
inflamavam em resposta a cada palavra que saía dos meus lábios e os
sorrisos… eram um nítido retrato do pecado.
Minha boca capturou a sua novamente, necessitando descontar toda a
tensão que queimava em meus ossos. E ela correspondeu, sem hesitar e com
a mesma urgência.
Em um piscar de olhos, o corpo de Nathalia abandonou a parede ao
lado da porta e atravessei meu escritório com ela em meus braços.
Suas pernas se apertaram ao meu redor, impedindo que fosse criada
qualquer distância entre nós. Seu corpo foi colocado sobre a mesa de
sinuca, e minhas mãos desceram para a bainha da camisola vermelha que
ela ainda usava. O pedaço de pano não aparentava mais estar úmido, estava
tão quente quanto o corpo febril de Nathalia. Não demorou até que o
pedaço minúsculo de tecido que não cobria quase nada, fosse retirado dela e
arremessado para um canto qualquer da sala.
Naquela altura do campeonato, eu nem me importava mais com a
inconsequência de Nathalia ao sair do seu apartamento no meio madrugada,
com as ruas desertas devido à chuva torrencial, sem segurança, e apenas
com um sobretudo de lã impedindo que outros desgraçados vissem como a
peça íntima parecia ter sido projetada exclusivamente para realçar suas
curvas.
Eu poderia me preocupar com isso amanhã cedo.
Na verdade, no que dependesse de mim, aquela discussão nunca mais
ocorreria porque Nathalia não sairia mais da minha cama. Nunca mais.
Porra. De jeito nenhum!
Suas mãos ágeis alcançaram o cós da minha calça de moletom,
rapidamente, libertando a minha ereção dolorida da prisão em que estava.
Meu aperto em sua coxa descontou o prazer que atravessou o meu
corpo, quando seus dedos pequenos e delicados envolveram o
comprimento. Suas mãos o enlaçaram e antes que eu pudesse me enfiar
dentro da sua boceta apertada, Nathalia me empurrou para longe e saltou de
cima da mesa, ficando de pé na minha frente por poucos segundos, antes de
se ajoelhar diante de mim e capturar novamente a minha ereção.
Gemi, arrebatado com a imagem.
Os seios fartos estavam expostos, os mamilos rosados estavam
eriçados, os bicos inchados despontavam em minha direção e meus dedos
não se demoraram a encontrar o caminho até o esquerdo, prendendo-o entre
o indicador e o médio, apertando na medida certa para arrancar um pequeno
lamento dos seus lábios e uma ligeira inclinada de sua cabeça para trás.
Seus olhos faiscaram e a cena que se desenrolou no minuto seguinte,
foi a coisa mais perfeita que eu já vi, em quase trinta anos de vida.
Nathalia aumentou o aperto ao redor do meu pau, fazendo pressão na
base e iniciou a movimentação em um ritmo lento e preciso, as íris fixas no
meu rosto; atentas a cada reação aos seus estímulos.
Um gemido rouco e profundo escapou do fundo da minha garganta
quando a sua língua deslizou pelo comprimento, espalhando saliva por cada
centímetro e, sem pudor, lambeu a gota de sémen que estava concentrada na
glande.
Olhando-me por baixo dos cílios, Nathalia abriu um sorriso matreiro
e sem dizer uma única palavra, ela me arrastou do inferno ao paraíso com
um simples ato.
Seus lábios envolveram a glande, sua língua brincou com o contorno
da coroa e estimulou o freio; enquanto uma mão se dedicava a masturbar o
restante, mantendo o aperto quase no limite da dor; a outra se arrastou para
as bolas e as estimulou no ponto certo, fazendo com que meus dedos se
emaranhassem em seu cabelo.
Nathalia aproveitou meu incentivo para abocanhar mais alguns
centímetros.
Grunhi, nocauteado pelo prazer.
— Você tem ideia do quanto fica gostosa com os lábios em torno do
meu pau? — indaguei, rouco, recebendo seu olhar atrevido em resposta e
um gemido baixo que reverberou pelo comprimento.
Em resposta ao meu elogio, Nathalia começou a me chupar com
determinação, dando tudo de si para engolir o máximo que conseguia.
Busquei internamente pelo meu autocontrole para não tomar as rédeas da
situação e me enfiar em sua garganta, e a maldita diaba pareceu notar meu
conflito e tomou a decisão por conta própria.
Meus olhos giraram nas órbitas quando o aperto da sua garganta se
fechou em torno da cabeça inchada, e meu instinto se desvencilhou da jaula
que o aprisionava.
No segundo seguinte, enrolei o cabelo de Nathalia em meu pulso e,
sem qualquer cuidado, meu pau avançou contra sua boca, metendo firme e
fundo, mergulhando na sua garganta a cada nova investida.
Suas bochechas ficaram mais coradas, as lágrimas se acumularam nos
seus olhos, mas não havia nenhum resquício de que ela queria que eu
parasse. Era o contrário, sempre que eu me afastava quando a sentia
engasgando, Nathalia apertava as unhas na minha pele e impedia que eu
saísse completamente da sua boca.
— Você gosta que eu foda sua boca, não é? — Um som ininteligível
escapou do fundo da sua garganta, causando uma vibração deliciosa em
torno do meu pau. — Gosta que eu seja rude e a trate como a putinha que
você é.
Ela arquejou, em meio ao aceno. Uma mão me abandonou e
mergulhou entre suas coxas, a visão daqueles dedinhos delicados
desaparecendo dentro da sua boceta, fez com que o meu próprio gozo se
aproximasse violentamente.
Os olhos de Nathalia giraram nas órbitas e o seu gemido se espalhou
em minha carne, ateando fogo em gasolina e incendiando cada músculo do
meu corpo.
Aumentei o aperto no cabelo dela, trazendo-a de volta para cima e
meu braço envolveu sua cintura para a ajudar a se equilibrar.
Ela entreabriu os lábios, pronta para reclamar por ter roubado o seu
controle, mas minha boca colidiu com a sua, calando-a e engolindo o
gemido que escapou do fundo da sua garganta.
Seus braços enlaçaram meu pescoço e seu corpo cambaleou para trás,
chocando-se contra a mesa de bilhar. Seus dentes prenderam meu lábio
inferior com força, impedindo que eu tentasse me afastar, mas bastou que
aumentasse o aperto nos fios enrolados em meu punho, que ela cedeu.
Nathalia era um livro aberto para mim. Ela gostava de manter o
controle para as pessoas de fora; de sustentar uma máscara de dominação
que não passava de fingimento, mas desde que coloquei os olhos nela,
soube ler suas entrelinhas.
Eu sabia onde apertá-la para conseguir o que queria, conhecia os seus
limites e o que a excitava. Seus olhos diziam muito, e o seu corpo indicava
os pontos certos para tocá-la e enfraquecer qualquer barreira que estava
tentando erguer. Ela era como um fodido gráfico na minha tela, e mesmo
que eu conhecesse cada detalhe, ainda me surpreendia com a forma que ela
reagia aos estímulos.
Afastei-me dela, o suficiente para que pudesse me livrar da calça de
moletom que ainda limitava meus movimentos, e a peguei novamente,
incentivando-a subir em cima da mesa de bilhar. Empurrei algumas bolas
para longe, abrindo espaço para ela e capturei seu pequeno sorriso, antes de
roubar seus lábios mais uma vez.
Nathalia envolveu meu corpo com suas pernas, suas coxas grossas me
apertaram, fazendo com que minha ereção roçasse em suas dobras
molhadas, ela gemeu contra a minha boca, rasgando os meus ombros com a
fricção e a trouxe para frente, ajustando seu quadril e a penetrando de uma
vez.
Duro. Fundo.
Ela gritou em resposta.
Sua cabeça pendeu para trás, seu cabelo caiu sobre suas costas como
uma cortina marrom-dourada e meus olhos se fixaram no reflexo projetado
nas janelas escuras do meu escritório. A luz baixa na sala, iluminava
perfeitamente o seu corpo e suas unhas se arrastaram em meu peito,
deixando suas próprias marcas na minha pele.
Afundei o rosto em seu pescoço sensível, chupando, mordiscando,
lambendo, beijando cada centímetro disponível. Ao mesmo tempo em que
mantinha o ritmo das estocadas, metendo fundo e forte, sentindo a sua
boceta deliciosa massacrando meu pau.
Ela moía com tanta violência, que me cegou.
O som de cada investida reverberava nas paredes, embalado pelos
gemidos altos e sem pudor que escapavam da sua garganta. Nathalia me
apertava de todas as formas. Suas unhas cravadas na minha pele
arrancavam sangue por onde passavam, seus dedos em meu cabelo
puxavam os fios com tanta força que ela poderia arrancá-los, se assim
quisesse; e as suas paredes… merda, comprimiam como se o meu tamanho
fosse demais para que ela pudesse comportar.
Meus dedos que esmagavam sua cintura delgada escorregaram pela
sua pele. O cheiro de rosas, canela e cereja que normalmente emanava dela
estava presente, mas eu também conseguia reconhecer algo parecido com
caramelo. Aquele aroma sempre esteve presente, ou ela havia trocado de
perfume? Ou talvez a distância que ela impôs entre nós, me fez esquecer
parcialmente o seu cheiro?
Aquela ideia me fez sair de dentro dela, não por inteiro, mantendo a
glande no seu calor. Nathalia piscou, a desolação brilhando em seus olhos
lindos, denunciando o quanto estava descontente por ter me retirado.
— Quero que você olhe para nós, diabinha — falei, a voz baixa e
calma, contrastando com o fogo que estava consumindo minhas veias.
Seu olhar recaiu para o meu pau melado da sua excitação e seu
quadril ondulou, pude sentir sua boceta buscar pelo preenchimento.
Lentamente, me permiti entrar mais uma vez. Deixando-a ver como
conseguia engolir cada centímetro.
— Vê como foi feita para ser minha? — A pergunta soou sombria,
minha voz foi tomada por um sentimento que eu evitei com muito custo por
toda a minha vida, mas que ela desencadeou com um simples olhar, meses
atrás.
Seus lábios grossos se entreabriram, as íris colidiram com a minha
emanando aquele fogo familiar e ela apertou as pernas ao meu redor quando
fiz menção a me retirar novamente.
— Renato…
— Shh… diabinha — aninhei minha mão livre em sua nuca, roçando
meus lábios nos seus, subindo por sua bochecha e alcançando sua orelha.
Fisguei o lóbulo, prendendo-o entre os dentes com força. — Você é minha,
Nathalia Gama. Minha mulher. Minha putinha preferida. A porra do meu
anjo diabólico… — pude senti-la engolir em seco e sorri, sentindo sua
boceta asfixiar o meu pau.
Aumentei o aperto, trazendo sua cabeça para trás e capturando o seu
olhar.
— Sua boceta nasceu para estrangular o meu pau desse jeito… —
soprei contra seus lábios, afastando-me o suficiente para entrar novamente.
Duro. Ela piscou, as bochechas ganhando um tom de vermelho mais
violento. — Você consegue entender isso, diabinha?
Ela balançou a cabeça para cima e para baixo, sem voz.
— Então diga, em alto e bom som.
Meu quadril investiu contra ela novamente, devagar e forte.
— Sim… — ela soluçou em meio a um gemido quando a invadi com
uma nova estocada —, ah… eu entendi!
Meu polegar se arrastou no contornou do seu lábio inferior,
impedindo-a de prendê-lo entre os dentes. Ela arquejou, seu calor se
tornando cada vez mais insuportável.
— Entendeu? — averiguei, apertando os olhos, apreciando a luxúria
dançando nas íris castanhas.
— Ah… Deus! — Seu quadril ondulou sobre a mesa e as unhas
afundaram na minha pele com mais força, suas paredes apertaram meu pau
e restringiram qualquer novo movimento.
Era fodido demais quando ela fazia isso.
Cerrei a mandíbula, tentando conter o meu próprio prazer.
Minha boca buscou pela sua, violento e punitivo, a ideia de que a sua
escolha inconsequente de tentar me expulsar da sua vida, quase me fez
esquecer do seu cheiro, trouxe de volta aquela necessidade de puni-la pela
ousadia. Mas quando ela gemia contra os meus lábios, movendo o quadril
contra mim e buscando pelo orgasmo, a ideia se esvaía tão rápido quanto
surgia.
Porque a vontade de castigá-la poderia ser deixada para outro
momento, mas a privar de gozar quando estava tão desesperada por isso?
Eu era incapaz de tal feito.
Os meus golpes retomaram ao ritmo anterior, forte, fundo e
avassalador. Nathalia gemia contra os meus lábios, rasgando minha pele
com suas unhas e denunciando a cada nova investida, o quão perto estava
do orgasmo.
Meus dedos envolveram a sua garganta, sentindo a pulsação
acelerada na palma da minha mão e a apertei, sem diminuir o ritmo das
investidas.
Uma. Duas.
Ela era uma visão do caralho.
Três. Quatro.
Ela era minha deusa, a única divindade digna da minha adoração.
Cinco. Seis.
Ela iria morar na minha cama.
— Você é minha mulher — rosnei, grudando sua testa na minha e ela
choramingou, balançando a cabeça devagar já que o meu aperto em sua
garganta a restringia.
— Sim… eu sou… — arquejou, moendo meu pau —, Renato! — meu
nome soou como uma oração dos seus lábios, seus olhos giraram nas órbitas
e ela gozou forte, esguichando.
Não hesitei, continuei me afundando em seu interior, me imprensando
em seus ossos para que ela se lembrasse daquilo. As lágrimas rolavam por
suas bochechas, as pernas trêmulas mal conseguiam se sustentar ao meu
redor, mas Nathalia era um pequeno diabo, enviado para testar minha
sanidade.
E mesmo amolecida e zonza, ela conseguiu pronunciar três malditas
palavras que a marcaram na minha pele como ferro em brasa.
— Eu te amo… — choramingou, embriagada.
Martelei nela, sendo atravessado pelo impacto das palavras.
E ela repetiu aquela afirmação a cada estocada, como se fosse uma
maldita prece.
Uma. Duas. Três… seis fodidas vezes, até me levar ao meu próprio
limite.
Um arrepio atravessou o meu corpo ao sentir a palma da mão de
Renato acariciar minha nádega esquerda, tão dolorida quanto a direita.
Suspirei, forçando os meus olhos a se abrirem e ignorando os
espasmos que se espalhavam por minha pele conforme ele arrastava os
dedos preguiçosamente em minhas costas, mas foi em vão.
Eu estava exausta. Massacrada. Essa seria a melhor palavra para
descrever como eu me sentia.
Meus seios estavam pressionados contra o seu peito, conseguia sentir o
seu coração batendo forte e talvez, se meu cérebro não estivesse tão
letárgico, eu conseguisse distinguir as batidas ritmadas da vibração de um
celular que não desistia de atrair nossa atenção.
Forcei minhas pálpebras a se abrirem e resmunguei um palavrão
quando a claridade vinda das enormes janelas queimou minha visão. Pisquei,
tentando me acostumar e aos poucos, o cômodo começou a ganhar forma
diante dos meus olhos.
Ainda estávamos no escritório do apartamento de Renato, nossas
roupas estavam espalhadas pelo lugar, sua mesa ainda estava uma bagunça
— por conta da segunda e terceira vez em que ele me levou ao ápice em
cima dela —, e a lareira estava acesa, mesmo que o frio da noite passada não
incomodasse mais. Ao contrário, o sol aquecia a minha pele através dos
vidros.
O cheiro amadeirado do perfume de Renato estava impregnado na
minha pele, e me dei conta de que acabei dormindo em cima dele nas
últimas horas. Eu me lembrava de ter implorado por alguns poucos minutos
de descanso, estava começando a amanhecer e precisávamos ir para a firma
cedo, mas, pelo visto, Renato se esqueceu desse detalhe e me deixou dormir
por mais do que alguns minutos.
Eu conseguia sentir sua ereção pressionando contra a minha barriga,
mas ele não teve pressa de me despertar. Parecia estar dando tempo para que
o meu cérebro concluísse as primeiras sinapses do dia, e isso foi muito mais
do que bem-vindo.
Espalmei as mãos sobre o seu peito e ergui os olhos para o seu rosto,
sem me surpreender por encontrar a sua atenção sobre mim. Sempre estive
ciente do seu olhar compenetrado em tudo o que eu fazia, desde que nos
conhecemos. Estava longe de me acostumar, mas gostava de ser o alvo da
sua concentração.
— Você deveria descansar por mais algumas horas — disse ele, baixo
e grave, sua mão que estava afagando minha bunda subiu para o meu rosto,
aninhando-a ali e acariciando a pele.
— E você deveria ter me acordado há… — meus olhos vagaram pelo
lugar, procurando pelo telefone que não parava de vibrar.
Encontrei-o em cima da mesa de centro e estiquei o braço,
reconhecendo o nome de Leandro na tela. Era o celular de Renato, mas o que
me chocou não foi a quantidade de ligações perdidas do nosso amigo, mas o
fato de que passava de onze horas da manhã.
— Renato!
O horror escapou pelos meus lábios e tomando cuidado para não o
machucar, levantei-me em um salto e me arrependi quase de imediato.
Minhas pernas pareciam ter se esquecido de como funcionavam e se o braço
forte de Renato não tivesse me capturado, eu teria me desfeito no chão feito
uma ameba.
No entanto, minhas pernas não estarem funcionando corretamente não
me atingiu com a mesma violência, do que a constatação de que perdi duas
reuniões importantes com a equipe. Uma deveria acontecer antes da abertura
de mercado com o time da mesa de operações, e outra após o início do leilão
com a equipe de riscos. Eu nunca me atrasava para os meus compromissos
profissionais, principalmente, para aqueles que eu marcava.
Virei-me para o responsável pela minha falha, mas ele parecia
imperturbável como sempre.
— Respire, anjo — disse ele, abaixando-se na minha frente e me
colocando sentada de volta no sofá. Sem pressa, soltei o ar que eu não
percebi que estava segurando, mas não foi o suficiente para que o choque
passasse. — Isso… assim é melhor — incitou, sorrindo preguiçosamente e
acariciando meu rosto, conforme a minha respiração voltava ao ritmo
normal.
Seus olhos escuros cravaram nos meus e ele apertou o polegar contra o
meu lábio inferior, libertando-o da prisão dos meus dentes.
— Bom dia, a propósito — saudou, deslizando a mão em minha pele.
— Relaxe, anjo, as reuniões foram repassadas e aconteceram como deveria
— explicou, calmamente.
Meus ombros relaxaram um pouco, e uma careta cobriu seu rosto
lindo.
— Devo me sentir ofendido por isso ter sido a primeira coisa que
passou pela sua cabeça quando acordou?
Uma risada escapou do fundo da minha garganta e um pouco mais
tranquila, deixei que meus braços envolvessem seus ombros e joguei o corpo
em sua direção.
— Desculpe, é só que… eu nunca acordo tão tarde.
Na verdade, nunca me permiti acordar tarde porque era uma das
centenas de coisas fúteis que poderiam usar contra mim. Por isso, eu
acordava antes do nascer do sol, cumpria com toda a minha rotina matinal e
chegava ao escritório antes de todos os outros.
Enquanto eles estavam nos elevadores, eu já estava tão imersa nos
compromissos do dia, que algumas pessoas cogitavam que eu sequer ia
embora e morava na minha sala.
Os lábios de Renato escorregaram em meu ombro desnudo, sem
qualquer intenção que não fosse me dar carinho e isso acabou me arrancando
outro suspiro.
— Tudo bem — tranquilizou, aninhando suas mãos firmes em minhas
coxas nuas.
Inclinei a cabeça para trás, encontrando-o com uma expressão muito
mais desperta que a minha. O que denunciava que ele não havia dormido.
Franzi o cenho, deixando que meus dedos percorressem sua barba por
fazer e tendo a mente inundada pelas lembranças da noite passada.
Eu tinha certeza de que meu pai arrancaria a minha cabeça a essa altura
do campeonato. Miguel acatava ao meu desejo de não andar com seguranças
para todos os lados porque sempre fui responsável e segui as suas regras.
Um carro com dois homens de confiança me seguindo era o suficiente,
contanto que eu nunca saísse sem dizer para onde estava indo e sem meu
celular.
E havia sido justamente isso o que fiz naquela madrugada.
Com certeza o Sr. Chico já tinha me dedurado.
Não tinha dúvidas de que, assim que ultrapassei a portaria, ele ligou
para o apartamento abaixo do meu para alertar aos trogloditas do meu pai
que eu havia saído. E sem qualquer maneira de se comunicar comigo, eles
provavelmente ligaram para o meu pai que deveria estar convocando o
exército para buscar por mim.
Eu deveria ter previsto isso, era o que eu fazia em noventa por cento do
tempo e já conseguia prever a tragédia que me esperaria quando saísse dos
braços de Renato.
Além disso, havia o fato de eu ter perdido os compromissos da manhã.
Renato poderia estar tranquilo quanto a minha imprudência, mas não
me sentia tão confortável. Eu simplesmente não podia me dar ao direito de
errar. Nunca. Ele havia apostado em mim para o cargo de COO, cedeu cotas
da sua parte da empresa e colocou a sua reputação com os sócios em risco
quando me promoveu.
Eu não queria dar nenhum motivo para que usassem uma falha minha
para questionar as decisões dele e…
— Nathalia! — Seu chamado foi mais firme, quase rude.
Bati os cílios com força, dando-me conta de que estava começando a
hiperventilar e a suar frio. Um vinco surgiu entre as sobrancelhas de Renato
e ele esquadrinhou o meu rosto, preocupado.
— Pare de pensar demais — pediu, mais gentil, e sua mão voltou a
acariciar minha pele, espalhando seu calor e fazendo com que meus
músculos relaxassem.
— Desculpe…
— Pare de me pedir desculpas.
— Desc…
A palavra morreu antes que fosse completada, não porque consegui
refreá-la. Aquela era uma resposta automática para a minha perturbação
durante os inícios de uma crise, e Renato sabia disso. Merda, ele me
conhecia tão bem. Às vezes, mais do que eu mesma.
Então, quando seus lábios colidiram com os meus, calando as vozes
que estavam começando a brigar na minha cabeça e se preparando para uma
dúzia de ataques depreciativos, eu apenas me deixei ser guiada para a zona
neutra e livre de julgamentos para o qual ele sempre me arrastava.
Horas mais tarde, consegui colocar todas as pendências da manhã em
ordem com a ajuda de Bianca e Ananda.
Renato tinha conseguido me manter presa no mundo das fantasias por
mais algumas horas, antes de sermos arrastados de volta para o mundo real,
mas não duvidava de que se Leandro não estivesse ligando a cada dez
minutos, ele teria dado um jeito de me convencer a perder um dia inteiro de
trabalho.
Eu não raciocinava muito bem quando ele estava me tocando. Era uma
batalha injusta e minha racionalidade nunca vencia.
Depois que chegamos ao escritório e nos separamos, eu não o vi
novamente. A última coisa que soube, foi que Leandro e ele haviam ido para
a Faria Lima para se reunir com um cliente que dividiam. Isso justificava as
ligações insistentes do Salazar durante a manhã inteira.
Com a ajuda de Ananda, as coisas fluíram muito mais rápido e não me
passou despercebido que Renato poderia ter feito aquilo propositalmente. Há
dias ele vinha tentando me convencer a contratar uma secretária, e apesar de
ter conseguido adiar as entrevistas que a equipe de RH havia começado, uma
hora eu não conseguiria mais postergar esse assunto.
E o fato de ele ter disponibilizado Ananda para trabalhar comigo, era
um sinal claro de que ele voltaria com essa pauta em algum momento.
Leandro foi explícito ao dizer que quando a sua assistente, Cora,
precisou se afastar devido a uma cirurgia cardíaca, Renato o fez contratar
uma temporária e se recusou a emprestar Ananda por um mísero dia. A
própria garota me contou por longos minutos, enquanto me ajudava a
repassar a agenda da semana, que era a primeira vez que ela trabalhava para
outra pessoa.
O fato de Ananda ter discretamente colocado uma pasta cheia de
currículos entre os documentos que eu precisava analisar, era outro
indicativo.
Não era como se eu fosse contra a política de ter uma secretária, longe
disso. Era um padrão dentro do escritório e todos em posições altas
acabavam tendo, mas todas às vezes em que tentei ter alguém para me
ajudar, acabaram dando muito errado.
A última conseguiu me dar um prejuízo enorme por ter confundido
alguns relatórios, e enviado o extrato bancário de um dos meus maiores
clientes para outro.
Era uma falha grave, que poderia inclusive nos render um processo por
vazamento de informações confidenciais.
E após ter demitido ela, eu precisei me contentar com a realidade de
que não conseguiria encontrar alguém que fosse tão focada quanto eu.
Centenas de documentos passavam pela minha mesa todos os dias, eles
precisavam ser anexados e arquivados nas pastas certas, enviados sem
qualquer erro para o destinatário final, sem desvios ou enganos. E dada as
minhas últimas experiências, ficava claro que aquela parecia ser uma tarefa
mais difícil do que eu pensava.
Bianca me ajudava na maior parte do tempo, mas eu me sentia um
pouco culpada por prendê-la a serviços administrativos, quando sabia que
seu talento estava sendo desperdiçado em meio a papelada.
— Ei! — Dedos surgiram na minha frente, atraindo a minha atenção e
desviei os olhos da vidraça, encarando a minha amiga. — Planeta Terra
chamando Barbie Malibu!
Revirei os olhos para o apelido idiota e dei um passo para longe do
vidro, bebendo um gole da vodca que estava em meu copo recém-servido.
Eu tinha parado para um intervalo e acabei me perdendo completamente
entre divagações.
Encarei Bianca, percebendo que algo parecia diferente. Não era a sua
aparência, afinal, os fios perolados ainda estavam no mesmo tom que eu me
lembrava, as tatuagens que cobriam seus braços ainda eram as mesmas e o
seu estilo de roupa mais despojado permanecia igual.
Ainda assim, alguma coisa tinha mudado.
— Tudo bem? — Bianca perguntou, deixando que um vinco de
preocupação surgisse em sua testa.
Sorri fraco, concordando.
— Sim, sim! — Bebi um gole da vodca e agradeci a queimação que ela
trouxe, aquilo me ajudava a manter a concentração. — O que houve?
Minha amiga sorriu, maliciosa. Ela se afastou o suficiente para que
alcançasse o sofá em frente a porta e se jogou nele, cruzando as pernas e me
fitando com curiosidade.
— Sou eu quem deveria perguntar, não? — Espreitou os olhos escuros
no meu rosto. — Afinal, não é todo dia que eu acordo às quatro horas da
manhã com Miguel Gama ligando para perguntar o paradeiro da herdeira de
seu império…
Ah, isso…
Estremeci, lembrando da quantidade de ligações perdidas que
encontrei no celular. A maioria vinha de Miguel. Ele passou a madrugada
inteira tentando me contatar e se eu conhecia meu pai, sabia que lidaria em
breve com a fúria de Miguel De Bazán Gama.
Poucas coisas tiravam meu pai dos trilhos, e a minha negligência com
a minha segurança era a principal.
Eu conseguia escutar seu discurso se repetindo por horas a fio.
— … não vou julgar a sua rebeldia de fugir da sua torre de marfim no
meio da madrugada, mas sabe… nós, pobres garotas rebeldes, pelo menos
avisamos a melhor amiga para onde estamos indo. Assim quando um pai liga
para saber do paradeiro, sabemos a mentira que vamos contar. — A voz de
Bianca me trouxe de volta e revirei os olhos, ignorando seu sarcasmo. —
Sabe como é difícil mentir para o seu pai?
Ri baixinho, balançando a cabeça.
— Você sabe que eu não sou mais criança, né?
— Eu sei, mas… o seu pai não liga muito para isso, ou liga?
Suspirei, balançando a cabeça negativamente.
Apesar de ter respondido às mensagens dele e ter explicado
superficialmente o que aconteceu, não obtive nenhum retorno por parte do
meu pai, o que só podia significar uma coisa: ele estava vindo me esquartejar
pessoalmente.
Miguel nunca me deixava no escuro, mas quando o fazia, era um
prenúncio bíblico do meu fim iminente.
Tinha consciência de que a preocupação do meu pai ia muito além dos
perigos de eu ser uma mulher “indefesa” andando sozinha pela cidade. O
fato de ser sua filha e única herdeira, era o motivo para que ele fosse um
ditador no que se referia a minha segurança.
Eu não era tão ingênua a ponto de acreditar que um homem poderoso e
influente como meu pai, não teria inimigos buscando por uma brecha para
atingi-lo.
Ninguém chegava onde ele chegou, sem colecionar desafetos. E se isso
não fosse suficiente, bastava adicionar a inveja e a ganância das pessoas na
lista e… o surto dele se tornava mais compreensível.
Então, eu me sentia culpada por ter sido imprudente na noite passada.
Não me arrependia de nada, mas sabia que teria que lidar com algumas
consequências.
Papai não iria me pegar pelo braço, arrastar para um avião e levar à
força de volta para Manhattan. Aquilo parou de acontecer quando me tornei
maior de idade, mas ele me daria um sermão monumental. Tinha certeza
disso, ou não me chamava Nathalia Gama.
— Você quer me contar sobre o que aconteceu? — perguntou Bianca,
assim que me sentei no sofá ao seu lado.
Ela parecia curiosa e estava buscando por uma brecha para me
interrogar desde que eu atravessei a entrada do escritório. Ao menos, ela
havia sido paciente e não fez isso na frente da Ananda.
Era uma evolução.
— Eu nem sei como começar a explicar — murmurei, bebendo outro
gole da bebida e torci os lábios, encarando-a com um meio sorriso bobo.
— Você transou, isso está bem claro — constatou, sem papas na
língua. — E transou muito bem, porque está andando até meio torto.
Arregalei os olhos, horrorizada.
— Não estou não!
— Claro que sim! Acha que eu não vi sua careta na hora de subir as
escadas? — perguntou, em meio a uma gargalhada alta.
Abri a boca para respondê-la, no entanto, me calei porque acabaria
mentindo.
Sim, eu estava dolorida em diversas partes do corpo. Mesmo depois de
toda a massagem de Renato e dos remédios para dor muscular, sentia como
se tivesse praticado tênis por uma semana, sem intervalos. Meus ossos
pareciam ter sido moídos, várias partes da minha pele ainda tinham
resquícios da quantidade de vezes que Renato me apertou, mordeu e
chupou… e merda, eu ainda conseguia sentir o vazio que ele deixou quando
saiu de dentro de mim.
Era normal nunca se cansar de uma pessoa?
Ele não era o meu primeiro parceiro sexual, entretanto, nunca
experimentei um frenesi como aquele. Não importava quantos orgasmos
Renato me dava, eu não demorava a precisar de mais.
Suspirei, sentindo as bochechas ruborizarem e virei para Bianca que
aguardava pacientemente pela explicação.
Pelos minutos que seguiram, compartilhei com a minha amiga tudo o
que havia acontecido desde a última vez em que conversamos na tarde
passada. A invasão de Fred e seu problema com a Cinthia. Como a minha
mente egoísta projetou isso na minha relação com o Renato. A sensação de
desolamento e angústia que me afligiu durante toda a noite e não me deixou
dormir, enquanto eu não fosse até ele para falar tudo o que sentia…
Bianca gargalhou, balançando a cabeça em descrença.
— Frederico Bellegard se tornando o responsável por unir de vez esse
casal… quem diria? — ela zombou. — Se o Leandro souber que alguém
roubou o cargo dele, vai fazer um drama…
Rolei os olhos, mas acabei rindo fraco.
— Ainda bem que é você quem terá que lidar com isso.
Bianca bufou, fingindo incômodo, mas não demorou a mudar de
assunto.
Era um hábito com o qual eu estava mais do que familiarizada, bastava
que eu fizesse qualquer menção a ela e ao Salazar, e minha amiga
rapidamente encontrava um jeito devolver a peteca para mim.
— Então, vocês estão namorando?
A careta que cobriu meu rosto arrancou uma risada dela. Não era como
se eu tivesse aversão a essa palavra, mas só não se encaixava ao que nós
tínhamos.
Renato era meu namorado?
Hm… isso me parecia muito simplista perto do que tínhamos.
— Algo assim. Tecnicamente, Renato já me apresentou para todos os
amigos como a esposa dele — brinquei, lembrando-me da mentira que
contou para a irmã de Guto, algumas semanas atrás.
Bianca deu risada.
— Isso combina mais com você.
Espreitei os olhos, confusa se era um elogio ou uma provocação e
Bianca sorriu, ciente da minha dúvida.
— Só não se esqueça de que eu sou a madrinha, tudo bem?
— Claro, você quer me levar ao altar também?
Bianca estalou a língua.
— Acho o mínimo, já que se casaram sem sequer me contar que
estavam noivos! — implicou, entrando na brincadeira. — Imagine como é
frustrante descobrir por uma fofoqueira que você nem conhece, que a sua
melhor amiga está casada com o chefe dela?
Por alguns segundos, esperei que a brincadeira me incomodasse ou
acabasse despertando o monstro que fazia morada na minha cabeça, mas ele
não surgiu. Nenhum pensamento zombeteiro ou depreciativo apareceu, na
verdade, aquilo até me arrancou uma risada.
— Para uma fofoqueira especialista, tenho certeza de que foi
desesperador — retruquei, vendo-a fingir mágoa.
— Foi uma traição como nenhuma outra!
— Dramática!
— Olhe só quem fala… — chiou, colocando uma almofada no colo e a
abraçando —, e como vai ser de agora em diante? Vocês vão se assumir?
Torci os lábios, sentindo a tranquilidade ir embora e a inquietação me
atingir como uma avalanche.
Não tínhamos chegado nessa parte da conversa, e eu tinha algumas
suspeitas de que estava na lista dos assuntos que ele pretendia conversar
comigo pela manhã, mas acabou adiando por causa da minha pequena crise
matinal.
— Não sei, eu…
Bianca acenou, compreensiva.
— Não tenha pressa. O que os outros não sabem, não tem chances de
estragar.
Aquiesci, bebendo o restante da vodca no meu copo, e soltei o suspiro
que ficou preso no meu peito.
— Sou uma pessoa horrível por querer manter isso em segredo por um
tempo? — questionei, sentindo a insegurança voltar a me incomodar.
Foi só falar que ela não havia aparecido, que o monstro em minha
cabeça começou a arranhar meu cérebro com suas garras afiadas, escalando
lentamente para alcançar a superfície e me levar de volta para onde eu tinha
acabado de sair.
Bianca afagou minha mão, espantando-o de volta para o lado obscuro
da minha cabeça e me deu um sorriso acolhedor.
— Claro que não. Você acabou de aceitar que está apaixonada pelo seu
chefe e está quebrando a sua maior regra. — Bianca olhou em meus olhos,
com uma calmaria incomum. — E ainda teve coragem para deixar seus
medos de lado, atravessar uma tempestade no meio da madrugada e ir gritar
para ele que estava apaixonada.
— Eu não gritei…
Bianca aproximou o indicador dos lábios, exigindo que eu me calasse.
— Shh… não estraga a cena que eu criei na minha cabeça! —
resmungou, brava. — Enfim, você deu um passo enorme, Nathalia. É a
primeira vez em anos que vejo você se colocando em uma posição
vulnerável, e apostando em algo que não tem certeza se vai dar certo —
refletiu, afagando minha mão com ternura. — Renato foi paciente por
semanas e deixou que você tomasse seu tempo para voltar para ele, tenho
certeza de que não vai se importar de esperar mais um pouco para escalar o
Empire State, bater no peito igual o King Kong e te anunciar como a fêmea
dele para o restante do mundo.
A gargalhada que escapou da minha garganta foi involuntária.
— Você é ridícula!
Ela estalou a língua.
— Sou realista… a propósito, Leandro e Marc perderam a aposta e
você me garantiu uma grana!
Franzi o cenho, confusa.
— Como assim?
Bianca chacoalhou os ombros.
— Nós apostamos sobre quem de vocês iria ceder primeiro — explicou
casualmente —, Leandro e Marc tinham certeza de que o Renato acabaria
desistindo de esperar por uma decisão sua, e faria algo mirabolante para te
conseguir de volta. — Arqueei a sobrancelha, incrédula que nossos amigos
conseguiam ser desocupados nesse nível. — E eu, tinha certeza de que você
acabaria sendo dramática e voltaria atrás de um jeito que só Nathalia Gama é
capaz de fazer. — Ela sorriu cínica. — Adivinha quem ganhou?
Por mais infantil que fosse, me dei ao direito de mostrar a língua para
ela.
— Você é ridícula!
— Sim, eu sou. Aprenda a encontrar outras formas de me ofender,
Barbie Malibu! — retrucou, levantando-se e dando a volta no sofá para sair
da minha sala. — Ah, não esqueça que vamos jantar naquele restaurante
peruano antes de irmos para o aeroporto!
Acenei, confirmando que me lembrava disso.
Infelizmente, o casamento de Eliane, uma das nossas sócias seniores
aconteceria amanhã e, a contragosto, precisaríamos estar na cerimônia. A
ideia de lidar com Guilherme depois do nosso último contato me causava um
buraco no estômago.
— Estarei lá!
Bianca piscou em resposta, despedindo-se para voltar para uma
reunião que teria com a equipe de marketing do escritório.
No fim do dia, saí da sala de reuniões do primeiro andar e acenei para
Gabriel, que estava de saída para ir para a faculdade.
O pregão daquele dia tinha sido relativamente tranquilo, levando em
consideração tudo que os sauditas causaram no mercado algumas semanas
atrás. A ajuda de Ananda e sua facilidade em se organizar na quantidade de
documentos que precisávamos despachar também havia sido uma benção, e
eu estava cogitando seriamente roubá-la de Renato.
Afinal, se ele fazia tanta questão que eu conseguisse uma secretária,
poderia me ceder a dele, certo?
Depois de dispensar a garota para que fosse descansar, aproveitei a
calmaria que predominou nos corredores daquele andar e me joguei na
poltrona da minha mesa, afundando as costas no estofado e permitindo que
meus olhos se fechassem por alguns minutos.
Eu estava exausta.
Foram quatro reuniões consecutivas, e uma maratona de exercícios
ininterruptos enquanto corria de um lado para o outro no escritório, mas
estava satisfeita com o resultado do dia. Era a primeira vez em meses que eu
conseguia aproveitar a quietude do fim do pregão.
Da minha mesa, eu podia ver a cidade lá embaixo se tornando caótica
como sempre. Os carros corriam de um lado para o outro na Avenida
Paulista, as pessoas andavam apressadas rumo à estação de metrô e a entrada
do shopping estava abarrotada de pessoas que entravam e saíam.
Normalmente, eu não conseguia me atentar a esses detalhes ao meu
redor, porque estava atarefada demais. E só naquele momento me dei conta
do quanto sentia falta de observar como as pessoas agiam, alheias à atenção
de desconhecidos.
Papai me ensinou que a melhor forma de aprender como lidar com
outras pessoas, era observando como se portavam em diferentes situações.
Assim, nós saberíamos como guiar qualquer negociação.
Eu costumava seguir esse seu conselho com mais afinco, mas acabei
perdendo esse hábito no meio da correria do dia a dia.
E como se o universo quisesse comprovar a minha teoria de que meus
descansos nunca duravam muito tempo, uma batida na porta preencheu o
silêncio agradável e antes que eu concedesse permissão para a entrada,
Frederico Bellegard a atravessou com um sorriso radiante.
— Que bom que você ainda está aqui! — Fred comemorou, fechando a
porta atrás de si e atravessando a sala para me alcançar.
Levantei-me a tempo de receber seu abraço apertado, que acabou me
arrancando uma risada baixa.
— Procurei você na sua sala, mas sua secretária disse que você tirou o
dia de folga — murmurei, afastando-me o suficiente para olhar seu rosto e
ser agraciada com seu sorriso largo. Ele parecia genuinamente feliz. —
Posso supor que conversou com a Cinthia e deu tudo certo?
Fred riu, quase infantilmente, e concordou.
Ele se afastou, dando a volta na minha mesa e se sentando na poltrona
de frente para mim, entrelaçando as mãos sobre o colo e me olhando com as
íris lacrimosas.
— Sim! Você estava certa, o convite foi uma chance para que eu fosse
atrás dela — disse, eufórico. — Nós conversamos por horas, sobre nossos
planos e inseguranças. Eu expus meu coração para ela, Nathalia! — Ele
gesticulou com as mãos, dando ênfase para cada frase. — Ela ainda me ama,
você consegue acreditar nisso?
Sorri, realmente contente em saber que as coisas tinham dado certo
entre Cinthia e ele. Na confusão que me atingiu mais cedo, eu só consegui
me lembrar dele no meio de uma reunião, quando meu cliente o citou
durante a conversa.
Quando consegui uma brecha para ir atrás dele, soube que não tinha
vindo trabalhar e cogitei o pior. A sua falta de resposta às minhas mensagens
também não ajudou a impedir que pensamentos negativos me atingissem, e
se não fosse o trabalho incessante, eu acabaria entrando em parafusos.
Todos decidiram me ignorar naquela tarde.
Fred não me respondeu, mas ao menos apareceu aqui.
E papai?
Ou Antônio?
E até minha mãe?
Meu aniversário seria em dois dias, e nenhum deles havia dado
qualquer sinal de que pretendiam vir passar o dia comigo, e eu me recusava
a acreditar que eles tinham esquecido.
Nos minutos que seguiram, escutei atentamente enquanto Fred me
contava com uma riqueza exagerada de detalhes tudo o que aconteceu na
noite passada. Ele me via como uma espécie de diário humano, e nunca me
poupava de nada.
Era uma benção e uma desgraça, na mesma proporção.
— Enfim, mas e você? — perguntou Fred, depois que terminou de
contar tudo. — Você voltou para as aulas de yoga, não foi? Está na sua cara
que sim!
Ah, não!
Pigarreei, tentando desconversar.
— E como ficou o cara com quem ela ia se casar? — investiguei,
vendo-o fazer uma careta.
— Não sei, Cinthia vai conversar com ele.
Acenei, vendo que Fred parecia tranquilo com isso.
— Mas e você? Não mude de assunto!
Sorri, às vezes, me questionava se ele realmente não tinha dimensão
das coisas que aconteciam ao seu redor, ou se apenas fingia.
— Não sou o foco do assunto.
— Você sempre é o foco do assunto para mim — retrucou Fred,
olhando-me com carinho e isso me arrancou outro sorriso. — Sabe que eu
me importo com a sua felicidade, não sabe?
— Claro, e eu também me importo com a sua.
Fred colocou as mãos sobre a minha mesa e as uniu, endireitando os
ombros.
— Eu sei que sim… você sabia que, dois anos atrás, ninguém me dava
a menor consideração? — questionou, uma expressão menos divertida
cobrindo seu rosto. — Sempre fui um zé ninguém aqui dentro, os outros
sócios faziam piadas sobre mim e a Roberta claramente só me aguentava por
conta do meu portfólio. Eu estava pensando em me aposentar.
Um vinco preencheu minha testa e eu pisquei, surpresa com aquela
confissão.
— Você foi a primeira pessoa que me olhou como se eu fosse alguém
digno da sua atenção. A única que nunca julgou as minhas peculiaridades, e
que ofereceu o seu tempo para escutar meus devaneios. — Fred capturou a
minha mão sobre a mesa e acariciou com doçura, esboçando um meio
sorriso. — Fico feliz em saber que em todo esse tempo, o mercado ainda não
tenha escurecido esse seu lado — prosseguiu, mirando meus olhos, sem
piscar —, e é por isso que eu me importo com o seu bem-estar. Seja lá o que
você estiver fazendo com a sua vida, se está feliz com isso, não permita que
esse escritório fique no caminho, tudo bem?
Engoli em seco, sentindo os ombros enrijecerem ao processar as suas
palavras.
Ele sabe?
— Se posso te dar um conselho depois de todo esse tempo… eu diria
que você não deve sacrificar a sua felicidade por nada. — Fred sorriu,
cúmplice. — Carreira nenhuma vai valer à pena, se no meio do caminho,
você precisar abrir mão da sua vida.
Pisquei, tentado espantar a queimação em meus olhos, desencadeadas
pelas suas palavras.
— Isso tudo é só para me convencer a voltar a praticar yoga? —
brinquei e Fred sorriu, travesso.
— Claro, claro… tudo pelo yoga.
Ele sabe.
A constatação me atingiu em cheio e me surpreendi por não ter sido
nocauteada pelo pânico. Assim como quando Roberta anunciou que sabia e
eu não senti nada. A diferença era que Fred estava falando indiretamente, e a
Faroni usou isso para me acusar de usar para conseguir o cargo.
— Há quanto tempo você sabe? — investiguei, receosa.
Fred sorriu outra vez, tranquilo.
— Sei de quê? — ele se fez de desentendido, e como se estivesse
ciente de que era a pauta da conversa, minha porta foi aberta e Renato
passou por ela, despreocupado. — Ah, olhe só, Renatinho!
O homem hesitou na porta, tomando consciência da presença do nosso
sócio e correu seu olhar para mim, tentando encontrar uma receita pronta
sobre como deveria agir.
No entanto, nem eu sabia como lidar com a descoberta de que
Frederico tinha conhecimento do nosso envolvimento.
— Fred, boa noite! — Renato saudou, simpático como sempre.
Bellegard aproveitou a deixa para se levantar, olhando-me de relance e
dando uma piscadela esperta.
— Vou deixá-los a sós para praticarem yoga.
— Frederico! — Ralhei, horrorizada.
Entretanto, ele já havia saído da minha sala.
Renato olhou na direção que o homem baixinho havia saído e, em
seguida, voltou para mim. O mesmo vinco que eu tinha na testa, estava na
dele.
— Frederico sabe? — indagou, cauteloso.
Suspirei, vendo-o fechar a porta e acenei, levantando-me e o
acompanhando se aproximar calmamente da minha mesa.
— Ele sabe — confirmei.
Renato meneou a cabeça, imperturbável. Isso não o incomodava
nenhum pouco, ele havia dito para a mãe e os amigos dele que eu era a sua
esposa, com poucos dias que nos conhecíamos… o que era um sócio ou outro
saber do nosso relacionamento?
O problema era eu e estava consciente disso.
No que dependesse de Renato, todos estariam sabendo que estávamos
juntos. Percebi isso quando ele não fez a menor questão de se afastar de mim
quando chegamos no prédio, e a única coisa que o impediu de entrar comigo;
foi meu pedido para que eu entrasse primeiro.
— E como estamos por aqui? — ele perguntou, parando na minha
frente e recostei o quadril na quina da minha mesa, espalmando as mãos na
madeira e erguendo o rosto para fitá-lo.
Outro suspiro tolo escapou dos meus lábios.
Algum dia eu me acostumaria com a sua beleza, e com a intensidade
que o seu olhar transmitia quando me olhava?
Acho que não.
O efeito que ele tinha sobre o meu corpo não era desse mundo.
— Estamos bem — tranquilizei, arrastando a mão em seu peito e
subindo lentamente, alcançando a gola da sua camisa branca e arranhando
sua pele.
Seus dedos não demoraram a esmagar minha carne e ele quebrou a
distância entre nós, aproximando seu rosto do meu, o suficiente para que sua
respiração colidisse com a minha.
— Estamos? — averiguou, ainda incerto sobre a minha resposta.
Eu não o julgava, havia dito durante nossa estadia em Ilhabela que
ficaria e no menor problema, dei meia volta e mudei de ideia.
O que garantia que não repetiria o ciclo?
Meu coração bateu fora de ritmo e meus dedos mergulharam nos fios
curtos do seu cabelo, apertando-os e o trazendo para perto. Meu corpo se
moveu em sua direção, sentindo falta do seu peso sobre mim.
Rocei os lábios nos seus, sentindo a boca formigar com o contato breve
e me equilibrei na ponta dos pés, deixando que o seu braço enlaçasse meu
corpo e a mão que antes esmagava minha cintura, mergulhasse em meu
cabelo, segurando-o com uma brutalidade bem-vinda.
Um arquejo escapou do fundo da minha garganta, e meus lábios se
curvaram em um sorriso bobo.
— Tudo perfeitamente bem — sussurrei, antes que seus lábios
investissem contra os meus com o mesmo desejo que queimava em minhas
veias.
A última vez em que estive no Rio, havia sido a trabalho e apesar de
não ter qualquer reunião planejada durante a minha estadia, não sentia que
aquele era um simples passeio na cidade maravilhosa.
Estava bem longe disso.
Também não podia dizer que estava ali de boa vontade, uma vez que o
único motivo para que estivesse apreciando a movimentação no calçadão
carioca, era devido à coação de Guilherme.
Afinal, era isso o que o convite que nos entregou semanas atrás
parecia: uma imposição.
Ele nos queria na cidade para presenciar o casamento de uma sócia
que sequer conhecíamos, e fez questão de relembrar que a presença de
magnatas da mídia exigia a nossa participação para o teatro orquestrado.
Eu detestava ser obrigada a fazer coisas que não queria.
Principalmente, quando isso exigia fingimento da minha parte.
Não era incomum que não conhecêssemos outros sócios-seniores, a
fusão envolvia dois escritórios enormes com filiais em outras cidades, e a
única chance de precisarmos realmente interagir com eles, era durante uma
reunião de conselho; que só acontecia em casos extraordinários que
careciam de uma votação.
Eliane era uma desconhecida para mim e até mesmo para Renato e
Leandro e, por isso, era esquisito que ela fizesse tanta questão da nossa
presença naquela cerimônia.
Um casamento deveria ser uma celebração exclusiva para amigos e
família, não?
Eu sabia que algumas pessoas preferiam usar aquele momento como
uma forma de mostrar seu dinheiro e influência, mas valia à pena fazer isso
para pessoas que sequer os conheciam?
Suspirei, sentindo os dedos de Renato apertarem carinhosamente os
meus e desviei os olhos da janela, encontrando seu olhar compenetrado em
meu rosto. Era engraçado como ele parecia estar esperando pela explosão
de uma bomba que viria a qualquer instante, e eu não o julgava por isso. Às
vezes, minha impulsividade me transformava em algo similar.
— Você quer dar uma volta pela cidade antes da cerimônia? —
perguntou, sem parar de girar o polegar no dorso da minha mão,
proporcionando um acalento bem-vindo.
— Podemos ficar pela praia… o que acha? — ofereci, concluindo que
não estava com disposição para me distanciar muito do hotel, afinal, o
casamento começaria no fim da tarde e o trânsito do Rio era um tanto
disfuncional.
Foi justamente por esse motivo que decidimos passar a noite em um
dos hotéis do meu avô na cidade, ao invés de ir para a casa do Renato na
serra carioca.
Por ironia do destino, o evento aconteceria na área externa do Marine
Season e bastou que Bianca anunciasse ao gerente de reservas que a neta da
Elias Gama estava vindo para a cidade, que magicamente eles conseguiram
disponibilizar duas suítes — mesmo que o hotel inteiro estivesse reservado
para a família dos noivos.
— Como você quiser — disse ele, solícito. Seu olhar ainda estava
esquadrinhando o meu rosto, intrigado. — Você está bem?
Bati os cílios, lentamente, tentando identificar o motivo para a sua
pergunta e acabei me dando conta de que estava calada há algum tempo.
Isso me arrancou um sorriso divertido porque aquele era, provavelmente, o
maior tempo em que passei ao lado dele sem falar sobre alguma coisa.
Era assim que nossa dinâmica funcionava desde que nos conhecemos.
Eu era a parte falante do relacionamento; Renato era a ouvinte. A minha
quietude era uma coisa inédita para ele.
Acenei, aproximando mais o corpo do seu e deixando que seu braço
envolvesse meus ombros, quebrando de vez a distância entre nós.
Como estávamos fora de São Paulo, Renato não estava dirigindo. Seu
segurança, Marcus, que normalmente apenas o seguia pela cidade em um
carro à parte, guiava a SUV pela Avenida Atlântica e ficaria conosco
durante a nossa estadia na cidade.
E apesar de não ter respondido às minhas mensagens, meu pai havia
falado com Renato mais cedo e concedeu a ele a confiança de zelar pela
minha segurança na cidade.
A verdade era que, se eu conhecia bem o meu pai, o único motivo
para que tivesse feito isso, era porque passaria as próximas quarenta e oito
horas acabando com a raça do chefe de segurança designado a cuidar de
mim.
Papai o mataria se soubesse que Alisson também aceitava pagamentos
por fora, apenas para não me seguir em alguns momentos e, mentalmente,
torci para que ele não acabasse dando com a língua nos dentes.
Não fazia por mal ou por rebeldia.
O problema era que às vezes aquela redoma de proteção se tornava
sufocante e eu precisava de algumas horas de liberdade. Todos os meus
carros eram blindados, com rastreadores modernos e eu só arriscava em
trajetos que estava familiarizada: de casa para o escritório, do escritório
para o prédio da faculdade; da faculdade para casa e de casa para o clube.
Isso podia ser chamado de liberdade?
Tinha certeza que não, mas papai nunca entenderia isso e era por esse
motivo que eu contava com a discrição de Alisson e sua equipe.
— Estou me sentindo mal por não ter visto os meninos antes de irmos
para o aeroporto — respondi, lembrando-me que Renato havia recusado
meu pedido para passarmos na casa dos seus pais para ver Matheus e Igor.
Era esquisito? Um pouco.
Ele sorriu, como se soubesse o que eu estava pensando e aproximou o
rosto do meu, deixando um beijo demorado em minha têmpora esquerda.
— Perderíamos o voo, anjo.
Torci os lábios, sem acreditar na sua desculpa.
Como poderíamos perder o voo em um avião particular que estava a
nossa espera?
Arqueei a sobrancelha, nenhum pouco convencida disso e não fiz
questão de esconder. Renato, no entanto, apenas sorriu e desviou a sua
atenção para Marcus, que aproveitou aquela brecha para compartilhar que o
caseiro havia informado que a casa já estava pronta para nos receber
amanhã.
Eu tinha perdido a conta de quantas vezes vim ao Rio, à trabalho e
turismo, Renato e Leandro também, logo não sentimos necessidade de
passar o restante do fim de semana na cidade. Foi por isso que o Salazar
sugeriu que ficássemos na propriedade do meu falso esposo.
Bianca que odiava ficar em meio a natureza, adorou a ideia e quase
implorou de joelhos para que eu aceitasse, o que tornou a minha ideia de
voltar para São Paulo após a cerimônia, um tanto egoísta.
A verdade era que eu estava sentindo falta de ver dois pares de olhos
verdes, de apertá-los em um abraço e de escutá-los me contar sobre como
havia sido o seu dia.
Eu não sabia como aqueles dois garotos conseguiram se impregnar na
minha vida com tanta intensidade, a ponto de me fazer sentir falta de vê-los.
Não fazia tanto tempo desde a última vez que os vi. Menos de quarenta e
oito horas para ser mais exata. Mas parecia uma eternidade.
E quando eu me lembrava da conversa com Roberta e de como ela me
acusou de usar os garotos para me aproximar do pai deles, assim como
Pedro havia feito, sentia ainda mais necessidade de estar perto deles para
que soubessem que aquilo não era verdade.
Eu os amava tanto que a mera ideia de que as pessoas vissem aquilo
como algo ruim, acabava comigo.
Depois que a equipe do hotel nos acomodou em duas suítes
executivas, e pediram milhões de desculpas pela presidencial estar
reservada para a noiva, finalmente pude ficar a sós com Renato.
Ou ao menos achei que seria o que aconteceria, mas ele caminhou
para a varanda do quarto e não saiu de lá por cerca de vinte minutos,
ocupado demais com uma ligação.
Aproveitei para colocar algumas pendências em ordem, confirmar
reuniões ao longo da próxima semana e responder às mensagens de alguns
amigos.
Olivia Montenegro:
A vida na fazenda tem sido… uma merda.
Meu pai age como se eu fosse a decepção da família e minha mãe mal
consegue olhar para mim sem chorar.
Sinto que voltei a ter quinze anos
Ler a mensagem de Olívia me trouxe melancolia e precisei levar
alguns minutos para encontrar a melhor forma de a consolar. O que
aconteceu com Liv havia sido cruel de inúmeras formas, mas a sua família
tratá-la mal por conta disso, era ainda pior.
Eu sabia que Alberto e Magnólia Montenegro eram conservadores e
extremamente rígidos com a reputação da família, mas antagonizar a
própria filha era realmente necessário?
Nathalia Gama:
Sinto muito por tudo, Liv
Por que não volta para a cidade?
Eu tenho uma proposta de trabalho para você.
Como era madrugada, duvidava muito que ela me responderia, então
aproveitei para buscar por outras conversas um pouco mais urgentes e
interessantes.
Entre escutar os áudios do meu avô, as novidades sobre um produto
que minha abuelita estava trabalhando há meses, e uma sessão rápida de
atualizações sobre o avanço no relacionamento da minha mãe com o tal
Sebastian, acabei retornando para a ausência de resposta do meu pai.
Miguel nunca me dava gelo, e aquilo estava realmente me
incomodando.
Ergui os olhos para a varanda, vendo que Renato ainda estava
ocupado com a sua ligação de trabalho e aproveitei para discar um número,
que não demorou a me atender.
— Bebê. — A voz de Antônio soou arrastada e uma música eletrônica
tocava ao fundo, abafada. — O que houve?
Sorri, achando graça na pergunta. Antônio e eu conversávamos todos
os dias, na maioria das vezes por mensagem, e eu raramente fazia ligações,
a não ser quando precisava de socorro.
— Meu pai está me dando gelo — informei, sentindo a voz embargar
involuntariamente.
Odiava ser deixada no escuro e era uma atitude incomum vindo de
Miguel.
— Bom, você não facilitou as coisas para ele nas últimas horas, bebê
— disse, despreocupado. — Deixe que o professor se acalme, e quando
estiver pronto falará com você.
— Isso não é justificativa para ele me deixar falando sozinha!
Antônio riu, sarcástico.
— Querida, você tem sorte dele não ter mandado o Vagner invadir o
apartamento do Renato no meio da madrugada. Inclusive, agradeça ao seu
namorado por isso.
— Como assim?
— Basicamente, você ainda está em solo brasileiro porque seu
namorado foi mais responsável que você, e fez questão de informar ao
professor que a filha maluca estava com ele, em segurança.
Antônio compartilhou a informação, e apesar de não ter me passado
despercebido a maneira como o termo “namorado” foi dito com desdém, a
ideia de que Renato conversou com o meu pai em algum momento da
madrugada passada se tornou o foco da minha atenção.
— Renato falou com o meu pai? — gritei em um sussurro, chocada
demais com aquilo. — Desde quanto eles conversam?
Eu pensei que a primeira vez que conversaram por telefone tivesse
sido mais cedo, antes de sairmos do restaurante peruano.
Sturzenecker riu.
— Bom, há semanas, que eu saiba. Sabe que Miguel é neurótico
quando se trata de quem se aproxima da filhinha dele, e não foi difícil para
o Ethan descobrir o número do Trevisan — prosseguiu, como se estivesse
me contando a previsão do dia seguinte. — Pense pelo lado positivo, o
papai aprova seu relacionamento.
Bufei, irritada com o sarcasmo explícito em cada palavra que ele
proferiu.
— Pare de ser condescendente comigo!
— Então, pare de agir como uma mimada. Você foi inconsequente, e
o silêncio de Miguel é uma consequência dos seus atos — retrucou, rude.
— Pense duas vezes antes de repetir isso. Você tem ideia da situação que
submeteu o seu pai?
Antônio era o meu melhor amigo e a primeira pessoa que eu pensava
quando precisava de ajuda e conselhos, mas ele se tornava um porre quando
se tratava de defender as atitudes do meu pai.
— Vocês precisam parar de agir como se eu fosse uma boneca que
pode quebrar se for manuseada do jeito errado, sabia? — A frustração
estava começando a se entranhar no meu peito, e a sensação de estar
sufocando retornou. — Eu não sou uma criança e tenho o direito de sair
sem precisar dar satisfações.
— Não, você não tem, porra! — Antônio rebateu, áspero. — Um mês
atrás seu pai estava em Riade, participando de uma conferência para lidar
com o problema do petróleo saudita, você se esqueceu do que aconteceu na
última vez em que ele se envolveu em uma situação dessas?
A culpa me atingiu como um tapa certeiro.
As lágrimas se acumularam em meus olhos, queimando minha visão e
pisquei, deixando que algumas rolassem para aliviar a ardência.
Eu ainda me lembrava do desespero da minha mãe quando nosso
segurança informou que estávamos sendo seguidos. Papai havia ido para
Moscou à negócios, mas alguma coisa aconteceu e nos tornamos alvos de
perseguição em uma tentativa frustrada de sequestro.
A ideia de que meu pai cogitou que algo assim tivesse acontecido de
novo, me fez sentir uma estúpida inconsequente. Eu realmente merecia
estar sendo tratada daquele jeito pelo meu melhor amigo.
Meu silêncio fez com que Antônio soltasse o ar pesadamente, como se
tivesse percebido que pesou demais nas suas palavras.
— Deixe isso para lá, bebê. — Seu tom voltou ao normal, ainda
carregado de acidez, mas não de uma forma agressiva. — Miguel não
consegue ficar tanto tempo te ignorando, daqui a pouco ele vai retornar
suas mensagens.
Enxuguei algumas lágrimas teimosas que rolaram e, ao erguer o olhar
novamente, encontrei as íris escuras de Renato me fitando através das
portas de vidro fechadas. Seu rosto estava tomado pela preocupação e ele
murmurou algo para a pessoa do outro lado da linha, encerrando a chamada
e caminhando em minha direção.
— Tudo bem… só diga para ele que eu não fiz de propósito — pedi,
com a voz embargada devido ao choro. — Você vem para o Brasil essa
semana?
Antônio ficou em silêncio e acompanhei enquanto Renato atravessava
o quarto, quebrando a distância entre nós com poucos passos.
Em um piscar de olhos, meu corpo abandonou o sofá e ele me colocou
sentada em seu colo, aguardando enquanto esperava uma resposta do meu
melhor amigo.
— Antônio? — Insisti, diante da falta de resposta.
— Desculpe. Não vou conseguir ir, tenho alguns compromissos nessa
semana e não vou poder sair de Manhattan até a próxima sexta-feira —
anunciou, enfiando uma faca no meu peito.
Talvez fosse egoísmo da minha parte, mas nunca passei um
aniversário sem ele do meu lado. Antônio compartilhava aquele dia comigo
desde que nasci, independentemente de onde estivesse, sempre dava um
jeito de ir ao meu encontro.
— Tudo bem — murmurei, engolindo a chateação.
Não era justo que eu pedisse que cancelasse seus compromissos por
causa do meu aniversário.
— Sinto muito.
— Tudo bem — repeti, forçando a minha voz a sair um pouco mais
tranquila. — Você me compensa depois.
Ele riu, baixo e de um jeito esquisito.
— Claro, agora, se não se importa… — um grito feminino e
embriagado soou perto dele, lembrando-me estava em uma festa antes da
minha ligação. — Aaron e Astrid estão esperando por mim.
Ah, era esse tipo de festa.
Fiz uma careta que atraiu a curiosidade de Renato.
— Por favor, não engravide ninguém.
Eu não podia ver o seu rosto, mas tinha certeza de que Antônio havia
torcido os lábios.
— Luke é o suficiente.
Sorri.
— Mande um beijo para o meu afilhado — falei, antes de desligar a
chamada e virar o rosto para o homem que espalhava carícias em minha
coxa desnuda. — Você conversou com o meu pai antes do restaurante?
— Hoje? Brevemente.
Espreitei os olhos, deixando que sua mão afagasse meu rosto e que
seu polegar enxugasse as lágrimas teimosas que ainda rolavam.
— Não estou falando só sobre hoje… — franzi o cenho, ainda zonza
com aquela informação —, há quanto tempo você e o meu pai estão
conversando?
Renato inclinou a cabeça para o lado, parecendo se divertir com o
meu questionamento.
— Algumas semanas — disse, sem me dar qualquer informação
adicional. — Isso te incomoda?
Sua preocupação me arrancou uma risada baixa e balancei a cabeça,
descrente da situação que Miguel Gama me submeteu.
Meus braços envolveram os ombros de Renato e me ajustei em seu
colo, deixando um joelho de cada lado e soltando um suspiro fraco. Seus
dedos afundaram em minha cintura firmemente, restringindo qualquer
tentativa de me afastar. Não que eu tivesse a intenção disso.
— Não, mas estou um pouco envergonhada agora… — confessei,
esboçando um sorriso de desculpas. — Eu tenho alguma ideia do que
Miguel pode ter dito e…
Renato riu, achando graça do meu constrangimento. Minhas
bochechas esquentaram e afundei o rosto em seu pescoço, sentindo-me uma
adolescente outra vez.
— Não tem pelo que se sentir constrangida, anjo — tranquilizou, seus
dedos suavizaram o aperto em minha cintura e ele deixou que passeassem
em minhas costas, adentrando o tecido da camisa que eu estava usando. —
Miguel está certo em se preocupar com quem se aproxima de você.
— Se preocupar? Sim. Passar por cima de mim e ameaçar você?
Definitivamente, não.
Ele ergueu a sobrancelha, esboçando um sorriso divertido e me
afastei, olhando em seu rosto bonito.
— Por que você acha que ele me ameaçou?
Bufei, apertando os dedos em sua nuca e endireitando os ombros.
— Conheço o pai que eu tenho, Renato. — Foi tudo o que disse,
porque se eu fosse listar todas as insanidades que Miguel já foi capaz de
fazer, passaria as próximas duas semanas falando. — Sinto muito por isso.
Ele relaxou os ombros, deixando a tensão que o acompanhava desde
que me encontrou na minha sala com Fred de lado. Renato afundou as
costas largas no encosto do sofá e aproveitei aquilo para desabotoar sua
camisa, sem pressa.
— Eu não me importo com as ameaças do seu pai, diabinha — falou,
baixo e sereno.
No entanto, o apelido dito de forma arrastada causou um arrepio
involuntário que perpassou pelo meu corpo, alojando-se no ponto entre as
minhas coxas. E como se soubesse o efeito que aquela palavra causava, ele
intensificou seu aperto em minha carne, aquecendo a pele como brasa
acesa.
— Não existe nada que ele possa dizer que me fará abrir mão do meu
pedaço de paraíso na Terra. — Sorriu, realmente achando graça daquilo e a
forma como seus lábios se inclinaram… era quase diabólica.
Suspirei, inclinando o corpo em sua direção.
— Hm… é mesmo? — indaguei, roçando os lábios nos seus e uma
mão alcançou minha nuca, emaranhando-se entre os fios e enviando uma
corrente elétrica direto para o ponto do meu corpo que incendiava sempre
que ele fazia isso.
Não sabia explicar a sensação, mas aquele mero aperto era capaz de
atear fogo em cada célula no meu organismo, e eu me tornava refém da sua
dominação.
Como um simples toque podia me deixar tão suscetível?
Renato aumentou o aperto nos fios, fazendo pressão e um gemido
baixinho escapou do fundo da minha garganta; aquele arrepio se alastrou
em minha coluna e minhas paredes se apertaram buscando pelo
preenchimento que apenas ele proporcionava.
— A única maneira disso acontecer, é se eu não estiver mais
respirando, pequena diaba. — Sua outra mão invadiu a minha saia,
arrastando os dedos em direção a calcinha que já estava sofrendo as
consequências do seu toque. — Maldito seja o desgraçado que ousar tentar
tirar você de mim… — sua voz se tornou mais grave, ameaçadora, mas meu
cérebro parecia ter sido intoxicado e tudo o que eu me concentrava, era no
percurso que seus dedos estavam fazendo. — Fui claro quando disse que
não teria volta.
Minha mente foi envolvida por uma névoa densa e um gemido
estrangulado escapou do fundo da minha garganta quando Renato me
invadiu com três dedos de uma única vez.
Minhas unhas afundaram em sua pele e meu quadril ondulou sobre
ele. Deus do céu. Aquilo era tão bom que chegava a ser de outro mundo.
Não tive tempo de processar o que havia acontecido, porque assim
que virei o rosto na sua direção, Renato colou nossas bocas e sua língua me
invadiu, dominando cada célula presente em meu corpo.
Em resposta, lancei-me sobre ele e tentei ao máximo retribuir a sua
intensidade, mas parecia uma batalha perdida e eu não passava de uma tola
por acreditar que poderia duelar pelo controle.
Ele o roubava de mim em um piscar de olhos, e não descansava
enquanto eu não estivesse me contorcendo e implorando por um intervalo,
porque sentia que meu cérebro se desligaria caso fizesse o contrário.
E esses intervalos nunca duravam tanto, porque logo ele estava
preenchendo aquele vazio e me empurrando para a beira do precipício que
me levava direto para um lugar etéreo na minha mente, onde meu corpo
flutuava em um tempo e espaço completamente diferente da realidade, e
tudo o que importava eram os espasmos que atravessavam meu corpo.
Outro gemido escapou do fundo da minha garganta e pisquei, zonza.
Renato aproveitou o decote generoso da minha camisa de linho para
libertar o seio esquerdo do aperto do sutiã, e não perdeu tempo em
abocanhá-lo; chupando, mordiscando, sugando…
Minha boceta apertou em volta dos seus dedos, o calor se alastrou
pelo meu corpo. Seu nome escapou dos meus lábios repetidamente,
acompanhado de alguns palavrões conforme as investidas dos seus dedos se
tornavam mais fortes e rápidas.
Meu corpo ganhou vida e meu quadril avançou contra ele, cavalgando
e fodendo com seus dedos como se minha vida dependesse daquilo. E
talvez, realmente dependesse porque eu me sentia a um fio de perder a
cabeça.
— Consegue sentir como a sua boceta engole os meus dedos e o seu
corpo implora por mais? — Renato sussurrou em meu ouvido, sombrio e
possessivo, causando um dano grave em meu cérebro. — Você nasceu para
ser fodida por mim, diabinha. Que tipo de filho da puta eu seria se ousasse
abrir mão disso?
Engasguei-me com o gemido que quase escapou.
Ele sorriu contra a curva do meu pescoço, espalhando beijos e
mordidas que deixariam marca por alguns dias. Meus dedos massacraram o
seu cabelo, puxando-o com uma força desenfreada.
Minha saia se transformou em um amontoado embolado na cintura,
minha blusa perdeu alguns botões e eu estava totalmente descabelada, mas
nada daquilo importou quando ele enrolou meus fios em seu pulso e os
puxou, brutalmente, e engoliu o seu nome que estava dançando na ponta da
minha língua.
A pressão no meu interior se tornou insuportável, o quarto havia sido
preenchido pelo som da minha excitação e dos seus dedos batendo forte
dentro de mim; e aquela névoa me envolveu completamente, levando-me
para outra dimensão quando o orgasmo me atravessou.
Renato mordiscou meu lábio inferior, impedindo que eu mesma
infligisse minha descompensação nele e meus ossos trêmulos foram de
encontro ao estofado do sofá. Ele me abandonou e se afastou, mas não por
muito tempo.
Ele nunca ficava longe por mais que alguns minutos.
Com a visão embaçada devido as lágrimas involuntárias, tentei
sustentar o tronco nos cotovelos para seguir seus movimentos, mas tudo o
que consegui acompanhar foi a sombra da camisa de Renato sendo
arremessada para longe, antes que ele afastasse minhas pernas e
mergulhasse o rosto ali, me devorando como se eu fosse a sua refeição
preferida.
Abri os olhos lentamente, sentindo a ausência do calor de Renato ao
meu lado e da forma como sempre me aprisionava em seus braços, como se
eu pudesse tentar fugir no meio da madrugada.
Rolei na cama, buscando pelo homem que deveria estar ao meu lado,
mas não havia nenhum sinal da sua presença. A frustração me atingiu em
cheio e aquilo era culpa dele.
Renato estava me deixando mal-acostumada com a ideia de acordar
com ele.
Empurrei o lençol que me cobria para longe e me sentei na cama,
olhando ao redor e constatando que ele realmente não estava no quarto. A
ausência do barulho da água corrente no chuveiro, deixava claro que
também não estava ali. A porta que levava para a antessala da suíte, no
entanto, atraiu minha atenção. Principalmente, quando a risada de Leandro
ecoou do outro lado, seguido por um resmungo dolorido e um palavrão.
— Para de me agredir, eremita! — Salazar reclamou, num tom um
pouco mais baixo que a sua risada. — Você deveria me defender dele, ao
invés de ficar rindo, neném!
Franzi o cenho.
Bianca e Leandro estavam aqui?
A ausência de Renato agora fazia mais sentido.
Sem pressa, saí da cama e caminhei para o banheiro, onde tomei uma
ducha quente. O sol atravessava as janelas enormes e meu olhar vagou pela
imensidão azul exposta através do vidro.
Nossa suíte proporcionava uma visão limpa da praia do Leblon e
apesar da área do chuveiro ser exposta e envidraçada, mesmo que um drone
sobrevoasse por ali, não seria capaz de ver o que acontecia por trás dos
vidros.
Logo, tomar banho com aquela vista era terapêutico.
Meus movimentos seguintes foram mecânicos. Minha mente ainda
estava fazendo as primeiras sinapses do dia e eu não tinha a intenção de
acelerar aquele processo, a calmaria matutina era uma benção pouco
rotineira na minha vida.
Depois de seguir todo o meu cronograma matinal, voltei para o quarto
e vasculhei entre as peças perfeitamente alinhadas no closet. Enquanto
estávamos no bar do hotel esperando a liberação para subir, a equipe
organizou nossas coisas. Eu não tinha trazido muita bagagem, a maior mala
havia ido direto para a casa de Renato, mas olhando agora, parecia uma
quantidade exagerada de coisas para quem só tinha a intenção de passar
uma noite e se preparar para um casamento.
Como eu não estava empolgada para o evento, acabei pegando dois
vestidos que moravam no meu closet há meses e nunca tive a chance de
usá-los, ambos eram de uma coleção exclusiva da LaRive e Madame
LeBlanc fez questão que eu tivesse uma de suas peças, provavelmente, na
expectativa de que aquilo me fizesse voltar para Manhattan e participar do
baile anual.
O bilhete de Valentina Müller[39] era outro lembrete de que, apesar de
ter me acostumado muito com a rotina na capital paulistana, quase toda a
minha vida estava na cidade em que nasci e vivi por anos. E a melhor amiga
da minha mãe não cansava de dizer o quanto sentia a minha falta nos
projetos filantrópicos que organizava compulsivamente.
Pensar em Valentina e Nova Iorque, trazia a lembrança de que o
resultado para o estágio da Bentley & Hathaway estava previsto para sair
em algumas semanas. Com a correria no escritório, a relação confusa com
Renato, os problemas que surgiram com Roberta e Guilherme, a preparação
da minha monografia e todo o restante, eu quase havia me esquecido desse
detalhe.
Era um milagre que o Prof. Becker também não estivesse me
lembrando disso a cada dez minutos.
Balancei a cabeça, espantando aquela parte neurótica da minha mente
antes que começasse a me concentrar demais nisso, e me vesti rapidamente.
Optando por colocar um minivestido branco por cima do biquíni azul
marinho.
Devidamente vestida, alcancei a antessala e três pares de olhares se
voltaram em minha direção. Era cedo, não passava de nove da manhã, mas
o trio suspeito parecia estar acordado há horas.
— Isso é uma espécie de clube secreto que eu não fui convidada para
participar? — indaguei, cruzando os braços em frente ao corpo e Renato
sorriu, abandonando o iPad sobre a mesa e capturou meu pulso, puxandome para me sentar no seu colo, já que as outras duas cadeiras estavam
ocupadas pelos nossos amigos.
— Não me diga que está com ciúmes… — Bianca espreitou os olhos,
cheia de sarcasmo.
Torci os lábios, sentindo os lábios de Renato em minha têmpora e
soltei um suspiro.
— Eu estou. Vocês estão tramando alguma coisa e estão me deixando
de fora… não gosto de me sentir excluída — falei, usando todo o meu
talento para as artes dramáticas —, sabia que eu sofri bullying na
adolescência? — questionei, virando o rosto para Renato.
Ele espreitou os olhos, duvidando do que eu falei.
— Foi, é? E ainda assim, conseguiu ser envenenada com ponche?
Fiz bico, ignorando o choque de Leandro.
— O quê?
— Para você ver! Sou uma pobre vítima.
— De pobre você não tem nada, garota — retrucou Bianca, se
metendo no meu drama e acabei dando risada. — A única Maria do Bairro
aqui sou eu, não rouba meu papel na escalação. Sou a personagem
secundária da sua vida.
Virei o rosto para ela, rolando os olhos.
— A Maria do Bairro não era a protagonista?
Bianca suspirou, acenando como se aquilo fosse um mero detalhe.
— Tudo bem, eu sou a sua Lupita então.
Leandro a olhou de relance.
— Mas a Lupita também era a protagonista, neném. Ela não fazia
parte da banda? — questionou ele, reflexivo.
— Como você sabe disso? — A pergunta escapou dos meus lábios
antes que Bianca pudesse respondê-lo.
Salazar jogou os braços por cima do ombro dela e minha amiga o
encarou de canto, mordendo um pedaço da maçã.
— E desde quando você come frutas? — minha voz foi tomada por
horror ao ver que não havia leite condensado ou chocolate em cima daquela
fruta.
Foi a vez de Bianca torcer os lábios, mas Leandro quem me
respondeu:
— Nós temos um acordo. Para cada episódio de novela que assisto
com ela, é uma refeição saudável que ela faz. — O orgulho em sua voz
denunciava o quanto estava satisfeito com aquilo, seu sorriso era cativante.
Engoli uma risada, desviando o olhar para a minha amiga.
— E como está indo?
— Ela não come miojo há um mês! — Leandro celebrou.
Eu gargalhei com aquilo, e Bianca me enviou navalhas invisíveis
através dos olhos.
— Isso é um milagre!
— Não é? — Salazar olhou para ela e sorriu mais, bobo e fascinado.
O sorriso que rasgou meus lábios foi involuntário e me virei para o
homem ao meu lado para saber se ele também estava vendo aquilo, mas a
sua atenção estava inteiramente direcionada para mim.
Havia algo parecido com admiração e fascínio em seus olhos, mas era
tão cru e bruto que eu não pude conter o impacto que teve sobre mim,
causando um estrago violento em meu sistema.
— O quê? — questionei, baixinho.
Leandro e Bianca discutiam sobre a péssima alimentação dela, alheios
à nossa presença.
— Só estou tentando descobrir como você consegue ser a coisa mais
extraordinária que eu já vi em toda a minha vida… — sussurrou, trazendo o
rosto para perto —, e me questionando se, em algum momento, vou ser
capaz de olhar para você e não sentir essa necessidade de prendê-la na
minha cama e monopolizar sua atenção.
Minha respiração se tornou uma cacofonia desastrosa. Os batimentos
no meu peito perderam o ritmo e algo semelhante a um chiado escapou dos
meus lábios.
— Você não pode falar essas coisas para mim, quando estamos
acompanhados — lamentei, sentindo aquela necessidade primitiva de ter
seus lábios pressionados contra os meus. — É muito injusto.
Ele sorriu como um maldito cretino e aproximou os lábios da minha
orelha, mordiscando o lóbulo sensível e sussurrando:
— Acredite em mim, diabinha… estou dando tudo de mim para não
mandar esses dois embora e te comer em cima dessa mesa.
Suspirei pesadamente, odiando como meu corpo era tão receptivo às
suas palavras. Meu núcleo se contraiu e precisei cruzar as pernas para que
não acabasse me colocando em uma situação comprometedora.
— E então, vamos para a praia? — Leandro atraiu nossa atenção e me
virei, encontrando seu olhar alheio ao fato de que Renato e eu não
prestamos atenção em nada que foi dito nos últimos minutos.
— Hã… pode ser — murmurei, atordoada.
— Coma alguma coisa antes. — Renato pediu e meus olhos se
arrastaram pela variedade de itens a disposição.
Meu estômago roncou, parecendo se lembrar de que eu não comia
nada há horas, e pelos minutos que seguiram, escutei Leandro e Bianca
contarem sobre como encontraram com alguns amigos do Salazar na cidade
e acabaram em um pagode no Morro do Vidigal.
— Você conversou com Marc sobre o problema com o Bastos? —
questionou Leandro, assim que Nathalia e Bianca se afastaram de onde
estávamos.
Desviei o olhar para o meu amigo, encontrando-o concentrado nas
ondas quebrando próximo da faixa de areia ou apenas fingindo que era isso
que estava fazendo, quando, na verdade, parecia estar a ponto de engolir
Bianca com os olhos.
— Marc ainda está tentando encontrar um jeito de remover ele da
firma, mas… as cláusulas foram formuladas justamente para evitar esse tipo
de situação — informei, voltando a minha atenção para as duas mulheres
que riam de algo que havia sido dito.
Bianca se abaixou, o suficiente para colocar uma quantidade generosa
de água na mão e jogar em Nathalia que tentou correr para o lado oposto,
mas acabou sendo atingida de todo jeito. Um esboço de sorriso dançou em
meus lábios quando ela virou o rosto, as bochechas coradas e os olhos se
apertando, transformando-os em duas fendas ameaçadoras.
Em revanche, Nathalia chutou uma onda quebrada que se aproximou,
o que fez com que a amiga dela se molhasse.
Era admirável acompanhar como ela relaxava completamente quando
abandonava os ciclos compulsivos e fazia o que tinha vontade, não o que
julgava que as pessoas esperavam dela.
Naquela manhã, Nathalia estava um pouco menos desconfortável com
o motivo de estarmos no Rio. Detestava a ideia de ter que submetê-la a
compartilhar o mesmo espaço que Guilherme, principalmente depois de tudo
o que aconteceu na sala dela alguns dias atrás.
Se eu soubesse que o motivo de Leandro estar espancando o
desgraçado, havia sido porque ele foi corajoso o bastante para ousar levantar
a mão para a minha mulher… eu mesmo teria o matado ali. Sem a menor
sombra de dúvidas. Guilherme estava me empurrando para o limite há
semanas e, uma hora ou outra, eu não seria mais capaz de me controlar.
Havia deixado aquela parte da minha personalidade de lado quando me
tornei responsável por uma criança. Nem sempre fui paciente e contido, na
verdade, vivia envolvido em brigas no colégio e faculdade, mas trabalhei
arduamente nos últimos anos para conter esse instinto. Os treinos obsessivos
de boxe eram um bom método de expurga, contudo, dado aos últimos
acontecimentos; nem mesmo esmurrar Pedro e Leandro durante os treinos
vinha sendo o suficiente.
O problema era que, se dissesse para Nathalia que ela não precisava vir
e que poderia ficar em São Paulo, por mais que, em algum momento, se
desse conta de que era para sua preservação, o seu primeiro instinto seria
pensar que eu não a considerava capaz de lidar com a situação
profissionalmente. Por isso, eu precisava ter muita cautela com ela em tudo
que se referia aos compromissos do escritório.
Em contrapartida, eu também precisava admitir que estava surpreso
com o seu comportamento nas últimas horas.
Apesar de ter escutado de seus lábios que ela tinha compreendido o
meu recado e que não voltaria atrás, o meu lado mais cauteloso estava atento
a qualquer sinal de que a sua mente estava antagonizando suas decisões.
Sua tranquilidade diante da informação de que Frederico estava ciente
do nosso envolvimento também era uma mudança de padrão inesperada.
Nathalia Gama era uma caixa de surpresas e mesmo quando eu achava
que tinha entendido tudo, a pequena diaba bagunçava as peças do tabuleiro e
me deixava em alerta para o seu movimento seguinte.
— Acho que vamos ter companhia. — O comentário de Leandro me
obrigou a desviar os olhos dela e virei na direção oposta, vendo duas pessoas
familiares se aproximarem de onde estávamos. — Pirralha Werneck!
A gargalhada escandalosa de Alícia atraiu todas as atenções para onde
ela tinha se encontrado com Leandro, e flagrei o momento em que o rosto de
Rodrigo se contorceu em uma careta desgostosa.
— Tire essas mãos asquerosas de cima da minha irmã, seu desgraçado
pervertido, ou vou te fazer conhecer o capeta mais cedo! — O murro que o
Werneck mais velho desferiu contra o ombro de Leandro, fez com que os
dois se enrolassem em uma briga estúpida e os levou direto para os tempos
da faculdade, onde só faltavam se matar pelo título de qual deles era o mais
perturbado.
Alícia Werneck se sentou na espreguiçadeira em que Leandro estava e
me deu um meio sorriso, acenando para um funcionário do hotel para que
viesse recolher o seu pedido.
— Olá, Renato! Soube que você está namorando, por que eu sempre
sou a última a saber de tudo sobre a sua vida? — Alícia alçou a sobrancelha,
fingindo chateação e murmurou seu pedido ao jovem que veio atendê-la. —
É frustrante receber esse tipo de informação pelo Digo, sabia? — lamentou,
dramática —, ele é o pior fofoqueiro do mundo!
Uma risada baixa fez com que meu peito vibrasse e meneei a cabeça,
espantando seu teatro.
— Não se preocupe com a minha vida, pirralha Werneck… você já
tem muito com o que ocupar, não?
Alícia levou a mão ao peito e fez bico, usando toda sua propensão para
as artes cênicas naquele simples gesto. Uma carreira que teria muito sucesso,
se assim desejasse. De todos os irmãos de Rodrigo, ela sempre foi a que
mais tentou se enfiar em nossos assuntos, usando todos os artifícios
disponíveis para nos tornar em um “bando de trogloditas que a excluíam das
aventuras”.
Mal sabia ela que se qualquer um ousasse convidá-la para se sentar na
mesma mesa, caso a encontrasse no mesmo lugar, era capaz de Rodrigo
atravessar a Dutra correndo, apenas para impedir que corrompêssemos sua
irmã. Principalmente, se a pessoa que se sentasse ao lado de Alícia fosse o
Leandro.
Não era por implicância da minha parte que a secretária dele era uma
senhora de quarenta e oito anos. Cora era simpática, prestativa, organizada…
e o completo oposto do tipo de Leandro. A quantidade de vezes que Salazar
teve problemas por se envolver com todo e qualquer rabo de saia que
encontrava, era o motivo para que Rodrigo o quisesse longe de sua irmã.
— Tudo bem, não está mais aqui quem queria os detalhes sórdidos da
fofoca, Sr. Eu sou reservado demais para falar sobre minha vida pessoal —
Alícia resmungou, engrossando a voz numa tentativa falha de deixá-la
semelhante à minha —, mas quando vou ter a honra de conhecer a pessoa
que enfiou uma coleira no seu pescoço? — insistiu, o que me fez buscar pelo
meu pequeno anjo diabólico, mas não a encontrei onde ela estava há
minutos.
Franzi o cenho, estranhando o desaparecimento das duas e corri os
olhos pela faixa de praia, mas ao encontrar Marcus sentado no quiosque,
atento ao que acontecia do outro lado do balcão, meus músculos relaxaram.
E como se sentisse o meu olhar sobre ela, Nathalia virou o rosto em
minha direção e abriu um sorriso radiante que fez seus olhos se fecharem um
pouco.
Linda pra caralho.
Era surreal o quanto aquele sorriso conseguia ter força o suficiente
para fazer com que meus joelhos fraquejassem, e eu voltasse a me sentir
como um maldito adolescente que mal podia controlar o próprio corpo.
Nathalia conseguia virar o meu mundo de cabeça para baixo, me fazia
mudar todo o percurso planejado e ficar refém dos seus desejos. Ela me
tinha na palma das mãos, e eu não sabia explicar como isso aconteceu tão
repentinamente.
Porra, claro que eu sabia.
Cresci escutando minha mãe falando sobre como o sentimento
verdadeiro nos invadia sem que tivéssemos controle, ele se enraizava tão
profundamente que quando notávamos sua existência, era tarde demais.
Ultrapassava qualquer barreira que tentássemos erguer e se tornava violento,
cru, a ponto de doer quando a ausência se tornava insuportável.
Nathalia conseguiu despertar tudo isso dentro de mim, no instante em
que colocou seus olhos lindos nos meus e com um sorriso confiante, um
comentário audacioso e um simples copo de café, traçou o meu destino e o
entrelaçou ao seu.
— E então? — Alícia me libertou do feitiço que Nathalia me envolvia
sempre que olhava para ela. Pisquei, virando o rosto e encontrando o brilho
curioso nas íris castanhas da irmã caçula de Rodrigo. — Onde está a
felizarda?
— Que felizarda? — Rodrigo se jogou no espaço ao lado dela e
acenou em cumprimento. — De quem estão falando?
— Da namorada do Renato.
Um vinco surgiu na testa de Werneck.
— Namorada? Pensei que era esposa… é o que Geovana está falando
para todo mundo.
— A Amanda não é todo mundo — Alícia retrucou, torcendo os lábios
em uma careta.
— Se eu precisei ouvir por dois dias cada detalhe do que Geovana
contou para ela, eu acho que posso dizer que todos estão falando sobre
isso… já que é o assunto do momento onde quer que eu vá — disse Rodrigo,
dando um peteleco na ponta do nariz da irmã. — É um assunto delicado para
mim, sabe? Toda vez que escuto que o Renatinho está namorando, sou
lembrado de que ele me fez ir para São Paulo só para me enxotar pela
princesa Gama.
Rolei os olhos.
— Não seja dramático, isso é coisa da Alícia.
A irmã dele me olhou, ofendida.
— Eu não tenho culpa se o drama e eu somos melhores amigos!
Rodrigo a olhou de relance e riu baixo, como se escutasse aquilo com
frequência. Nos minutos que seguiram, eles compartilharam comigo tudo
que Geovana andou falando sobre meu relacionamento com Nathalia, e não
poderia dizer que estava surpreso.
Era justamente por isso que nunca me interessei pela irmã de Guto,
apesar de suas constantes tentativas de atrair a minha atenção, eu sempre fui
extremamente reservado em relação às pessoas com quem me envolvia
quando estava solteiro. Não via a menor necessidade de precisar que outras
pessoas soubessem com quem eu estava transando, e depois de ter tido uma
experiência mais do que suficiente com a genitora dos meus filhos, os
resguardava de qualquer exposição desnecessária.
E Geovana era sinônimo de exposição gratuita.
— Eu acho que ela só decidiu espalhar a informação para tentar
encontrar algum furo na história — Alícia ponderou, bebendo um gole da
sua caipirinha —, você tinha que ver a cara que ela fez quando o Digo
confirmou que você realmente estava comprometido com a neta do Elias.
Encarei Rodrigo que deu de ombros.
— Eu gosto de ver a discórdia — disse, simplesmente.
— Você anda convivendo demais com o Leandro, isso sim —
reclamei, pinçando a ponte do nariz e me livrando dos óculos escuros.
No entanto, antes que minha atenção se voltasse para a discussão dos
irmãos Werneck, meu reflexo capturou o momento em que Marcus se
levantou bruscamente e por instinto, o imitei.
Meus olhos correram pelo quiosque, buscando pelas duas garotas que
estavam ali poucos minutos atrás, mas a única coisa que encontrei foram
dois rapazes com o dobro do tamanho delas, emboscando as duas no balcão.
O sangue ferveu em minhas veias e deixei Rodrigo e Alícia falando
sozinhos, atravessando em passos apertados na direção de onde minha
mulher estava. Pude sentir uma veia saltar em minha testa, quando o rapaz
loiro e com uma tatuagem tribal esticou a mão e a levou na direção de uma
Nathalia visivelmente desconfortável.
Meus dedos se fecharam em seu pulso e trouxe seu braço para trás,
sentindo o cheiro fétido de álcool que emanava do rapaz.
— Ei, cara! Pega leve! — O amigo dele reclamou, ao ver o rosto do
loiro ser pressionado contra a madeira envernizada do balcão. — A gente só
tava dando ideia nas gatas!
Elas pareciam interessadas em serem emboscadas e impedidas de se
afastarem? — questionei, aumentando o aperto no braço do rapaz que ousou
tentar encostar em Nathalia.
— Renato… — Nathalia chamou, a voz não passando de um sussurro.
— Nem se atreva a impedir que ele dê uma lição nesses projetinhos de
assediadores, Nathalia — retrucou Bianca, puxando a amiga para longe.
Alcei a sobrancelha, desviando para o loiro que respirava pesadamente
devido a maneira como eu prendia seu braço em suas costas. Eu poderia
quebrá-lo com um simples movimento, em um ponto onde levaria meses
para se recuperar e ainda assim, sentiria dores.
— Isso não é necessário, de verdade… — Nathalia se aproximou de
mim, tocando minhas costas e me forçando a virar o rosto para ela,
encontrando seu olhar suplicante. — Solta ele, por favor.
— Ele tocou em você? — A pergunta soou mais intimidadora do que
eu pretendia, mas a ideia de que o merdinha tivesse encostado um mísero
dedo nela, me fazia querer quebrá-lo por inteiro.
Era essa merda que Nathalia despertava em mim.
O sentimento visceral de posse.
Ela engoliu em seco e balançou a cabeça, colocando a mão sobre o
meu pulso que aprisionava o rapaz que choramingava pela pressão dolorida
que aquela posição causava em seu trapézio. Uma tração mais brusca, e ele
descobriria o que realmente era dor.
— Renato! — Nathalia apertou seus dedos delicados em meu pulso e
soltei o rapaz, que tentou correr para longe, mas acabou colidindo com
Marcus.
— Tire os dois daqui e garanta que não voltem — falei, e meu
segurança acenou em resposta, segurando os garotos pela nuca e os
arrastando para fora. Virei-me para Nathalia, vendo seus ombros relaxarem e
um suspiro escapar dos lábios grossos. — Você está bem?
— Você deveria ter deixado que ele batesse nos dois — Bianca
reclamou, sentando-se novamente no banco e acenando para o atendente. —
Renatinho, sabia que ele teve a coragem de dizer para a sua mulher que…
— Cala a boca, Bianca! — Nathalia grunhiu, olhando para a amiga
irritada. A loira sorriu largamente e deu de ombros, como se aprovasse o
nervosismo da amiga. — E você… — seu olhar voltou para mim. —
Esqueceu que é CEO de um dos maiores escritórios financeiros do país? O
que deu na sua cabeça para achar válido se meter em uma briga por motivo
besta?
— Você ser intimidada não é um motivo besta.
Nathalia bufou e me aproximei dela, afastando uma mecha teimosa de
seu cabelo que vivia caindo em seu rosto.
— Você tem dois filhos, precisa ser um exemplo — resmungou, um
pouco menos irritadiça conforme eu me aproximava. Minha mão afagou sua
bochecha e ela descansou a cabeça sob o meu toque, olhando-me por baixo
dos cílios grossos. — E estamos perto do hotel, onde qualquer sócio poderia
acabar te flagrando no meio de uma confusão…
— Não dou a mínima para isso.
Arrastei o polegar em sua pele macia e minha mão livre a trouxe para
perto. Nathalia deixou que seu corpo se aconchegasse ao meu e inclinou a
cabeça para trás, prendendo os olhos nos meus.
— E para o que você liga? — perguntou, baixinho.
Sorri, descendo o rosto para perto do seu e rocei nossos lábios,
apreciando o chiado inquieto que escapou do fundo do seu peito.
— Você é a única coisa que importa.
Ela suspirou e seus braços envolveram meu corpo, a tensão que ainda
residia em seus músculos cedeu, trazendo aquele brilho extraordinário de
volta para o seu rosto.
Às vezes, eu podia jurar que Nathalia brilhava.
Não de um jeito comum, porque nada sobre ela chegava perto de ser
ordinário. Mas olhar para o seu rosto às vezes era como ser cegado por um
brilho sobre-humano. Ela era o sol em forma humana. Meu sol. Meu anjo.
— Tudo bem, mas não se envolva em confusões por minha causa —
pediu, ficando na ponta dos pés e tocou meus lábios suavemente, antes de se
afastar e olhar sobre os ombros, como se alguém estivesse nos vigiando.
Ainda tínhamos esse assunto para resolver.
Eu não me importava se ela não quisesse expor nosso relacionamento
dentro do escritório, mas precisávamos conversar para que não houvesse
desencontros no meio do caminho.
— Renato! — A voz de Alícia atrás de mim me arrancou uma careta e
respirei profundamente, sabendo que não havia a menor chance de pegar
Nathalia e tirá-la daqui, antes dela ser interrogada pelo furacão Werneck.
Um vinco surgiu na testa da minha mulher e ela olhou por cima dos
meus ombros, buscando pela origem do chamado e o seu olhar se voltou
para mim com diversão, ao ver a minha expressão.
— Sinto muito por isso. — Foi tudo o que consegui dizer antes de
Alícia alcançar o ponto em que estávamos e encontrar Nathalia.
Um sorriso enorme se abriu nos lábios da irmã caçula de Rodrigo e ela
praticamente roubou Nathalia dos meus braços, substituindo pelos seus
bracinhos finos.
— Ah, você é a neta do Elias! — Alícia saudou, apertando a morena
em seus braços. — Seu avô fala tanto de você para o meu, que sinto que nos
conhecemos a vida inteira — tagarelou, soltando Nathalia do abraço e a
olhando com admiração —, e você conseguiu fazer o Pedro Zimmermann
gostar de você! Como isso aconteceu? Ele é o diabo na terra!
— Alícia! — Rodrigo repreendeu a irmã e ela o olhou, inocente.
— O quê? Eu não menti!
— Você está sufocando a garota — ele retrucou, e Alícia pareceu se
dar conta de que Nathalia a encarava com os olhos arregalados e
completamente perdida no que estava acontecendo.
Ri baixo, aproximando-me das duas e envolvi meu braço em sua
cintura, trazendo-a para perto de mim e isso fez com que seu corpo
relaxasse.
Depositei um beijo demorado em seus cabelos, porque Alícia tinha
escolhido a pior maneira de se aproximar de Nathalia. Claro que ela não
tinha como saber, mas a garota em meus braços odiava que fosse
reconhecida por causa do seu avô e de seu pai.
— Hã… Pedro não é tão ruim assim — Nathalia disse, ainda perdida
no que havia acontecido e seu olhar se moveu para Rodrigo, o reconhecendo
da primeira vez que se encontraram na RCI. — Olá, Rodrigo.
Werneck sorriu preguiçosamente, acenando para ela de longe.
— Olá princesa Gama, é sempre um prazer te encontrar protegida pelo
seu rottweiler de estimação. — O babaca provocou, implorando para levar
um soco para ficar esperto.
Nathalia riu, olhando-me de relance e acariciou minha mão que
apertava a sua cintura.
— Agora entendi quando você disse que ele conseguia ser pior do que
o Leandro — comentou, sorrindo para mim com cumplicidade.
— Pois é, devo ter feito algo de muito errado para precisar lidar com
os dois na mesma reencarnação.
— Você me ama, Trevisan!
Ignorei Rodrigo, voltando a atenção para a sua irmã que ainda olhava
para Nathalia como se ela fosse uma espécie de projeção astral.
— E essa é a irmã dele, Alícia Werneck — apresentei, vendo o
entendimento cobrir o rosto da pequena diaba e ela acenou, sorrindo mais
relaxada.
— Seu avô construiu os hotéis do meu na cidade.
Alícia olhou para o hotel atrás dela e sorriu com orgulho.
— Sim, e agora é o Digo quem cuida de tudo.
— É um prazer te conhecer, Alícia.
— O prazer é todo meu — disse a pirralha, olhando-me de esguelha
—, você não imagina há quanto tempo espero para ver esse cara
comprometido!
Revirei os olhos.
— Cuide da sua vida amorosa, Alícia.
— Que vida amorosa? Ela não tem isso!
Alícia e Nathalia olharam para o Werneck que fez uma careta com a
mera hipótese de sua irmã se envolver com outra pessoa. Leandro que havia
se afastado para falar ao telefone, se aproximou e escutou a última frase.
— Que você saiba, né? — debochou, fazendo com que a pálpebra
esquerda de Rodrigo tremesse. Leandro notou o tique e sorriu, piscando para
a caçula Werneck antes de soltar: —, continue assim, pirralha… já ouviu
aquele ditado: o inimigo do meu irmão é o meu pau amigo?!
Nathalia riu e se virou para o bar, pedindo por gin e tônica. Leandro
aproveitou que havia conseguido tirar o Werneck dos trilhos e jogou o braço
por cima dos ombros de Bianca, que estava distraída mexendo no celular e
alheia à nossa conversa.
— E então, quais são os planos de vocês para hoje? — Alícia
questionou, aproveitando que o irmão ainda estava paralisado, processando
o que Leandro havia dito. — Vamos dar uma festa hoje, só para os amigos.
Apareçam!
— Nós vamos? — Rodrigo indagou.
Alícia dispensou seu questionamento com um aceno e voltou a olhar
para Nathalia com expectativa.
— O que você acha?
Nathalia sorriu.
— Infelizmente, temos um casamento mais tarde…
— Vocês podem ir depois.
— Hm… podemos tentar.
— Ótimo! — Alícia bateu palmas, satisfeita com a resposta. — Isso é
mais do que ótimo, eu realmente preciso de dicas para sobreviver ao filho de
Satanás.
Leandro riu.
— Pedro está dando tanto trabalho assim?
— Trabalho? Está mais para tortura! — Alícia reclamou, quase
gritando a última palavra. — Ele é um sádico desgraçado que sente prazer
em ver as pessoas enlouquecendo para entender o que ele quer, já que é
incapaz de falar com palavras como qualquer outro ser humano!
Nathalia fez uma careta.
— Ele não é tão ruim assim — defendeu, arrancando uma risada de
Bianca.
— Você já disse um milhão de vezes que ele é extremamente
grosseiro! — A loira acusou, dedurando a amiga.
Arqueei a sobrancelha e Nathalia me olhou de relance, dando de
ombros.
— Sim, mas ele ainda vai ser meu amigo… só eu posso falar mal dele.
Sorri, concordando. Nathalia se surpreenderia se soubesse que, de um
jeito muito peculiar, tinha conseguido dobrar Pedro e fazê-lo se afeiçoar a
ela. Era algo raro, um feito quase inédito, embora meu amigo nunca fosse
admitir.
No início da tarde, eu me juntei a Leandro e outros sócios na área
externa do hotel e acompanhei as conversas paralelas que aconteciam no
lounge, enquanto a cerimônia não iniciava.
Uma música clássica tocava ao fundo e rostos familiares passavam por
mim, acenando com breves cumprimentos e me deixando com uma dúvida
pairando em mente. Não me considerava um homem paranoico, raramente
implicava com alguma situação, mas todo clima ao meu redor colocou uma
pulga atrás da minha orelha.
Eliane não era uma das sócias-seniores mais influentes dentro do
escritório. Claro, ela tinha uma lista de clientes que era boa o suficiente para
conceder a chance de comprar algumas cotas de tesouraria e subir na
hierarquia da firma, mas… seus clientes se resumiam a familiares e amigos
influentes.
Era humanamente impossível decorar todos os nomes e empresas entre
mais de dois mil clientes, mas alguns sócios sempre ficavam sob a minha
vigilância e Eliane era uma delas.
Na primeira vez que seu portfólio chegou em minhas mãos, havia sido
por conta de um prejuízo monstruoso que um cliente seu acabou tendo
devido a um erro dela. Por meses, fui eu quem lidou com o homem e
trabalhou na gestão do seu portfólio até que ele retornasse para os cuidados
de Eliane.
Desde então, ela vinha sendo monitorada para que não errasse
novamente. Sempre fui tolerante com falhas, desde que elas não se repitam.
Ninguém nascia sabendo tudo, eu só me tornei um dos melhores do mercado
porque aprendi a lidar com as coisas que caíram no meu colo.
Não significa que não errei, ao contrário, alguns dos meus erros
custaram mais do que o dinheiro poderia pagar, mas eu não me permiti
repeti-los e era justamente o que esperava que Eliane aprendesse quando lhe
dei uma nova chance.
E era por saber o tipo de profissional que a Bittencourt era, que eu
sabia que não tinha a menor chance de que ela pudesse reunir no mesmo
evento, alguns dos principais nomes do mercado financeiro nacional.
Havia sido uma coincidência incomum esbarrar com Gaspar Mancini e
Augusto Ricci perto do bar, mas quando meus olhos se fixaram na silhueta
de Bruno Palheiros caminhando em minha direção, eu tive certeza de que
não havia coincidências, mas uma ação premeditada e planejada por alguém
que tinha uma mente muito mais manipuladora do que Eliane.
— Trevisan! — Palheiros saudou com um sorriso falsamente esculpido
para soar simpático. Apertei os dedos em volta do cristal do meu copo,
bebendo um gole de uísque antes que ele quebrasse de vez a distância entre
nós. — Não nos vemos desde… — fingiu pensar e estalou a língua. — Claro,
como eu poderia esquecer do dia que recebi uma ligação sua me proibindo
de fazer qualquer proposta pela herdeira de Miguel Gama?
Espreitei os olhos nele, abandonando meu copo no balcão e ignorei a
atenção de Leandro em cima de nós.
— Como vai, Bruno?
— Estou ótimo. Onde anda a mocinha que te fez desistir de negociar a
aquisição da Paxton Capital? — questionou, olhando em volta buscando por
Nathalia e respirei pesadamente, odiando como o nome dela escapou
carregado de malícia da boca do desgraçado.
Alguns meses atrás, quando Bianca me contou sobre Nathalia estar
indo em entrevistas e reconheci o nome de Bruno entre os compromissos,
soube que precisava intervir. Não porque queria manipular sua carreira e
definir aonde Nathalia ficaria, mas porque eu sabia que, ainda que não
conseguisse mantê-la na RCI, usaria toda a minha influência para que fosse
para o melhor lugar possível para alavancar sua carreira. E a BP
Investimentos e suas subsidiárias, como a Green, não eram esse lugar.
Não quando ele ofereceria um lugar para ela apenas como uma forma
de me atingir.
Abrir mão de alguns milhões que poderíamos ganhar com a compra da
Paxton Capital e a chance de expandir os negócios para Nova Iorque, era um
sacrifício mínimo perto do risco de Nathalia ser usada como um meio para
me atingir.
Ela cansou de desabafar sobre como odiava que as pessoas apenas a
vissem como um meio para um fim, e o quanto isso fazia com que sentisse
que não era boa o suficiente.
Não permitiria que a magoassem por minha causa.
— Você conseguiu o negócio de Wall Street, Bruno. Supere o passado
e cresça — murmurei, indiferente, aceitando a nova dose que o bartender
serviu no meu copo e bebi outro gole longo. — É entediante lidar com essa
competição que só existe na sua cabeça.
Palheiros balançou os ombros, me fazendo sentir uma necessidade
absurda de enfiar o punho naquele nariz empinado. Ele apertou as íris azuis
no meu rosto e sorriu, dando mais um passo e se sentando no banco na
minha frente.
Incapaz de se afastar sem conseguir me tirar do sério.
— Você é engraçado, Trevisan… — refletiu, indicando para que
servissem uma nova dose de vodca em seu copo. — Fica aí, com essa pose
de dono do mundo…, mas nós dois sabemos que só se tornou o que é hoje
porque passou dos limites.
Sorri, mantendo a postura indiferente.
— Dez anos se passaram, Bruno. Não seja rancoroso… — as palavras
saíram dos meus lábios com uma pitada de sarcasmo. — Você se deu bem na
vida, tem sua própria corretora e conseguiu até ganhar alguns prêmios nos
últimos anos. Isso não foi o suficiente para satisfazer o seu ego ferido? —
Bati o indicador levemente no meu copo e ergui em sua direção. — Já tentou
buscar por ajuda profissional para superar isso?
Uma veia saltou na testa de Bruno e seu pescoço ganhou uma
coloração avermelhada, denunciando que ele realmente guardava remorso
por conta do que havia acontecido anos atrás.
Bem, eu não podia pedir desculpas por ter me saído melhor do que ele
em uma situação e ter recebido os devidos créditos pelo meu trabalho. O
motivo de estar onde eu estava, era porque gastava meu tempo livre me
tornando ainda melhor no que fazia, ao invés de criar situações imaginárias
para culpar terceiros pelo meu fracasso.
Bruno e eu estagiamos na Hambrook Equities e éramos algo parecido
com amigos naquela época, quando a bolha imobiliária explodiu e o
escritório ameaçou fechar as portas e declarar falência; ele decidiu parar de
se dedicar ao trabalho e a seguir o fluxo, e eu me recusei a ter meu nome
associado a algo que fracassou.
Graças a isso, a gestora conseguiu contornar a crise e lucrou bilhões de
libras. Meu nome alavancou no mercado e eu me tornei reconhecido pelo
feito, conquistei a chance de administrar uma conta grande e me tornei o
braço direito do velho Anderson.
Todo o restante que aconteceu em nossas carreiras, foi uma
consequência das escolhas que fizemos no dia em que a bolha estourou, mas
de alguma forma, na cabeça de Bruno; eu o sacaneei e era o responsável por
tudo que deu errado em sua carreira nos anos seguintes.
Ele se dedicou a prejudicar a carreira de algumas pessoas no percurso,
como uma tentativa de me atingir e me levar para o ringue. E apesar de ter
conseguido ajudar alguns amigos a se recuperarem, não submeteria Nathalia
ao risco de ser atingida pelo egoísmo de um lunático.
— Soube que a polícia espanhola está investigando os negócios da
família García — comentou, com uma falsa despretensão e sorvi mais um
pouco do meu uísque, vendo que a menção a um dos meus primeiros clientes
atraiu a atenção de Leandro. — Não deve demorar muito para que isso
chegue em você, não é?
Uma risada anasalada me escapou e ergui o copo em sua direção,
dispensando a sua provocação.
— Aproveite a festa, Bruno. — Levantei-me, dando um aceno em sua
direção e caminhei para onde Leandro conversava com Gaspar e Augusto.
— Por que ele citou os García?
Encolhi os ombros, despreocupado.
— Provavelmente, porque ainda não aceita que o velho Anderson me
passou a conta que ele queria — murmurei, olhando ao redor e buscando
pelo meu pequeno anjo, mas ela e Bianca ainda não tinham chegado. — De
toda forma, não é isso que me preocupa agora. Você não está achando
estranho que tem mais pessoas do mercado do que familiares da Bittencourt?
Leandro olhou em volta discretamente, parecendo só naquele momento
ter tomado ciência de que tínhamos esbarrado com metade daquelas pessoas
numa conferência de mercado no fim do ano passado.
— Às vezes, é coincidência.
Balancei a cabeça, guardando uma mão no bolso e acenando para o
Pablo Mendes, diretor de operações da bolsa de valores brasileira.
— Para nossa sorte, eu não acredito nisso… vou buscar as garotas —
avisei, recebendo um aceno em resposta.
Antes que conseguisse me afastar de Leandro para retornar para dentro
do hotel e buscar Nathalia, acabei esbarrando com um homem que não me
era desconhecido. Era impossível operar no mercado financeiro sem saber
quem era Charles Bellini, uma vez que ele construiu a carreira ao lado de
Miguel Gama; era padrinho de batismo de Nathalia e pai do seu melhor
amigo, Antônio Sturzenecker.
Há alguns meses eu poderia tê-lo listado como um dos profissionais
que eu admirava pelo brilhantismo que demonstrou em sua carreira. No
entanto, conhecer Nathalia e ouvir dela como o homem na minha frente foi
capaz de aproveitar um momento de vulnerabilidade do amigo, não apenas
para obter alguns milhões de dólares de lucro, mas também para incriminar
sua própria esposa no processo, caso Miguel optasse por denunciar o
desfalque, fez com que a minha admiração por seu trabalho se transformasse
em desprezo.
— É um prazer finalmente conhecê-lo, Renato… seu avô é um velho
parceiro de negócios e sempre falou muito sobre você — disse ele, com a
voz rouca e pretensiosa.
Se sua intenção ao mencionar meu avô era trazer algum tipo de
casualidade para a conversa, o efeito era oposto. Os amigos de Vicente
Monteiro estavam na lista de pessoas que eu evitava a todo custo.
— Bellini — saudei, seco. Meu olhar se moveu para a mulher parada
ao lado dele, as íris azuis cristalinas eram familiares e eu a reconhecia da
visita inesperada ao apartamento de Nathalia algumas semanas atrás. —
Stein.
Larissa sorriu, meneando a cabeça.
— Apenas Larissa, afinal, se está saindo com a minha prima… isso nos
torna família, não? — A morena deu um passo para frente e antes que
avançasse para forçar uma aproximação que não tínhamos, Nathalia surgiu
ao meu lado como uma tempestade turbulenta.
— Seria mais inteligente da sua parte dar dois passos para trás,
Larissa. Não estou nos meus melhores dias — rosnou e minha mão se alojou
pouco acima da cintura dela, de um jeito que não atrairia suspeitas e não
permitiria que ela avançasse na prima.
Era visível que a mulher na nossa frente despertava um lado diferente
de Nathalia.
— Relaxa, princesa, pensei que seus problemas de raiva tivessem sido
tratados em terapia. — Larissa ergueu as mãos e sorriu, inocente. — Além
disso, nós duas sabemos que você prefere engolir alguns sapos do que criar
uma cena em público, não é?
Nathalia respirou profundamente e sorriu, cínica.
— Sim, para a sua sorte, ao menos uma de nós foi bem-educada o
bastante para não criar uma cena em eventos alheios. — A pequena desviou
o olhar para mim e relaxou os músculos. — Frederico está te chamando, se
importa de me acompanhar?
— Você não vai cumprimentar o seu padrinho, querida? — Charles
perguntou, olhando-a com sarcasmo.
Nathalia cerrou a mandíbula e apertei os dedos em sua carne,
impedindo que ela avançasse no homem mais velho.
— Não se preocupe, Charles, no dia que estiver atrás das grades, eu
farei questão de ir visitá-lo. — As palavras saíram de seus lábios como
lâminas afiadas. — É uma cena que eu quero ter gravada na minha mente e
emoldurada em um quadro.
Bellini sorriu e eu trouxe Nathalia para perto, impedindo que ela
acabasse enfiando as unhas nas íris azuis do pai de seu melhor amigo.
— Vamos, Nathalia… é o suficiente. — Seu corpo respondeu ao meu
chamado e ela girou nos calcanhares, dando um passo para se afastar de mim
e acenou para duas sócias que assistiam a cena. — Respire, anjo —
incentivei, ao ver como suas mãos tremiam e ela vacilou perto do bar, onde
se sentou e me permitiu vê-la por inteiro pela primeira vez.
E era uma visão viva do paraíso.
Nathalia usava um vestido longo na cor marsala, o tecido caía
suavemente sobre seu corpo, realçando cada curva como se tivesse sido
projetado exclusivamente para ela. Meus olhos percorreram a extensão do
vestido, admirando a fenda que se abria em sua perna esquerda, revelando
sutilmente a sua pele bronzeada pelas horas que passamos na praia mais
cedo.
Contudo, foi o decote profundo em seu colo que fisgou minha atenção
de forma irresistível, o recorte permitia uma visão de tirar o fôlego de seus
seios. Ela exalava confiança e sensualidade naquela peça, ultrapassando
todos os níveis possíveis de beleza. Dizer que Nathalia estava linda parecia
ofensivo naquela altura do campeonato, ela estava deslumbrante.
Minha mão formigou pela necessidade de escovar sua pele com meus
dedos, e meu sangue ferveu pela urgência de ser o responsável por aprisionar
seu lábio inferior entre os dentes, mas usei de todo meu autocontrole para
pedir por uma bebida para ela e outra para mim, enquanto ganhava tempo
para controlar meus instintos.
— Você não deveria ter dado importância para a provocação dos dois
— alertei, acenando para o rapaz em agradecimento e me aproximando dela,
o suficiente para esconder aquela perfeição dos olhares de curiosos. Eu
detestava que outros pudessem ver o quanto ela era gostosa e para foder
ainda mais com o meu cérebro, o olhar feroz que ela me lançou enviou um
estímulo direto para o meu pau. — E não me olhe assim, está levando tudo
de mim para não te comer aqui mesmo.
Nathalia se engasgou com o gin e suas bochechas ficaram rubras,
combinando com o tecido do vestido e me arrancando um sorriso. Meu olhar
vagou pelo espaço ao nosso redor, analisando o quanto eu poderia avançar
sem atrair olhares e ao ver que todos estavam mais ocupados com a
apresentação musical que acontecia do outro lado do jardim, aproximei-me
de uma vez, repousando minha mão em suas costas nuas e a sentindo
estremecer com contato.
— Você é um cretino por me falar isso agora — ela lamentou baixinho,
virando o líquido em sua taça de uma única vez, indicando para o bartender
que precisava de outra.
Seus olhos vieram em minha direção e descansei a mão livre sobre o
balcão da mesa, assim ela não precisaria ficar no campo de visão dos outros
dois. Em resposta, seus dedos delicados agarraram meu antebraço e ela
soltou um suspiro fraco. Sorri, vendo-a apertar as pernas e engolir em seco.
— Não sei se devo agradecer ao Bellini por ter me interrompido
enquanto estava indo te buscar, ou se devo socá-lo por ter feito isso —
murmurei, atraindo a sua atenção e ela apertou os cílios em meu rosto.
— Hm… e posso saber o motivo da dúvida?
— Porque tenho as minhas dúvidas se eu seria capaz de sair do quarto
depois que te encontrasse — confessei, sem tirar os olhos de seu rosto lindo.
Nathalia sorriu e acenou.
— Bom, como a sua diretora de operações… posso dizer que estou
aliviada que tenha sido interrompido. De todas as pessoas aqui, a sua
presença é a que faria mais falta e causaria estranheza entre os outros. — Ela
virou para o bartender e murmurou um agradecimento, antes de se virar para
mim.
Meus dedos se arrastaram em suas costas, preguiçosamente,
desenhando círculos e arrancando pequenos tremores dela.
— E como a minha mulher?
Nathalia suspirou, enfraquecida.
— Estou frustrada porque eu preferia ficar no quarto… então, sou a
favor do soco.
Afastei-me dela, fingindo ter aceitado sua sugestão.
— Podemos resolver isso em um minuto.
— Renato! — Ralhou, enfiando as unhas em minha pele e me
encarando com os olhos arregalados. Ela reconheceu a brincadeira e uma
risada escapou do fundo da sua garganta. — Eu preciso tomar cuidado com
você.
— E eu com você, corro o risco de sofrer um ataque cardíaco por sua
causa a qualquer momento.
Ela arqueou a sobrancelha.
— Você me parece muito saudável… sabe, para alguém da sua idade —
implicou, mordendo as bochechas ao me ver apertar os olhos em seu rosto.
— Está me chamando de velho, diabinha? — questionei, fingindo
indignação. — Devo lembrá-la que foi você quem implorou por alguns
minutos de descanso mais cedo?
Nathalia engoliu um sorriso e aproximou a taça dos lábios, de forma
sedutora.
— Que sorte a minha de ter conseguido um velho tão bem preservado,
não é? — Sua resposta me arrancou uma gargalhada genuína e balancei a
cabeça, vendo Leandro se aproximar de nós.
Salazar alçou a sobrancelha, jogando os braços sobre os ombros de
Nathalia, mas rapidamente o tirou ao ver o olhar que lancei para ele.
— Qual é o motivo das risadas, meu casal do ano? — Ele abriu um
sorriso sacana para Nathalia e fez uma careta. — Me distraiam antes que eu
vá dar um soco na cara daquele bostinha do Gabriel.
Franzi o cenho, mas foi Nathalia quem perguntou:
— O que o Gab fez?
— Ele teve a ousadia de achar que é engraçado o suficiente para fazer
a Bianca rir — disse, indignado.
Nathalia trouxe o olhar para mim.
— Mas por que isso te incomoda? — questionei, sem esconder o
sarcasmo —, você não me disse que não gosta dela?
Leandro respirou profundamente, tentando se manter calmo, mas
falhou e assim como uma criança, fez careta e repetiu a minha pergunta em
um tom infantil.
— Por que eu ainda sou seu amigo, eremita? Sério! Você nunca diz
nada realmente útil — resmungou, nos dando as costas e indo para a direção
oposta.
Nathalia riu baixinho, balançando a cabeça.
— Qual é o problema dele em admitir que está gostando dela?
Foi a minha vez de fazer uma careta.
— É uma longa história, diabinha.
No fim da tarde, a cerimônia foi iniciada e se antes eu estava
desconfortável por fazer parte de um evento íntimo, de uma pessoa que eu
não tinha qualquer proximidade; se tornou pior quando descobri que o lugar
reservado para mim era na primeira fileira — onde normalmente, os
familiares dos noivos ficavam.
À minha esquerda, estava Leandro que sustentava uma expressão de
profundo ódio com a imposição de abandonar o seu lugar ao lado de
Bianca, mesclado ao descontentamento pelo seu posto ter sido ocupado pelo
meu estagiário, Gabriel.
À minha direita, Roberta olhava fixamente para o ponto onde o
cerimonialista conduzia a cerimônia, mas eu conhecia aquele hábito dos
anos da faculdade e sabia que ela não estava realmente olhando para o que
acontecia, mas dissociando para algum lugar em sua própria mente.
Frederico, que estava ao seu lado era o único que parecia confortável
com a situação que fomos submetidos, no entanto, ele era uma exceção em
tantas ocasiões que não sabia se poderia considerá-lo um parâmetro.
Meu olhar se moveu para Guilherme, próximo aos noivos, ele era um
dos padrinhos de Eliane, mas parecia mais interessado em manter sua
atenção em um ponto distante. Intrigado, virei o rosto e não demorei a
encontrar o seu alvo sentado entre Bianca e Gabriel.
Nathalia não olhava para frente, ela parecia mais interessada em como
suas mãos se apertavam uma na outra em seu colo. Seus ombros estavam
rijos e de onde estava, eu conseguia vê-la cronometrando a própria
respiração. Reconhecia aquele comportamento por já tê-la pegado em meio
a crises algumas vezes, acabei aprendendo os seus gatilhos e como ela
reagia a eles.
Uma mão me tocou suavemente e virei o rosto, percebendo que havia
cerrado o punho com tanta força que as juntas dos dedos embranqueceram
devido à pressão. A mão de Roberta apertava meu pulso e ergui os olhos,
encontrando seu olhar consternado.
— Fique sentado e não crie uma cena — sussurrou, mal movendo os
lábios. Seu olhar se desviou para um ponto à minha frente, o que a fez abrir
um sorriso fingido. O flash da foto estourou em minhas costas e ela virou
para mim —, isso está constrangedor e desconfortável para todos. Ela
cresceu nesse meio e pode lidar com isso por mais alguns minutos.
Como se escutasse o que Faroni havia acabado de falar, o
cerimonialista nos convidou a ficar em pé, enquanto uma prece era feita e
nem mesmo dessa forma, Guilherme desviou o olhar de Nathalia, o que fez
com que meu sangue esquentasse.
Eu mal escutava o que era dito, a pronúncia dos votos passou como
um zumbido pelos meus ouvidos e não reconheci qualquer resquício de
emoção vindo dos convidados. Era inevitável que o ambiente fosse tomado
por completa indiferença quando noventa por cento dos convidados eram
compostos por colegas de profissão.
As únicas pessoas que eu não reconhecia, estavam sentadas nas três
primeiras fileiras do outro lado do jardim e havia identificado como
familiares do noivo. Aparentemente, o rapaz que estava se casando com
Eliane era o único que compreendia que a única presença que importava era
a de seus familiares, uma vez que Bittencourt havia sido levada para o altar
pelo próprio Guilherme.
Não sabia que eles tinham esse tipo de proximidade, na verdade,
Bastos nunca me pareceu ser próximo de ninguém. Desde que surgiu na
LWM — nosso escritório antes da fusão — e se provou apto a gerenciar a
firma sem me causar dores de cabeça, ele sempre me pareceu um grande
ponto de interrogação. Não era confiável a ponto de trabalhar sem
supervisão, mas não parecia ser ambicioso o suficiente para precisar de
monitoramento constante.
Ledo engano, bastou ter sido colocado em frente uma negociação para
que mostrasse que era como noventa e nove por cento das pessoas que
trabalhavam no mercado. Ganancioso, traiçoeiro e um grande filho da puta
assediador. Era isso que o desgraçado era de verdade, e se tivesse mostrado
essa faceta antes de ter a minha assinatura naquele contrato, ele nunca teria
cruzado o caminho de Nathalia.
Quando a cerimônia foi dada por encerrada, Leandro e eu não
demoramos a encontrar uma brecha entre os convidados para alcançar as
garotas. Salazar conseguiu se enfiar no meio da multidão, no entanto, eu
acabei sendo emboscado por um rosto que não pensei que veria novamente.
— Nicole?
A mulher sorriu largamente e seus braços envolveram meus ombros
antes que pudesse ter qualquer reação para impedir. Minha visão foi
preenchida pelos cabelos castanhos e o seu aperto me trouxe de volta do
choque que nosso encontro causou. Com cuidado, desvencilhei-me do
contato e dei um passo para trás para estabelecer distância entre nós.
Eu não precisava olhar para sentir a atenção de Nathalia na minha
interação com Nicole, e da mesma forma como eu odiava ver outro homem
encostando nela, não era certo permitir que visse algo semelhante com uma
mulher que me envolvi no passado.
— Quanto tempo, não é? — Nicole sorriu, seu olhar brilhava com
nostalgia —, imagine a minha surpresa quando olhei algumas fileiras a
frente e te reconheci entre os convidados?
— Não sabia que você era próxima de Eliane.
Ela deu de ombros, como se aquilo fosse um mero detalhe.
— Na verdade, Guilherme me convidou. Nós acabamos nos
aproximando depois que saí do escritório, você sabe… — sua entonação se
transformou, abandonando a simpatia e adotando um saudosismo que eu
sabia muito bem para onde a guiaria. — Mas fico feliz que você esteja aqui!
Não conversamos há tanto tempo, o que acha de sentarmos juntos para
colocar o…
Sua sugestão foi interrompida pelo esbarrão que ela acabou tomando
da garota loira tatuada. Bianca abriu um sorriso e ergueu as mãos, tocando
suavemente no ombro de Nicole antes de murmurar:
— Ah, me desculpe, linda… eu realmente não te vi, me perdoa! —
Bianca poderia trabalhar como atriz, porque se eu não estivesse de frente
para o corredor que ela havia percorrido para nos alcançar e tivesse visto
sua aproximação, teria acreditado no seu fingimento.
A prova disso foi que Nicole apenas sorriu e acenou.
— Não se preocupe, está tudo bem. — A filha do presidente da CVM
respondeu, voltando a me olhar, mas Bianca se adiantou.
— Você é realmente uma querida, mas, se não se importa… preciso
pegar meu chefe emprestado. Tenho algumas pessoas querendo falar com
ele sobre uma transação superimportante que está acontecendo no Oriente
Médio e…
A forma como Bianca começou a tagarelar sobre a situação fictícia
acabou me arrancando uma risada sincera.
— … coisa realmente importante, sabe? O sheik de Abu Dhabi está no
telefone e…
— Tudo bem, Bianca — interrompi sua mentira deslavada porque se
continuasse acrescentando detalhes, acabaria deixando explícito o
fingimento. — Nos falamos em outro momento, Nicole. Aproveite a festa!
— A sugestão era meramente por educação, a chance de nos encontrarmos
em outro momento era nula, mas a diplomacia era importante.
Nicole não teve tempo de responder, Bianca e eu a contornamos e
seguimos em direção à área onde o jantar ocorreria, e como se fosse uma
atitude comum, a loira entrelaçou seu braço no meu e me olhou com um
meio sorriso.
— Eu fui incrível na minha história, não fui?
Ri baixo.
— Talvez envolver o sheik tenha sido um pouco exagerado — falei
em tom divertido, vendo-a revirar os olhos e olhar por cima dos ombros. —
Bom, eu só repeti o que ouço vocês falarem o tempo todo. Não julgue
minha história, ela te tirou de uma saia justa.
— Acho que eu estava me saindo bem em sair dela — defendi,
ignorando os olhares curiosos.
Ninguém pensaria que eu estava me envolvendo com a Bianca
simplesmente porque Leandro e ela não esconderam o envolvimento deles
desde que chegaram. Vários convidados viram os dois se beijando, porque
meu amigo — que insiste que não tem qualquer interesse nela — fez
questão de marcar território como um cachorro mijando no poste. Por isso,
no máximo estavam se questionando se eu aprovava o relacionamento dos
dois.
Não havia uma regra específica que proibisse relacionamento entre
eles, mas eu sabia que nem todos viam aquilo com bons olhos. O lado bom,
era que Bianca não se importava com nada, tampouco Leandro.
— Onde está a Nathalia? — Meus olhos vagaram entre as mesas em
busca da minha mulher, mas ela não estava em lugar nenhum. Leandro
também não, o que me deixou um pouco mais despreocupado.
Como era uma cerimônia tranquila e com restrição de convidados,
havia dispensado Marcus para que descansasse antes de irmos para a minha
casa. Não havia necessidade de ter um segurança nos acompanhando entre
os convidados, e Nathalia havia sido categórica quando ordenou que o
rapaz relaxasse e aproveitasse as dependências do hotel.
Bianca olhou em volta, procurando pelos outros dois que deveriam
estar aqui, mas uma linha de preocupação em sua testa denunciou que ela
não fazia ideia de onde eles se meteram.
Meu primeiro instinto foi procurar por Guilherme, porque se ele não
estivesse por perto era o suficiente para que eu fosse atrás dos dois, mas ele
estava no meio do salão, conversando com Bruno Palheiros e Charles
Bellini como se fosse o maldito anfitrião da festa.
Isso me deixou um pouco menos tenso, e quando a silhueta de
Leandro surgiu no meu campo de visão, vindo do corredor paralelo que
levava de volta para o lobby do hotel; relaxei ao encontrar Nathalia ao seu
lado, rindo de alguma coisa que meu amigo havia dito.
Bianca e eu nos encontramos com eles na mesa destinada para nós e
que dividiríamos com Roberta, Frederico e Celine. Os olhos de Nathalia
encontraram os meus e ela apertou os lábios em um sorriso sem jeito, e
rapidamente desviou para encontrar Celine.
— Por que não se juntou a nós lá na frente? Tinha um lugar reservado
para você. — A mulher ruiva questionou, segurando o rosto de Nathalia em
suas mãos com carinho.
A pequena torceu os lábios sutilmente e apenas balançou os ombros.
— Não quis deixar a Bia e o Gabriel sozinhos.
Celine anuiu, virando-se para mim e sorriu com admiração.
— Essa menina é uma joia preciosa, não é, Renatinho? — Apesar de
saber dos conflitos que Nathalia tinha com Celine, era visível que o afeto da
mulher por ela era genuíno e isso me tranquilizava. Celine era uma versão
feminina de Frederico, o que talvez explicasse a sintonia entre as duas.
Meneei a cabeça, devolvendo o sorriso e concordando com o seu
comentário.
— Ela é realmente um achado — falei, vendo Nathalia revirar os
olhos e desviar sua atenção para outro ponto para esconder sua timidez.
Celine que não tinha dimensão do quanto eu realmente considerava
Nathalia extraordinária, apenas concordou e se voltou para a garota,
metralhando-a com seus comentários sobre a festa.
Leandro, Bianca e Frederico que estavam cientes do que existia entre
nós, aproveitaram a distração de Celine para reajustar as posições nas mesas
e trocaram o lugar da mulher pelo de Nathalia, deixando-a sentada ao meu
lado.
— Ah, olhe só como estou distraída! — Celine deu um tapa de leve
em sua testa ao ver que ia se sentando onde indicava o lugar de Nathalia, o
que arrancou uma risada de Bianca.
— Amiga, você viu que eles conseguiram colocar uma escultura de
gelo? — fofocou, o que atraiu a atenção de Celine para a informação e a
mulher começou a falar sem parar sobre isso.
Afastei a cadeira e Nathalia aceitou o convite para se sentar também.
Como o jantar aconteceria na área externa, assim como a cerimônia,
contávamos com uma iluminação mais fraca ao redor e mal tive tempo de
me sentar, antes que a mão pequena se encaixasse na minha e ela me desse
um sorriso fraco.
— Podemos ir embora agora — sugeri, baixo, aproveitando que todos
estavam envolvidos na conversa que Bianca havia trazido à tona. Roberta
era a única calada e não demorou a se levantar com a desculpa de ir fumar.
Nathalia balançou a cabeça, dispensando a minha oferta.
— Não, tudo bem. Vamos seguir o combinado, uma hora… e saímos.
— Sorriu e apertei seus dedos, notando que estavam gelados demais.
Apesar de estarmos na área externa e da brisa vinda do mar, não estava tão
frio para que sua temperatura tivesse caído tanto. — Não é como se um
desastre pudesse acontecer em tão pouco tempo. — Aquilo parecia ser mais
uma coisa que estava dizendo para se convencer.
— Não precisamos ficar tanto tempo. Já assistimos a cerimônia,
cumprimentamos os noivos e agora podemos sair discretamente. É mais do
que o suficiente.
Ela fez uma careta e apertou os cílios no meu rosto.
— Posso lidar com isso, Renato.
— Não estou dizendo isso. A questão é que você não precisa.
Nathalia balançou os ombros novamente.
— Uma hora e saímos.
Concordei, porque sabia que discutir com ela quando estava decidida
era uma batalha perdida. O máximo que aconteceria, seria comprar uma
briga desnecessária.
— Você também estranhou a presença de algumas pessoas? —
perguntou, inclinando o corpo em minha direção e afastei uma mecha
teimosa do seu rosto, aproveitando para arrastar os dedos levemente em sua
pele sedosa.
— Sim — compartilhei, desviando o olhar dela para outra mesa a uma
pequena distância da nossa —, Bruno não teria vindo se não tivesse algum
motivo para isso.
Um vinco surgiu em sua testa e meu indicador acariciou a região,
desfazendo a pequena ruga.
— Você tem algum problema com ele?
Foi minha vez de esboçar uma careta.
— Ele tem um problema comigo — disse simplesmente, lembrandome que precisava conversar com ela sobre a decisão que tomei semanas
atrás. Não gostava de esconder coisas dela.
— Isso tem a ver com você ter desistido da compra daquele escritório
em Nova Iorque? — indagou, pegando-me desprevenido e Nathalia apertou
os olhos no meu rosto —, ironicamente, na mesma época que a equipe deles
desmarcou a nossa entrevista.
Sorri, percebendo que ela estava mais do que ciente do que eu havia
feito.
— Não julgue um homem por tentar conseguir uma profissional
exemplar.
Nathalia riu baixo.
— Claro, isso foi unicamente por causa do meu currículo… não por
conta das acusações que o Bruno empurrou para debaixo do tapete e todo o
dinheiro que andou gastando com acordos de confidencialidade? — insistiu,
fazendo com que eu precisasse me aproximar dela para que não escutassem
nossa conversa.
— Falei sério quando disse que até o fim daquele aviso prévio, você
estava sob a minha responsabilidade.
Nathalia virou o rosto, sua respiração calma colidiu com a minha e ela
meneou a cabeça.
— Como você descobriu?
Foi a vez dela fazer uma careta e suas bochechas ruborizaram.
— Gaspar é um velho amigo.
Não precisei pensar muito para descobrir que com “amigo”, ela quis
dizer que eles já se envolveram no passado. Tinha noção de que Nathalia
tinha se relacionado com outros homens antes de mim, mas a imagem dela
com qualquer outro me causava embrulho no estômago.
— A mulher que você estava conversando…?
— O mesmo.
Nathalia riu baixinho, sem humor e apanhou sua taça de champanhe,
bebendo um gole longo e soltando um suspiro.
— Sabe, monges são celibatários… o Leandro esqueceu de te dizer
isso? — perguntou, fingindo indignação. — Seu título de eremita deveria
ser revogado.
— Em minha defesa, nunca concordei com ele.
Nathalia entreabriu os lábios e me deu um tapa de leve na mão.
— Seu cretino! — As palavras saíram sem som, mas eram claras o
suficiente para que eu as escutasse. — Ela está entre as que tentaram se
aproximar dos meninos?
Algo na sua pergunta deixou claro que o ciúme tinha mais a ver com
uma possível aproximação de Nicole dos meninos, do que por minha causa.
— Ela não é importante, anjo.
— Claro…, mas ela está?
Apertei seus dedos em minha mão, transmitindo calor e sentindo
como sua pele começou a ganhar uma temperatura mais alta.
— Sim. — Foi tudo que respondi, porque sabia que ela não deixaria
isso de lado enquanto eu não contasse.
Adiar a resposta ou evitá-la só faria com que Nathalia pensasse que
Nicole tinha sido mais importante do que de fato havia sido. Nosso
envolvimento não passou de alguns poucos encontros casuais e como era
uma sócia no escritório, ela acabou convivendo com Igor nas vezes em que
ele ficava na minha sala por algumas horas enquanto eu finalizava
pendências.
Ela até tentou se aproximar, mas fui claro quando disse que meus
filhos eram um limite que não deveria ser cruzado sem a minha autorização.
Depois disso, o relacionamento casual não avançou. Nicole queria
compromisso, e eu não. Sua saída do escritório havia sido uma decisão que
tomou porque na sua cabeça, eu fui um babaca insensível que brincou com
seus sentimentos — ainda que tivesse sido sincero desde o início.
Nathalia meneou a cabeça e me deu um sorriso mais confiante.
— Quarenta minutos e saímos — falou, murmurando que precisava ir
ao toalete e levando Bianca com ela.
Acompanhei as duas por todo o percurso de volta para dentro do
hotel, mantendo Guilherme no meu radar durante todo o tempo.
Normalmente, eu conseguia deixar a minha desconfiança de lado e
seguir o teatro que as pessoas esperavam que eu interpretasse.
Anos de experiência em meio a olhares atentos, ensinaram que eu não
precisava deixar minhas intenções e desconfianças explícitas, era mais
sábio da minha parte manter uma máscara impenetrável para que não
soubessem qual seria o meu próximo passo.
Entretanto, minha intuição não estava me permitindo relaxar e isso se
dava ao fato de me sentir como um maldito bicho em exposição. Meu pai
era um delegado federal treinado e se tinha uma coisa que ele me ensinou,
foi a nunca deixar de ouvir os meus instintos e eu seguia esse conselho a
ferro e fogo.
Aproveitando a ausência de Nathalia e de Bianca, indiquei para
Leandro que iria sondar o que estava acontecendo e abandonei a mesa para
trás, sem deixar de notar que Roberta tinha desaparecido. Não me
surpreenderia se ela tivesse usado a desculpa do cigarro para ir embora
daquela farsa de uma vez por todas.
Talvez se Nathalia ainda estivesse conversando com ela, Roberta
tivesse ficado por mais alguns minutos, mas com todos na mesa ignorando a
sua presença; era sensato da sua parte que fosse embora.
Não era como se a situação fosse uma escolha feita por nós, Faroni
ultrapassou limites rígidos com a Nathalia e ser ignorada era uma
consequência. O fato de Bianca e Leandro terem comprado as dores e
ficado ao lado da minha mulher, era apenas uma prova de que às vezes,
nutrir amigos e conquistar suas lealdades, era mais importante do que
acumular influência.
Augusto Ricci estava sozinho no bar do outro lado do jardim,
distraído em seu celular e estava em sua quarta dose de uísque desde que a
cerimônia havia acabado, isso era um ponto positivo, porque significava
que ele estaria mais aberto ao meu questionamento.
— Renato! — Sorriu, batendo a mão em meus ombros e abrindo
espaço para que eu ocupasse o banco ao seu lado. — Sou o único que fica
entediado com casamentos?
— Leandro é um dos maiores inimigos do evento, então, acho que
você tem companhia — falei, despreocupado e acenei para o bartender,
pedindo por uma dose de Hennessy. Ricci me acompanhou no pedido e isso
me fez lembrar de uma informação que soube há pouco tempo. — Como
anda o processo de divórcio?
Ele riu, amargo.
— Um inferno. Natasha parece estar determinada a arrancar cada
centavo do meu bolso, como se depois de ter um caso com o filho da puta
do Bruno a tornasse merecedora de me exigir qualquer coisa — rosnou,
apertando o copo praticamente vazio entre seus dedos.
Ali estava o motivo para que eu tivesse vindo atrás de Augusto para
sondar o que estava acontecendo: ele tinha um problema pessoal com Bruno
Palheiros, o que o tornava meu aliado.
— Talvez eu procure seu escritório para intermediar a negociação.
Meus advogados de merda estão insistindo que por conta do acordo, ela vai
acabar ficando com metade de tudo o que é meu — compartilhou, aceitando
o copo que o rapaz colocou na sua frente e o ergueu em minha direção. —
Se aceita um conselho de um ex-companheiro da WHU: não se case.
Aquiesci, brindando com ele e bebendo um pequeno gole, enquanto
Ricci virou o líquido de uma única vez.
— Apareça no escritório, tenho certeza de que podemos lidar com a
situação com Natasha sem que você se prejudique — ofereci, cordialmente.
Fazer o que eu fazia exigia muito mais do que conhecimento de
mercado e de como operar na bolsa de valores. A RCI prestava um serviço
que ia muito além do gerenciamento de investimentos, nós realmente
cuidávamos de tudo o que envolvia o patrimônio dos nossos clientes; isso
às vezes significava: a pessoa por trás do CPF e CNPJ.
Eu tinha lidado com mais acordos de divórcio do que podia contar,
porque era muito mais simples conseguir um consenso quando não se tinha
um advogado do lado, jogando cláusulas e mais cláusulas sobre a mesa. Na
maioria dos casos de divórcio, o ego era o maior problema entre as duas
partes. A briga nunca era por dinheiro, mas pela reputação. Augusto Ricci
não ficaria pobre e miserável se cedesse os valores que sua esposa estava
pedindo, mas o seu ego? Ele nunca lidaria bem com a ideia de sair com
fama de homem traído que cedeu dinheiro para a mulher gastar com o
amante. Principalmente, quando o amante era seu rival.
Bruno Palheiros era péssimo em muitas áreas da vida dele, mas se
tinha uma coisa que o desgraçado tinha habilidade; era em conquistar
inimigos pelo caminho.
Algumas pessoas simplesmente não aprendiam que de nada valia
subir em cima de outras para chegar mais rápido ao topo, se no meio do
caminho, deixava uma multidão de inimigos furiosos e aguardando por uma
revanche. Estar no topo, não significava que você ficaria ali por muito
tempo. E conquistar algumas poucas pessoas leais, era a chave para
permanecer em uma posição de influência.
Outro detalhe importante nesse meio, era que nunca se buscava por
uma informação de primeira. A melhor forma de conseguir algo de uma
pessoa, era não permitir que ela soubesse o que eu queria. Fingir me
interessar pelo divórcio de Augusto era apenas um pretexto para conseguir
outra informação, e ela caiu no meu colo após a terceira dose de Hennessy:
— Sinceramente, não pensei que vocês iriam colocar o escritório à
venda tão cedo — balbuciou Augusto, ligeiramente bêbado e minha
atenção, que estava concentrada na busca por Nathalia, se voltou para ele de
imediato.
— O que você disse?
Ricci apoiou o braço no balcão e balançou os ombros, alheio à
informação que tinha acabado de jogar no meu colo.
— Ora, não é para isso que fizeram todo esse circo e convidaram
todos os nomes influentes do mercado? — ponderou Augusto, franzindo o
cenho. — Não duvido que nessa altura do campeonato, Bruno tenha feito
uma proposta pela aquisição… — mastigou, amargo. — Sinto muito, mas
até a conclusão dessa porra de divórcio, meus bens estão bloqueados…
então, só vim pela bebida de graça!
Mal processei as palavras embriagadas que saíram da boca de
Augusto depois que o entendimento me atingiu como um soco bem no meio
do rosto, o sangue começou a ebulir em minhas veias, tornando-se ácido e
corroendo cada resquício de autocontrole que eu havia sustentado até
aquele momento com o filho da puta do Guilherme.
Eu o mataria, isso estava decretado.
Sua morte viria pelas minhas mãos, porque eu só sairia de cima dele
quando tivesse certeza de que ele não sobreviveria. Apenas desse jeito
conseguiria fechar os meus olhos e dormir em paz.
Filho de uma puta!
Tudo se tornou mais claro na minha mente, e eu me senti um estúpido
por não ter deduzido aquilo antes. A exigência para que todos os sócios
estivessem presentes, a nossa exposição na primeira fila para que todos nos
vissem como animais à venda, os fotógrafos que estavam mais dedicados
em tirar fotos nossas do que da cerimônia; a quantidade de CEOs de
corretoras, bancos e gestoras, que estavam presentes e tentando a todo custo
uma brecha para conversarem comigo sobre a fusão…
Cerrei a mandíbula, apertando com tanta força para tentar conter a
minha irritação que cogitei que pudesse quebrá-la.
Vasculhei cada maldito centímetro disponível em meu campo de
visão, mas Guilherme parecia ter evaporado completamente.
Em um instante, ele estava à minha vista e no seguinte, não estava
mais.
E antes que eu pudesse ir atrás do desgraçado, outra coisa muito mais
importante capturou minha atenção. Sem me importar com Augusto, porque
já havia conseguido o que queria, caminhei em passos apertados até a mesa
em que nossos amigos estavam e esquadrinhei o lugar, confirmando que ela
não estava em lugar nenhum.
— Cadê a Nathalia? — Bianca se assustou ao me ver e franziu o
cenho, parecendo só ter se dado conta da ausência da amiga naquele
momento.
Meu instinto praticamente berrou que algo não estava certo.
— Ela disse que ia atender uma ligação e voltava…
Não deixei que Bianca concluísse, porque o desaparecimento de
Nathalia juntamente com o sumiço de Guilherme me deixou em estado de
alerta.
Busquei pelo meu celular, discando o número dela na tentativa de
descobrir se havia ido para o quarto ou se tinha enviado alguma mensagem
para indicar para onde iria, mas tudo o que recebi foi o silêncio.
Ela não atendia a porra do telefone, e aquilo era um maldito sinal
vermelho. Nathalia e o aparelho eram praticamente um só e ela nunca
ficava muito tempo longe dele.
Atravessei o salão, ignorando alguns chamados e entrei no hotel,
vasculhando cada parte do lobby enquanto ligava para Marcus, a fim de
descobrir se Nathalia havia subido para o quarto.
— Não, chefe, ela não está no quarto — disse Marcus, elevando a
minha preocupação ao limite. — Estou descendo para ajudar a procurá-la.
Não me dei ao trabalho de responder e cruzei a recepção, parando em
frente ao balcão para confirmar se tinham visto Nathalia, afinal, ela era a
neta do proprietário e era impossível que passasse despercebida.
— Não, ela não passou por aqui desde que o jantar começou — disse
a recepcionista mais jovem.
Minha respiração pesou na caixa toráxica e antes que retornasse para
a área externa, Leandro me encontrou no meio do saguão.
— O que houve?
— Nathalia e Guilherme sumiram — esclareci, sem precisar adicionar
detalhes porque Leandro estava mais do que ciente de todo o histórico
envolvendo os dois.
— Vou ver perto da praia. — Meu amigo não esperou por uma
confirmação de que eu tinha escutado, antes de correr para a saída que
levava diretamente para a faixa de areia.
Novamente, certifiquei-me de procurar por Nathalia entre os
convidados do evento e ao não a encontrar, atravessei para o outro lado do
jardim que levava para a piscina. Aquela parte do hotel não estava inclusa
nos espaços da festa, e se Nathalia tinha procurado por um lugar para
respirar longe de toda aquela farsa, meu instinto gritava que seria por ali.
Mal tive tempo de alcançar o primeiro lance de escada, antes que
meus olhos localizassem a silhueta de Guilherme pressionando alguém
infinitamente menor que ele contra o muro de concreto que protegia o
parapeito e garantia que ninguém caísse daquela altura. O celular da mulher
estava estraçalhado no piso e suas mãos estavam sendo presas pelo aperto
da outra mão de Bastos.
O tecido marsala esvoaçante denunciava quem era a vítima do
desgraçado, e quando flagrei sua mão segurando firmemente a garganta
dela e a forçando a olhar para ele… eu perdi o controle.
Em um minuto, o rosto torturado de Nathalia surgiu em meu campo
de visão com lágrimas borrando a maquiagem perfeita; no segundo
seguinte, o rosto de Guilherme o preencheu, meu punho acertou sua
mandíbula com força e ele foi direto ao chão.
Isso não foi suficiente, o acertei mais uma vez e outra.
A sensação do osso do seu nariz se quebrando atingiu meus dedos,
minhas juntas queimaram e o sangue espirrou em minha camisa. E ainda
não era o bastante.
O rosto de Guilherme ganhou um formato estranho, tomado por
sangue e alguém tentou me tirar de cima dele, mas eu não enxergava nada,
além do rosto de Nathalia enquanto era pressionada contra o concreto.
O relato de Nathalia semanas atrás retornou em minha mente, dando
ainda mais força à minha fúria.
“(…) quando fiz menção a sair da sala… ele me puxou de volta pelo
cabelo e me jogou na parede, então, usou uma mão para segurar o meu
rosto e… ele disse para a Roberta que eu dei a entender que queria aquilo…
que o provoquei.”
Meu punho acertou um rosto não identificado, libertando-me do
aperto que tentou me tirar de cima dele e voltei a golpear Guilherme.
Uma. Duas. Trinta fodidas vezes.
E a última coisa que vi antes de vários braços me tirarem de cima
dele, foi o desgraçado perdendo a consciência.
Meu olhar percorreu os rostos familiares, buscando por qualquer sinal
daquela emoção que era comum encontrar durante a comemoração do amor
de duas pessoas, mas não havia nada.
Ninguém ao redor parecia estar se preocupando com o motivo para
estarem espalhados pelo salão, tampouco com a união que haviam acabado
de presenciar.
Claro, eu já tinha estado em outros casamentos em que o amor não era
o principal objetivo na união entre o casal, mas… sempre havia algo, nem
que fosse ressentimento entre as famílias ou uma tensão serpenteando ao
redor, buscando por uma mísera fagulha para causar uma explosão que
acabaria em um dos tabloides nova-iorquinos.
Eu cresci lidando com pessoas da elite norte-americana. Conhecia
todos os detalhes sórdidos por trás de relacionamentos onde a única coisa
que importava, era a junção dos patrimônios que dois sobrenomes
proporcionariam. E ainda assim, aquele evento em que eu estava parecia ser
milhões de vezes pior.
Era ruim o suficiente para que eu precisasse me afastar e ganhar
alguns minutos de ar puro, porque sentia que asfixiaria caso continuasse
presa naquela bolha sufocante.
Tudo era falso em um nível que incomodava.
Cada olhar parecia estar mais do que compenetrado em mim, como se
eu fosse a principal atração da festa e não os noivos. Isso era horrível,
porque a sensação que eu tinha era de que, desde que passei pelas portas de
vidro, me tornei um animal em exposição.
Forcei um sorriso ao passar por alguns conhecidos e ao ser parada
pela décima vez, decidi alternar o trajeto e ir para outro lado do jardim.
Como a festa era na área externa, a piscina principal do hotel estava com o
acesso fechado.
No entanto, algumas semanas praticamente morando na suíte
presidencial enquanto acompanhava meu avô quando era mais nova, me
deram habilidade de encontrar uma alternativa de passar pela proteção que
isolava a entrada.
Em minutos, estava descendo os poucos degraus e o ar escapou dos
meus pulmões com mais leveza. O alívio foi imediato e conforme
contornava a piscina para alcançar o parapeito que concedia uma visão
privilegiada do oceano, tentei me convencer que só precisávamos ficar ali
por mais vinte minutos.
Apenas vinte minutos.
O que de tão ruim poderia acontecer?
Abandonei meu celular no parapeito e concentrei minha atenção na
imensidão sombria que se pintava na minha frente, as luzes de alguns
prédios em volta do calçadão iluminavam a avenida em frente à praia e o
reflexo da lua banhava a água escura.
De onde estava, eu até conseguia ver algumas pessoas se aventurando
para entrar na água fria. Qualquer coisa parecia mais divertida do que
passar os próximos minutos aturando aquelas pessoas. Nem mesmo os
noivos, eu tinha visto depois que a cerimônia foi encerrada. Eles
evaporaram. Quase como se nunca tivessem existido e tudo isso não
passasse de um fruto alucinógeno da minha cabeça.
Por sorte, eu sabia que não tinha bebido demais. Não o suficiente para
estar imaginando coisas.
Suspirei, inspirando o ar profundamente e criando coragem para
enfrentar o teatro que foi armado no jardim. Expirei-o, sem pressa,
repetindo o processo mais algumas vezes até sentir que meu coração não
estava tão acelerado quanto antes.
Mas o problema com a esperança? O universo sempre dava um jeito
de massacrá-las.
E quando girei nos calcanhares e dei de cara com Guilherme Bastos
parado a pouco menos de um metro de distância de mim, amaldiçoei cada
pedaço da minha mente que ousou acreditar que nada de ruim poderia
acontecer. Estar a menos de um quilômetro daquele homem era péssimo o
suficiente.
Meu corpo inteiro sentia repulsa da sua atenção, e ele parecia apreciar
o sentimento ruim que desencadeava sempre que me olhava.
— Seria educado da sua parte cumprimentar todos os convidados do
casamento, Nathalia.
Sua voz soou condescendente e meu estômago vazio revirou em
resposta, nem mesmo as duas taças de champanhe que tinha bebido nos
últimos cinquenta minutos, conseguiram aplacar o nojo que eu sentia dele.
Não me dei ao trabalho de tentar respondê-lo, não tínhamos qualquer
assunto em comum e eu não fingiria que não sabia exatamente o tipo de
pessoa que Guilherme era.
Eu toleraria lidar com ele no escritório, nas poucas vezes em que
precisássemos interagir e rezaria a qualquer entidade existente para que
uma chance de o tirar do escritório caísse no meu colo. Um erro. Só
precisava que ele cometesse um erro grave o suficiente para que
convencesse um número considerável de sócios a votarem a favor da sua
saída. Até lá, era graças a mim que ele tinha passe livre para atravessar o
meu caminho e me empurrar para a beira do precipício.
No fim das contas, talvez ele fosse realmente mais inteligente.
Diferente de mim que submeti qualquer tentativa de tirá-lo do
escritório a uma reunião de Conselho repleta de burocracias.
O único motivo para que um sócio pudesse solicitar a saída de outro
ao Conselho, era mediante a uma atitude que pudesse prejudicar a reputação
e credibilidade da firma. E por mais que eu tivesse me dedicado nas últimas
semanas a monitorar cada mísera operação feita por ele, tentando encontrar
qualquer falha que pudesse justificar um pedido, Guilherme parecia ser
mais limpo do que uma folha de guardanapo em branco.
Nada.
Nenhuma mísera operação acima do limite diário.
Ou reclamação de cliente por um atraso.
Ele era “perfeito” naquele quesito.
E me obrigava a ter que engolir a sua presença até que ele cometesse
um deslize. Isso aconteceria uma hora ou outra, porque pessoas como
Guilherme Bastos sempre passavam dos limites.
— Estou surpreso de que seu relacionamento com Renato esteja
durando tanto… — provocou, dando um passo em minha direção e capturei
meu celular, determinada a me afastar antes que ele encontrasse uma forma
de me tirar do sério outra vez. — Normalmente, depois que promove e
consegue comer a vagabunda até enjoar da boceta dela… ele passa para a
próxima, mas, suponho que como a sua amiga está abrindo as pernas para o
Leandro…
Virei-me, sentindo o sangue ferver em minhas veias e odiando aquela
parte do meu cérebro que não era capaz de ignorar a sua provocação.
Guilherme sorriu de um jeito estranho, quase como se esperasse que
aquilo me atingisse em cheio e odiei constatar como eu podia ser previsível.
— Talvez seja algo a ver com todo o ouro e pompa que te cerca…
afinal, não é qualquer um que consegue a boceta herdeira de Miguel Gama,
não é mesmo? — Meu estômago embrulhou, não pela acusação, mas pela
forma como as palavras saíam sujas da sua boca. — É a única coisa que
você tem de especial, não é? O fato de ser filha de Miguel, é o que te torna
algo diferente de uma cadela prepotente…
Engoli em seco, sentindo a fúria se espalhar em minhas veias, odiando
como o meu cérebro não conseguia simplesmente ignorar suas palavras e
deixá-lo falando sozinho.
— Isso te faz parecer algo digno de atenção, não apenas um buraco
apertado que qualquer um pode enfiar o pau até que… — minha mão livre
avançou em direção ao seu rosto antes que ele pudesse concluir. Contudo,
Guilherme previu aquele movimento e capturou o meu pulso com
brutalidade, sua outra mão avançou em meu rosto e minha pele queimou
com o impacto do tapa.
Não tive tempo de tentar me defender, no segundo seguinte, minhas
costas se chocaram contra o concreto do parapeito e um arquejo dolorido
escapou do fundo da minha garganta, quando a dor da pancada se espalhou
e pareceu ter massacrado meus ossos.
Meu celular caiu no chão e tentei me soltar de Guilherme, mas sua
mão rapidamente capturou o meu pulso esquerdo, mantendo os dois presos
em uma mão, apertando com tanta força que eu sentia que ele poderia
quebrar com um simples movimento.
O cheiro de álcool emanando dele me atingiu em cheio quando seu
hálito bateu a poucos centímetros do meu rosto. Virei para o lado oposto,
tentando me afastar da proximidade, mas sua mão que havia acertado minha
bochecha, forçou que eu voltasse a olhar para ele.
— Você achou mesmo que teria uma segunda chance de me dar um
soco, vadiazinha? — rosnou, entredentes, seus olhos tão escuros e raivosos
quanto nunca.
Os dedos apertaram minha carne, mais forte, machucando. Senti as
lágrimas rolarem sem minha permissão. Isso arrancou um sorriso sádico do
homem na minha frente.
— Não, não… guarde essas lágrimas para quando você estiver sendo
fodida por um homem de verdade, linda. — Seu polegar se arrastou em
minha pele, de um jeito áspero. — Quero vê-las quando essa boceta de ouro
estiver sendo esfolada e começar a sangrar no meu pau. Porque eu vou te
comer com tanta força, que você nunca mais vai conseguir andar sem
lembrar da sensação…
Tudo aconteceu em um piscar de olhos.
Em um segundo, a bile subiu pela minha garganta e cada célula do
meu corpo se preparou para o seu avanço. Ele tinha o dobro do meu
tamanho. Era dez vezes mais forte do que eu… não havia a menor chance de
que eu conseguiria me livrar dele.
No seguinte, uma sombra avançou e Guilherme foi tirado de perto de
mim. As lágrimas e soluços que estavam presos em minha garganta se
desvencilharam e minha visão clareou, a tempo de ver as costas de Renato
enquanto ele subia em cima de Bastos e esmurrava o seu rosto,
repetidamente.
Congelei, sem conseguir me mover.
Meu corpo inteiro parecia ter perdido o rumo e tudo o que via, era o
punho de Renato se chocando uma… duas… dez vezes no rosto de
Guilherme.
Momentaneamente, a minha audição se perdeu.
Tudo ao meu redor não passou de zumbidos distantes, e mesmo
quando vi a silhueta de Leandro quebrar a distância entre nós para tentar
retirar Renato de cima do homem caído no chão, semi-inconsciente, e
acabar sendo esmurrado no processo, eu não consegui reagir.
O ar se tornou rarefeito ao meu redor, as paredes começaram a se
fechar e meus olhos só se concentravam no punho de Renato acertando
novamente o rosto de Guilherme. Ele não parou, mesmo quando tudo o que
tinha na sua frente era uma face deformada e banhada de sangue.
Meu coração martelou no peito, violentamente.
Minhas pernas tremiam e eu sentia a força se esvair dos meus poros a
cada segundo. Passos se arrastaram em algum ponto, um burburinho soou
ao fundo e a sensação de dezenas de olhos sobre mim me atingiu, quando
vários seguranças correram até Renato e o retiraram de cima de um
Guilherme inconsciente e com o rosto inteiramente desfigurado.
Incapaz de sair do estado de inércia, meus olhos acompanharam
quando arrastaram Renato para longe e socorriam o homem no chão.
Minha atenção voltou para Renato, como se ele fosse a bússola que
me mantinha firme em pé, buscando por ferimentos. Meus joelhos
vacilaram ao ver sua camisa branca manchada com os respingos de sangue.
Seu rosto havia se transformado, a calmaria e o autocontrole habituais
desapareceram e deram lugar a uma expressão que era o retrato da fúria e
brutalidade. Quando as íris castanha-escuras recaíram sobre mim, eu me dei
conta de que as lágrimas ainda estavam molhando meu rosto e que o tremor
em meu corpo era evidente.
Renato se desvencilhou dos seguranças, mas como se eu precisasse
ver seus olhos sobre os meus para recuperar os sentidos; a noção do
ambiente me atingiu e olhei ao redor, deparando-me com centenas de olhos
sobre mim.
O ar se perdeu nos meus pulmões e minhas costas que ainda estavam
pressionadas contra o parapeito, arderam pelo impacto anterior e cambaleei
para frente, tentando recuperar o equilíbrio.
Meu cérebro se desvencilhou da névoa densa que havia se escondido
durante o confronto com Guilherme, e a constatação de que todas aquelas
pessoas estavam me vendo chorar, fez com que aquele monstro em minha
cabeça despertasse e me pegasse pela garganta, aumentando a pressão das
paredes que me comprimiam, fazendo com que o chão se tornasse instável e
embaçando a minha visão, como uma punição por ter me exposto daquela
forma.
Naquela altura do campeonato, eu já não me lembrava do motivo para
ter saído da festa e vindo até a piscina, a única coisa que eu sabia era que
precisava sair daquele lugar o quanto antes.
Demonstrar vulnerabilidade no meio em que cresci era o mesmo que
dar uma arma carregada na mão dos inimigos, e deixar que apontassem
direto para a minha cabeça. Sempre evitei confrontos por um motivo muito
maior do que o medo de fazer inimigos, eu odiava a exposição em que eles
me colocavam.
E naquele momento, os olhos daquelas pessoas perfuravam minha
pele como flechas afiadas, atravessando meu corpo e decretando a hora da
minha morte.
Amanhã, todos saberiam que Nathalia Gama havia saído da torre de
marfim em que se protegeu por todos esses anos, e sangrou no mar de
tubarões.
Sem saber de onde havia tirado forças, alguma coisa escapou dos
meus lábios quando Bianca correu em minha direção e me afastei, correndo
para longe e deixando toda aquela exposição para trás.
Mal consegui enxergar os rostos na minha frente, tudo o que meu
cérebro se concentrou foi na sensação de que as paredes estavam se
fechando e iriam me destruir. A bile subiu pela minha garganta e empurrei a
porta de madeira, ouvindo o baque violento dela colidindo com a parede e
me ajoelhei em frente a cabine mais próxima, jogando todo o conteúdo do
meu estômago para fora.
O suor escorria por minhas costas e o vômito saiu sem esforço,
causando espasmos em meu corpo. Pude ouvir alguém se aproximar e meus
músculos enrijeceram, o medo avançou sob minha pele como gasolina em
brasa e uma mão segurou meu cabelo, impedindo que ele caísse em meu
rosto.
— Calma, pirralha… estou aqui. — A voz de Leandro fez com que o
pânico diminuísse e tentei empurrá-lo para longe, mas ele permaneceu ao
meu lado, segurando meu cabelo e afagando minhas costas até que eu
parasse de expulsar a comida do meu estômago.
Os meus movimentos seguintes aconteceram mecanicamente, fechei a
tampa do vaso sanitário com as mãos trêmulas e apertei a descarga, mas o
barulho dela parecia distante demais. Esfreguei o dorso da mão nos lábios e
senti braços fortes me envolverem, erguendo-me para ficar em pé, porque
não me sentia capaz de fazer isso sozinha.
Senti a água corrente em minhas mãos, o copinho descartável de
enxaguante bucal e o gosto de menta que substituiu o amargor em minha
boca, mas meu cérebro não se prontificou a fazer nada daquilo. Era uma
resposta automática aos incentivos de Leandro que não saiu de perto de
mim.
Como se eu fosse uma boneca, o homem alto e musculoso segurou
firme em minha cintura e me colocou sentada sobre o balcão de mármore
do banheiro. Meus olhos se fixaram na porta de madeira de um dos boxes
que tinha uma placa avisando que estava em manutenção, e o barulho da
água corrente preencheu meus ouvidos duelando com o som ensurdecedor
do meu coração que batia descontrolado.
Leandro surgiu novamente em meu campo de visão, um pedaço de
papel úmido estava em sua mão e pude ver seus lábios se moverem, como
se me pedisse permissão para algo, mas não pude escutar nenhuma palavra.
Tudo o que eu conseguia ouvir era o meu coração batendo na
garganta, forte e dolorido.
Tum. Tum. Tum.
Acho que balancei a cabeça em resposta, porque Leandro tomou
aquilo como incentivo e tocou minha pele com a folha de papel úmida,
arrastando tão suavemente que mal consegui senti-la.
Meus olhos correram pelo seu rosto, notando que aquele semblante
descontraído que ele carregava havia desaparecido. Uma ruga marcava sua
testa e seus lábios estavam cerrados, a mandíbula estava marcada e havia
um pequeno corte no seu lábio esquerdo, deixando uma linha de sangue
marcando seu queixo e a barba rala.
— Nathalia? — Seu chamado me arrancou da inércia e pisquei,
encarando-o e reconhecendo a preocupação em seu rosto —, você precisa
respirar.
Seu aviso repercutiu por todo o meu corpo e o obedeci, soltando o ar
dos pulmões e puxando-o novamente, até que a sensação de sufocamento
aliviasse. Isso trouxe algum conforto para o homem na minha frente e ele
continuou o que estava fazendo, limpando o meu rosto e removendo todo o
resquício de rímel borrado da minha pele.
— Você não precisa… — minha voz soou rouca e tentei erguer a mão
para impedi-lo de continuar cuidando de mim, mas seu olhar de sobreaviso
me fez parar no meio do caminho.
— É melhor que eu fique aqui por enquanto, porque se eu encontrar o
Renatinho agora, é capaz de acabar devolvendo o gancho de esquerda no
filho da puta — resmungou, com uma falsa indignação que, normalmente,
me arrancaria uma risada. — Estou relevando pelo bem da nossa amizade,
então, até que eu me controle… é melhor ele não cruzar meu caminho.
Um suspiro fraco escapou do fundo do meu peito, e a culpa me
nocauteou com violência.
— Desculpe.
Leandro franziu o cenho, parando o que estava fazendo e me olhou,
confuso.
— Está pedindo desculpas pelo quê?
Um nó se instalou em minha garganta, apertando como uma corda
preparada para me enforcar até a morte; impedindo que as palavras saíssem.
Meus olhos marejaram, fazendo com que a minha visão de Leandro se
tornasse um borrão e, sem a minha permissão, um choro descontrolado
irrompeu do fundo do meu peito e cobri o rosto com as mãos, sentindo o
corpo tremer e os soluços ecoarem pelo banheiro frio.
Os braços de Leandro me envolveram e escondi o rosto em seu
ombro, deixando que as lágrimas rolassem e que aquele sentimento de
impotência saísse do meu corpo, porque senão ele iria acabar me matando.
O cheiro de sândalo e baunilha que emanava de Leandro limpou o
odor do hálito embriagado de Guilherme que estava impregnado em minha
memória, trazendo a ânsia de volta. E eu me agarrei ao perfume do meu
amigo, como se ele fosse apagar tudo o que aconteceu minutos atrás.
Leandro não teve pressa de me afastar, ele permaneceu ali e me
acolheu pelo tempo que precisei. Minhas costas ardiam, e eu não precisava
olhar no espelho para saber que ela estava toda arranhada, a parede do
parapeito era áspera e a dor era o suficiente para que eu soubesse que tinha
me machucado.
Não sei ao certo quanto tempo permaneci ali, sentada no balcão de
mármore da pia e chorando nos braços de Leandro, mas quando a presença
de uma terceira pessoa se tornou evidente, eu me afastei, enxugando as
lágrimas porque não queria que mais ninguém presenciasse meu
descontrole emocional.
Eu já tinha me exposto demais para uma única noite.
Desviei os olhos de Leandro para a porta e encontrei uma Bianca
pálida, olhando-me como se eu fosse um fantasma na sua frente e, em um
segundo, ela substituiu Salazar e me envolveu em um abraço apertado e
maternal, como se quisesse que aquele abraço apagasse qualquer coisa dita
ou feita pelo Bastos.
— Sinto muito, amiga, eu sinto muito mesmo — Bianca lamentou,
apertando os braços ao meu redor e me soltou por tempo suficiente para
capturar meu rosto em suas mãos, mas ao ver algo nele, as íris escuras e
melancólicas, foram tomadas por uma selvageria incomum.
Sem saber o motivo, desvencilhei-me do seu toque e virei na direção
do espelho, encontrando a minha bochecha esquerda vermelha, marcando o
desenho dos cinco dedos que a atingiram brutalmente. Como se precisasse
ter visto para me lembrar dela, minha pele ardeu e meu olhar se voltou para
Bianca, notando que Leandro havia sumido.
— Cadê o Renato? — perguntei, sentindo minha voz soar como um
chiado rouco.
Bianca enxugou uma lágrima que rolou em sua bochecha e deu um
meio sorriso triste, como se isso fosse me confortar.
— Ele exigiu vir te ver, mas a segurança o levou para uma sala
privada… eles chamaram a polícia.
A informação que minha amiga soltou, despertou completamente o
meu cérebro da letargia que ele estava imerso e pisquei, limpando as
lágrimas teimosas que ainda rolavam.
Saltei para fora do balcão, segurando no mármore por alguns
segundos para me estabilizar sobre os saltos e esperando que a fraqueza e o
tremor nas pernas passassem.
Bianca tentou dizer alguma coisa, mas não lhe dei ouvidos.
Marchei para fora do banheiro, deparando-me com o saguão do hotel
parcialmente vazio e a segurança do hotel cuidando para que os convidados
do evento fossem levados à saída, ou aos seus respectivos quartos — para
os que estavam hospedados no Marine.
O remorso por ter estragado a festa de casamento de Eliane ameaçou
me atingir, mas empurrei para longe e avancei para o corredor paralelo da
recepção, que levava para a área administrativa do hotel.
Quatro seguranças enormes impediam a entrada e um deles fez
menção a se recusar abrir passagem, mas o homem ao seu lado usou as
palavras que eu tanto odiava: “neta do dono”; e como um passe de mágica,
a minha entrada foi liberada.
Meus olhos localizaram a silhueta tensa de Renato através dos vidros
da sala que era usada pelo meu avô, e bastou um olhar ameaçador para o
outro segurança que estava em frente a porta, que ele soltou a maçaneta e
me deixou entrar.
Mal tive tempo de cruzar o limiar da porta, e seu corpo estava sobre o
meu e suas mãos seguravam o meu rosto com delicadeza, como se eu
quebrasse caso fizesse diferente. Ergui o rosto, encontrando aquela
tempestade nebulosa perpassando pelas suas íris com um turbilhão de
emoções incomuns e a sua intensidade me atravessou, despertando todo o
restante do meu corpo e me arrastando de volta para aquela desordem de
emoções.
Flashes do que ocorreu minutos atrás, do seu punho acertando
Guilherme com crueldade e a sua camisa ainda manchada de sangue, me
causaram uma ebulição angustiante e, contra a minha vontade, as lágrimas
retornaram acompanhadas de soluços ofegantes.
— Está tudo bem, meu amor — ele soprou com os lábios próximos ao
meu rosto e os senti tocarem minha pele, absorvendo minhas lágrimas —,
ele nunca mais vai chegar perto de você. Vou cuidar de tudo, não se
preocupe… — sua promessa trouxe leveza para o peso em meu peito, mas
não foi o suficiente para fazer com que o choro cessasse.
Eu estava um caco.
Seu braço envolveu minha cintura e ele me encaixou contra o seu
corpo, mantendo-me quente e percebi que estava tremendo. Afundei o rosto
em seu peito, deixando que toda aquela sensação de impotência fosse
embora porque eu não conseguiria suportá-la dentro de mim, precisava
expurgá-la antes que meu monstro interior a usasse como uma arma para
me colocar sem vida, no chão gelado.
Minha mente retornou para aquela névoa, mas dessa vez, não havia a
letargia porque o calor de Renato e o afago de seus dedos em meu cabelo
impediam que eu me afundasse nela. Ele era a minha bússola para que não
me perdesse na minha própria cabeça, e eu me agarrei a ele como se
dependesse disso para viver, como se Renato fosse meu bote salva-vidas,
impedindo que eu naufragasse naquele oceano que queria me puxar para as
profundezas.
Imagens do seu punho acertando o rosto de Guilherme retornaram, e
como se pudesse ler a minha mente, seu braço aumentou o aperto e ele
afundou o rosto em meu cabelo; aspirando o meu cheiro como se eu fosse a
sua bússola para reaver o controle perdido no confronto.
O silêncio perdurou na sala por alguns minutos ou horas, sendo
preenchido unicamente pelos meus soluços que diminuíam de pouco em
pouco, conforme meu cérebro se concentrava nos batimentos de Renato que
estavam se tornando mais consistentes e suaves.
O aroma amadeirado mesclado ao cheiro marcante de cravo
trouxeram a sensação reconfortante de estar em casa. Acolhida, como se
nada pudesse me atingir enquanto estivesse escondida nos seus braços.
A consciência de que Renato se tornou esse tipo de figura na minha
vida, trouxe de volta a calmaria e segurança que me abandonaram desde
que esbarrei com Guilherme na piscina; fazendo com que meus próprios
batimentos acelerados se acalmassem, sincronizando ao ritmo dos seus.
— Quero ir para casa — pedi, baixinho, sentindo aquela corda em
volta do meu pescoço afrouxar o aperto. Os dedos de Renato ainda
acariciavam meu cabelo e me afastei, o suficiente para deitar a cabeça em
sua mão e fitar seu rosto.
Aquela imensidão obscura me engoliu, e diferente do efeito que
Bastos causava, Renato trouxe conforto e proteção, removendo a corda
invisível do meu pescoço.
— Tudo bem. — Ele afagou meu rosto, suas íris cravadas em minha
bochecha direita trouxeram a selvageria de volta ao seu rosto. — Raphael e
Marc chegaram.
A mudança brusca de assunto trouxe um vinco para a minha testa e
uma batida suave ecoou, obrigando-me a virar na direção da porta ao ouvir
Renato conceder permissão para a entrada.
Marc foi a primeira pessoa que surgiu no meu campo de visão, os
músculos largos e definidos, o cabelo loiro e curto, a pele branca
ligeiramente bronzeada, os olhos azuis quase cristalinos e o corpo bombado
escondido sob o terno bem recortado e feito sob medida, era uma imagem
com a qual eu estava mais do que familiarizada. Era bem-vinda e
aumentava a sensação de conforto que me invadia.
Contudo, o surgimento de outro homem atrás dele, igualmente alto,
musculoso; mas de cabeça raspada, olhos cor de esmeralda e com uma
tatuagem Old School escapando pela manga da camiseta preta de algodão
que usava, fizeram com que eu me encolhesse perto de Renato ao
compreender o que aquilo significava.
O distintivo de delegado preso na corrente fina de prata, era outro
forte indicativo do que aconteceria nos próximos minutos.
— Renato… — minha voz soou ressabiada, conforme minha mente
juntava as peças e entendia o que estavam esperando de mim.
— Raphael é um velho amigo do Marc e se dispôs a assumir o
chamado para garantir que Guilherme responda pelo que fez. — Renato
apertou seus dedos em minha cintura e se colocou ao meu lado, olhando-me
em incentivo.
Meus olhos se arregalaram e virei-me para o homem desconhecido,
vendo que ele me olhava com cautela, como se estivesse esperando que eu
surtasse e impedisse que se aproximasse.
— Boa noite, Nathalia — cumprimentou Raphael, educado. —
Garanto que seremos rápidos e você poderá ir para casa o quanto antes.
Engoli em seco, sentindo meus batimentos acelerarem outra vez.
— Renato, podemos conversar a sós? — pedi, na verdade, quase
implorei.
Encarei-o, encontrando sua atenção fixa em meu rosto e suas
sobrancelhas se uniram, denunciando a sua confusão. A tensão se espalhou
novamente pelos meus músculos, fazendo com que as minhas juntas
doessem quando estabeleci uma distância física entre nós.
Renato acenou, virando-se para Marc e Raphael, pedindo que os dois
saíssem da sala com um simples aceno.
Quando a porta se fechou atrás de mim, o olhar de Renato me
acompanhou a cada passo enquanto eu andava de um lado para o outro,
tentando encontrar as palavras para explicar minha linha de raciocínio, sem
que ele pensasse que eu enlouqueci.
Talvez, a dificuldade se fez presente porque um parte de mim, a que
estava profundamente abalada e queria garantir que Guilherme nunca mais
se aproximasse, não concordava com o que a minha racionalidade estava
exigindo.
— Não se atreva. — Foi tudo o que Renato disse, fazendo que meus
pés estacassem no meio do caminho. Girei em meu eixo, fitando-o com
apreensão. — Não se atreva a dizer que eu devo deixar isso de lado.
Engoli em seco, detestando a maneira como ele me conhecia ao ponto
de saber o que eu diria, antes mesmo que o fizesse.
— Você não entende… isso vai manchar a minha carreira para sempre!
— esganicei, sentindo as lágrimas queimarem minha visão novamente. —
Já basta os comentários que vão surgir depois do que aconteceu. Se eu
prestar queixa, todos irão descobrir e isso vai me perseguir aonde quer que
eu vá.
Renato espreitou os olhos nos meus, como se estivesse tentando dosar
as palavras para não dizer com todas as palavras que eu estava
enlouquecendo.
Eu não o julgaria.
Não mesmo.
A verdade era que, eu era uma grande hipócrita.
Se fosse qualquer outra pessoa no meu lugar, eu estaria na posição de
Renato. Exigindo que a pessoa fosse em frente e prestasse uma queixa, que
fosse corajosa e marcasse para sempre a palavra: assediador, na vida de
Guilherme Bastos.
Mas eu não era corajosa.
Não, eu sou hipócrita.
Uma grande de uma hipócrita.
Porque ainda que meu conselho fosse ir adiante e prestar a queixa, por
mais que uma parte minha gritasse por isso… tudo o que meu cérebro se
concentrou foi nas consequências.
Nomes e mais nomes surgiram na minha mente.
Caroline Meirelles.
Tabata Cerqueira.
Sayuri Nakamura.
Esses eram apenas três nomes de uma lista que eu conhecia de cor e
salteado. Eram mulheres que assim como eu, esbarraram com um
Guilherme Bastos no meio do mercado e decidiram lutar por justiça.
Elas foram corajosas.
Elas denunciaram.
E desapareceram do mercado.
Seus nomes sequer foram lembrados como vítimas de assédio sexual.
Não, elas foram colocadas como as culpadas por estragarem a carreira de
homens renomados e bem-vistos pela sociedade. Homens que outros
defenderam e alegaram que nunca seriam capazes de fazer algo do tipo.
Homens que se levantaram para alegar que elas deram motivo para as
investidas e eram as responsáveis pelo que lhes aconteceu.
A palavra assédio? Foi completamente riscada, porque tudo o que eles
usaram para falar sobre o ocorrido, foi que elas interpretaram errado; que
exageraram; que eram aproveitadoras querendo atenção.
E a solução que elas encontraram? Sair do mercado e investir em
outra carreira.
Não permitiria que isso acontecesse comigo também.
Eu era covarde demais para lidar com isso.
— Isso não vai afetar a sua carreira, e isso não é o mais importante
aqui, Nathalia. A sua segurança é a única coisa que importa. — A forma
como ele disse meu nome me causou um aperto no peito, porque eu
conseguia sentir a decepção em sua voz ao me ver me acovardando.
Balancei a cabeça, negando.
— É a minha vida. Eu decido o que é importante, Renato — falei,
enxugando as lágrimas teimosas que não paravam de molhar meu rosto. —
Vai ser a minha palavra contra a dele.
— E a minha. De Leandro. Bianca. E de outras cinco câmeras que
ficam naquela parte da área externa. — Ele enumerou, aproximando-se de
mim com cautela, como se reconhecesse a chegada iminente do meu
colapso mental.
— Ele estava bêbado… e eu me afastei de todo mundo, vão dizer que
eu busquei por isso! — As palavras saíram trêmulas e aquela corda
invisível voltou para a minha garganta, apertando e sufocando. — Eu não
reagi. Vão dizer que eu poderia ter me afastado e ido embora, mas eu fiquei
lá. Parada. Mesmo sabendo que ele estava chegando cada vez mais perto.
Eu congelei, Renato.
O soluço escapou alto e uma expressão de dor cobriu o seu rosto. Seu
polegar enxugou as lágrimas que eu não consegui refrear e ele beijou minha
testa, ternamente.
— Anjo… — o apelido trouxe conforto para o meu peito dolorido, e
meus dedos se enrolaram em sua camisa, impedindo que ele estabelecesse
distância.
Ele era um ponto de apoio que eu precisava me agarrar, ou o monstro
acabaria me engolindo.
— Eu prometo que vou cuidar de tudo. — Sua voz transmitiu
confiança e eu quis me agarrar àquilo, mas minha mente só conseguia
berrar em resposta todas as estatísticas.
Seus dedos escovaram minha pele, aliviando a ardência ainda
incômoda do tapa de Guilherme.
— Eles vão me culpar — o lamento escapou, engasgado.
— E eu vou acabar com cada um deles.
Meu coração martelou no peito, dolorosamente. O monstro na minha
cabeça berrou, exigindo que eu pusesse um fim nessa história e deixasse
que Bastos saísse impune, porque se não o fizesse; a prejudicada seria eu.
No entanto, o olhar suplicante de Renato, a segurança que suas
palavras transmitiram; e a promessa de que cuidaria de tudo, arruinaram
com qualquer tentativa de relutar contra o seu pedido.
No fundo, era isso o que eu queria também, não?
Se eu não o denunciasse, Guilherme poderia acabar colocando suas
mãos em outra mulher. Uma que não teria um Renato por perto para
defendê-la… uma que não teria os recursos que o meu sobrenome poderia
fornecer.
— Vou ficar do seu lado o tempo inteiro, e vamos manter isso em
sigilo — falou, trazendo aquela calmaria de volta para a sua voz e isso
repercutiu em meu corpo, fazendo com que meus batimentos se
acalmassem. — Confie em mim, tudo bem? Prometo que vou cuidar de
você.
Engoli em seco, empurrando o monstro sabotador para o buraco onde
ele se escondeu nos últimos dias e apertei os dedos em sua camisa com
mais força, como se isso mantivesse aquela parte da minha mente distante.
Meneei a cabeça, sentindo a corda afrouxar em minha garganta,
gradativamente.
— Tudo bem — soprei, vendo os ombros de Renato relaxarem. —
Pode chamá-los.
Horas mais tarde, saímos do hotel acompanhados apenas por Marcus.
Bianca e Leandro decidiram — ou melhor, foram obrigados por
Nathalia — a terminarem o dia na festa de Alícia, porque ela se sentia
culpada por ter “estragado” a noite de todos.
Por sorte, Marc também estava na cidade naquela semana e atendeu
ao chamado assim que liguei para ele, trazendo um velho amigo que
garantiu que Nathalia teria a proteção do anonimato em sua denúncia. Isso a
tranquilizou e fez com que compartilhasse com o delegado tudo o que
ocorreu enquanto esteve longe de mim.
Ela tentou me tirar da sala para impedir que eu ouvisse o relato, mas
permaneci ao seu lado, escutando-a repetir cada maldita palavra que aquele
desgraçado disse. E eu me arrependi por não ter batido nele até garantir que
a vida se esvaísse do seu corpo.
Manter a calma e fornecer apoio para ela foi uma das coisas mais
difíceis que fiz na vida, porque a cada palavra que ela reproduzia, eu lutava
contra o demônio que se libertou da jaula e implorava para que eu fosse
atrás de Guilherme, e garantisse que ele nunca mais respiraria perto de
Nathalia.
Marc garantiu a ela que manteria a sua identidade preservada na
denúncia e que não precisava se preocupar com uma possível exposição,
mas apesar de agradecer a segurança que meu amigo ofereceu, eu a
conhecia o suficiente para saber que sua mente era um território
escorregadio, e que ter denunciado havia demandado mais do que coragem
da sua parte.
Meus olhos recaíram para o seu rosto escondido em meu peito.
Desde que deixamos o hotel e nos despedimos dos nossos amigos, ela
permanecia na mesma posição, em silêncio. Meus incentivos para arrancar
algo dela foram em vão, porque tudo o que recebi em resposta, foram
múrmuros fracos.
Isso não me impediu de permanecer ao seu lado, oferecendo calor e
conforto. Odiava vê-la chorando, detestava como seus olhos repletos de
vida eram tomados por desalento. Não combinava com ela. Se dependesse
de mim, aquilo nunca aconteceria. Era uma puta pancada na boca do
estômago mirar seu rosto, e ao invés de encontrar o brilho e sorriso familiar,
me deparar com suas bochechas e nariz vermelhos, olheiras profundas e
uma tristeza que não combinava com ela.
Não, porra.
Nada daquilo combinava com Nathalia.
Ela era sinônimo de vida.
Uma estrela incandescente que nunca se apagava e iluminava tudo por
onde passava, e vê-la vacilando era horrível. Eu seria capaz de fazer
qualquer coisa para impedir que se sentisse dessa forma.
— Anjo? — chamei, deslizando os dedos suavemente em sua pele,
onde o desgraçado havia batido nela.
Nathalia murmurou em resposta, apenas. Era sua maneira de me
deixar saber que estava me ouvindo, no entanto, não era suficiente. Talvez
fosse egoísta da minha parte, mas eu precisava ouvir sua voz ressoando pelo
carro, ou não conseguiria me controlar e daria meia volta para a cidade e
invadiria o quarto de hospital em que Guilherme estava.
— Fale comigo, do que você precisa? — perguntei, calmo e paciente.
Era uma tortura lidar com o seu silêncio.
Nathalia não era o tipo de pessoa que ficava calada por muito tempo,
era adorável como ela sempre encontrava um assunto para debater por horas
e o dominava como se fosse especialista.
Eu sentia falta daquela energia inesgotável. Lidar com a sua quietude,
desde a noite passada era uma curva incômoda nos padrões em que estava
familiarizado.
Seus olhos lindos subiram para o meu rosto, ainda úmidos pelo choro
silencioso e ela tentou inutilmente esboçar um sorriso. Porque era isso o que
Nathalia fazia. Sempre que as coisas estavam pesadas demais para que
suportasse, ela fingia que estava bem e soltava uma piadinha boba.
Ela era semelhante ao Leandro nesse quesito.
Contudo, nem mesmo sua tentativa foi o suficiente para que
conseguisse sustentar o teatro rotineiro. Seus lábios se apertaram e ela
voltou a chorar, copiosamente. Aflito, a soltei do cinto de segurança e a
trouxe para o meu colo, percebendo como parecia ainda menor.
Seus braços envolveram os meus ombros e ela se aninhou em meu
peito, chorando baixinho, como se seus soluços pudessem incomodar
Marcus no banco da frente. Senti o olhar do meu segurança através do
retrovisor, mas ele não disse nada.
Dos dois irmãos que trabalhavam para mim, Marcus falava apenas
quando eu perguntava algo. Ele sempre foi mais discreto, diferente de
Sérgio que gostava de conversar o tempo inteiro, mas até ele estava
estranhando a quietude dela.
Com um aceno, Marcus compreendeu que poderia acelerar para
encurtar a distância da estrada para a casa. Arrependi-me por não ter
cogitado reservar um helicóptero para fazer aquele trajeto mais rápido, mas
nada do que aconteceu naquela noite estava dentro dos meus planos.
Não era daquele jeito que eu pretendia levar Nathalia para a minha
casa. Havia um roteiro programado para comemorarmos o seu aniversário,
mas ele foi mandado para o inferno depois de tudo.
Meus braços envolveram seu corpo e meus lábios roçaram em seu
cabelo, o vestido marsala estava enrolado em suas pernas e a sandália de
salto, foi abandonada em algum lugar que não era relevante. Seus dedos
torceram a camisa nova e limpa que eu estava usando, arrancando alguns
botões como havia feito com a que Raphael levou como evidência.
Apertei-a firme, tentando encontrar palavras que pudessem amenizar
o que estava sentindo.
Mas o que eu diria?
Nathalia não era ingênua, ela tinha total consciência de que o que
Guilherme lhe disse havia sido uma descrição gráfica de um estupro. Porra,
todos sabiam disso. E eu queria matá-lo.
Prisão não era nem de longe o que ele merecia.
O destino dele precisava causar muita dor, só assim eu poderia
considerar um pequeno equilíbrio perto do estrago que ele havia feito na
cabeça dela.
Suavemente, arrastei os dedos em suas costas arranhadas, ela
estremeceu e se apertou mais contra o meu peito, afundando as unhas em
minha pele. Seu olhar se ergueu, colidindo com o meu e deixei que a mão
em sua perna subisse para o seu rosto, afagando a região e enxugando as
lágrimas que ainda rolavam.
— Estou aqui com você, anjo. Se quiser chorar, gritar ou bater em
algo… estarei aqui — prometi, engolindo o turbilhão violento que crescia
cada vez mais no meu peito —, mas não se esconda. Jogue tudo em cima de
mim. Eu prometo que vou segurar o peso por você, mas não me deixe
longe.
Nathalia engoliu em seco, soltando minha camisa do aperto e segurou
meu pulso, delicada.
— Ele vai voltar para o escritório. — Sua voz não passou de um
chiado rouco.
— Não, ele não vai. Eu prometo que vou cuidar disso.
Ela soltou um suspiro e meneou a cabeça, deitando-a novamente no
meu peito, sem soltar o meu pulso.
— Eu estava pensando… — murmurou, ainda baixo —, não definimos
o que nós somos.
Franzi o cenho, reconhecendo que estava repetindo seus padrões,
ocupando a cabeça com outro assunto que não envolvesse o que estava a
assombrando.
Não era o melhor caminho, mas o que eu poderia fazer?
Forçá-la a falar sobre o que houve?
Convencê-la de fazer a denúncia para que Marc pudesse solicitar uma
medida cautelar já havia sido um limite que ultrapassei. E eu preferia ouvila falando sobre outro assunto do que permanecer naquele silêncio horrível,
porque eu sabia que sua quietude só estava presente para o mundo exterior,
na sua cabeça, ela estava mergulhando em pensamentos autodepreciativos e
se responsabilizando por tudo.
Seus olhos voltaram para o meu rosto, com uma faísca daquele brilho
familiar e eu me agarrei ao assunto para impedir que ele esmorecesse
novamente.
Sorri fraco, deslizando os dedos em sua pele como se ela fosse de
porcelana e segurei seu queixo, apertando com leveza.
— Pensei que você odiasse pedidos de namoro.
Ela grunhiu, fazendo uma careta.
— Eu odeio, é a coisa mais cafona do mundo… nunca me submeta a
algo assim! — resmungou, sem afastar seus olhos dos meus —, mas estou
um pouco confusa sobre como devo falar de você para as pessoas. Você é
meu namorado? Meu falso marido? Nós nem assinamos o divórcio!
O tom acelerado retornou para a sua voz, afastando aquela rouquidão
incomum e acendendo a sua chama interna, fazendo com que o brilho
retornasse ao seu rosto.
— Não existe divórcio. Você esqueceu que está presa a mim? —
questionei, vendo um pequeno repuxar em seus lábios, tímido, mas ainda
era um esboço de sorriso. — E continuará até o meu último dia de vida,
anjo.
Ela apertou os cílios, revirando os olhos levemente.
— Claro, você esqueceu que sou seu primeiro relacionamento? E se
isso for só fogo de palha e daqui a uns meses você enjoar de ficar preso a
mim? — questionou, endireitando a coluna e me olhando em tom
inquisitório.
De repente, como se tudo tivesse sido apagado com uma borracha, ela
se virou para Marcus.
— Para quantas mulheres você já o ouviu soltar esse discurso,
Marcus? Pode falar, o que ele estiver te pagando, eu dobro! — ofereceu ao
segurança. O rapaz a olhou pelo retrovisor, parecendo perdido com a
mudança brusca de comportamento de Nathalia.
No entanto, sua implicância conseguiu me arrancar uma gargalhada,
porque… porra, era disso o que eu sentia falta.
— Você está rindo de quê? — Ela enrugou o nariz, de um jeito
adorável. — Isso é um assunto muito sério… você já é velho! Imagine se eu
apostar tudo nisso e essa sua confiança passar? Eu vou ter perdido alguns
anos da minha vida, sabia?
— Podemos resolver isso em cinco minutos, uma ligação e quando
chegarmos na casa, teremos um padre, um rabino, um pastor e um tabelião
para formalizar nosso casamento em todas as religiões e crenças que você
quiser. — Ofereci, sorrindo de canto e ela semicerrou os olhos, jogando os
braços sobre os meus ombros.
— Dessa vez eu vou querer uma aliança de verdade, não uma de postit — retrucou, lembrando-me de algumas semanas em sua sala, quando ela
estava lidando com uma crise de pânico e consegui distraí-la com uma
lenda antiga.
Eu conhecia algumas dúzias delas, poderia recitá-las quantas vezes
fossem necessárias para afastar seus demônios.
Pensar naquele dia, me fez relembrar da conversa que tivemos no seu
apartamento um tempo atrás. Meus olhos percorreram seu rosto perfeito,
acompanhando a vitalidade retornar para ele e suas bochechas voltarem ao
tom corado habitual.
Observando-a naquele momento, lutando para manter a sua essência
depois de tudo o que aconteceu horas atrás, eu não poderia concordar mais
com sua falecida avó, Lilian.
Peônia realmente era uma flor que fazia jus a garota que estava
sentada em meu colo, presa em meus braços. Nathalia era rara e,
independentemente do que a atingisse, ela resistia. Fizesse chuva ou sol, ela
perdurava e se mantinha inabalável. Ela não deixava que as adversidades no
meio do caminho a derrubassem no chão e apagassem sua beleza.
Ela era extraordinária pra caralho.
Uma força indomável da natureza que não aceitava ser destruída.
— Talvez eu já tenha algo preparado — brinquei, vendo até onde ela
estava disposta a levar a implicância.
Nathalia arregalou os olhos.
— Você não ousaria.
— Claro que não. De qualquer maneira, já estamos casados!
Ela bufou.
— Um casamento falso para te livrar de uma mulher que estava dando
em cima de você — relembrou.
— Nunca foi falso para mim, querida. — Pisquei, apertando os dedos
em sua cintura e relaxando as costas no assento do banco traseiro. — Eu
soube que você era minha, quando teve a ousadia de cativar a minha
atenção.
Suas bochechas ruborizaram e aquela covinha adorável reapareceu em
seu queixo, denunciando que ela estava contendo um sorriso.
— Você é bom, Trevisan… — queixou-se, balançando a cabeça
lentamente —, não é todo dia que me deixam sem saber o que dizer —
suspirou, deitando a cabeça novamente em meu peito, voltando a se aninhar
contra o meu corpo. — Mas me dê alguns minutos, e eu vou encontrar uma
resposta boa o suficiente.
Beijei seu cabelo e joguei o casaco por cima dos seus braços ao vê-la
se encolher de frio, mesmo com o ar-condicionado ligado.
— Aguardarei ansiosamente, Sra. Trevisan.
Ela entrelaçou nossos dedos, buscando pelo calor da minha mão para
aquecer sua pele gelada e soltou outro suspiro, pensativo.
— Tudo bem se, ao menos por enquanto, não contarmos para as
pessoas de fora que estamos juntos? — indagou, jogando a cabeça para trás
e me olhando, atenta.
Não precisei pensar muito para compreender que as pessoas a qual ela
se referia, eram os sócios e funcionários da firma.
Afaguei seu rosto, tranquilizando-a.
— Claro que sim. Não tenho pressa.
Contanto que ela permanecesse dormindo nos meus braços todas as
noites, pouco me importava se outras pessoas saberiam ou não do nosso
relacionamento.
— Certo, certo… — balbuciou, refletindo. — Também vou precisar de
um tempo para contar para algumas pessoas da minha vida pessoal, tipo… a
Olívia. Ainda não sei como vou contar, e acho que ela não vai entender…
Era a primeira vez em algumas semanas que o nome de sua amiga era
citado depois da exposição do vídeo. Sabia que Nathalia falava com ela
todos os dias e que Marc estava cuidando de um processo contra a gestora
em que Olívia trabalhava, mas aquele assunto era como um fantasma que
ela evitava trazer à tona.
Seus ombros enrijeceram, lembrando-me que aquele ainda era um
tópico sensível.
O vídeo de Olívia e a exposição tinha sido um gatilho muito forte para
Nathalia. Talvez por conta do que passou na época em que trabalhou na
gestora da sua família e toda a exposição que foi submetida por Larissa e o
restante da equipe, ou talvez por conta de toda a exposição que a carreira de
Miguel trouxe para a sua própria jornada profissional. De toda forma, a
simples menção do nome de sua amiga a deixava desconfortável.
— Tudo bem. — Mergulhei os dedos em seu cabelo, fazendo carinho
nela e trouxe seu olhar para o meu rosto, impedindo-a de se concentrar
naquele assunto —, mas eu vou contar aos meus amigos. Eles vão entender.
Ela gargalhou, balançando a cabeça negativamente.
— Claro que vão… seu cretino! — O tapa suave que ela desferiu em
meu peito, perdeu a força quando o carro atravessou os muros altos da
propriedade.
Nathalia virou o rosto para frente, acompanhando a projeção da
construção recente. Era um projeto de Pedro, ele havia desenhado e cuidado
pessoalmente de cada etapa da execução.
Zimmermann era tão controlador, que para garantir que teria
propriedade para debater com qualquer pessoa no canteiro de obra, ele se
formou tanto como engenheiro civil quanto arquiteto. O que o tornava um
pesadelo na vida de qualquer um que arriscava trabalhar em conjunto com
ele.
A construção ficava em uma área reservada no meio da Serra
Fluminense, havia sido projetada sob a influência da filosofia wabisabi[40]em cada detalhe. Conforme o carro se aproximava da casa, pudemos
ver as luzes acesas através das janelas amplas, elas ocupavam uma boa
parte da fachada, fornecendo uma iluminação natural incrível ao longo do
dia.
Era uma bela construção, com uma identidade única que cativava pela
imperfeição dos seus detalhes e a simplicidade em cada canto. Desde às
paredes com pedras disformes, aos detalhes de cada móvel feito de madeira
de demolição.
Era uma obra de arte em formato imobiliário, um trabalho que
concedeu ao meu amigo um prêmio na sua área.
O espaço contava com uma vasta área verde disponível para
expansões futuras, uma piscina com bordas naturais; uma quadra de futebol
à esquerda, coberta por redes para impedir que a bola caísse no morro ao
lado, e um playground com vários brinquedos para os garotos. Mais à
frente, também existia uma academia que ficava separada do restante da
construção, com uma vista limpa para as montanhas e duas casas de apoio,
uma para as visitas e outra para funcionários.
Normalmente, quando os garotos estavam de férias do colégio,
vínhamos para a casa de campo e ficávamos aqui durante todo o período.
Assim como na minha casa na cidade, eu tinha um escritório ali que era
mais do que apto a suprir minhas necessidades durante o home office.
Era um dos meus lugares preferidos, e dos garotos também.
Por algum motivo, considerei que Nathalia pudesse se sentir acolhida
aqui também.
Minha intenção quando considerei trazê-la após o casamento, era para
comemorarmos seu aniversário longe da pressão que a capital paulistana
trazia para as nossas vidas.
Eu tinha noção de que, quando as coisas pesavam demais no seu
emocional, Nathalia recorria a atravessar o continente e buscar conforto na
fazenda da sua família, e apesar de valorizar o seu apego às memórias da
infância; gostaria que ela também pudesse encontrar refúgio perto de casa e
de mim.
Ela vinha passando por tanta coisa nas últimas semanas que eu não
duvidava de que, uma hora ou outra, acabaria precisando de espaço. Tudo
tinha acontecido de uma única vez, os problemas estavam caindo sobre ela
como uma avalanche preparada para a engolir, mas Nathalia vinha
resistindo e se mantendo firme a cada rasteira.
Mas por quanto tempo?
Ela precisava de alguns dias de descompressão, e eu estava me
dedicando a adaptar a minha rotina para que pudesse incentivá-la a buscar
por brechas para relaxar também.
Sua relutância em contratar uma secretária a sobrecarregava
diariamente, e se eu unisse isso à pressão que ela vinha lidando com a data
final de entrega da monografia se aproximando, o retorno da Bentley &
Hathaway sobre o estágio e o dia a dia do mercado… por quanto tempo meu
pequeno anjo conseguiria se manter firme?
Por mais que Nathalia não admitisse e considerasse isso uma
fraqueza, ela precisava que alguém cuidasse dela e zelasse pela sua saúde
mental, ou acabaria adoecendo no processo mais uma vez.
— Deveríamos ter trazido os meninos. — Seu comentário tristonho
me arrancou um sorriso genuíno, porque era claro o carinho que nutria
pelos meus filhos e isso era uma das coisas que mais me encantavam nela.
Senti o olhar de Marcus através do retrovisor, mas ele rapidamente o
desviou e saiu do carro para retirar as nossas malas do bagageiro.
Nathalia me olhou, chateada.
— Pensando bem… por que decidimos ficar no Rio? Que tipo de pais
nós somos para deixar nossos filhos sozinhos? — Apesar de saber que
havia um tom de brincadeira em sua fala, foi inevitável não ser nocauteado
com as palavras.
De fato, quando eu pensava na mulher que eu gostaria que fosse a
mãe dos meus filhos, ela era a única que me vinha em mente. Infelizmente,
o destino a colocou no meu caminho tarde demais e eu lidaria com o
remorso de ter dado a pior genitora do mundo aos meus garotos.
Nathalia pareceu ter se dado conta de como suas palavras me afetaram
e um vinco surgiu em sua testa, marcando uma pequena ruga e levei os
dedos na região, massageando suavemente para desfazê-la.
— Você sabe… não estou dizendo que sou mãe deles, é que… bem,
eu… — balbuciou nervosamente, arrancando-me um sorriso.
— Eu entendi, anjo. — Acariciei suas costas, tranquilizando-a. —
Não precisa se justificar.
Eu não era cego, tampouco ingênuo de não reconhecer o brilho que se
acendia nos olhos de Nathalia sempre que interagia com Igor e Matheus. Ou
como os garotos a olhavam tomados por esperança de que ela preenchesse
uma lacuna dolorida em suas vidas. Contudo, era cedo demais para
qualquer movimento do tipo e, a contragosto, eu precisava reconhecer que
Pedro estava certo em uma coisa.
Nathalia era jovem demais. Ela estava prestes a completar vinte e
quatro anos; concluir a especialização e tinha planos de passar uma
temporada no exterior. Além disso, eu precisava levar em consideração que,
voltar a morar em Manhattan — onde cresceu e passou boa parte da sua
vida —, poderia fazer com que ela desistisse da ideia de voltar para São
Paulo após a conclusão do estágio.
Submetê-la a uma posição que não era a sua função na vida dos filhos,
poderia prejudicar suas decisões para o próprio futuro e eu nunca me
perdoaria por isso.
A mera ideia de que, em alguns anos, ela me culpasse por ter
renunciado uma parte de sua vida para ser mãe dos meus filhos, me trazia a
obrigação de refrear aquele sentimento de pertencimento que existia entre
os três, antes que se tornasse algo difícil de conter.
No minuto seguinte, descemos do carro e caminhei com Nathalia ao
meu lado pela pequena trilha que separava a entrada da casa da garagem. A
mulher ao meu lado observava tudo com curiosidade e fascínio, apreciando
cada som vindo das árvores e vegetação densa em volta da propriedade.
Seus dedos enroscados nos meus impediam que eu a soltasse durante
o trajeto, e nos despedimos de Marcus que se afastou para ir à casa
adjacente.
Mal tive tempo de alcançar o primeiro degrau na entrada do alpendre
para que a porta pesada fosse aberta e uma silhueta minúscula; de cabelo
loiro e bagunçado, bochechas rechonchudas e um sorriso largo, corresse em
nossa direção.
E se por um segundo considerei ter sido o responsável por amenizar a
tristeza de Nathalia durante o restante da viagem, quando seus olhos
localizaram Matheus parado na soleira da porta; usando um pijama
acolchoado do Hulk para simular os músculos do super-herói, eu soube que
não havia feito nada.
As orbes amendoadas se acenderam com tamanha grandiosidade que
meus joelhos vacilaram, diante do impacto da imagem que preencheu
minha visão. O brilho que se acendeu em seu rosto foi tão intenso que ela
poderia iluminar uma cidade inteira. O sorriso rasgou seus lábios rosados e,
como se não existisse mais nada ao seu redor, ela se abaixou a tempo de ser
envolvida pelos braços do meu caçula.
Matheus sempre foi uma criança fora da curva, a energia dele era algo
inexplicável e a forma como se afeiçoava as pessoas era tão pura, que por
anos eu não soube identificar de quem havia puxado aquelas características.
Entretanto, não soube se foi uma peça pregada pela minha mente que
queria se convencer daquela ideia, ou se foi porque não parecia uma coisa
tão ruim, mas por um instante, a semelhança entre os dois me parecia muito
lógica, independente da genética.
— Nath! — O pequeno gritou, empolgado demais com a presença
dela e a apertando em seus braços. — Eu tava com saudade!
Ela se afastou, o suficiente para encher o rosto dele de beijos e
segurou suas bochechas, fazendo beicinho ao encará-lo.
— Eu também estava morrendo de saudades! — confessou, sincera.
Nathalia envolveu o corpo de Matheus em seus braços e o apertou em
um abraço de urso, arrancando-me um sorriso. Ele nem se importou com a
minha presença. Perto dela, eu deixava de existir para os meus filhos. Era
impossível competir com a mulher na minha frente pela atenção dos dois.
E por mais que minha racionalidade exigisse que refreasse aquilo,
sentia-me incapaz de afastar os dois ou de quebrar o elo que os conectava.
Era natural, fluía como a correnteza de um rio em direção ao oceano; eles se
complementavam como se fossem partes essenciais do outro. A maneira
como enrugavam a pontinha do nariz, como a covinha marcava seus
queixos, a forma como seus olhos se tornavam fendas estreitas quando
sorriam e a sincronicidade que aquilo acontecia…
Era uma das coisas mais fascinantes que eu podia presenciar.
— Oi papai! — Matheus sorriu para mim, ainda enroscado no
pescoço dela.
Arqueei a sobrancelha, surpreso por ter sido notado tão rápido. Era
um recorde, normalmente, eu ficava parado por mais alguns minutos
aguardando que ele virasse o rosto e notasse minha presença.
— Oi pequeno Hulk, lembrou que eu existo?
O pirralho rolou os olhos, um hábito que desenvolveu recentemente
por conta de Nathalia.
— Papai bobo! — ele reclamou, soltando a mulher e vindo em minha
direção, esticando os braços. — Eu te amo, papai!
Essa era uma das coisas sobre Matheus que me deixavam
boquiaberto. Ele completaria três anos em alguns meses, mas tinha uma
inteligência emocional que eu não encontrava nem mesmo nos tios dele,
que eram homens adultos e vividos.
Meu filho conseguia ler as emoções a sua própria maneira, e no
menor sinal de que alguém podia estar minimamente chateado, ele fazia
questão de encher a pessoa de carinho até que ela se sentisse melhor. Era
natural, Matheus nasceu com aquilo e era adorável como aquela coisinha de
menos de um metro conseguia ser tão perspicaz.
Sorri, pegando-o em meus braços e ele envolveu meu pescoço,
aplicando um pouco de pressão no abraço desajeitado.
— Eu também amo você, pequeno Hulk — confessei, sentindo o
coração bater mais leve no peito ao encontrar as íris esverdeadas brilhando
ao olhar para mim.
Matheus enrugou a ponta do nariz e fez beicinho, ele apertou seus
dedinhos em minha nuca e trouxe seu rosto para perto do meu, grudando
nossas testas.
Com aquele simples gesto, meu filho foi capaz de silenciar
completamente o demônio violento que ainda fervia meu sangue. Matheus o
empurrou de volta para a jaula, e me lembrou o motivo para que eu tivesse
abandonado certos padrões no passado. E apesar de não me arrepender do
que fiz, era bom ter o controle sobre os meus instintos.
— O Guigo disse que você só vinha amanhã! — resmungou, vincando
a testa levemente ao se afastar para me olhar.
O brilho deu lugar a um lampejo raivoso, que me arrancou uma risada
fraca. Essa podia ser uma das dezenas de coisas que Matheus e Nathalia
tinham em comum: eles mudavam drasticamente de humor em um piscar de
olhos.
— Bem, você deveria estar dormindo, por isso só nos veríamos
amanhã. — Apertei os olhos, imitando seu semicerrar de cílios. — Posso
saber o motivo de estar acordado?
Matheus apertou os dedos na minha camisa, dando de ombros como
se aquilo fosse uma mera formalidade.
— Estava esperando o papai e a Nath!
Meus olhos se voltaram para a mulher que nos observava com um
meio sorriso, e não demorei a compreender que Matheus devia ter escutado
a ligação que fiz enquanto esperava me liberarem para encontrar a Nathalia.
Havia ligado para a babá dos meninos, poucos minutos antes dela entrar na
sala do avô.
— Hm… não sei se aprovo isso — fingi pensar, sentindo suas mãos
quentes se aninharem em minhas bochechas e vendo o seu bico aumentar.
— Eu tava com saudade! — lamentou, fazendo drama.
E isso me quebrou, por mais que eu soubesse que era puro teatro.
Matheus e Igor poderiam arrancar o que quisessem de mim sem esforço,
porque mesmo sabendo que estavam me manipulando, eu cedia aos seus
caprichos.
— Tudo bem, pequeno Hulk…, mas você precisa obedecer a Mara
quando ela te mandar para a cama — alertei, vendo-o levar a mão na testa,
batendo uma falsa continência.
— Tá bom, papai!
Pisquei para ele, segurando-o ainda com um braço e estendendo a
mão livre para Nathalia, guiando-a para dentro da casa enquanto Matheus
voltava a tagarelar sobre o seu dia, e ela o escutava atentamente.
Assim que atravessamos a porta, meus olhos correram pela sala de
estar ampla, vendo que a lareira havia sido acesa e que Igor estava sentado
na varanda que dava visão para as montanhas — de costas para a entrada da
casa. Os fones de ouvido enormes em sua cabeça e o livro que estava
apoiado em seu colo, denunciavam sua distração com o ambiente ao seu
redor.
Desde que retornou da viagem para Orlando com meus pais no
Carnaval, ele estava dedicado em terminar a leitura do box que havia
ganhado de “As Crônicas de Nárnia”. Minha mãe adorava incentivar o seu
hábito pela leitura, e sempre que encontrava uma série de fantasia adequada
para a sua idade, lhe dava de presente.
Deixei Matheus no chão e ele tomou a frente por mim e roubou a mão
de Nathalia do meu aperto, levando-a para conhecer a casa.
Encantada pela energia do meu filho, ela me deu as costas e seguiu o
pequeno pelo corredor paralelo sem olhar para trás, desaparecendo do meu
campo de visão e me deixando escutar apenas a voz alegre do pirralho.
— Oi querido — Mara acenou, recolhendo alguns brinquedos que
estavam espalhados por cima do sofá e me oferecendo um meio sorriso. —
Como ela está?
— Ela vai ficar bem — murmurei, aproximando-me da varanda e
escondendo as mãos nos bolsos da calça para que Igor não visse os
machucados que rasgavam minha pele. — Eles se comportaram durante a
viagem?
Mara sorriu, confirmando.
Eu sabia que Nathalia tinha ficado chateada por não ter visto os
garotos antes de sairmos de São Paulo, mas o principal motivo para que
tivesse sido contra a visita à casa dos meus pais, era porque eles não
estariam lá.
No início da tarde, antes de voltar para o escritório e a encontrar
falando com Frederico, havia deixado os meninos com Sérgio e Mara no
aeroporto para que viessem para a casa de campo. Queria que eles
estivessem aqui quando chegássemos, e se ela descobrisse, acabaria
estragando a surpresa que eu vinha planejando há alguns dias.
Deixar que falasse com eles por telefone também era inviável, já que
a chance de Matheus deixar algo escapar no meio da ligação era
praticamente certa.
Quebrei a distância entre meu primogênito e eu, parando próximo à
soleira da porta de vidro e atraindo sua atenção. Igor retirou os fones de
ouvido e me deu um sorriso fraco, olhando por cima dos ombros com
curiosidade.
— Cadê a Nathalia?
Ri, recostando o ombro na moldura da porta de vidro, confirmando
pela segunda vez em uma única noite que meus filhos a tinham como
prioridade.
— Matheus a levou para conhecer a casa — falei, apertando os olhos
em suas mãos e percebendo que ele já estava na metade do livro —, como
anda a leitura?
Ele balançou os ombros, indiferente.
— É divertido, mas… ainda não sei se gostei — murmurou, fechando
o livro após marcar a página. — Como foi o casamento?
Sua pergunta me arrancou uma careta.
— Normal… — murmurei, dando alguns poucos passos para alcançálo e afundei os dedos em seu cabelo castanho, bagunçando um pouco os
fios. — Posso saber o motivo de estar acordado?
— Matheus não quis dormir, e eu não quis deixar a Mara tomando
conta dele sozinha — falou, tranquilo —, sabe que ela já está ficando velha,
né?
Seu comentário um pouco mais baixo para que ela não escutasse, me
arrancou uma risada genuína.
— Escutei isso, e eu não sou velha! — A mulher rebateu, não muito
longe e viramos o rosto na direção, encontrando-a com as mãos na cintura e
um olhar carrasco. — Vou me lembrar disso, chiquito[41]
.
Igor sorriu em provocação. Ele já havia se acostumado com os
apelidos que a antiga babá de Nathalia usava para se dirigir a eles.
Sua atenção voltou para mim, recaindo em minha mão machucada.
— O que foi isso?
Balancei os ombros, indiferente.
— Treinei no hotel, mas estava sem luvas.
Ele fez uma careta.
— Isso deve estar doendo.
— Não está, não se preocupe — falei, vendo-o se levantar e olhar em
volta. — Como foi seu dia?
— Sérgio e Mara nos levaram até aquela churrascaria na entrada da
cidade, depois voltamos para cá e jogamos futebol a tarde toda… ganhei do
Sérgio três vezes — disse, gabando-se com um sorriso enorme. — Acho
que nosso time vai ganhar o campeonato.
Arqueei a sobrancelha, interessado na sua confiança.
O Niké disponibilizava diversos passatempos para que os associados
deixassem os filhos durante o período em que estivéssemos ocupados. O
campeonato infantil de futebol era um dos eventos organizados para
estimular o esporte e a competitividade saudável entre os garotos.
Igor participava porque assim como eu, era fanático pelo esporte e
adorava a adrenalina que se espalhava pelo organismo durante os jogos.
Quando eu tinha a sua idade, já participava do time principal no
colégio e levava algumas medalhas e troféus pelas vitórias. Meu pai sempre
estimulou essa parte da minha vida e meus filhos seguiam os mesmos
passos, naturalmente.
— Acho que vamos ter problema com o time do instrutor Danilo, ele
trouxe um garoto mais velho e dois meninos foram para a enfermaria depois
do treino — prosseguiu, fazendo uma careta.
— Posso conversar com o Marcel sobre isso.
Igor negou.
— Não, ele é do meu tamanho e vai ser colocado para me marcar…
consigo dar conta dele. — Deu de ombros, convencido. — Tio James me
ensinou.
Sorri ao ver o brilho extasiado que surgiu em suas íris. Eu adorava o
meu trabalho e não me via fazendo outra coisa na vida, mas seria estupidez
não admitir que às vezes era desafiante lidar com o caos diário. No entanto,
coisas como essas me lembravam do lado positivo. Em meio a uma bagunça
ou não, meu trabalho permitia que meu filho pudesse receber dicas de um
astro profissional de futebol, que por acaso, também era seu jogador
favorito e meu cliente.
Martínez e eu nos conhecemos há alguns anos, durante a Copa do
Mundo. Seu empresário, Oliver Mendes, decidiu que o rapaz precisava de
ajuda especializada para lidar com o patrimônio, principalmente, porque
estava lidando com um divórcio que não deveria ir a público antes de terem
um acordo assinado.
Como Oliver era um velho cliente da época da Hambrook, aceitei
atender o jogador e acabamos nos tornando bons amigos. Por consequência,
meus filhos passaram a conviver com ele e se tornaram fãs do talento do
rapaz.
— O tio James disse que vem para o Brasil pra festa de noivado da
Maju — comentou meu filho, atravessando a sala de estar e abandonando o
livro na mesa de centro junto com os fones. — Dependendo, ele pode até
ficar para assistir a partida.
— Ele vem para o Brasil?
Não pude deixar a surpresa de lado, uma vez que James não havia
comentado comigo sobre o assunto e não dava as caras aqui desde seu
término conturbado com a Maria Beatrice, melhor amiga da prima de
Leandro.
— Sim… a gente podia aproveitar para apresentar a Nath, né? A avó
dela também é da Colômbia! — disse, empolgando-se com a ideia.
— Claro, vamos alinhar isso.
Igor sorriu e se virou para ir para o quarto ao mesmo tempo que
Nathalia voltava para a sala com Matheus em seu encalço.
— Pronto, mostrei tudinho, papai! — disse Matheus, gesticulando
para o espaço ao nosso redor.
— Literalmente, tudinho — Nathalia brincou, olhando-o com um
sorriso bobo. — Oi Igor, tudo bem?
Acompanhei com diversão as bochechas do meu primogênito corarem
e ele acenar, dando alguns passos cautelosos na direção dela. Nathalia
também notou, e se prontificou a arrancá-lo da concha tímida em que
estava.
— Soube que você fez um gol digno de chuteira de ouro — elogiou,
sorrindo com orgulho. Meu filho virou para mim, arqueando a sobrancelha.
— Achei que você ia querer que ela visse o vídeo. — Dei de ombros,
tranquilo, lembrando-o de como ficou repetindo que gostaria que Nathalia
estivesse lá para ver o jogo. Felizmente, eu estava gravando e ela adorou
ver o vídeo durante o voo para a cidade carioca.
Igor sorriu, meneando a cabeça e se virou para ela.
— Não foi nada de mais — ele respondeu, ainda tímido, fazendo com
que Nathalia espreitasse os olhos em seu rosto.
— Eu achei incrível! — insistiu, arrancando um sorriso dele —, você
já pensou em ser jogador de futebol?
Meu filho riu, negando.
— Já…, mas eu decidi que quero ser médico.
A covinha adorável surgiu no queixo dela e seus dedos afagaram a
bochecha do Igor, suavemente.
— Isso também é ótimo! Minha mãe é médica… neurocirurgiã, na
verdade.
Igor arregalou os olhos.
— Ela abre a cabeça das pessoas?!
Isso arrancou uma risada minha e da garota.
— Sim, ela abre a cabeça das pessoas. Isso é…
— Incrível! — ele completou, arrancando outra risada da Nathalia.
— Eu diria nojento, mas se você acha…
Meu filho cruzou os braços, perdendo a timidez de vez e a olhando
com certa ironia.
— Não me diga que você tem medo de sangue, Nath!
Ela levou a mão ao peito, soltando um suspiro dramático.
— Você pode guardar um segredo para mim? — questionou,
abaixando-se para ficar na altura dele.
Os dois esqueceram completamente da minha presença, estavam
envoltos em uma bolha que apenas os dois podiam entrar, e a mim, só cabia
observar com completa fascinação.
Meu primogênito balançou a cabeça, confirmando que aquilo ficaria
entre eles e os olhos de Nathalia se ergueram por cima dos seus ombros,
colidindo com o meu e me dando um meio sorriso, antes de indicar que ele
se aproximasse e cobrir os lábios com a mão livre, sussurrando algo para
que apenas Igor ouvisse.
— Papai! — Matheus chamou, voltando do corredor do quarto que ele
havia ido e aparecendo com a sua pelúcia do Hulk com a cabeça pela
metade.
— O que aconteceu com o Hulk?
Ele fez bico, deixando que os olhos enchessem de lágrimas.
— Cachorro mau mordeu! — lamentou, estendendo o pedaço de pano
com enchimento como se eu pudesse salvá-lo do seu fim decretado pelo cão
do caseiro da propriedade.
Apanhei o urso, tentando descobrir como salvar a pele do brinquedo
mais adorado do meu filho. Era impossível fazer Matheus dormir sem o
pedaço de pano verde ao seu lado.
— Tudo bem… vamos acionar o seguro de saúde do Hulk e dar um
jeito nisso, combinado? — Ofereci, vendo sua cabeça balançar em resposta.
— Até lá… tudo bem se você dormir com outro urso?
Matheus ponderou, levando o dedo indicador até o queixo e encarou o
teto por alguns segundos, antes de balançar a cabeça.
— Tá bom, papai!
Sorri, bagunçando seu cabelo levemente.
— Bom garoto! — Parabenizei, vendo-o pedir um minuto para ir
buscar o urso que substituiria o Hulk naquele fim de semana.
Virei o rosto novamente para os outros dois, vendo que agora era Igor
quem cochichava no ouvido de Nathalia.
As bochechas dela retornaram ao tom corado habitual, as íris
brilhavam e o sorriso largo não abandonou seu rosto, nem por um instante.
Era como se ela não tivesse acabado de passar por uma situação de
merda naquele casamento. Até mesmo a marca da agressão havia
desaparecido, como se todo o caos que encerrou a nossa estadia no Rio não
tivesse passado de um surto da nossa imaginação.
Nathalia parecia bem, e eu esperava que continuasse assim.
O dia anterior havia passado como um borrão para mim.
Apesar de ter me esforçado muito para deixar os acontecimentos do
casamento de lado e me dedicar aos garotos, sair da cama custou mais do
que a boa vontade.
Meu corpo parecia ter finalmente se dado conta do estresse que foi
submetido e passei boa parte da manhã na cama, dormindo e perdida na
minha própria mente.
Igor e Matheus vieram falar comigo algumas vezes para tentar me
distrair, mas foi em vão. Nem mesmo as tentativas de Renato foram o
suficiente para afastar aquela névoa sombria da minha cabeça.
As palavras de Guilherme se repetiam e os tremores me congelavam
no lugar. Mesmo depois de conseguir sair da cama e ir encontrar com os
meninos, ainda não me sentia totalmente conectada com o mundo real. Suas
vozes pareciam distantes, as coisas pareciam desfocadas e tudo o que eu me
concentrava era na lembrança do hálito de vodca e nos olhos frios mirando
meu rosto, enquanto ele explicitava o que pretendia fazer comigo.
Talvez meu pai estivesse certo e eu não estava tão pronta para lidar
com tudo o que existia fora da minha torre de marfim. O meu encontro com
Guilherme foi mais do que o suficiente para que eu entendesse isso.
Embora Renato tenha se mantido atento a mim o tempo inteiro e
tentado inúmeras vezes me tirar da minha mente, ele não pressionou que eu
me abrisse ou falasse sobre o que estava acontecendo comigo. O que, de
certa forma, eu agradecia. Ter a consciência do seu cuidado e de que ele
estava ali para segurar a minha mão caso eu perdesse as estribeiras, foi o
suficiente para que à noite, eu me sentisse um pouco melhor.
O suficiente para aceitar a sugestão de Igor para que fôssemos em um
festival na cidade vizinha, e para ser uma boa companhia para os pequenos.
No fim da noite, caí no sono nos braços de Renato, chorando
copiosamente numa tentativa de expurgar toda a impotência que ainda me
atingia.
Quando abri os olhos na manhã seguinte, eu soube que aquele dia
seria diferente.
Não só porque eu me sentia melhor, embora isso fosse um dos
motivos. Mas, porque ao contrário dos aniversários anteriores em que
acordei com Bianca, Antônio e alguns dos meus outros amigos me
arrastando para fora da cama para irmos comemorar o dia em meio a
bebedeira em algum lugar do mundo, naquela manhã, fui agraciada com
uma risadinha baixa me despertando e um par de olhos verdes esperando
por mim.
O sorriso que se abriu em meus lábios foi involuntário, como sempre
que eu me deparava com Matheus e aquele seu olhar arteiro.
— Bom dia, meu bem — saudei, esticando a mão para tocar em suas
bochechas rechonchudas.
— Feliz aniversário, Nath! — desejou, sorridente. Meu coração
martelou no peito, tão forte que eu sufoquei por alguns segundos. — Papai
disse para não te acordar…, mas eu queria te dar o presente!
Olhei em volta, buscando pelo homem responsável por essa coisinha
linda existir e não o encontrei em lugar nenhum. As cortinas blackout
estavam fechadas, impedindo a entrada da luz do dia e pelo silêncio vindo
do corredor, considerei que Matheus e eu estivéssemos sozinhos.
— Hm… obrigada, meu amor — falei, ainda meio sonolenta. Senteime na cama, abrindo os braços para ele e repliquei seu beicinho. — Eu
ganho um abraço?
Matheus enrugou a pontinha do nariz de um jeito fofo e se ajoelhou
no colchão, lançando-se em meus braços prontamente e me apertando com
um pouco mais de força que o habitual.
Senti a visão embaçar, porque era como se o pequeno soubesse que eu
precisava de um abraço igual aquele.
— Se importa se eu te apertar mais um pouquinho? — perguntei,
sentindo algumas lágrimas rolarem contra minha vontade e escutei sua
risadinha contra o meu pescoço.
— Nãoooo! — cantarolou, apertando os bracinhos ao meu redor.
Suspirei pesadamente, sentindo o peso que ainda restava no meu peito
aliviar a pressão de uma vez, permitindo-me respirar sem escutar a voz de
Bastos em minha cabeça.
Sempre escutei que crianças tinham o dom de curar feridas profundas,
mas não acreditava naquela teoria até aquele momento.
No entanto, Matheus me provou que ela era verdade. Ao menos em
mim, o seu abraço foi capaz de costurar uma ferida aberta e fazer com que
ela parasse de sangrar. E eu queria mantê-lo nos meus braços por mais
alguns minutos, ou talvez anos.
Era possível mantê-lo desse jeito para sempre?
Ao menos, assim o mundo feio e cruel não destruiria aquela sua
ingenuidade que era tão adorável e preciosa.
A ideia de que qualquer coisa ruim acontecesse com ele massacrou
meu peito, e me fez sentir um desejo quase assassino de rasgar a pele de
quem tentasse machucar ele ou Igor.
A voz de meu pai algumas semanas atrás ressoou em minha cabeça, e
quis sorrir ao perceber que Miguel Gama havia se provado certo até mesmo
nisso.
“Quando você se tornar mãe, vai entender que não há limite que não
possa ser ultrapassado pelos seus filhos (…)”
Bom, papi… eu não sou a mãe deles, mas entendo o que você quis
dizer!
Funguei baixinho, percebendo que, além da angústia por algo ruim
acontecer com eles quando crescerem, a constatação de que eu não passava
de uma pessoa passageira em suas vidas doeu mais do que o tapa que
Guilherme desferiu contra o meu rosto.
Ironicamente, os meninos tinham se fixado em meu coração, a ponto
da ideia de ser mãe deles não soar tão assustadora quanto eu imaginei que
seria.
Desde quando você quer ser mãe?
Aquela voz condescendente soou em minha mente, mas diferente das
outras vezes em que eu me sentia julgada por ela, tudo o que fiz foi
empurrar seu desdém para longe.
Para minha surpresa, foi mais fácil do que o habitual.
— Você tá chorando, Nath? — O pequeno se afastou, sem me soltar
totalmente e franziu o cenho ao reconhecer as lágrimas silenciosas que
rolavam em meu rosto.
Sorri fraco, fazendo menção de enxugá-las, no entanto, Matheus
tomou a frente e arrastou os dedinhos em minha pele, secando as lágrimas
com uma delicadeza invejável, sem aliviar a expressão preocupada.
— Não é de tristeza, meu amor, não se preocupe. — Apertei sua
bochecha levemente. — Estou feliz.
Ele pendeu a cabeça para o lado, confuso.
— Não gosto de te ver chorando — reclamou, torcendo os lábios do
mesmo jeito que o pai dele.
Isso me arrancou um sorriso, era incrível eles se pareciam com
Renato, até na maneira como odiavam me ver triste e faziam questão de
deixar isso explícito.
Eu havia sido curiosa o suficiente para procurar Leandro e muito
discretamente, buscar por imagens da outra parte responsável por trazer
aquelas coisinhas ao mundo. Não havia sido tão difícil, bastou perguntar
para o meu amigo sobre suas lembranças da WHU e ele logo trouxe um
álbum com centenas de fotos.
E apesar dos garotos terem olhos claros como os de Flávia, e o
pequeno ter o mesmo tom dourado do cabelo dela… todo o restante era o
Renato.
Igor e Matheus eram idênticos ao pai em cada linha, como se tivessem
sido desenhados à imagem e semelhança dele em todos os detalhes mais
sutis. E mesmo as características que os ligavam à genitora poderiam ser
facilmente creditadas a Amália, avó deles.
E uma parte minha muito egoísta, sentiu-se aliviada por perceber que
ela era apenas uma lembrança borrada em suas vidas. Um capítulo ruim que
daqui a um tempo eles não se lembrariam de ter lido.
Flávia não merecia ter qualquer relevância em suas vidas e eu nunca
entenderia o que a levou a abandoná-los da forma que fez. Se não queria ser
presente, não bastava apenas ter ido embora e nunca mais voltado? Ela
realmente precisava fazer da vida dos três, especialmente de Igor, um
inferno?
Independentemente do que havia acontecido entre ela e Renato, os
meninos nunca deveriam sofrer com as consequências dos erros deles.
— Quer seu presente agora? — perguntou o pequeno, dando um
sorriso travesso e me arrancando uma risada baixa.
— Eu adoraria! O que você tem para mim? — incentivei, vendo-o me
soltar para esticar a mão para uma caixa de presente improvisada.
Não parecia ter sido planejado com o seu pai, dado ao jeito todo torto
que havia sido empacotado. Matheus puxou a caixa para perto e a apanhou,
colocando em meu colo e me olhando com expectativa.
Ele parecia animado, mas foi a folha de papel dobrada que atraiu a
minha atenção e, calmamente, a abri, sentindo o coração perder o ritmo das
batidas.
Desenhados no pedaço de papel, estavam quatro bonequinhos de
palitinhos, com tamanhos disformes e ilógicos de braços e cabeças, uma
mescla incomum de cores os coloria e um enorme sol laranja pairava sobre
suas cabeças. A casa ao fundo, não era tão difícil de entender que era a que
estávamos hospedados naquele fim de semana.
— Guigo… — apontou para o boneco um pouco maior —, papai… —
prosseguiu, apontando para a mistura de palitos mais alta entre os outros —,
Nath — seguiu para a boneca mais baixa que tinha sua mão de palito perto
da mão do pai —, e eu.
As lágrimas que eu havia enxugado, voltaram a se acumular em meus
olhos, embaçando minha visão.
— Eu amei — falei, olhando-o com um sorriso enorme e ele enrugou
a pontinha do nariz, indicando com o dedo que eu me aproximasse e
quando o fiz, o pequeno deixou um beijo na pontinha do meu nariz. — É a
coisa mais linda que eu já vi.
Aquilo estava longe de ser mentira.
Eu já tinha visto inúmeras obras de arte de artistas renomados, várias
delas estavam espalhadas pelas paredes do meu apartamento, mas nenhuma
conseguiu despertar um turbilhão de emoções em mim como aquele
desenho desengonçado foi capaz.
Um nó se instalou em minha garganta e enxuguei as lágrimas que
rolaram, antes que ele as notasse.
— Abre a caixa, Nath!
Dei risada, vendo que Matheus parecia mais inquieto para aquilo.
Deixei seu desenho na mesa de cabeceira ao meu lado, tomando cuidado
para não amassar, porque pretendia emoldurar quando voltássemos para São
Paulo.
A caixa que estava em meu colo parecia ser uma daquelas que tinha
espalhada pela brinquedoteca, onde Mara colocava brinquedos menores e
peças de brinquedos que não podiam ficar na prateleira. Não era difícil
concluir que ele devia ter feito uma enorme bagunça para conseguir trazê-la
vazia, e quando meus olhos encontraram o urso de pelúcia do Hulk com o
pescoço reconstruído, senti um vinco surgir em minha testa.
— Você quer me dar o seu Hulk? — Arregalei os olhos, encarando-o
perdida. O urso era quase uma parte do seu corpo e aonde quer que fosse,
Matheus o levava e sequer dormia sem ele. — Por quê?
O pequeno sacudiu os ombros, como se não fosse nada demais.
— Hulk protege a cidade e fica verde! — disse, simplesmente. — Eu
já sou grande… — sorriu arteiro —, papai disse que tem que proteger a
Nath, e o Hulk faz isso!
— Quando seu pai disse isso?
Matheus levou o indicador ao queixo, pensativo.
— Hoje, com o Pepeu.
Se antes eu estava confusa, depois da informação inocente que o
pequeno me deu, não soube como lidar com o seu presente.
— Eu prefiro que o Hulk proteja você, meu bem — falei, sabendo a
importância que a pelúcia tinha para ele.
Era adorável como Matheus acabou ouvindo uma conversa do pai fora
de contexto, e decidiu agir cedendo seu ursinho para mim. Isso fazia com
que aquele desejo de o manter desse jeito para sempre se instalasse com
mais força no meu peito.
A ciência já tinha encontrado uma forma de impedir que ele
crescesse? Eu pagaria o preço que fosse!
Matheus balançou a cabeça, negando.
— É seu agora, Nath! — insistiu, determinado.
Funguei, impedindo que mais lágrimas rolassem e olhei em volta,
encontrando uma alternativa que me parecia uma troca mais do que justa.
— Faremos assim, então — apanhei a joia da mesa de cabeceira e
mostrei para que ele visse. Não demorou para que reconhecesse o
escapulário que minha avó me deu de presente quando eu era criança. — Eu
aceito o seu Hulk… e você fica com o meu colar, o que acha?
O pequeno sorriu, meneando a cabeça.
Acompanhei seu olhar curioso, indicando que se aproximasse para
que eu prendesse a joia em seu pescoço. Não era uma corrente feminina e
ele poderia usar tranquilamente, era uma joia de família que havia passado
por gerações e me parecia uma troca apropriada.
A pelúcia era tão importante para o pequeno, quanto aquela corrente
era para mim e eu também gostaria que ele ficasse protegido. Se não fosse
com o seu Hulk, que fosse com aquele escapulário da minha família.
Matheus admirou o pingente da peça e a segurou com delicadeza,
olhando-me por baixo dos cílios e deixando que aquele sorriso lindo
rasgasse seus lábios. Eu o acompanhei, involuntariamente.
— Pronto… agora nós dois estamos protegidos. — Pisquei, apanhando
o urso da caixa e mostrando para ele. — Mas eu vou querer outro abraço,
que tal?
Não precisei insistir, em um instante, seus braços estavam ao meu
redor e o cheirinho doce e infantil do seu perfume se espalhou em meu
sistema.
Depois de ter me enchido de beijos e abraços, Matheus e eu ficamos
um tempo na cama.
O pequeno me distraiu por boa parte da manhã e me contou que o pai
dele tinha ido na cidade com Igor, mas ele havia optado por ficar com a
Mara, que também não demorou a entrar no quarto com café da manhã
servido em uma bandeja e me desejar os parabéns.
Renato tinha deixado um bilhete escrito à mão na sua mesa de
cabeceira, avisando que voltaria o quanto antes e que se eu precisasse de
qualquer coisa, deveria pedir para Mara ou Marcus ligarem para ele. Como
meu celular — ou o que sobrou dele depois do meu confronto com
Guilherme — não estava em lugar nenhum, deduzi que fosse o motivo para
a ausência do meu namorado.
No entanto, Matheus era uma distração boa o suficiente para a minha
mente e por algumas horas, ele me manteve ocupada com as suas
brincadeiras.
Quando Mara entrou no quarto e o roubou de mim, aproveitei para
tomar uma ducha e tirar o pijama. Enquanto me arrumava, meus olhos
encontraram a pelúcia do Hulk sobre o lençol da cama perfeitamente
arrumada e outro sorriso bobo escapou dos meus lábios.
Como podia uma criança ser tão astuta para pegar uma fração de
conversa do pai, e decidir por conta própria fazer algo a respeito?
Em vinte e quatro anos de vida, acho que podia afirmar que tinha
ganhado todo tipo de presente em aniversários, mas nenhum conseguiu me
deixar tão encantada ao ponto de uma pelúcia gasta se tornar mais especial
que todos os presentes caros que acumulei.
Na verdade, nunca liguei tanto para coisas materiais. Cresci com
dinheiro suficiente para comprar tudo o que eu sempre quis, então presentes
sem significados me pareciam só… coisas superficiais.
Eu dava valor para coisas mais simples, como: meus amigos largarem
seus compromissos e suas vidas conturbadas, para passarem o dia comigo
— mesmo que fosse para ficar em frente a uma fogueira na fazenda dos
meus avós, ou em uma casa noturna em alguma cidade europeia.
O presente de Matheus havia causado o mesmo efeito, e amenizou a
lembrança de que naquele ano, todos pareceram esquecer que meu
aniversário estava chegando. Até mesmo os meus pais que eram os
primeiros a me ligarem, estavam alheios àquela data.
Suspirei, deixando o gloss de lado e dando uma última olhada no meu
reflexo no espelho. Não era nada mirabolante ou exagerado, a única coisa
que eu sabia sobre a nossa programação do dia era que Bianca e Leandro
viriam almoçar conosco. E dado ao som da gargalhada de Matheus
irrompendo no corredor, não foi difícil saber que eles tinham chegado.
Virei o rosto na direção da porta ao sentir a presença de outra pessoa
no quarto e um sorriso se abriu em meus lábios ao encontrar Renato ali.
Seus olhos compenetrados em meu reflexo no espelho, como se eu fosse
uma coisa que podia desaparecer da sua vista em um piscar de olhos.
— Oi — soprei, tentando conter um sorriso involuntário ao vê-lo
desencostar da porta e caminhar em minha direção, vagarosamente.
Como um todo, Renato era uma visão desconcertante. Não apenas por
conta da beleza que fazia parte de toda a sua estrutura, ou pela maneira
como os músculos definidos se desenhavam e marcavam o tecido da
camiseta que ele usava, e as veias grossas ressaltavam em seus braços. Era
o seu olhar. Aquele maldito olhar que parecia entrar na minha pele e atear
fogo no meu corpo, ao ponto de me fazer esquecer de coisas básicas, como
respirar.
— Bom dia, anjo — falou, tranquilo, parando a pouco menos de um
passo de distância de mim. Ergui o olhar para encará-lo, sorrindo ao sentir
seus dedos se apertarem em meu queixo. — Como estamos por aqui?
Levantei-me, ficando em pé porque a visão dele me olhando de cima,
despertava memórias recentes do que aconteceu no seu escritório no
apartamento. Minhas mãos espalmaram seu peito, sentindo as batidas
ritmadas do seu coração contra a minha palma e fiquei na ponta dos pés,
roçando meus lábios nos seus.
— Vou me sentir melhor com um beijo — confidenciei, rouca.
Ele não me tocava direito desde que voltamos do hotel, seus toques
eram sempre sutis e direcionados para pontos neutros do meu corpo e
apesar de apreciar seu cuidado e preocupação, sentia falta de tê-lo me
tocando em todas as partes.
Renato não perdeu tempo, antes que eu conseguisse dizer qualquer
coisa, seus lábios avançaram contra os meus e sua mão mergulhou em meu
cabelo, segurando-me firme e forte, do jeito bruto que sempre fazia.
Meu corpo cambaleou para trás devido ao impacto e meu estômago se
agitou, aquela sensação de que todo meu corpo estava em brasa me
nocauteou e meus braços buscaram equilíbrio em seu pescoço, segurandome nele como se isso me impedisse de cair em um mar revolto.
Meu quadril colidiu com a penteadeira do closet, seu braço ao redor
da minha cintura impulsionou meu corpo para cima e me sentei no móvel,
envolvendo seu corpo com minhas pernas e impedindo que qualquer
distância fosse instaurada entre nós.
Sua pele sempre parecia mais quente que a minha e o peso do seu
corpo sobre o meu era bem-vindo. Sua língua dominou a minha,
arrancando-me um gemido rouco e isso fez com que seu aperto em minha
nuca aumentasse, elevando a minha temperatura ao máximo.
De repente, o meu vestido curto e de alças finas parecia ter tecido
demais, a camiseta de algodão e a calça que ele usava era muita roupa… e a
presença de Leandro e Bianca em algum ponto da casa, parecia ser algo que
poderia ser ignorado, contanto que fechássemos a porta.
O gosto marcante de cravo e canela, denunciava que ele tinha bebido
Hennessy antes de vir me encontrar e isso revivia as lembranças de duas
noites atrás.
De repente, eu gostaria de voltar para aquela tempestade de São Paulo
e repetir tudo outra vez.
Quem sabe, quando nos enroscássemos no sofá para descansar por
alguns minutos, encontrássemos uma desculpa boa o bastante para justificar
a nossa ausência no casamento?
Meus pulmões clamaram pelo oxigênio, mas eu não queria
interromper o beijo. Na verdade, a necessidade de fôlego nem parecia tão
relevante a essa altura do campeonato. A única coisa ao qual meu cérebro
se agarrava era na busca por mais dele.
Eu precisava de mais do Renato, porque nunca sentia que tinha o
suficiente.
Infelizmente, ele não parecia pensar da mesma maneira e partiu o
beijo, arrastando os lábios pela minha mandíbula, mordiscando a pele e
subindo em direção a minha orelha, deixando beijos e pequenas lambidas
no trajeto.
Estremeci, refém do jeito como ele conhecia o meu corpo ao ponto de
saber exatamente aonde ir para me deixar sob seu domínio.
Arquejei, estremecendo em seus braços quando aprisionou o lóbulo da
minha orelha entre os dentes. Minhas paredes pulsaram, buscando pelo
preenchimento necessitado e afundei as unhas em seus ombros, contendo
outro espasmo do meu corpo ao sentir sua respiração quente contra a minha
pele.
— Estou dando o meu melhor para não te monopolizar, diabinha…
seja uma boa garota e não se esfregue em mim desse jeito — pediu, rouco e
meu cérebro derretido só conseguiu gemer em resposta ao sentir a mão que
apertava minha cintura, encontrar um caminho por entre minhas coxas.
Minha boceta se apertou em torno do vazio, e o sentimento de
urgência que se instalou no meu ventre foi desesperador. E para foder ainda
mais com o meu autocontrole inexistente, Renato aumentou o aperto em
meu cabelo, puxando-me para trás e me obrigando a olhar em seus olhos.
Droga!
Um arrepio violento trespassou pelo meu corpo quando senti sua mão
pairando sobre o tecido de renda da minha calcinha. As íris castanhas de
Renato ganharam uma coloração mais profunda e sombria, denunciando
que ele precisava daquilo tanto quanto eu.
— Talvez… você não precise se controlar — sugeri, desconhecendo o
tom rouco e carente que escapou dos meus lábios.
Aquele era o efeito Renato Monteiro Trevisan se alastrando pelo meu
corpo. Eu desconhecia a pessoa que me tornava sob o seu comando, porque
era o único momento da minha vida em que eu aceitava ser comandada.
O controle era importante para mim, me dava um senso de autonomia
que eu não conseguia em todas as áreas da minha vida, especialmente, na
vida profissional. E abrir mão dele, era uma tarefa quase impossível, porque
meu ego não permitia — mesmo fora do escritório.
O meu relacionamento com Renato era a primeira vez na vida em que
eu aceitava abdicar do controle e transferi-lo para outra pessoa. Era a
primeira vez também que eu me permitia ser vulnerável, ao ponto de não
precisar repensar em cada coisa que saía dos meus lábios.
— Cleputamaníaca! — A voz de Leandro não muito longe nos
arrancou do transe em que estávamos submersos e meu olhar se arrastou
para a porta, como se o idiota fosse aparecer ali a qualquer momento. —
Não demore, querida, não tenho o dia todo para você!
Grunhi, torcendo os lábios em uma careta.
— Normalmente, adoro ele…, mas agora eu quero matá-lo.
Renato riu, afastando-se de mim e me deixando com a sensação de
vazio.
— Dessa vez, preciso agradecê-lo por ter interrompido — disse
Renato, esticando o braço para alcançar uma prateleira mais alta do closet,
onde eu não alcançaria nem se quisesse bisbilhotar. — Porque seria
egoísmo da minha parte te prender no quarto o restante do dia.
Meu olhar acompanhou o estojo quadrado que ele retirou da prateleira
alta. Não era difícil reconhecer que o forro de couro e veludo pertencia a
uma joalheria, principalmente, porque não era de uma qualquer. A Haussler
Diamonds era especialista nos diamantes mais raros do mundo e por muitos
anos, trabalhou fabricando peças apenas para a monarquia.
Eu conseguia reconhecer de longe porque minha família era detentora
de algumas das peças mais antigas e exclusivas, no entanto, quando Renato
colocou o estojo em minha mão e eu abri a caixa, senti o coração dar um
solavanco violento no peito.
Uma coisa que eu nunca me acostumava sobre Renato, era que ele
realmente ouvia tudo o que eu dizia, por mais bobo e desinteressante que
fosse, ele se atentava a cada palavra e a guardava em alguma gaveta do seu
cérebro destinada a tudo o que julgava ser importante sobre mim.
E quando meus olhos se fixaram no pingente delicado, com o
diamante rosa recortado no formato de uma peônia, as lágrimas que eu
estava tentando conter desde que Matheus me deixou sozinha no quarto
retornaram com força total.
— Eu ainda não acredito que você se lembra — sussurrei, sentindo a
voz falhar devido ao nó que se instalou em minha garganta.
Meu vínculo com aquela flor era extremamente pessoal e eu nunca
contei para ninguém, exceto ele.
Renato sorriu, afastando uma mecha teimosa do meu cabelo para trás
e escovando minha bochecha com seus dedos.
— Esquecer qualquer coisa sobre você seria impossível, anjo — disse,
com a voz carregada de uma intensidade que aumentou o nó em minha
garganta —, eu posso viver dez vidas, e ainda vou me lembrar de cada
detalhe sobre você.
Essa era outra coisa sobre ele que sempre me perturbava, a maneira
como sempre conseguia me arrancar todas as palavras e me deixava sem
saber como responder ao que dizia.
Entreabri os lábios, buscando pelo fôlego perdido e sentindo as
batidas acelerarem no meu peito quando seu polegar contornou meu lábio
inferior.
Renato pareceu se divertir com meu embasbacamento e aproveitou do
meu transe para retirar a joia do estojo. Aceitei seu convite para ficar de pé
em frente ao espelho — ainda que duvidasse da competência do meu corpo
para me equilibrar.
Sem pressa alguma, ele afastou o meu cabelo, jogando-o para o lado
oposto e grudou seu corpo em minhas costas, transferindo o seu calor para a
minha pele e capturando meu olhar através do nosso reflexo no espelho.
— Dois dias atrás você disse as palavras que selaram seu destino ao
meu… — sua voz permaneceu em um tom grave, como se estivesse
compartilhando um segredo comigo —, você se lembra?
Estava tão atordoada com sua presença, que demorei alguns minutos
para entender sobre o que Renato estava falando.
As memórias daquela noite eram borrões eróticos que eu ainda não
tinha conseguido organizar direito no meu cérebro, e precisei de um tempo
para vasculhar entre os fragmentos para recordar do que ele estava se
referindo.
Não, não era sobre a minha afirmação de que dessa vez eu ficaria,
independentemente do que houvesse.
Ele estava falando sobre a outra coisa que eu disse, repetidas vezes,
enquanto meu corpo era nocauteado pelos orgasmos mais intensos que tive
na vida.
Três palavras. Sete letras. Ditas mais de vinte vezes.
Eu havia dito que o amava.
Pisquei, zonza. Busquei pelo seu olhar no espelho e ele o mantinha
sobre mim, atento a cada expressão em meu rosto.
Abri a boca para tentar contornar as minhas declarações impulsivas,
porque eu não tinha me dado conta de que as soltei. Não era do meu feitio,
todos os meus antigos relacionamentos acabaram justamente pela ausência
daquela declaração por minha parte.
No entanto, nenhuma palavra saiu.
Na verdade, eu não sentia necessidade alguma de retirar aquelas
declarações impensadas. Todas elas eram sinceras, de uma forma que eu
sequer conseguia explicar sem que acabasse caindo na redundância.
Eu amava Renato.
Em algum ponto dos últimos três meses, ele se tornou parte essencial
da minha vida e conquistou o privilégio de escutar aquelas palavras. Retirálas e agir como se eu nunca as tivesse dito seria a maior mentira que contei
na vida, e eu odiava joguinhos.
Por que eu precisava fingir que não o amava, quando cada parte do
meu corpo queimava, implorando por ele?
Respirei fundo, endireitando meus ombros e buscando pelos seus
olhos.
— Sim, eu me lembro.
Ele sorriu, aproximando o colar de ouro branco do meu colo, sem
romper o contato visual comigo. A peça se aninhou em minha pele e meus
dedos buscaram pelo pingente, segurando-o suavemente.
— Bom, diabinha… — sua voz soou mais próxima que antes
conforme ele aproximava o seu rosto do meu —, porque é importante para
mim que esteja ciente de que, eu amei você desde o momento em que te vi e
direi isso quantas vezes forem necessárias para que não duvide nem mesmo
por um segundo, do que eu sou capaz de fazer por você.
Ele fechou a joia, arrastando as pontas dos seus dedos sobre a minha
pele.
— E também preciso que você saiba que nem sempre o meu amor vai
ser bonito. A mera ideia de alguém tentando roubar você de mim desperta
um lado meu que não me orgulho… — a possessividade marcou suas
palavras, assim como o aperto bruto de seus dedos em minha cintura,
arrancando-me o fôlego. — Mas eu prometo que não vai existir um único
dia em que você durma ou acorde sem ter certeza de que é a única mulher
na minha vida.
A intensidade inigualável da sua declaração deveria ter me assustado,
principalmente, pela forma como seus olhos nublaram ao afirmá-las
enquanto me segurava como se eu fosse a sua joia mais preciosa, a que seria
capaz de matar caso tentassem tirar dele.
No entanto, cada célula do meu corpo reagiu de forma contrária,
tornando-se refém de suas palavras e colapsando meu sistema, submetendo
cada fibra da minha existência àquela conexão que nos envolvia.
Naquele momento, as inseguranças, dúvidas, problemas e os
demônios mentais simplesmente se dissiparam, dando lugar a um
sentimento de pertencimento que me arrancou todo o fôlego.
Pela primeira vez desde que o conheci, entendi o que ele quis dizer
quando afirmou que não haveria volta.
E eu não queria que houvesse.
Cada fragmento meu, estava mais do que disposto a embarcar naquele
jogo e continuar apostando no amor que crescia a cada segundo entre nós.
Renato me girou no meu próprio eixo, obrigando-me a olhar
diretamente em seus olhos e como uma tola, meus joelhos ameaçaram me
abandonar à minha própria sorte, porque o cretino conseguiu roubar tudo
para ele.
Cada centímetro do meu corpo e do meu coração pertenciam a ele.
— Não vai ter volta — repeti o que ele me disse no passado, quase
como se fosse uma prece.
Por favor, que não tenha volta… ou isso vai me quebrar de um jeito
que não terá conserto.
Renato sorriu, satisfeito com as palavras que escaparam dos meus
lábios e, lentamente, aproximou os nossos rostos, fazendo com que nossas
respirações se misturassem.
— Boa garota — disse, antes de colidir com sua boca na minha e
roubar todo o sopro que ainda me restava, beijando-me com aspereza e
brutalidade, como se isso fosse marcar seu nome em minha alma.
Mas ele não precisava, porque já estava.
No lugar mais profundo do meu coração, gravado a ferro e fogo de
uma maneira que nada seria capaz de apagar, estava o nome de Renato
Monteiro Trevisan.
Renato me deixou sozinha no quarto para tomar uma ducha, após
entregar um outro embrulho com meu novo celular.
Quando o aparelho foi arremessado no chão por Guilherme, a tela
ficou destruída e eu fiquei sem qualquer acesso ao mundo que habitava
dentro do meu telefone. Por sorte, Renato aproveitou sua ida ao Rio para
trazer um novo, configurado com outro número.
Uma exigência de Sérgio, seu chefe de segurança, já que Guilherme
tinha meu número anterior e poderia entrar em contato a qualquer
momento. E a ideia de ter que escutar a voz de Bastos outra vez, foi o
suficiente para que eu aceitasse a explicação do meu namorado sem
teimosia.
Eles fizeram toda a transferência de dados de um aparelho para o
outro e com exceção da troca de número, todo o restante permanecia
idêntico. E enquanto esperava que ele saísse do banho, aproveitei para
verificar as minhas mensagens, imaginando que encontraria
questionamentos pelo meu sumiço nas últimas trinta e seis horas…, mas não
havia nada.
Com exceção de mensagens comuns, ninguém parecia ter se
importado com meu desaparecimento, ou ao menos se preocupado com a
ausência de respostas da minha parte.
Nem mesmo meu aniversário havia sido lembrado por eles.
Isso não estava certo… ou estava?
Não, não, não.
Era impossível que nem mesmo a minha mãe se lembrasse que dia
era. E embora estivesse irritado comigo por ter comprometido minha
segurança, meu pai também não permitiria que aquele dia passasse em
branco. Ele sabia que eu estava viajando com Renato, porque apesar de não
ter falado comigo, Miguel Gama estava constantemente em contato com o
meu namorado.
Talvez Sérgio tenha errado na hora de configurar e algumas
mensagens se perderam…
Aquela explicação fazia mais sentido do que qualquer outra, e me
agarrei nela para não ficar maluca.
Eu entendia que eles não poderiam vir por conta do caos em suas
vidas. Mamãe estava com um caso complexo em suas mãos e sair de
Boston podia ser um risco para a paciente que estava monitorando o póscirúrgico. Vovô não saía da fazenda há anos, por conta de inúmeros fatores
que envolviam sua segurança e minha abuelita, bem… ela sempre era a
primeira a ligar para me dar os parabéns.
O silêncio deles, especialmente do meu pai, era ensurdecedor.
Mirei meu reflexo no espelho, como se isso fosse me despertar da
realidade paralela onde eu havia entrado desde o casamento. Eu não
acreditava que era o centro das atenções na vida da minha família e amigos,
mas sequer ser lembrada por dois dias? Papai me deserdou e esqueceu de
informar?
Não, não… ele não seria capaz.
Meus olhos que estavam absortos no recorte lateral do meu vestido, se
voltaram para Renato quando ele saiu do banho com uma toalha branca
presa em seu quadril. Algumas gotas de água escorriam por sua pele,
deixando rastros pelo abdômen esculpido e descendo em direção às duas
trilhas que se perdiam sob a toalha.
A visão como um todo era maravilhosa em proporções inimagináveis.
Nem mesmo no ápice da inspiração e criatividade, minha mente seria capaz
de retratar com precisão a obra-prima que era o corpo de Renato.
Um suspiro involuntário escapou dos meus lábios quando nossos
olhares se cruzaram através do reflexo. Senti meu corpo se inflamar apenas
com esse contato visual indireto, enquanto ofegava, atordoada pela maneira
como ele conseguia transmitir seu calor para mim com uma simples troca
de olhares
— Não me olhe assim — pediu ele, aproximando-se lentamente por
trás, sem encostar seu corpo no meu. Um arrepio percorreu minha espinha,
fazendo-me cambalear para trás enquanto sentia sua pele úmida e quente
contra a minha.
Renato era imponente em todos os aspectos, destacando ainda mais a
minha baixa estatura quando me aninhava junto ao seu corpo. Suas costas
largas e definidas, os bíceps meticulosamente esculpidos, os músculos que
pareciam saltar à vista… era simplesmente impossível não o notar.
Eu sempre tive noção de tudo aquilo, sua silhueta não era algo que
passava despercebido, mas só depois de presenciar o estrago que ele
poderia fazer com todo aquele conjunto, me dei conta de que se o olhasse
por fora, desvinculando-o de tudo o que sabia sobre seu caráter e
personalidade… Renato conseguia ser muito intimidante.
Não para mim, mas para quem via apenas a fachada que ele
estampava diariamente.
— Assim como?
Minha voz soou ridiculamente arfante, porque era impossível
controlar meu corpo perto do seu.
Quando o seu rosto se aproximou da curva do meu pescoço e, sem
pressa, aspirou o meu cheiro e deixou um beijo casto em minha pele;
inclinei a cabeça para o lado oposto, concedendo espaço para que
expandisse sua exploração.
Conseguia sentir as pontas dos seus dedos se arrastarem em minha
coxa, subindo num ritmo lento e quase punitivo, antes de se perder por
baixo do tecido. Refém do seu toque, afastei as pernas e joguei as costas
contra o seu peito, sentindo a ereção latente pressionar contra mim.
— Como se quisesse que eu te comesse — disse, grave e rouco, ao pé
do meu ouvido, espalhando uma série de arrepios em minha pele.
— Quem disse que eu não quero?
Renato grunhiu e me virou bruscamente, obrigando-me a olhar em
seus olhos e sua mão livre afundou em meu cabelo, segurando com força.
Pouco me importava que ele arruinaria todo meu trabalho com o babyliss
nos últimos vinte minutos.
Eu amava quando ele me segurava desse jeito, duro e possessivo. Era
uma parte sua que ninguém acessava, apenas eu… e me sentia um pouco
dependente dela.
Um gemido abafado escapou dos meus lábios quando, sem aviso, seus
dedos me penetraram, deslizando em minha boceta encharcada sem
dificuldade. Deitei a cabeça para trás, fechando os olhos e sendo nocauteada
pelas sensações prazerosas que sua mão habilidosa proporcionava.
O sangue esquentou em minhas veias e minhas costas colidiram com
o armário atrás de mim, afundei as unhas em sua nuca, impedindo que se
afastasse e tive outro gemido silenciado quando sua boca buscou pela
minha, sem delicadeza.
Guiada pelo frenesi que me consumia, segurei-me nele e impulsionei
o corpo para cima, sendo capturada pelo seu braço e prendendo as pernas ao
seu redor. Seus dedos avançavam sem piedade em minha boceta, fazendo
com que todo o meu organismo ansiasse por mais.
Meu quadril avançou contra o seu toque, necessitando de tudo que
pudesse me fornecer, esquecendo completamente que tínhamos um
compromisso marcado.
O almoço parecia ser irrelevante agora, porque a fome que eu sentia
só seria saciada com o peso do seu corpo sobre o meu, e a sensação de
preenchimento que seu pau proporcionava.
Eu posso ser o almoço, não me importo!
Ele afastou os lábios dos meus, buscando pelos meus olhos e um
gemido carente escapou do fundo da minha garganta ao encontrar a mesma
forme que queimava em mim em suas orbes.
Ótimo, eu encontrei a programação perfeita para o meu aniversário.
E daí que todos os outros esqueceram?
— Você realmente é um anjo diabólico… — soprou, diminuindo o
ritmo das investidas, me causando desespero com a ideia de que me
deixaria sem o orgasmo que estava cada vez mais próximo. — Sente como
a sua boceta aperta meus dedos? — seus lábios roçaram nos meus, sua voz
descendo alguns tons e prejudicando meu raciocínio.
Minhas paredes contraíram ao seu redor, em uma súplica para que não
me deixasse vazia.
— Renato… — seu nome escapou como um suspiro dos meus lábios,
eu sentia que enlouqueceria se ele me largasse daquele jeito de novo.
Ele sorriu, como se soubesse exatamente o que se passava em minha
cabeça e sugou meu lábio inferior, mordiscando-o com mais força que o
comum.
Gemi, esfregando o quadril em sua mão, precisando de mais.
— Shhh… diabinha, não se preocupe, você vai ganhar o que quer —
assegurou, deixando que a mão livre alcançasse meu rosto e busquei por
seus olhos, ansiosa —, você tem sido tão boa… — sua barba por fazer
raspou em minha pele, distribuindo arrepios em meu corpo.
Arquejei, apertando as unhas em sua nuca e meu cérebro perdeu a
linha de raciocínio ao qual ainda se agarrava, quando seus dedos me
abandonaram e seu pau bateu dentro de mim, fundo, forte e muito duro. Sua
mão cobriu meus lábios, abafando o grito que rasgou minha garganta e meu
corpo queimou contra o seu.
Minha boceta contraiu, apertando-o com tanta força que arrancou um
gemido rouco dele e senti seu pau pulsar em meu interior. Seus olhos
recaíram sobre mim, escuros e em transe, incapazes de se afastarem do meu
rosto e me impedindo de quebrar a conexão.
Renato colou nossas testas, sem tirar sua mão da minha boca e se
retirando parcialmente de dentro de mim. Meu coração martelou no peito,
acelerado demais para a minha própria segurança, e perdeu o ritmo quando
ele investiu novamente, violento.
Sua mão abafou outro gemido ruidoso que escapou da minha garganta
e um sorriso cretino se desenhou em seus lábios, o fogo se espelhou em
meu corpo, concentrando-se no meu âmago e aumentando a pressão
naquele ponto.
— Eu poderia passar o dia inteiro te comendo desse jeito…
Chorosa, deitei a cabeça contra o móvel atrás de mim, cedendo espaço
para que seus lábios explorassem minha pele, chupando, lambendo,
mordiscando… impedindo-me de pensar em qualquer coisa que não fosse
ele.
Não duvidava de sua promessa. Renato provou mais de uma vez que
era implacável. Ele nunca demorava muito para estar pronto para uma nova
rodada, e eu só conseguia um pouco de descanso quando garantia que meus
ossos foram esfarelados e transformados em cinzas. No entanto, o intervalo
sempre era curto e não demorava para que me trouxesse de volta à vida
como uma fênix, queimando e ansiando por mais uma dose da minha droga
preferida.
— Posso me acostumar com isso — confidenciei, contra a palma da
sua mão e ele sorriu, deslumbrado.
Suas investidas se tornaram mais rápidas e fortes, eu o sentia em todas
as partes do meu corpo e cada músculo correspondia aos seus incentivos.
Minhas unhas se enterraram em sua pele, causando machucados que ele
sequer se importava de esconder.
Meus olhos se fixaram no enorme espelho atrás dele, refletindo a
nossa imagem. Suas costas ainda tinham as marcas de duas noites atrás, os
rasgos avermelhados demorariam alguns dias para cicatrizar e ainda assim,
novos vergões estavam sendo criados pelos meus dedos aflitos.
A imagem refletida no espelho era tão erótica que eu não conseguia
desviar a atenção. Meu corpo esmagado contra a porta de vidro do closet,
minhas pernas em sua cintura, a toalha no chão que me permitia ver sua
bunda… e o meu próprio reflexo; a maneira como minhas pupilas dilataram,
como as bochechas ganharam um tom ruborizado incomum e meus
gemidos eram calados pelo aperto de sua mão…
Tudo aquilo era demais para a minha cabeça.
Senti minha boceta moer ao seu redor, denunciando o orgasmo que se
aproximava e Renato substituiu a mão que abafava meus gritos, pelos seus
lábios. Sua língua buscou a minha e um gemido lânguido escapou do fundo
da minha garganta ao sentir toda aquela pressão e calor se tornar mais do
que eu era capaz de suportar.
E ele não parou.
Nem mesmo por um mísero segundo.
Ele batia forte dentro de mim, reivindicando cada gemido com um
beijo violento. E eu amava isso. A maneira como não me tratava como se
eu fosse frágil e me dava exatamente o que eu necessitava.
Renato era o melhor dos dois mundos, em uma única pessoa.
Ao longo do dia, me tratava como se eu fosse uma entidade ao qual
ele era um súdito devotado; atencioso, carinhoso e prestativo, disposto a
fazer qualquer coisa para atender aos meus caprichos. Mas quando me tinha
para si, imersa naquela bolha carregada de dominação e intensidade que o
cercava, ele me fodia como se dependesse disso para viver um novo dia.
E isso me atingia de todas as formas imagináveis.
Era muito além da sensação de ser a sua mulher e a pessoa por quem
ele seria capaz de fazer qualquer coisa para satisfazer… tinha a ver com o
efeito que se espalhava pelo meu corpo, a maldita adrenalina que me fazia
sentir viva e capaz de conquistar tudo.
Esse era o efeito dele em mim.
Renato me fazia sentir intocável.
Quando estava nos seus braços, sendo fodida arduamente, Renato me
fazia acreditar que eu podia ter tudo, apenas porque o tinha só para mim. E
eu queria viver nessa bolha para sempre.
Meus dentes aprisionaram seu lábio inferior, prendendo-o para
reprimir um gemido esganiçado que irrompeu do fundo da minha garganta,
quando o orgasmo me atravessou como uma avalanche, roubando minha
força e me transformando em um amontoado de ossos em seus braços.
Ele não demorou a vir, enchendo-me com o seu gozo quente e meu
corpo se tornou uma bagunça devido aos espasmos que me atravessavam.
Lágrimas involuntárias rolavam em minhas bochechas, arruinando a
maquiagem e busquei pelos seus olhos, encontrando seu olhar sobre mim.
— Vou precisar ficar longe de você no escritório — constatou,
arrastando seus dedos em minha bochecha com delicadeza, enquanto minha
respiração tentava reencontrar o ritmo perdido. — Ou teremos sérios
problemas.
Sorri, meio embriagada.
Eu o entendia perfeitamente.
Algo havia mudado entre nós após a minha declaração dramática em
seu apartamento, e eu sabia que Renato estava consciente disso. Não sabia
explicar o que era, mas estava ali, mantendo-nos tão viciados na sensação
de estar nos braços do outro, que com o menor contato, éramos arrebatados
para a bolha.
Era o tipo de coisa que não podia acontecer no escritório.
— Outro banho? — Ofereceu e meneei a cabeça, vislumbrando meu
reflexo no espelho e me deparando com os meus lábios inchados e
vermelhos, minha maquiagem não tinha sido tão estragada, mas todos os
sinais de que tinha acabado de transar estavam presentes.
E tinha o cheiro também. Renato e eu estávamos suados e com cheiro
de sexo impregnado em nossas peles.
Como se não pesasse nada, ele me segurou em seus braços e me
carregou para o banho, livrando-se do meu vestido no meio do caminho e
deixando que a água quente caísse sobre nós.
Cerca de uma hora depois, encontrei Renato concentrado em seu
telefone, mas não demorou a desviar a atenção para mim e abandonar o
aparelho na mesa próxima da varanda.
A iluminação natural do dia quente atravessava as janelas e a brisa
fresca bateu em minha pele, trazendo uma sensação bem-vinda.
Seus olhos não se afastaram do meu corpo, enquanto caminhava em
minha direção e quebrava a distância entre nós, deixando um beijo
demorado em minha testa e me arrancando um suspiro.
— Você está maravilhosa, anjo — elogiou, afastando-se o suficiente
para me observar outra vez, antes de me guiar para perto.
Sorri, sentindo as bochechas esquentarem.
— Obrigada! — Agradeci, espalmando a mão em seu peito e
deixando um beijo suave em seus lábios —, mas fique longe de mim pelo
restante do dia, ou precisaremos ouvir o Leandro soltando piadas pelos
próximos três meses.
Renato riu, concordando e me afastei, apanhando o celular e
confirmando que realmente ninguém me enviou mensagem. Claro, alguns
clientes que foram informados pela Ananda, secretária do meu namorado, já
tinham enviado parabenizações, alguns sócios seniores e associados do
escritório também…, mas nenhum deles era realmente importante para mim.
Meus pais. Meus avós. Meus amigos.
Ninguém.
Um nó se instalou em minha garganta e senti a aproximação de
Renato, seus braços envolveram meu corpo e ele deixou um beijo em meu
ombro desnudo.
— O que houve?
Virei o rosto, encontrando seu olhar preocupado e soltei um suspiro.
— Meus pais esqueceram do meu aniversário. — Senti a minha voz
soar rouca, devido ao choro contido. Meus olhos marejaram e uma pequena
ruga surgiu na testa de Renato, fazendo com que seus ombros enrijecessem.
— Tenho certeza de que não esqueceram, anjo — tranquilizou,
virando-me para ele e afagando meu rosto com ternura.
Balancei a cabeça, sentindo-me um pouco infantil por estar tão
afetada por aquilo. Talvez fosse por conta de tudo o que aconteceu nos
últimos dias, meu emocional estava um caos e receber um pouco de carinho
das pessoas que eu amava me faria bem, entretanto, eles não pareciam
pensar da mesma forma.
— Esqueceram sim! — Verifiquei o horário, percebendo que já
passava do meio-dia. Ou seja, metade do meu aniversário havia passado e
nenhum deles tinha dado um mísero sinal de vida. — Por que você está
segurando o riso?
Franzi o cenho, vendo Renato esconder o esboço de uma risada e
menear a cabeça, buscando pela minha mão e entrelaçando na sua, firme,
impedindo qualquer tentativa de quebrar o contato.
— Vem comigo, estamos atrasados — falou, ignorando a minha
pergunta.
— Tudo bem, mas não me ignora… já basta o meu pai agindo como se
não tivesse uma filha! — dramatizei, involuntariamente.
Não era à toa que meus amigos diziam que eu era mimada. Claro, eu
melhorei muito nos últimos anos e estava me adaptando à triste realidade de
que nem sempre as coisas aconteciam do meu jeito…, mas esse choque
precisava vir do meu próprio pai?
Aquilo era crueldade!
Desde quando Miguel se tornou tão frígido a ponto de estar disposto a
partir meu coração apenas para dar uma lição?
Renato arqueou a sobrancelha, achando graça no meu drama.
— Seu pai não está te ignorando, anjo.
— Claro que está! Ele não me responde há dias — acusei, um pouco
exagerada e isso não passou despercebido por Renato. — Tá, tudo bem…
dois dias! Mas sabia que dado ao histórico dele, isso é uma eternidade?
Se eu ficasse dois dias sem dizer nada ao meu pai, ele enviaria um
exército para procurar por mim aonde quer que eu estivesse.
Independentemente de ser adulta e mais que apta a lidar com o mundo,
Miguel era esse tipo de pai.
E eu não podia julgá-lo, porque ele havia passado pelo inferno
inúmeras vezes até chegar ao nível mais extremo de paranoia.
Vovô não saía da fazenda pela própria segurança, após sofrer três
atentados; o último o submeteu ao uso de marca-passo no coração. Vovó,
nas poucas vezes em que saía, precisava de um esquema complexo de
segurança digno de ser usado pela Rainha da Inglaterra. Mamãe, mesmo
com uma carreira longe de todo o assédio da imprensa norte-americana,
precisava conviver com uma equipe que Miguel designou para protegê-la…
e eu, bem, quando morava nos Estados Unidos era escoltada a cada passo.
Mudar para São Paulo foi a minha chance de conseguir um pouco de
liberdade. No Brasil, as pessoas não se importavam com o fato de eu ser a
herdeira de um magnata, na verdade, sequer sabiam que eu existia; estavam
ocupados demais se concentrando nas vidas ilusórias de influenciadoras que
compartilhavam cada segundo do dia para milhares de desconhecidos.
Viver no Brasil, longe da imprensa obcecada por escândalos, era o
meu bilhete premiado para o anonimato e liberdade. Era um pequeno
buraco na torre de marfim, que me permitia escapar da vigilância constante
do meu pai e bisbilhotar o mundo ao meu redor através da fresta.
Com um pouco de negociação, convenci Miguel a manter duas
equipes que se alternavam e me seguiam em carros separados. E como o
dinheiro abria portas, não foi difícil encontrar uma pessoa influenciável
entre a equipe que aceitou ser pago por fora para me deixar livre por
algumas horas.
Na verdade, se eu tivesse ido para o apartamento de Renato em outra
madrugada, Miguel nunca teria descoberto sobre a minha saída e,
consequentemente, não estaria me ignorando.
— Pensei que fôssemos encontrar a Bianca e o Leandro perto da
quadra — murmurei, vendo Renato me guiar para o outro lado da
propriedade, onde ficava a piscina e área de lazer.
— Mudança de planos — disse, simplesmente, envolvendo minha
cintura com o seu braço e me mantendo firme ao seu lado.
Sua mão apertava minha carne, ao mesmo tempo que seu polegar
traçava círculos em minha costela desnuda pelo recorte do vestido.
— Que planos?
Ele sorriu, dando de ombros, sereno.
— Sabe… foi muito difícil decidir como comemoraríamos o seu
aniversário — comentou, virei o rosto para ele, encontrando um sorriso
descontraído. — E ficou ainda mais complicado, quando me disseram que
era impossível esconder qualquer coisa de você.
Sorri, sem conseguir conter a prepotência.
— Porque todos eles são péssimos na hora de esconder o que estão
fazendo. — Dei de ombros, intrigada.
— Eles são, não é? — provocou, apertando mais os dedos em minha
cintura e paramos no meio da sala, em frente ao painel de tijolos vazados
que dividia aquele cômodo da área externa.
Estreitei os olhos em seu rosto, reconhecendo que ele escondia
alguma coisa. Renato não tinha o hábito de usar aquele tom
condescendente, exceto quando estava querendo provar um ponto ou apenas
implicar comigo.
— O que você fez? — A pergunta soou desconfiada, e aos poucos, as
peças do quebra-cabeça foram se formando em minha mente, fazendo com
que algumas coisas começassem a fazer sentido.
Arregalei os olhos, vendo seu sorriso travesso se abrir e ele se
aproximou, dando um passo para perto.
— Feliz aniversário, diabinha — soprou, deixando um beijo suave em
meus lábios, antes me girar para o lado oposto da sala, direto para as portas
de vidro que concediam uma visão completa da área externa da casa de
campo.
Uma lição sobre mim era que, eu estava há anos invicta de festas de
aniversário surpresas. Não porque não gostava, mas porque sempre acabava
descobrindo o que planejavam; e mesmo quando me oferecia para fingir
que não sabia, meus amigos acabavam desistindo.
Em minha defesa, não era proposital.
Eles que eram desatentos demais!
Na penúltima tentativa, Bianca deixou o celular desbloqueado perto
de mim com uma conversa aberta em um grupo chamado: “Festa surpresa
da Barbie Malibu | 15
ª tentativa”. E na última, sem querer, Caio me colocou no grupo de
organização e só se deram conta da confusão duas semanas depois, quando
precisei lembrá-los que eu era alérgica a mariscos.
Logo, não era genialidade da minha parte… era só burrice dos meus
amigos!
Meus olhos saltaram das órbitas ao reconhecer todos os rostos
familiares que estive esperando contato nas últimas horas. Minha mãe, meu
pai, Bianca, Leandro, Marc e Maya, Caio, Antônio, Maitê, os pais dele… e
até os meus avós.
Virei-me para Renato, espantada que ele foi capaz de tirar Elias Gama
da fazenda.
Em que momento aquilo foi organizado, e eu não fiquei sabendo?
O cretino piscou para mim e um sorriso enorme rasgou meus lábios.
No segundo seguinte, meus braços estavam ao seu redor e ele me apertava
contra o seu peito. Meu coração bateu acelerado e as lágrimas turvaram
minha visão, quando meu cérebro processou tudo o que havia acontecido
nos últimos dias.
O fato de ter trazido os meninos escondidos de mim, a sugestão nada
trivial de Leandro para que passássemos o fim de semana no meio da serra,
a aceitação incomum de Bianca — principalmente, após ela ter dito com
todas as palavras, depois da trilha do Carnaval, que nunca mais iria para
lugares com mato —, a quietude de Renato ao longo da viagem e o uso
frequente do celular nos últimos dois dias.
Ele organizou tudo debaixo do meu nariz!
— Desde quando…? Como você…? — balbuciei, sem saber ao certo
do que eu estava falando, afinal, ele havia feito milagres!
Meu avô sair de Medellín era algo inédito.
Bianca e Leandro terem mantido a informação em segredo era um
feito inacreditável.
Minha mãe e meu pai terem aceitado me ignorar por dois dias, era
surpreendente.
E até Antônio tinha aceitado mentir em prol disso!
Renato sorriu, apertando seus dedos em meu queixo e deixou outro
beijo em minha testa.
— Digamos que sou um gênio da lâmpada — falou, olhando para
algo atrás de mim e virei o rosto, vendo minha mãe desistir de esperar e
caminhar em nossa direção. — E sou muito bom em atender aos desejos
secretos da minha senhora.
Mordi a ponta da língua para conter o sorriso enorme que tomou meus
lábios e virei-me a tempo de receber o abraço de Tatiana.
— Ah, florzinha! Mamãe estava morrendo de dor no coração por estar
há tanto tempo sem dizer como você é a minha joia mais preciosa —
lamentou, com a voz chorosa e me arrancou uma risada em meio ao abraço
apertado.
— Eu já estava achando que você não me amava mais! — amolei,
afastando-me e sentindo suas mãos segurarem meu rosto.
Minha mãe era o sinônimo da palavra drama, e quando seu olhar se
desviou de mim para o homem atrás de mim, eu soube que seja lá o que
Renato Trevisan tenha dito, fez com que ela se tornasse a sua maior fã no
globo terrestre.
Tatiana só olhava daquele jeito para três pessoas: meu pai, Antônio e
eu.
— Isso jamais vai acontecer, florzinha! — Garantiu, apertando
minhas bochechas como se eu fosse criança de novo. — Mas admito que
estou chateada, como você ousou esconder que tenho netos? Duas crianças
que são as coisas mais lindas desse mundo!
Meu mundo caiu.
Arregalei os olhos e virei para Renato, pronta para pedir desculpas,
mas ele observava a cena com um sorriso divertido.
Não parecia ser a primeira vez que escutava isso.
Deus, há quanto tempo meus pais estão conversando com ele em
segredo?
— Dios mío, mamá… — supliquei, em espanhol, embora soubesse
que Renato era fluente e entendia perfeitamente, conversar com meus pais
na minha segunda língua nativa era um hábito instintivo. — No digas eso,
los niños son hijos suyos![42]
Dizer isso em voz alta foi mais incômodo do que imaginei que seria,
mas era a verdade, não?
Renato era o pai dos garotos e apesar de terem uma genitora ausente e
negligente, não cabia a mim pensar que tinha o direito de me apropriar
daquele cargo. Eu os amava, mas era apenas a namorada do pai deles, e
sempre seria apenas isso na vida dos dois.
— Pues, cuando le dije a los niños que me llamaran “abuelita”, les
encantó y a mi yerno no le importó en lo absoluto, verdad, ¿cariño?[43]—
Minha mãe se virou para o Renato, abrindo um sorriso travesso e a imitei,
encontrando-o ainda com aquele ar despreocupado.
— Sí, los niños les encantó la idea[44] — disse ele, em um espanhol
tão impecável que eu poderia dizer que era sua língua nativa.
Pisquei aturdida.
Era a primeira vez que o ouvia falar em espanhol, apesar de saber que
alguns dos seus maiores clientes estavam em Madrid, nunca o escutei
conversando com eles. Meu coração deu um solavanco, absorvendo o
impacto do tom gutural que tomou a voz de Renato.
— Viu só, florzinha? — Tatiana sorriu, convencida. — Não seja tão
egoísta, o que custa dividir um pouco daquelas gracinhas com a sua mãe?
Revirei os olhos, sabendo que ela não iria parar com aquela
implicância tão cedo. Normalmente, não me importaria com a brincadeira.
A verdade era que se fosse ser honesta, eu gostava e muito daquela ideia…,
mas precisava ser realista, por pior que fosse a realidade.
Matheus e Igor tinham uma mãe, e ela não era eu — por mais que eu
quisesse que fosse.
E se, sem conhecer a história por trás da ausência de Flávia, a minha
mãe já se oferecia para o cargo de segunda avó, o que ela faria quando
soubesse que os dois foram abandonados e maltratados pela genitora em
todas as oportunidades que Flávia teve de conviver com eles?
Conhecendo a minha mãe como eu conhecia, Tatiana se tornaria uma
leoa e ela mesma iria atrás da mulher para a escalpelar viva. E o pior? Eu
meio que apoiaria.
É mais bonito admitir que só quer a Flávia longe, porque não suporta
a ideia dos meninos darem para ela o mesmo carinho e atenção que estão
dando para você…
Aquela voz sarcástica ressoou, provocando-me e tentando me arrastar
para um caminho que eu conhecia muito bem.
Hoje não, vadia!
Senti a mão quente de Renato em minhas costas e virei o rosto para
ele, encontrando seu semblante preocupado. Seus dedos se arrastaram em
minha pele, aquecendo-a e ajudando a espantar o monstro antes que
dominasse meus pensamentos.
Ele realmente me conhecia tão bem a ponto de reconhecer quando eu
estava pairando na borda do precipício da autodepreciação?
— Por que não vai falar com o seu pai? — sugeriu, atencioso.
Aquiesci, forçando um sorriso e engolindo em seco o incômodo que
aquele assunto trouxe.
— Obrigada.
Renato franziu o cenho, confuso.
— Pelo quê?
Suspirei, apertando os dedos em volta do seu pulso e fiquei na ponta
dos pés, deixando meu rosto pairar sob o seu e roçando levemente nossos
lábios, sem quebrar o contato visual intenso.
— Por ser a melhor aposta que eu poderia fazer na vida… — soprei,
sentindo sua respiração oscilar e o meu próprio coração bater frenético no
peito —, eu te amo.
Toquei nossos lábios, deixando um beijo delicado, como se isso
selasse aquela confissão. Encarei-o, percebendo que ele não estava
esperando por aquela declaração e que, milagrosamente, eu havia sido a
pessoa que o deixou sem palavras.
Sorri, virando-me para seguir minha mãe pelo corredor que levava
para a área externa, onde todos estavam distraídos com suas próprias
conversas.
Entretanto, antes que eu desse um passo na direção, Renato segurou
meu braço, impedindo que eu lhe desse as costas. Seus lábios atacaram os
meus, roubando todo o meu fôlego e minhas mãos buscaram por apoio em
seu corpo, segurando-me nele como se pudesse cair, caso não o fizesse.
Meu coração retumbou, martelando na caixa torácica, ameaçando
pular para fora a qualquer segundo.
Tão rápido quanto me capturou e aprisionou, Renato me soltou o
suficiente para que pudesse me obrigar a olhar em seus olhos.
— Eu te amo — confidenciou contra os meus lábios, enviando uma
onda de arrepios por todo meu corpo, antes de deixar outro beijo em minha
testa e me libertar para que eu fosse cumprimentar os outros.
Depois de conversar com os meus amigos e avós, receber todas as
parabenizações e carinho que sempre me davam, atravessei o jardim para ir
conversar com meu pai, e o encontrei falando com Pedro Zimmermann —
que parou de falar assim que notou minha presença.
— Oi Pedro.
Ele acenou, apanhando seu copo do balcão.
— Parabéns. — Foi tudo o que ele disse, seco e bruto como sempre.
Soltei um muxoxo de agradecimento, porque ele ainda parecia
desprezar a minha presença. Inclusive, balbuciou uma desculpa esfarrapada
para se afastar e me deixar sozinha com o meu pai.
— O que houve, fadinha?
O apelido carinhoso trouxe conforto e me virei para Miguel,
encontrando seus olhos atentos a mim.
— Eu acho que ele realmente me odeia — resmunguei, quebrando de
vez a distância entre nós dois e meu pai passou o braço ao meu redor,
apertando-me contra o seu peito.
— Quem te odeia, minha menina?
— Pedro — respondi como se fosse óbvio. — Na cabeça dele, vou
fazer a mesma coisa que a mãe biológica dos meninos.
Miguel meneou a cabeça, deixando um beijo em meu cabelo e me
soltou para que me sentasse no banco ao seu lado. Ele tinha me dado os
parabéns assim que cheguei na área externa mais cedo, prometeu que
deixaria para me dar esporro em outro dia e que eu não teria como fugir,
pois ficaria no país até o fim da próxima semana.
Meu pai refletiu sobre o meu desabafo, desviando seu olhar para onde
o engenheiro tinha ido e o encontramos se juntando aos amigos: Renato,
Marc, Leandro e Fabio. Ele parecia um pouco mais relaxado perto dos
quatro, mas ainda mantinha o semblante indiferente, como se qualquer
coisa fosse mais interessante do que a conversa do grupo.
— Acho que está vendo as coisas pelo ângulo errado — papai disse,
atraindo minha atenção e acenando em agradecimento ao bartender que nos
serviu uma nova bebida.
— Como assim?
— Bom, Pedro não é o tipo de pessoa que é forçada a fazer qualquer
coisa que não queira — explicou, como se conhecesse o engenheiro a vida
inteira. — Na verdade, ele é mais parecido com você do que imagina.
Dei risada, agradecendo mentalmente por não ter bebido ainda, ou
teria engasgado com aquilo.
— Papi… em que planeta, Pedro e eu teríamos algo parecido?
Miguel me olhou com um sorriso de canto.
— Bom, primeiro, vocês dois lidam com o fardo de terem pais bemsucedidos que os colocam na sombra deles.
Fiz uma careta, odiando aquela comparação.
— Você e o Hugo Zimmermann são duas pessoas completamente
diferentes. — O ressentimento em minha voz não era uma surpresa ao meu
pai, já que o patriarca da família de Pedro entrou para a minha lista de
rancor antes mesmo de conhecê-lo.
Os pais de Pedro estudaram junto com os meus pais e os de Antônio,
durante o período em que estiveram em um internato na Suíça. Ada
namorou meu pai por alguns meses, até terminar por conta das
manipulações do Zimmermann. Obviamente, não me incomodava com o
término, afinal, era graças a ele que meus pais se conheceram melhor, se
apaixonaram… e eu nasci.
Mas eu tinha um problema pessoal com qualquer um que causava mal
às pessoas que eu amava, e Hugo Zimmermann representava tudo o que
existia de asqueroso na elite.
Envelhecer e ter filhos, não mudou sua falta de caráter. Porém,
lembrar que Pedro precisava lidar com ele, me fazia simpatizar um pouco
mais com o engenheiro.
— É por isso que você gosta tanto dele? — questionei, intrigada. —
Por que ele é filho do homem que você odeia?
Papai riu.
— Odiar Hugo significa que eu sinto algo por ele, e isso não poderia
ser menos verdade — explicou, bebendo um gole do seu rum com gelo —,
mas sinto muito pelas crianças e por Ada. Eles não mereciam conviver com
alguém como Hugo.
Meneei a cabeça, concordando.
— Tudo bem, mas isso não significa que Pedro e eu somos parecidos.
— Você não se permite ser obrigada a fazer nada.
Bufei, desdenhosa.
— Só por causa disso somos parecidos?
Miguel sorriu.
— Tente ver as coisas por esse ângulo, fadinha. Se Pedro realmente te
odeia… por que ele abandonaria uma obra em andamento na Nova Zelândia,
e viajaria dezoito horas para chegar a tempo de celebrar seu aniversário? —
questionou, espreitando os olhos no meu rosto.
Sua pergunta me fez franzir o cenho, porque a resposta me parecia
óbvia.
— Por que o Renato pediu?
Meu pai revirou os olhos.
— Você iria à festa de uma pessoa que odeia, só por que o Renato te
pediu? — retrucou, paciente.
Touché!
Não, eu não iria.
O único motivo para ter ido ao casamento de Eliane foi porque era
uma obrigação do escritório e, apesar de não ter pedido diretamente, Renato
tentou me convencer de ficar em São Paulo várias vezes. Além disso, eu
não odiava Eliane. Tinha nojo de Guilherme, mas se fosse evitar todos os
lugares que poderia acabar esbarrando com ele, precisaria pedir demissão e
me retirar do escritório, já que o dito cujo não sairia sem uma votação direta
do conselho que o via como um santo imaculado.
No entanto, compreendi a linha de raciocínio do meu pai.
Se fosse o casamento de Guilherme com alguma pobre coitada que
aceitou dividir a vida com o desgraçado, eu nunca teria sequer cogitado
comparecer. Renato poderia se ajoelhar e me implorar, meu orgulho não
permitiria.
Papai sorriu ao ver que eu tinha entendido.
— Se você quer saber o que Pedro sente por você, precisa se
preocupar mais com as coisas que ele faz do que com as coisas que ele diz,
fadinha. — Miguel fez carinho em minha mão sobre o balcão. — Lembrese que nem todas as pessoas são formadas pelo mesmo tecido, algumas
foram rasgadas de formas irreparáveis e isso se reflete na maneira como
lidam com o mundo exterior, principalmente, com quem arrisca tirá-los da
zona de conforto.
Engoli em seco, conforme minha mente assimilava as palavras do
meu pai e odiando como, novamente, Miguel Gama estava certo.
Sabia que os filhos de Hugo e Ada eram adotados, e Renato contou
superficialmente que Pedro tinha problemas com a figura materna, por isso
todo o ressentimento com Flávia e as mulheres que vieram em seguida.
Fora isso, eu era madrinha de um instituto com diversas crianças que
passaram pelo inferno antes de chegaram no orfanato.
E se Pedro carregasse uma bagagem semelhante?
Suspirei, bebendo um gole da minha bebida e fiz uma careta, optando
por afastar aquela névoa pesada que a conversa trouxe.
— Essa é sua forma de me dizer que pretende adotar o Pedro? —
impliquei, olhando-o de esguelha. — Porque se for, já adianto que adoro ser
filha única e que não quero dividir a herança!
Miguel gargalhou, jogando os braços sobre meus ombros e deixando
um beijo em minha têmpora, desviando o assunto para os acontecimentos
na minha vida nos últimos dias.
Durante todo tempo, evitei compartilhar o problema com Guilherme,
porque conhecia a maneira como meu pai lidava com esse tipo de coisa e
não queria envolvê-lo.
Na verdade, não queria nem que Renato se envolvesse nisso, eu
queria lidar com a situação da minha maneira… sem que os homens na
minha vida me tratassem como uma boneca incapaz de se defender.
— Papi — chamei, distraída enquanto ele esperava por uma nova
dose de Hennessy que o bartender servia. Seus olhos voltaram para mim,
atentos. — Ethan ainda está trabalhando?
Miguel franziu o cenho.
— O que você quer com o Ethan?
Dei de ombros, dando meu melhor para soar inocente.
Por longos anos, teatro foi uma matéria obrigatória na minha grade
curricular do colégio, e eu torcia para que tivesse aprendido o suficiente
para convencer meu pai.
— Um cliente meu está sendo ameaçado por um sócio e ele me pediu
para cuidar da situação…, do jeito não-convencional. — Fingi indiferença,
torcendo para que não pedisse por mais informações.
Miguel espreitou meu rosto, refletindo sobre o contexto raso que
ofereci. A verdade era que o segredo para mentir para alguém como meu
pai, era contar o menos possível. Ele era especialista em encontrar furos em
histórias.
— A RCI não tem um investigador próprio?
— Sim…, mas acho que o Ethan é a pessoa mais adequada para esse
caso. — Encarei-o, mantendo a neutralidade em minha voz. — Preciso de
sujeira desse sócio, o tipo que só o Ethan encontra.
E não queria que Renato soubesse que eu pediria para investigar um
dos sócios da firma. Não por birra, mas porque era estritamente proibido
pelo código de conduta da RCI, investigar um membro da equipe após seu
processo de diligência para a entrada na firma.
Se o conselho soubesse que Renato aprovou que eu usasse recursos do
escritório para investigar um sócio que já havia sido aprovado, ele poderia
perder seu cargo de CEO. O mesmo aconteceria, se descobrissem que eu
estava investigando por fora e que Renato não só sabia, como permitiu que
fosse adiante sem punição.
Logo, a única maneira de descobrir os podres de Guilherme sem que
isso prejudicasse Renato e a sua posição na firma, era fazer por conta
própria, usando os recursos da minha família.
Se fosse descoberta, seria a única prejudicada e não o colocaria na
posição de precisar mentir por mim.
— E você realmente acredita que esse sócio tem algum podre que
pode usar para ajudar seu cliente? — Miguel questionou, interessado.
Às vezes, meu pai se esquecia que eu era sua filha e que, por mais que
tenha tentado muito impedir, absorvi muito da sua personalidade e o tinha
como um modelo para muitas coisas. Acompanhei de perto toda a sua
ascensão e cada rasteira que tomou no meio do caminho. O vi burlar as
regras mais de uma vez pelos motivos que considerava justo, e sabia que
era dessa forma que o mundo funcionava.
Era frustrante que ele parecia não acreditar que eu era capaz de agir de
uma maneira que não fosse pautada na ética e na moral.
— Todo mundo tem alguma sujeira que precisa deixar escondida
debaixo do tapete, não foi o que você me ensinou? — retruquei, arqueando
a sobrancelha ao mirar seu rosto.
Papai sorriu e meneou a cabeça, digitando em seu celular e não
demorou para que a mensagem chegasse no meu, trazendo o número do seu
investigador particular.
Ethan era o que meu pai chama de seu “braço de aço”, a pessoa que
trabalhava por baixo dos panos para que nada nos atingisse e prejudicasse
os negócios da família.
Ele foi o responsável por descobrir o desfalque de Charles bem
debaixo do nariz do meu pai, assim como todas as contas que ele usou para
incriminar a Louise — mãe de Antônio.
Se existia uma pessoa que poderia descobrir algo sobre Guilherme, eu
sabia que era Ethan.
— E se ele não tiver nenhum podre? — insistiu, parecendo disposto a
me testar.
Revirei os olhos.
— Todo mundo tem. — Dei de ombros, salvando o contato e me virei
para encará-lo, sorrindo astuta —, alguns só encontraram um bom
esconderijo para colocá-los.
Miguel meneou a cabeça, aprovando meu raciocínio. Como se não
tivesse sido ele que me ensinou isso.
— E onde está a sua sujeira, fadinha?
Torci os lábios, sentindo um gosto amargo se espalhar em minha boca
e virei para o encarar, piscando com cumplicidade.
— Escondidos debaixo de sete toneladas de concreto — assegurei —,
e irão permanecer lá para sempre.
Segundas-feiras sempre eram indesejadas, mas essa em especial,
trazia um gosto amargo e um nervosismo incômodo.
Virei-me para os dois garotos no banco de trás, entretidos demais na
conversa para se importar com outra coisa, alheios ao mundo ao seu redor e
submersos na própria bolha.
Um esboço de sorriso se desenhou em meus lábios, era adorável
presenciar a conexão e cumplicidade entre eles.
Igor, assim como o pai, era um ouvinte nato. Ele olhava para o irmão
e deixava claro que estava ouvindo cada palavra que escapava dos lábios do
pequeno tagarela. E Matheus, bem, adorava falar. Eu não conseguia me
lembrar de um único minuto desde a hora em que acordou, que a sua voz
não estivesse repercutindo ao nosso redor e preenchendo qualquer silêncio.
Era revigorante ficar perto dele, trazia uma sensação de conforto para
o meu peito que era difícil de explicar, e me fazia desejar nos manter
escondidos na bolha em que estivemos vivendo o fim de semana inteiro.
Por mais que uma parte minha estivesse confiante de que eu
conseguiria lidar com as consequências do evento na semana passada, desde
que acordei, só conseguia pensar em como todos estavam cientes da
confusão que aconteceu no casamento de Eliane.
No geral, fofocas se espalhavam rapidamente em qualquer círculo
social, mas no mercado tudo acontecia um pouco mais rápido que o habitual
e de forma ainda mais desastrosa.
Estava me mantendo longe dos grupos, evitando responder mensagens
de sócios que não estiveram no casamento e contendo a curiosidade latente
de bisbilhotar o motivo de toda a movimentação que rolou nos chats da
equipe ao longo do fim de semana.
Renato, meus pais e os garotos foram ótimas distrações.
Na verdade, eles eram as melhores.
Meus avôs ficaram conosco por alguns dias e Leandro aproveitou para
trazer à tona todas as histórias da minha infância, principalmente, depois de
descobrir que meu avô me chamava de Tita o tempo inteiro. Ele sequer
precisou perturbar muito, para que Elias compartilhasse o motivo por trás
do apelido — o que garantiu que Leandro tivesse material mais que
suficiente para os próximos meses.
Eu não me importava tanto com isso. Era fofo que meu avô ainda se
lembrasse de uma situação que aconteceu quando eu era tão nova; e o
sorriso que ele esboçava sempre que contava, fazia com que todo o
constrangimento se tornasse irrelevante.
Tita, era uma abreviação de Chiquititas, assim como a novela que eu
era viciada quando tinha por volta de quatro anos. Vovô começou a usá-lo
depois que encenei a maior cena dramática que já existiu e, literalmente, me
joguei no meio do jardim da fazenda e fiquei cantando sem parar a música
“Corazón con agujeritos”[45]
.
O drama havia sido digno de me conseguir um papel de destaque em
qualquer novela da época, cheguei a soluçar em meio a cantoria e choro.
Isso amoleceu o coração de gelo de Miguel e ele ficou se sentindo tão
culpado por conta da minha cena, que acabou me dando não só uma alpaca,
mas toda uma família para que a Judite não se sentisse sozinha.
Bem, vovô nunca esqueceu daquele dia e adorava contá-lo para outras
pessoas, mostrando as filmagens que minha abuelita fez do meu teatro.
Leandro com certeza usaria aquilo contra mim em algum momento, e fez
questão de conseguir uma cópia da gravação com Elias, que agora era seu
“melhor amigo”.
E apesar disso, todos conseguiram me distrair o bastante para que o
casamento e a situação com Guilherme não voltassem à tona.
Renato esteve ao meu lado o tempo inteiro, me dando toda a atenção
do mundo, certificando-se de que eu tinha tudo do jeito que queria e que
estava me divertindo. Ele tinha sido perfeito, assim como cada detalhe que
organizou para comemorarmos o meu aniversário.
Desviei os olhos dos garotos e o encarei sentado no banco do
motorista, focado na conversa com um cliente suíço. Sua mão livre
segurava a minha firmemente, transmitindo seu calor e me lembrando que
estava ao meu lado. Como se eu fosse capaz de não notar a sua presença.
Era impossível que isso acontecesse, ele estava tão marcado na minha pele,
que mesmo em meio a uma multidão e com um milhão de pares de olhos
sobre mim, eu ainda conseguiria saber onde ele estava e encontrá-lo em
meio a massa.
Sentindo meu olhar, Renato desviou a atenção da estrada e as orbes
castanha-escuras fixaram no meu rosto, piscando com leveza. Sorri, vendoo levar minha mão para perto dos seus lábios e deixar um beijo carinhoso
nos nós dos meus dedos.
Sua voz ecoava pelo carro, contrastando com os meninos e não
consegui deixar de notar como soava um pouco mais grave no idioma
alemão. Era a única língua que eu ainda não dominava, embora conseguisse
reconhecer uma palavra ou outra, não consegui identificar o contexto da
conversa que estava tendo, só sabia que era importante o suficiente para que
atendesse a ligação com os meninos no carro.
Assim que passamos pela portaria do colégio, Renato se despediu do
cliente e guiou o carro pelo estacionamento, parando do outro lado do
jardim principal e em um ponto que nos daria uma visão clara da escadaria
que levava para dentro do prédio.
— Nath, você vai dormir em casa hoje? — Igor questionou, atraindo o
meu olhar e virei para o pequeno com um pequeno sorriso.
— Isso é um convite?
Igor pensou um pouco, olhando de relance para o pai e acompanhei o
seu movimento, encontrando Renato com um semblante descontraído.
— Sim. Ela vai, filho — tranquilizou, soltando a minha mão para
abrir a porta para que Matheus saísse do carro.
Virei-me para Igor que ainda esperava pela minha resposta e estendi a
mão na sua direção, afagando sua bochecha. Por mais que soubesse que o
seu pai não diria uma mentira, o pequeno fazia questão de escutar a resposta
da minha boca, como se quisesse ter certeza de que teria a minha palavra e
que eu não falharia com ela.
— Claro, meu bem. Nos veremos amanhã de manhã, tudo bem?
Ele torceu os lábios.
— Por que só amanhã?
— Bem, eu tenho alguns compromissos à noite e devo chegar um
pouco tarde. Vocês já estarão dormindo — expliquei, vendo seus ombros
relaxarem.
Como tínhamos viajado para o Rio no meio da semana e não voltamos
para a cidade, eu sabia que encontraria um volume enorme de trabalho
acumulado para colocar em dia, porque apesar de termos tirado uma
pequena folga, o mercado continuou operando e a equipe de operações
ficou por conta própria por dois dias.
Aquele era o maior intervalo de tempo que fiquei fora do escritório, e
minha mente obsessiva só conseguia pensar na quantidade de erros que eu
encontraria. Era o mal do perfeccionismo. Minha equipe era a melhor do
país, treinei a maior parte deles — exceto os que vieram com os rapazes na
fusão — para sobreviverem na minha ausência, mas aquela voz na minha
cabeça ficava insistindo que eu deveria ficar de olho, ou eles poderiam
estragar tudo o que eu construí.
Igor meneou a cabeça, vendo o pai abrir a porta para ele e quando fiz
menção a abrir a minha para dar um beijo e um abraço nos dois antes de
irem para a aula, Renato tomou a frente e me estendeu a mão.
— Hoje tem jogo do Uníon — disse o pequeno, lembrando-me da
programação dos rapazes. — Você consegue chegar à tempo de assistir com
a gente?
Ri baixinho, arrastando meus dedos nos fios castanhos.
Não sabia em que ponto dos últimos meses tinha me familiarizado
com a rotina dos três, mas sabia o quanto eram devotados no que se referia
a paixão que tinham por futebol, principalmente, durante a Champions
League.
— Uh, o Martínez se recuperou da lesão?
Sim, eu sabia até quem eram os jogadores preferidos deles.
— Não, o tio Paulo disse que ele vai ficar mais alguns jogos no
banco…, mas deve voltar antes do fim da temporada — falou, apertando os
dedos na alça da mochila.
Sobre seus ombros, pude ver a SUV preta de Marcus parada não
muito longe, assim como a outra que pertencia a equipe de segurança do
meu pai. Normalmente, quando era apenas Alisson e seus homens, eu
conseguia ignorá-los, mas ficava um tanto difícil agora que também tinha a
de Renato na equação.
— Vou tentar chegar antes do jogo, tudo bem? — Ofereci, vendo-o
menear a cabeça e olhar para o pai com cumplicidade.
— Vamos lá, vocês vão se atrasar — disse Renato, levantando-se
depois de arrumar a mochila de Matheus em suas costas e bagunçar os fios
castanhos do primogênito, que fez uma careta em resposta.
Igor envolveu o corpo do pai em um abraço desengonçado e ele se
inclinou na direção do pequeno, deixando um beijo nos fios e desejando boa
aula. Sorri boba, vendo os dois conversarem brevemente sobre quem viria
buscá-los no fim do dia, e me voltei para Matheus que estava balançando a
mão e acenando para um garotinho do outro lado do estacionamento.
Acompanhei seu olhar, encontrando um outro menino que devia ter a
idade do caçula de Renato.
Arqueei a sobrancelha, vendo a criança caminhar de mãos dadas com
uma senhora de idade avançada, que equilibrava várias pastas no outro
braço. Por um minuto, considerei que fosse uma das professoras de
Matheus, mas quando o garotinho franzino de cabelo preto e olhos
melancólicos se virou e acenou para o loiro, soube que era um amiguinho.
Chamei-o, vendo ele trazer os olhinhos esverdeados para mim.
— Quem é?
Matheus sorriu largo.
— O Bê!
Arqueei a sobrancelha, escutando a risadinha de Igor.
— É o Bernardo, amigo do Mat, estão na mesma turma… a avó do Bê
é a professora Cordélia — Igor explicou, fazendo com que as coisas
fizessem mais sentido e meneei a cabeça, virando-me para os dois mais à
frente, ao reconhecer que era o amigo do colégio que Matheus falava o
tempo inteiro.
A senhorinha nos olhou de relance, sem jeito com a nossa atenção e
acabei me aproximando dela, deixando os três homens Trevisan para trás.
Aflita em assisti-la se matando para equilibrar aquela pilha de coisas
sozinha, e prevendo o momento em que acabaria derrubando tudo no chão
de cascalho que ainda estava úmido devido a garoa daquela manhã.
— Bom dia! — desejei, dando o meu melhor sorriso simpático para
que ela não se intimidasse com a minha aproximação.
Uma coisa que eu nunca me acostumaria era como as pessoas me
olhavam como se fosse feita de ouro, e que o simples ato de olharem
diretamente para os meus olhos fosse um crime pelo qual seriam punidos. A
última vez que alguém me direcionou àquele olhar fazia tanto tempo que
precisei fazer força para empurrar a lembrança indesejável para longe.
— Hã… bom dia. Algum problema? — Os olhos da mulher se
arregalaram um pouco e o receio em sua voz era palpável.
Sorri para o pequeno curioso e me voltei para a avó dele.
— Não, eu só queria ajudá-la com essas pastas, parecem bem pesadas.
Um vinco surgiu na testa de Cordélia, como se ela não entendesse a
minha intenção com aquilo.
— Me ajudar?
— Sim. Podemos dividir o peso, o que acha?
— Por quê?
Dei de ombros, pedindo licença e pegando um punhado das pastas
amontoadas, confirmando que estavam ainda mais pesadas do que eu
imaginava.
Como ela ainda não tinha dado um jeito nas costas?
Vi de canto de olho um dos seguranças do meu pai sair do carro e
fazer menção a se aproximar, mas o dispensei com um aceno, girando nos
calcanhares e dando um sorriso para a mulher idosa.
— A senhora me indica para onde vamos?
Cordélia entreabriu os lábios finos, parecendo não saber o que
responder. Pelo visto, ela não estava familiarizada com gentileza vindo por
parte dos pais dos seus alunos. Infelizmente, aquilo não era uma novidade
para mim, algumas pessoas acreditavam que um certo status e uma alta
quantia de dinheiro na conta bancária concedia passe-livre para destratar os
outros.
Por bem ou mal, meus pais me deram educação o suficiente para que
eu nunca cogitasse que meu saldo bancário me fazia melhor do que
qualquer um.
Além disso, Cordélia me lembrava a minha falecida avó, Lilian.
Os fios grisalhos contrastando com os castanhos, as bochechas cheias,
a presilha dourada prendendo duas mechas grossas do cabelo para trás e a
echarpe florida em seu pescoço… ela podia, facilmente, ser uma versão
pedagoga da minha avó.
Bastava substituir aquela montanha de pastas com atividades
escolares, por sacos de adubo para as flores.
Encarei-a, mantendo o sorriso relaxado e ela balançou a cabeça, como
se espantasse um pensamento e murmurou em confirmação para a minha
pergunta, segurando firme na mão do pequeno antes de dar um passo
adiante.
Bernardo ainda mantinha os olhos em mim, com curiosidade.
— Você é a mamãe do Matheus? — perguntou, quando começamos a
caminhar pelo jardim rumo a escadaria que levava ao prédio principal.
— Hã… eu sou a namorada do pai dele — respondi, tranquila, sem
deixar de sentir o olhar atento da mulher sobre mim.
Renato também não me perdeu de vista, mas assim como o segurança,
ele ficou observando de longe.
Se a senhora já se sentia intimidada comigo, o que a presença dele não
poderia fazer?
Cordélia sabia que não faríamos nada contra ela ou seu neto, mas…
instintivamente, o seu cérebro nos colocava em um lugar distante e nos
classificava como pessoas hostis. Eu não era estúpida de fingir que não
existia um enorme abismo social entre nós. A professora dos garotos
também tinha noção e, por isso, sentia-se intimidada com a minha
aproximação, por mais gentil que eu estivesse sendo.
Bernardo meneou a cabeça.
— Mat disse que você é a nova mamãe dele.
Olhei-o, surpresa com aquela informação.
— Ele disse?
— Sim, e que você poderia ser a minha nova mamãe também.
— Bernardo! — Cordélia o repreendeu, esbugalhando os olhos e o
pequeno franziu o cenho, sem entender o motivo da bronca. — Desculpe,
ele é só uma criança e não sabe o que fala.
Forcei um sorriso para tranquilizá-la, vendo seu rosto ganhar uma
coloração violenta e voltei para o pequeno com um pouco mais de cuidado.
No entanto, o comentário da criança continuou pairando em minha mente,
mesmo diante do silêncio mortal que avó dele estabeleceu.
O que levou o Matheus a dizer isso?
Pigarreei, discretamente.
— Sra. Cordélia… eu estava pensando… — murmurei, assim que
alcançamos os primeiros degraus —, Matheus acaba passando muito tempo
sozinho e, eu sei como ele gosta do seu neto — prossegui, ignorando o
sarcasmo da voz em minha cabeça que me repreendeu, antes mesmo que eu
soltasse a pergunta. — A senhora poderia me passar o contato da genitora
dele para alinharmos alguns programas entre os dois fora do colégio? Eu
acho que seria bom para os dois…
Você não é a mãe do Matheus para fazer planos por ele!
Minha mente gritou, lembrando-me que a única pessoa que poderia
decidir se o pequeno tagarela poderia ou não conviver com Bernardo fora
do colégio era o pai dele, que estava a cerca de vinte metros de distância
daquela conversa. Seu olhar queimava em minhas costas, deixando-me
ciente de que em menos de um minuto ele poderia me alcançar, caso fosse
necessário.
Cordélia franziu o cenho, hesitando no meio da escadaria.
Igor e Matheus que já tinham se despedido do pai, nos alcançaram e
acenaram para a professora, me dando abraços apertados antes de puxarem
o pequeno Bernardo para dentro do prédio. O neto da Cordélia se despediu
com um sorriso tímido e um aceno breve.
Em silêncio, acompanhamos os três desaparecem em meio as
gargalhadas e, assim que os perdemos de vista, voltei a encarar a senhora
idosa.
— Por quê? — ela indagou, seca.
— Desculpe, não entendi a pergunta…
Cordélia endireitou os ombros, parando próximo das portas enormes
de vidro escuro.
— Por que você quer o meu neto convivendo com o seu filho?
O questionamento soou ácido e não fiz questão de corrigi-la quanto a
minha posição na vida de Matheus. Havia deixado claro que era a namorada
do pai do menino e, ainda assim, dona Cordélia manteve a linha de
raciocínio de seu neto.
Corrigi-la novamente seria o mesmo que dar a entender que eu me
incomodava com essa responsabilidade, o que não era verdade… logo, não
me vi obrigada a retificar a informação.
— Desculpe, mas, por que eu não iria querer que as crianças
convivessem?
A mulher me fitou duramente e percebi que ela considerou minha
pergunta uma espécie de ataque pessoal. Suspirei, girando nos calcanhares
para a encarar, e notei que Renato e Leandro ainda estavam parados em
frente à G63 preta, observando a minha interação com a senhora.
— Entendo que a senhora se preocupa com a segurança do seu neto,
mas, garanto que minha única intenção é que Matheus conviva mais com o
amigo dele fora do colégio — esclareci, mantendo o tom ameno.
E você perguntou ao Renato se ele queria isso?
Bufei, ignorando a voz irônica que invadiu a minha mente.
Não, eu não tinha perguntado.
Entretanto, Renato me falou várias vezes que tentou convidar alguns
colegas de classe de Matheus para brincar com ele nos finais de semana, e o
máximo que conseguiu — segundo a versão de Leandro — foi se tornar o
desejo de consumo entre as mães que usavam seus filhos para alcançá-lo. E
por mais que a ideia de cortar o contato dos garotos com essas mulheres que
os usavam para chegar ao pai me agradasse muito, eu estava sendo genuína
no meu pedido.
Era perceptível como Matheus ficava muxoxo quando a Isabelle
chegava para passar o dia inteiro com o Igor. E por mais que Renato e eu
tentássemos distraí-lo, ele sempre acabava tentando se aproximar da dupla
de gêmeos siameses para brincar com alguém de uma idade mais próxima
da sua.
Bernardo era a única criança do colégio que eu o ouvia falar e que ele
parecia gostar de brincar, logo… por que Renato ficaria bravo comigo por
fazer o convite?
Cordélia desviou o olhar para algo sobre meu ombro, e o seu rosto foi
tomado por frieza.
— Eu sou a única tutora do Bernardo — esclareceu, fazendo-me
sentir um buraco na boca do estômago.
— Ah… sinto muito, eu não sabia que a mãe dele tinha falecido.
A mulher torceu o nariz, desgostosa.
— Não sinta. Ela está mais do que viva e saudável — retrucou,
semicerrando os olhos. — Foi para isso que se ofereceu para carregar as
minhas pastas? Para que eu permita que o meu neto seja um brinquedinho
para distrair o seu filho enquanto você sai para fazer compras?
Sua acusação me causou uma sensação familiar e desagradável.
Ela poderia se juntar ao Pedro na competição de quem conseguia
distorcer mais as minhas intenções, seria uma disputa interessante.
— Senhora…
— A resposta é não. — Cordélia cortou, rude. — Bernardo não
precisa da piedade de vocês.
Endireitei os ombros, incomodada com o ataque gratuito.
— Desculpe, mas acho que a senhora está equivocada na sua
interpretação. — Coloquei-me na sua frente, impedindo que entrasse no
prédio. — Não me aproximei com outra intenção que não fosse ajudá-la
com o peso que estava carregando — esclareci, mirando seus olhos escuros
—, e o convite para Bernardo também foi sincero. Meu filho adora o seu
neto, goste a senhora ou não, e eu quero que eles possam se ver fora do
colégio. Entendo que não queira e respeitarei a sua decisão, mas não
suponha coisas sobre mim, porque a senhora não me conhece.
Cordélia estreitou os olhos nos meus, arredia.
— O convite não foi feito para usar o seu neto como um brinquedo ou
por piedade. Sinto muito se algo assim aconteceu, mas as ações de outras
pessoas não falam por mim. — Respirei fundo, apertando as pastas contra o
meu peito. — Agora que deixamos isso claro, pode me indicar onde devo
deixar as suas coisas para te livrar da minha companhia que, pelo visto, a
senhora tanto despreza?
O remorso faiscou nas íris da mulher e ela engoliu em seco,
meneando a cabeça e indicando que a seguisse para dentro do prédio.
Cordélia não disse uma única palavra e meus olhos se fixaram nos
dois homens que nos observavam de longe. Leandro parecia estar se
divertindo com a cena, mas Renato parecia preocupado e isso me fez
relaxar a postura e a expressão irritada.
Girei nos calcanhares, encontrando a professora das crianças me
esperando no meio do caminho e a segui por vários corredores.
Aquele lugar parecia um enorme labirinto, me surpreendia que
ninguém se perdesse ali dentro. A senhora permaneceu calada durante todo
o trajeto, andando a alguns passos de distância de mim e abriu uma porta no
fim do corredor, no que deduzi que fosse a sala dos professores.
Alguns pares de olhos vieram em nossa direção com curiosidade e
Cordélia cumprimentou seus colegas, abandonando as pastas em cima de
uma mesa próximo da porta e se virou para mim, buscando pelas pastas que
eu estava carregando.
— Obrigada pela ajuda, foi muito gentil da sua parte — disse, a
contragosto.
Acenei, abandonando as pastas em seus braços e esfreguei as palmas
das mãos no tecido da minha camisa, alinhando-o novamente.
— Não por isso. Tenha um bom dia, senhora.
Antes que eu me virasse para voltar ao estacionamento, a professora
me chamou.
— Qual o seu nome, Sra. Trevisan?
— Nathalia — falei, simplesmente.
Cordélia abandonou as demais pastas em cima da mesa e deu mais um
passo para fora da sala, encarando-me com um pouco mais de leveza.
— Certo, Sra. Nathalia. Peço desculpas pela forma como falei com
você… é força do hábito ficar na defensiva. — Ela parecia sincera, meus
ombros relaxaram e acenei compreensiva. Aquela não era a primeira pessoa
que me tratava com hostilidade só porque supôs que eu fosse uma mimada
mesquinha. — Podemos alinhar algumas visitas do Bernardo à sua casa,
tudo bem?
Um sorriso enorme rasgou meus lábios e acenei, vendo-a se afastar e
arrancar um post-it e anotar algo, voltando-se para mim e entregando o
pedaço de papel com o seu número de telefone.
— Isso será bom para o Bernardo também, ele fica muito tempo
sozinho… sabe, porque eu fico ocupada corrigindo tarefas — disse, sem
jeito.
Concordei, realmente contente com aquela vitória.
Quem disse que eu não sei escolher minhas batalhas?
— Tenho certeza que sim, senhora Cordélia.
— Apenas Cordélia.
— Então, me chame apenas de Nathalia.
Acho que meu sorriso seria capaz de rasgar minhas bochechas. Ela
não parecia mais tão megera quanto minutos atrás.
— Eu vou te ligar para alinharmos as visitas. Obrigada, Cordélia!
A professora acenou, desconfiada.
Despedi-me dela e percorri o mesmo trajeto que tínhamos seguido e
não demorei a encontrar a saída. Renato e Leandro estavam perto da
escadaria, aguardando o meu retorno e os alcancei, erguendo o papel para
entregar ao pai de Matheus.
— Consegui convencer a avó do Bernardo de deixá-lo brincar com o
Matheus nos finais de semana — contei, sorrindo largamente.
Renato arqueou a sobrancelha, rindo baixinho.
— Isso é surpreendente, porque ela quase quebrou um guarda-chuva
na minha cabeça quando eu sugeri — comentou, divertido.
Leandro zombou, confirmando a história.
— Como convenceu a megera? — perguntou Leandro, arqueando a
sobrancelha.
Dei de ombros.
— Eu tenho talento de conseguir o que eu quero — falei, sem me
importar com o tom prepotente que tomou a minha voz.
Salazar gargalhou.
— Claro, claro… e se não consegue, você se joga no chão e começa a
cantar que tem um coração com buraquinhos, certo? — debochou e fechei a
cara, olhando-o irritada.
— Que merda você está fazendo aqui?
Isso arrancou outra risada do idiota.
— Vim trazer a Gabi — explicou, jogando o braço sobre meus
ombros, mas não durou muito, Renato logo o empurrou para longe e me
guiou para perto. — Credo, eremita… agora que estão namorando você
ficou ainda mais possessivo — resmungou, alisando a região que o amigo
tinha segurado para afastá-lo. — Esqueceu que eu a conheci primeiro? Eu
tenho direitos!
Renato forçou um sorriso, apertando minha mão contra a sua e me
guiando de volta para o carro.
— Leandro, ainda são oito da manhã… não comece a testar a minha
paciência — pediu, sereno.
Ri baixinho, encarando o dramático que eu chamava de amigo e o
vendo levar a mão ao peito, ofendido.
— Como ousa roubar meu Renatinho de mim, sua cleputamaníaca
desgraçada? — fingiu ressentimento e rolei os olhos, mostrando a língua
para ele.
— Supere, caipiranha! A propósito, onde está a Bianca? Eu também
tinha posse dela antes e você a roubou de mim!
Leandro bufou.
— Não sei, pergunte para a sua amiguinha por onde ela anda.
Renato achou graça no tom rabugento que ele disse aquilo.
— Crise no paraíso? — investiguei, tentando arrancar alguma coisa
dele, já que Bianca se transformava em um enorme quadro em branco
quando a questionava.
Leandro torceu os lábios.
— Cuide da sua vida, pirralha! — mandou, puxando uma mecha do
meu cabelo e nos deu as costas, indo para o seu carro estacionado não muito
longe.
Suspirei, virando-me para o homem ao meu lado.
— Ele também não te conta nada?
— Não se preocupe. Leandro é crescido e sabe lidar com os próprios
problemas — Renato tranquilizou, abrindo a porta do passageiro para que
eu entrasse.
Olhei por cima do ombro, vendo o meu amigo conversando com uma
ruiva um pouco mais velha. Ela não disfarçava que estava interessada em
algo a mais do que uma simples conversa no estacionamento, e senti o meu
estômago contorcer de ciúmes pela Bianca.
Eu não entendia nenhum pouco o que existia entre os dois, e sempre
que pensava que tinham se encontrado, se desentendiam e voltavam para a
estaca zero.
Honestamente, eu não sabia por quanto tempo eles poderiam
continuar brincando com os sentimentos, sem que acabassem se
machucando feio.
— Você tem certeza disso? — questionei, indicando para o ponto em
que Leandro estava e Renato acompanhou o meu olhar.
Um vinco surgiu em sua testa e pude reconhecer uma faísca de
incerteza perpassar pelas íris escuras.
— Bom, ele é um homem adulto — disse, virando-se para mim e
esboçando um sorriso reconfortante. — Preciso confiar que ele sabe o que
está fazendo com a própria vida.
Balancei a cabeça, negando veemente aquela afirmação.
— Não, ele é uma criança no corpo de um homem adulto!
Renato riu, achando graça pela minha indignação.
— Sim, ele é…, mas o primeiro passo na paternidade é entender que
os nossos filhos precisam aprender algumas lições sem a nossa ajuda —
explicou, acariciando a minha bochecha com seus dedos.
— Isso não me conforta.
— Bem-vinda à minha vida na última década.
No meio da tarde, abandonei a sala de operações com uma sensação
esquisita.
Tudo estava tranquilo demais.
Ninguém me olhou por mais que dois segundos, e quando eu
encontrava a atenção de alguém sobre mim, a pessoa rapidamente desviava
e pedia desculpas. Parecia que o escritório inteiro estava com medo de
interagir comigo, e algo me dizia que isso tinha relação com a reunião que
Renato convocou com a equipe, enquanto eu estava trancada na sala com
um cliente.
Sem saber se aquilo era bom ou ruim, subi os degraus que dividiam os
dois andares da firma, apertando a caixa de papelão pequena que o rapaz da
correspondência me entregou. Ao invés de seguir para a esquerda como o
habitual, dobrei para a minha direita e percorri o corredor, parando em
frente a penúltima sala daquele lado.
Era bem em frente a sala de Roberta, mas não havia chance de nos
esbarrarmos, ela enviou um memorando avisando a todos que tinha ido para
Portugal a negócios.
Dei uma batida na porta, escutando a voz arrastada ao fundo liberar
minha entrada e girei a maçaneta, encontrando a silhueta de Frederico
caminhando de um lado para o outro, só faltando abrir um buraco no meio
do piso.
— O que houve?
Ele se virou, parecendo aliviado ao me ver e soltou um pouco o nó de
sua gravata, abrindo dois botões da camisa social e indicando que eu
entrasse.
— Cinthia enviou um comunicado avisando do cancelamento do
casamento — disse, angustiado.
Franzi o cenho, fechando a porta atrás de mim e o encarando, confusa.
— Isso não era o que você queria?
Fred contorceu o rosto em uma careta, acenando levemente.
— Sim, o problema é que ela me pediu um tempo. Disse que precisa
colocar tudo em ordem, antes de assumir um relacionamento comigo. —
Arrastou a mão pela cabeça, como se isso trouxesse algum alívio para o
turbilhão de emoções que sentia. — E se ela desistir de cancelar o
casamento?
Sorri.
— Ela ama você, Fred.
— Eu sei, mas, e se…
Ergui a mão, interrompendo-o.
— Sem “e se’s”, lembra? — indaguei, aproximando-me dele e
sorrindo com cumplicidade —, você está repetindo os mesmos padrões, e
da última vez quase a perdeu por causa disso.
Frederico respirou fundo, soltando o ar e se jogou no sofá ao meu
lado, indicando que eu me sentasse.
— Na verdade, estou com pressa… tenho um cliente me esperando na
sala de reuniões — esclareci, estendendo a caixa na sua direção —, só
queria te dar esse presente.
— Presente para mim? Mas quem fez aniversário foi você!
Aquiesci, indicando que abrisse a caixa.
— Sim, mas eu já tinha encomendado isso para você, e acabou
chegando enquanto estávamos no Rio — murmurei, vendo-o abrir o
embrulho com entusiasmo. — É só uma lembrancinha por… você sabe, ter
sido compreensivo com a minha relação com o Renato.
Frederico desviou seu olhar do pacote para mim e sorriu, sincero.
— Por que eu não seria compreensivo? Só de olhar vocês dois juntos,
dá para saber que foram feitos um para o outro!
Sorri, engolindo o incômodo que crescia em meu peito.
— Você sabe que não é sobre isso que estou falando.
Ele meneou a cabeça, mais do que ciente do elefante na sala.
— Já sabem o que vão fazer em relação à clausula do código de
conduta? — investigou, trazendo o problema à tona.
Não havia uma regra específica que proibia o relacionamento entre
funcionários do escritório, tanto que Ananda, secretária de Renato, estava
namorando com o Gabriel, pupilo dele… e todos sabiam que Bianca e
Leandro estavam se envolvendo.
No entanto, existia uma cláusula que proibia relacionamento entre
membros de posições hierárquicas semelhantes, e/ou com o mesmo poder
de voto. Claro, havia uma brecha que poderia ser explorada. Uma que
dependia que todos os sócios do conselho ficassem sabendo do nosso
envolvimento; acreditassem que nos envolvemos depois da minha
promoção e que eu não fui promovida ao cargo de COO por ser a namorada
do Renato.
E se esse milagre acontecesse e todos fossem compreensivos ao ponto
de não nos recriminarem, eu ainda precisaria que deliberassem a favor de
renunciar a cláusula de conflito de interesses.
Enfrentar o conselho agora, no início do nosso relacionamento, era
nos arrastar para uma areia movediça que poderia acabar nos engolindo.
Principalmente, depois que o meu problema com Guilherme foi exposto na
frente de todos os sócios no casamento.
— Não — confessei, sorrindo sem jeito. — É por isso que, por
enquanto, vamos manter só entre nós.
Contanto que ninguém do escritório soubesse, eu teria um tempo até
que estivesse pronta para lidar com os olhares de julgamento que eu sabia
que encontraria, quando expuséssemos o relacionamento para o conselho.
— Tudo bem… a minha boca é um túmulo — Frederico assegurou,
voltando a se concentrar no pacote em seu colo —, mas se quer saber a
minha decisão… eu votarei a favor de abrirmos mão do conflito. — Ele
piscou, cúmplice. — Fui sincero em tudo o que te falei na semana passada.
Sorri, agradecida.
Os olhos de Federico recaíram no conteúdo dentro da caixa e o seu
rosto se iluminou por inteiro. Por um momento, considerei que fosse Natal
e ele tivesse ganhado o melhor presente do mundo.
Em um instante, ele estava em pé e seus braços me esmagavam ao
ponto de estalar meus ossos. Dei risada, batendo levemente em suas costas
e o vendo se afastar com a porcelana em sua mão. Era uma dupla de
canecas brancas com a estampa “Time BellGama”.
— Esse é o melhor presente que você já me deu!
Ri, contente por isso. Era só uma forma de agradecer por ele ter
invadido a minha sala no meio da noite para abrir os meus olhos.
Apesar de todas as coisas ruins que aconteceram, os últimos dias com
Renato e com os meninos estavam sendo os melhores que tive nesses meses
pós-fusão.
— Fico feliz que gostou.
— A outra é sua?
— Não, a minha está na minha sala.
Frederico acenou, sorrindo mais.
— Obrigada, Nathalia.
Afaguei sua bochecha rechonchuda, deixando um beijo em sua
bochecha.
— Eu que agradeço, Fred. Por tudo.
O restante do dia tinha passado por mim como um borrão.
Entre reuniões e conferências, mal tive tempo para verificar as
mensagens que explodiram no celular, ou de checar se a banca avaliadora
deu algum retorno sobre a minha monografia. Nem mesmo o Prof. Becker
deu sinal de vida, mas isso não significava que eu estava isenta de suas
opiniões críticas, já que nos veríamos amanhã no encontro semanal.
Após me despedir do diretor de riscos em frente a escadaria,
atravessei o corredor paralelo, indo direto para a minha sala.
Estava satisfeita com o meu dia, consegui dar conta de todas as
pendências e estava prestes a voltar para casa a tempo de assistir ao jogo
com os garotos, exatamente como Igor havia pedido. Eu adorava passar
cada segundo com as crianças, especialmente quando sabia que me queriam
por perto em atividades que costumavam fazer sozinhos com o pai deles.
No entanto, nenhuma alegria durava tanto.
Quando abri a porta da sala, deparei-me com um cabelo loirodourado, o perfil de uma modelo internacional e o sorriso cativante de
Olívia Montenegro; soube que meus planos iriam por água abaixo.
Meu estômago afundou quando o par de íris verdes me encontraram, o
seu rosto se iluminou e forcei um sorriso ao vê-la correr em minha direção
para me dar um abraço apertado.
Não era como se eu não estivesse contente em ver a minha amiga…
juro, eu estava muito feliz por vê-la.
Nas últimas semanas dei o meu melhor para gerenciar a crise que o
vazamento do vídeo de sexo causou em sua imagem. Conseguimos apagá-lo
completamente da Internet; a firma de Marc enviou centenas de ordens
judiciais, paguei diversos jornais para não publicarem nenhuma matéria
sobre o vídeo exposto, Mário Rubens foi removido do cargo de CEO da MR
Investimentos e eles soltaram uma nota acabando com a reputação dele, da
mesma forma que fizeram com a de Olívia… e eu consegui até uma boa
indenização para ela.
A única coisa que não consegui, foi um emprego decente para ela na
cidade.
Nem mesmo os meus melhores contatos, arquivos comprometedores e
a influência de Miguel Gama, conseguiriam apagar da mente das pessoas
que eles a viram no meio do vídeo de sexo mais explícito e depravado dos
últimos dois anos.
Eu, que era a sua amiga, ainda lembrava perfeitamente dos primeiros
segundos da gravação.
— Quando você chegou na cidade? — investiguei, sentindo-me um
pouco receosa.
Olívia me soltou, mantendo as mãos em meus ombros e sorriu largo.
Ela parecia melhor, comparado a última vez que nos vimos
pessoalmente e estávamos no meio do olho do furacão.
— Cheguei ontem à noite, até tentei passar no seu apartamento, mas o
Chico disse que você viajou — explicou, afastando-se para atravessar a sala
em direção ao minibar e servir duas doses de The Macallan com gelo.
Ofeguei, sentindo o coração bater acelerado no peito.
Não queria que Olívia soubesse do meu envolvimento com Renato, ao
menos, não por agora.
Uma parte de mim dizia que o motivo era altruísta, eu não queria que
ela sofresse qualquer gatilho por me ver repetindo as suas ações. Outra
parte, a mais sincera, sabia que era por medo do julgamento que viria. Ou
até mesmo do confrontamento sobre o quão hipócrita eu era.
Anos repetindo o discurso de que não iria me envolver com pessoas
do meu círculo profissional, e acabei caindo nos braços do CEO do
escritório que eu trabalhava.
Quão patética e clichê eu sou?
— Hã… tivemos que fazer presença no casamento de uma das sócias
da firma — murmurei, caminhando pelo espaço e deixando o iPad sobre a
mesa, evitando olhar para a loira do outro lado da sala.
— Eu vi no Instagram da Bia… quase perguntei onde vocês estavam
hospedadas para ir encontrá-las e comemorar seu aniversário — disse,
obrigando-me a girar nos calcanhares e encontrá-la a poucos passos de
distância.
Ela entregou uma dose de uísque para que eu bebesse.
— Infelizmente, meus pais decidiram que eu deveria estar no
aniversário da Alina, para que pudessem discursar na frente de toda a
família sobre como sou uma decepção e a maior vergonha dos Montenegro.
Não me passou despercebido a sua falsa leveza ao dizer aquilo e
aceitei o brinde amargo que ela ofereceu, ouvindo o silêncio na sala ser
preenchido pelo tilintar dos cristais.
— Sinto muito, Liv.
Olívia acenou, dispensando minhas palavras e me deu as costas,
sentando-se no sofá que ficava de frente para a porta.
Quase como se tivesse sido cronometrado, os meus olhos se voltaram
para a mesma que havia sido aberta e fixei a atenção no rosto de Renato.
Meu coração saltou para a garganta, minha mão segurando o copo fraquejou
e Olívia virou na direção, deparando-se com o meu namorado e arqueando
uma sobrancelha.
Pigarreei, tentando desfazer o desconforto que enroscou em minha
garganta e acompanhei ele encontrar a atenção da minha amiga.
Compreensão perpassou por seu rosto e ele endireitou a postura,
desfazendo-se do semblante descontraído e relaxado, e assumindo a
máscara impassível que usava diariamente.
— Renato… — minha voz escapou como um ruído grave do fundo da
garganta e me virei para a loira, sentindo o seu olhar analítico sobre mim,
como se estivesse tentando perfurar meu crânio para descobrir o que existia
ali juntamente com toda a massa cerebral. — Essa é a Olívia Montenegro.
Ela se levantou, sorrindo um pouco mais descontraída e estendeu a
mão para ele.
— Liv… Renato Trevisan, CEO da firma — murmurei, vendo as mãos
se entrelaçarem rapidamente e os olhos sombrios do meu namorado não
demoraram a buscar pelo meu.
— É um prazer te conhecer, Renato — disse ela, atraindo a sua
atenção e ele meneou a cabeça, guardando as mãos nos bolsos da calça —,
Bianca e o namorado falaram bastante sobre você.
Ele deixou um esboço de sorriso escapar e acenou.
— Espero que apenas as coisas boas — respondeu, polido, virando-se
para mim —, peço desculpas por interromper a conversa de vocês duas…
nos falamos depois, certo? — Não me passou despercebida a urgência
escondida em sua pergunta.
Bebi um gole longo do líquido âmbar em meu copo e meneei a
cabeça, sentindo os batimentos acelerarem no meu peito e as garras afiadas
do monstro na minha cabeça arranharem a porta que o trancava em um
cômodo longe da superfície da minha consciência.
— Não seja por isso, posso dar uma volta para falar com a Bianca,
enquanto resolvem o que precisam — Liv sugeriu, simpática.
Renato negou, olhando-a de relance.
— Não se preocupe, é um assunto que pode ficar para amanhã de
manhã.
Suspirei, vendo-o procurar novamente por uma confirmação da minha
parte, mas não consegui encontrar a voz necessária para responder.
Entreabri os lábios, mas nada saiu. O copo vacilou em minha mão e percebi
que estava tremendo. Meu coração começou a bater mais rápido, fazendome sentir como se estivesse subindo pelo meu peito e sufocando a
passagem de ar em minha garganta.
Pude sentir o olhar inquisidor de Olívia sobre mim, indagando
silenciosamente sobre a falta de resposta da minha parte e lutei contra
aquela perturbação incômoda.
Forcei um sorriso que convenceu a Olívia, mas não repercutiu
qualquer efeito em Renato.
— Claro, nos falamos amanhã — falei, sentindo a minha voz soar
parecida com um chiado.
Ele franziu o cenho, mas ao perceber a atenção de Olívia, apenas
forçou outro sorriso nada convincente, desejando-nos um bom fim de tarde
e saindo da sala.
Mal tive tempo para respirar normalmente com a sua saída, antes de
ter os olhos da minha amiga me observando, intrigados.
— Uau! — Soltou, arregalando os olhos, e só então me dei conta de
que eu tinha me movido por instinto.
Avancei um passo para tentar impedir a saída de Renato daquele jeito,
mas não tive coragem suficiente para me aproximar dele diante da atenção
da minha amiga.
Covarde!
Era isso o que eu era.
— O quê? — Forcei-me a questionar, antes que o meu silêncio
atraísse a curiosidade de Olívia e acarretasse numa investigação minuciosa
sobre meu relacionamento “profissional” com meu chefe.
Pisquei, espantando as lágrimas que se acumularam e caminhei para
perto do bar, servindo uma nova dose e aproveitando alguns minutos longe
do olhar de Olívia para me recuperar do susto.
Culpa remoeu meu peito ao me lembrar da perturbação que queimou
nas íris de Renato pela ausência de resposta da minha parte, mas diante da
atenção da loira que, algumas semanas atrás, foi a responsável por me dar
um choque de realidade sobre o rumo que meu relacionamento com ele
poderia tomar, eu não soube reagir.
Uma parte de mim se sentiu estúpida por esconder isso, e por
submeter Renato a ter que fingir que não estava comigo na frente de uma
das minhas melhores amigas, apenas porque eu não queria lidar com o
julgamento dela. No entanto, essa mesma parte gritava que, se Olívia
realmente fosse minha amiga, não me julgaria por estar indo em busca de
algo que eu queria.
Porque essa era a verdade.
Por anos, eu me vi perseguindo obsessivamente uma forma de mostrar
para as pessoas que não era apenas a herdeira de Miguel; que eu também
era boa e digna de atuar nesse mercado, de comandar uma gestora do
tamanho da Alpha e construir o meu próprio legado.
E uma parte bem pequenininha, era capaz de confessar que tudo
aquilo era uma busca por validação externa. Uma necessidade patológica de
provar para as pessoas que esperavam o pior de mim, que eu conseguia ser
melhor do que todos eles e que isso não era por conta da influência de
Miguel.
Renato era a primeira escolha que eu fazia, sem ser baseada numa
tentativa de provar para os outros alguma coisa. Na verdade, se fosse me
agarrar ao que todos projetavam em mim, deveria ter seguido minha regra e
nunca ter me envolvido com ele. Não deveria ter dado uma chance para que
ele me fizesse ficar ali, ou dado espaço para que entrasse na minha vida ao
ponto de fazer com que a sua ausência se tornasse dolorosa.
Pensar em tê-lo longe de mim novamente, me trazia um desconforto
absurdo e meu estômago revirava, eu odiava a sensação de impotência que
me atingia com aquilo.
De repente, lidar com um possível julgamento de Olívia me parecia
irrelevante. Eu podia conviver com comentários ácidos dela, mas não
lidaria com a ideia de ter sido a responsável por fazer com que aquela
angústia queimasse nos olhos de Renato.
— Ainda bem que você tem uma cabeça melhor do que a minha e não
se ludibria tão fácil com um rostinho bonito. — A voz da minha amiga me
arrancou do torpor que me encontrava e girei nos calcanhares, encontrandoa reflexiva. — Porque eu não seria capaz de conviver com aquele pedaço de
mal caminho todo dia!
O desconforto me atingiu e minha mente pouco amigável, projetou
imagens fantasiosas do que poderia ter acontecido se Olívia nunca tivesse
saído da firma antes a fusão ser concluída.
E se tivesse sido ela, a pessoa por quem Renato estava disposto a lutar
pela permanência?
E se os dois tivessem se aproximado, da mesma forma que nós dois
nos envolvemos? Olívia era muito menos cautelosa sobre isso e teria cedido
muito mais fácil do que eu.
Ânsia subiu pela minha garganta e eu me vi querendo vomitar, só de
imaginar que os dois pudessem ter se envolvido. Odiei minha mente por ser
tão cruel ao ponto de pintar essas imagens em um quadro nítido o suficiente
para que nunca fosse apagado da minha memória.
— Nathalia? — O chamado de Liv me fez virar todo o líquido do meu
copo de uma vez, afastando a ânsia de vômito para longe.
— Uh?
— Tudo bem?
Pisquei, sentindo minha cabeça se mover em um aceno robótico.
— Sim… eu… hã… — balbuciei, tentando encontrar palavras para
explicar o motivo da minha reação, mas o quadro vivo em minha mente não
parava de rodar, ganhando mais nitidez a casa segundo. — Liv… na
verdade, eu queria conversar com você sobre uma coisa importante.
A seriedade que tomou minha voz me surpreendeu, assim como a
coragem de colocar todas as cartas na mesa e compartilhar com ela a
verdade. Eu não era uma criança, e Olívia era a minha amiga, mas isso não
significava que tinha o direito de recriminar as minhas escolhas. Era
besteira da minha parte continuar escondendo aquilo dela, quando todos os
meus outros amigos já estavam cientes e estiveram na minha festa de
aniversário organizada por Renato.
— É sobre o Mário? — questionou, a mera menção do nome dele fez
com que o rosto dela empalidecesse e os olhos marejassem. — Eu me sinto
tão ridícula e culpada por essa situação, sabe? Tem uma voz na minha
cabeça que fica o tempo inteiro repetindo que, nada disso estaria
acontecendo, se eu não tivesse sido tão burra de ceder ao charme daquele
desgraçado!
Minha voz morreu.
— E ironicamente, a voz é a sua. — Olívia riu, amarga. — Muito me
surpreende que não tenha jogado na minha cara o quão burra eu fui…
Entreabri os lábios, buscando pelas palavras que estavam na ponta da
língua segundos atrás, mas elas desapareceram. Assim como toda a
coragem que reuni nos últimos trinta segundos.
Você é tão covarde…
A voz sombria e cruel em minha cabeça zombou, fazendo-me recuar
completamente na decisão anterior.
— O que aconteceu não é sua culpa. — Foi tudo o que eu consegui
dizer.
Liv sorriu amarga.
— Você está sendo gentil, mas sei que na sua cabecinha, queria gritar
um enorme: eu avisei! — Meu rosto se contorceu em uma careta, mas não
tive força para retrucar e ela também não me deu tempo para isso. — Mas
tudo bem, vivendo e aprendendo, né?
Aquiesci, quieta.
— O que acha de uma noite das garotas no bar do Joca? — convidou,
olhando-me com as íris brilhando em súplica. — Diana também está na
cidade e o Joca prometeu que nos reservaria a melhor mesa!
Algo no meu peito murchou.
— Liv… eu tenho outro compromisso.
Ela fez bico, enchendo os olhos de lágrimas.
— É trabalho, não é? Claro que sim, sempre é! — Ela se levantou,
vindo em minha direção. — Desmarca dessa vez. Vamos lá, pequeno
gênio… só dessa vez — suplicou infantilmente, entrelaçando as mãos no
peito. — Seja uma boa amiga e me dê uma noite de porre como nos velhos
tempos!
Engoli em seco, sabendo que me sentiria horrível por qualquer uma
das escolhas que fizesse.
Se negasse o convite de Olívia, seria uma péssima amiga e a
abandonaria em um dos momentos mais caóticos da sua vida, quando
estava mais precisando de distração. Ela perdeu o emprego, teve a carreira
manchada e ainda sofreu ataques de centenas de milhares de pessoas que a
ofenderam gratuitamente por fazer a mesma coisa que estavam exaltando
Mário… e ainda precisou lidar com todo o julgamento da própria família.
Mas se aceitasse, eu falharia com o Igor e não atenderia ao pedido que
ele me fez naquela manhã — e ainda quebraria a minha promessa de dar o
meu melhor para estar com eles durante o jogo. E eu odiava ser a pessoa
que decepcionaria ele e o irmão, por mais que soubesse que nós estávamos
juntos praticamente todos os dias e que eu poderia compensá-lo em outro
jogo.
Bebi mais um pouco do uísque em meu copo, ignorando a sensação
de estar contra a cruz e a espada.
— Tudo bem… só me deixe fazer uma ligação. — Por fim, decidi
aceitar a proposta dela.
Olívia ficaria na cidade apenas por alguns dias já que, como tínhamos
conversado nas últimas semanas, ela viajaria para Nova Iorque para fazer
uma entrevista com a head hunter da Alpha. Se ela decidisse aceitar a oferta
que o meu pai preparou, assim como Antônio, eu a veria muito raramente.
Ela sorriu maliciosa.
— Hmm… não me diga que está namorando?
Engoli em seco, dando um passo para longe e abandonando o copo
vazio sobre a mesa, caminhando para fora da minha sala.
— Volto em cinco minutos, Liv.
Desviei a atenção do monitor em que acompanhava a movimentação
do mercado naquele fim de pregão, quase ao mesmo tempo, em que minha
porta foi aberta bruscamente.
Alcei a sobrancelha, vendo Leandro caminhar para dentro como se a
sala pertencesse a ele.
— Você nunca vai aprender a bater na porta? — questionei,
levantando-me da poltrona em que estava há algum tempo e contornei a
mesa larga, indo em direção ao minibar para servir uma dose de uísque.
Eu realmente precisava de uma bebida naquele fim de expediente.
Leandro se jogou no sofá, descansando o braço no encosto e olhandome como se meu comentário fosse trivial demais para cativar a sua atenção.
— A diabinha não está no escritório, então, o único risco que eu
poderia sofrer era de te encontrar tocando uma…, mas acho que já passou
dessa fase, não? — debochou, sorrindo com cinismo.
Poderia insistir no discurso de que ele deveria bater na minha porta
antes de entrar em qualquer ocasião, visto que muitas vezes eu atendia meus
clientes mais antigos aqui, e seria uma grande inconveniência ter uma
reunião interrompida pela sua visita inesperada.
No entanto, a primeira frase acabou atraindo a minha atenção.
— Nathalia não está?
Pude sentir um vinco surgir em minha testa e o desconforto se
instalou em meu peito.
Eu nunca fui um homem inseguro, mas Nathalia conseguia me tirar da
minha zona de conforto e desde que sai de sua sala, estava me sentindo
particularmente preocupado com o que me aguardava para o fim do dia.
Seu olhar era o mesmo de quando apareceu na minha sala semanas
atrás, após retornar da casa de Olívia e, sem me ouvir, terminou comigo.
Custou muito do meu autocontrole não quebrar a distância entre nós e
lembrá-la de que já tínhamos passado por aquela fase, e não fazia sentido
retornamos para ela depois de tudo. Porém, a presença de Olívia me
impediu de atravessar o limite que estabelecemos dias atrás.
Nathalia foi clara quando disse que não queria que a amiga soubesse
do nosso envolvimento por enquanto, e recusar ao seu pedido só me faria
correr o risco de perdê-la. Eu precisava confiar que minha mulher saberia
lidar com a presença de Olívia, sem acabar recuando duas casas e nos
levando para a estaca zero.
Leandro aceitou a dose de uísque que servi e ergueu o copo em minha
direção, confirmando em resposta a minha pergunta.
— Sim. Ananda disse que ela saiu com a Olívia há um pouco mais de
uma hora. — Leandro bebeu um gole longo, despreocupado.
Franzi o cenho.
— Você não sabia?
Neguei, batendo o indicador suavemente no cristal, refletindo sobre a
situação.
— Estava em uma conferência com o Moacir — murmurei, relaxando
as costas no estofado e encarando a porta, como se isso pudesse fazer meu
pequeno anjo diabólico atravessar por ela e aplacar aquele incômodo que
crescia em meu peito.
Realmente, tudo o que eu precisava para começar aquela semana, era
a amiga de Nathalia trazendo suas inseguranças de volta.
Respirei pesadamente, bebendo um gole longo e isso acabou atraindo
a atenção de Leandro. Ele arqueou a sobrancelha, interessado no meu
desconforto.
— O que foi? Não me diga que vocês dois terminaram de novo.
Espreitei os olhos nele.
— Não conversamos sobre o meu relacionamento com Nathalia.
Ele riu.
— Seu relacionamento com Nathalia? Não existe isso, eremita! —
Salazar dispensou minha fala, levantando-se e indo ao bar novamente,
apanhando a garrafa de The Macallan e a colocando sobre a mesa de centro,
servindo uma nova dose para nós dois. — Logo… é o nosso relacionamento
com a Nathalia. Tudo o que envolve vocês, afeta a vida de todo mundo.
Foi a minha vez de dar risada, balançando a cabeça.
— Não, não afeta.
— Claro que sim. Eu sou o filho de vocês! E não quero ser filho de
um divórcio, isso me faria desenvolver family issues e eu já tenho
problemas demais para acrescentar mais um. — Ele fez uma careta,
sentando-se e apoiando os cotovelos nos joelhos, concentrado em mim. —
Vamos, se abra para o seu velho amigo. Conversar sobre os problemas
ajuda a resolvê-los.
— Quem foi que te disse isso?
Leandro sorriu, divertido.
— A Babi.
— Babi? Quem é Babi?
— Ué, a nossa terapeuta. Você não sabia dela? — questionou,
achando graça. — Tudo bem que eu só descobri porque a diabinha me
mandou ir falar com ela, mas…
Interrompi.
— Você está falando da Bárbara?
Ele fez uma careta.
— Credo, Bárbara é tão formal! Nós somos íntimos o suficiente para
que eu possa chamá-la de Babi.
Pincei a ponte do nariz, apertando o suficiente para que pudesse
pensar em como repreender Leandro sobre aquilo. Às vezes, eu me esquecia
que meu amigo e sócio parecia uma praga.
— Você está transando com a Bárbara?
Leandro gargalhou.
— Claro que não! Que tipo de homem você acha que eu sou?
— Você quer mesmo que eu responda?
Ele dispensou o meu desdém e passou os minutos seguintes
explicando sobre como a sua “amizade” com a terapeuta do escritório
começou.
Bárbara era especialista em psicologia de desempenho e era uma parte
importante da equipe, ela era a pessoa que os rapazes procuravam quando o
estresse e a pressão ficavam muito altas. Era uma das melhores
profissionais do ramo, unindo técnicas terapêuticas e de coaching para
extrair o melhor do time.
Nós a contratamos durante a fusão, já que muitos dos associados eram
jovens e não conseguiam lidar com a pressão de acompanhar o ritmo dos
sócios seniores. Ela os ajudava a gerenciar suas emoções e a tomarem
decisões mais assertivas no trabalho, e todos os associados e operadores
precisavam falar com ela ao menos uma vez por semana.
Eu só não sabia que Leandro também estava andando por lá.
— Você está usando a Bárbara como terapeuta pessoal? — indaguei,
incrédulo ao escutá-lo terminar de explicar.
Leandro deu de ombros.
— Sim, você e a diabinha não me mandaram ir cuidar da cabecinha?
Respirei fundo.
— Não a chame assim — ordenei, apertando os dedos em volta do
cristal com um pouco mais de força. — E não é para isso que Bárbara está
no escritório. Se você precisa falar com um psicólogo, procure um por fora.
Ele bufou.
— Nossa, mas você e a Babi podem dar as mãos e se juntarem nesse
discursinho chato, viu?
— Bárbara também te mandou procurar outro profissional?
Revirou os olhos.
— Todo santo dia! — Bebeu um gole longo e soltou um suspiro
longo, afundando as costas no sofá e me olhando com interesse genuíno. —
Mas vamos lá, não desvie do assunto principal. O que está te incomodando?
— Nada.
— Deixe disso, eremita. Eu chamei a sua mulher pelo apelido
proibido várias vezes e você só se importou agora. Alguma coisa não está
certa — constatou, erguendo a sobrancelha —, você ainda nem tentou me
dar um soco. Que bicho te picou?
Apertei os olhos em seu rosto, achando um tanto irônico que ele
estivesse tentando me fazer compartilhar meus problemas pessoais, quando
se recusava a falar qualquer coisa quando o assunto girava em torno do seu
envolvimento com Bianca.
— Isso tem a ver com a visita da Olívia? — questionou, e sem me dar
tempo para dizer qualquer coisa, ele prosseguiu: —, claro que tem! Na
última vez que Nathalia a viu, você tomou um pé na bunda. É isso, não é?
— O filho da puta gargalhou. — Tá com o cu na mão de tomar outro!
Inspirei o ar profundamente, contendo o desejo de agarrar o
desgraçado pela garganta e só soltar quando não estivesse mais respirando.
Ser amigo de Leandro era um teste de paciência diário.
— Quem te viu, quem te vê, Renatinho! — zombou, balançando a
cabeça. — Não pensei que viveria para te ver tão boiola por alguém.
— Leandro, você não tem nada melhor para fazer?
— Algo melhor do que tirar sarro da sua situação? — provocou e
estalou a língua, acenando despreocupado. — Não, acredite em mim: esse
está sendo o ponto alto do meu dia!
Uma risada baixa escapou do fundo da minha garganta e bebi mais
um gole do uísque, encarando-o com curiosidade.
— Onde está a Bianca? — investiguei, vendo o seu bom humor
desaparecer instantaneamente.
Pois bem, pimenta no rabo dos outros é refresco!
— O assunto principal aqui é você e a Nathalia — desconversou, e
não me passou despercebido a forma como seus dedos se apertaram no
cristal do copo. — A propósito, preciso de uma nova secretária.
Franzi o cenho, confuso.
— O que houve com a Cora?
— Ela pediu algumas semanas de licença, uma irmã dela está doente
e, aparentemente, precisa mais da Corinha do que eu — resmungou,
fingindo aborrecimento.
— Talvez, por que você seja um adulto que pode se cuidar sozinho?
— retruquei, sarcástico.
Leandro torceu os lábios, negando.
— Não, é porque a velha está me trocando mesmo. Daqui um tempo
ela aparece dizendo que vai se aposentar, quer apostar quanto? — A
indignação em sua voz me arrancou uma risada sincera.
— Se você não tivesse um problema em controlar o seu pau, talvez,
não precisasse contratar uma secretária com o pé na aposentadoria.
Meu amigo arqueou a sobrancelha, abrindo um sorriso cínico.
— Eu sou um homem jovem e cheio de energia, Renatinho. Não é um
crime ter uma vida sexual ativa. — Piscou. — E não é minha culpa se você
decidiu aderir ao celibato até conhecer a diabi…
Ele não prosseguiu ao ver meus punhos se apertarem. Seu olhar se
iluminou e ele arreganhou os dentes, satisfeito por me irritar. Esse era o
talento do filho da puta. Leandro sentia prazer em perturbar a vida das
pessoas ao seu redor até que perdêssemos a calma.
— Tá, tá… relaxa! — Ergueu as mãos, defendendo-se.
— Vou falar com as garotas do RH para providenciarem uma nova
secretária para você — falei, ignorando sua provocação anterior.
— Não, na verdade, estava pensando em você dividir a Ananda
comigo.
— Não.
— Mas…
— Ananda é minha secretária — fui sucinto, levantando-me e dando
aquela discussão por encerrada, marchei para minha mesa para apanhar o
meu celular.
Leandro bufou, inconformado.
— Eu acho isso muita canalhice da sua parte. Por que você pode
dividi-la com a Nathalia e não comigo? — inquiriu, levando a mão ao peito.
— O nosso relacionamento é mais longo!
Encarei-o com o celular em mãos, refletindo se valia a pena mandar a
mensagem para o RH ou se era melhor deixá-lo se fodendo sem uma
secretária. Era justo, assim ele teria menos tempo para atazanar meu juízo.
— Ananda está ajudando a Nathalia temporariamente — esclareci,
aproveitando para enviar uma mensagem para a minha mulher numa
tentativa de livrar meu peito do desconforto que seu olhar em pânico me
trouxe.
— Têm umas dez assistentes que poderiam ajudar a Nathalia, mas
você emprestou a Ananda.
Franzi o cenho, encarando-o com impaciência.
De fato, eu nunca compartilhei minha secretária com ninguém.
Ananda era uma excelente funcionária, tinha sido difícil encontrar
alguém que conseguisse tomar conta da minha agenda sem acabar perdendo
a cabeça, e eu sabia o quanto era puxado trabalhar comigo no dia a dia. Ela
precisava equilibrar meus compromissos como diretor executivo e como
administrador de portfólio, dar conta para que nada ficasse pendente e não
houvesse desencontros em minha agenda.
Era justamente por isso que eu não a compartilhava, trabalhar para
mim já a sobrecarregava o suficiente. Mas como Nathalia estava arredia e
vetou todos os currículos que o RH enviou, não tive opção senão conversar
com Ananda e pedir para que ela cuidasse da agenda da minha mulher —
que era tão cheia quanto a minha.
Além disso, eu podia contar com a discrição de Ananda. Ela era uma
garota astuta e não demorou a perceber que estávamos nos envolvendo,
então ajudava a esconder nossos encontros no meio do expediente.
Como se soubesse que falávamos sobre ela, duas batidas na porta
anunciaram sua presença e acompanhamos a sua entrada. O iPad em suas
mãos denunciava que veio para repassar a agenda do dia seguinte comigo.
— Olha só, você não morre mais, Nandinha — disse o idiota, abrindo
um sorriso largo para a garota franzina.
Os olhos amendoados da minha secretária espreitaram meu amigo
com ironia e ela deu um peteleco em seu ombro.
— Eu tenho um superpoder, esqueceu? Sempre sei quando vocês
estão falando sobre mim — retrucou, sentando-se no espaço ao lado dele
—, mas posso saber do que se tratava?
Ele a olhou com diversão, apanhando uma mecha dos fios longos e
pretos do cabelo da garota e puxou levemente, implicando como uma
criança. Ananda já tinha se acostumado, porque seu senso de humor era
semelhante ao de Leandro.
— Estou expressando minha indignação por ele não querer emprestar
você para mim por um mês — lamentou, dramático. — Admita,
Renatinho… isso tudo é medo dela acabar descobrindo que eu sou um chefe
melhor do que você?
Revirei os olhos e Ananda riu.
— Ah, desculpe, Salazar…, mas é impossível que você seja um chefe
melhor do que o Renatinho — rebateu, cínica.
Meu amigo levou a mão ao peito, ofendido.
— Como é?
Ananda sorriu largo, erguendo a bolsa de uma grife francesa. Era
nova, ela tinha comprado recentemente e eu sabia disso porque recebi a
notificação da operadora do cartão de crédito.
— Essa belezinha? Foi a minha recompensa por manter a chefinha
nos trilhos — disse ela, aproveitando para erguer o pé direito e mostrar a
sandália de salto, também nova e de grife. — Esse aqui? Só por conseguir
fazê-la se alimentar direitinho ao longo do dia — prosseguiu, jogando o
cabelo para o ombro esquerdo e mostrando o par de brinco de esmeraldas.
— E essas belezuras? Porque limpei a agenda da gata durante o restante da
semana passada.
Arqueei a sobrancelha.
— É impressão minha, ou você está aproveitando isso para me
extorquir? — indaguei, fingindo descontentamento.
Ananda sorriu, petulante.
— Ah, me poupe, como se isso fizesse diferença na sua vida! —
Gesticulou com a mão, ignorando minha falsa indignação e se virou para
Leandro —, por que acha que eu trocaria isso para trabalhar para você?
Ele meneou a cabeça.
— Como você está ambiciosa, Nandinha… quando eu te conheci você
era uma menina tão humilde… — Leandro estalou a língua, olhando-a como
se estivesse vendo uma versão da garota que ele não conhecia mais. — Esse
nosso mundo realmente corrompe as pessoas, Renatinho.
Ananda rolou os olhos, virando-se para mim.
— Vamos para a agenda? Tenho uma reserva às sete para jantar com o
Gabriel — disse, endireitando a postura e indiquei que prosseguisse. — Ah,
a chefinha tinha vindo falar com você mais cedo, mas como estava em
conferência com o Moacir, ela acabou pedindo para que eu te avisasse que
ia num bar com Olívia, Bianca e outras amigas — anunciou, sorrindo fraco.
Aquiesci, sentindo-me um pouco mais aliviado em saber que Nathalia
me procurou antes de sair. E pelos minutos que seguiram, repassamos os
compromissos que eu teria no dia seguinte.
— Hã… seu almoço com a Celine também está confirmado, ela disse
que poderíamos escolher o restaurante, mas temos um problema… — uma
pequena ruga surgiu em sua testa e seus olhos vieram para o meu rosto. —
Você tem uma reunião com o García às três, e o almoço será às uma. O
único restaurante que consigo pensar que seja bom, refinado e longe dos
olhares curiosos, fica na Faria Lima.
— E qual é o problema?
— O trânsito? — disse como se fosse óbvio, arrancando uma risada
de Leandro. — Além disso… a Nathalia amanhã estará na Faria Lima, ela
me pediu para limpar a agenda da manhã inteira.
Não demorei a entender o que a garota queria dizer. Eu pedi para que
meus almoços com os sócios ficassem longe da vista de Nathalia, porque a
conhecia o suficiente para saber que seria contrária ao que eu pretendia.
No entanto, fui sincero quando disse que não permitiria que
Guilherme chegasse perto dela novamente, e para cumprir isso, eu
precisava conseguir votos no conselho para ter a maioria quando solicitasse
a saída dele da firma.
Infelizmente, ser CEO não me exonerava da obrigação de responder
aos meus sócios e eu não podia removê-lo sem um motivo plausível e a
maior parte dos votos.
— Você sabe onde ela estará? — questionei, sentindo o olhar do meu
amigo sobre mim.
— Bem, sei… até certo ponto. — Torceu os lábios. — Ela tem reunião
com a Maitê Belchior às dez no escritório da Devilish, e depois disso irá
para a Alpha Capital se encontrar com o pai dela.
Aquiesci, refletindo um pouco no que faria.
— Tudo bem, marque no restaurante.
— E se vocês se encontrarem?
— Nathalia costuma comer no La Colombiana quando está com o pai
dela — disse, lembrando-me de que me contou que fazia questão de comer
naquele restaurante sempre que se encontrava com o pai na cidade.
Ananda aquiesceu, anotando em seu iPad e Leandro atraiu a minha
atenção.
— Como foi o almoço com a Leonor hoje? — investigou, afinal, ele
estava ciente daquele meu movimento.
Quando Marc me disse que a denúncia de Nathalia não seria o
suficiente para remover Guilherme do conselho de sócios, precisamos
buscar alternativas mais eficazes. Nossa briga no casamento poderia ser um
motivo plausível para apresentar ao conselho e pedir uma votação. Eu
poderia alegar que o seu comportamento trouxe problemas para a imagem
do escritório e toda aquela besteira burocrática. Mas para funcionar, eu
precisava garantir que alguns sócios votassem comigo pela remoção do
filho da puta.
Como sócios fundadores, o nosso voto tinha um peso diferente dos
demais e era equivalente a vinte por cento da posição na sociedade,
enquanto os outros carregavam um voto único. Sendo assim, votando
comigo, Leandro e eu totalizávamos treze votos. E como Nathalia recebeu
parte das minhas cotas em sua promoção para diretora de operações, isso
cedia a ela dois votos, então, juntos teríamos quinze contra o restante do
conselho, que totalizavam vinte e cinco votos.
Precisávamos de mais seis sócios dispostos a votar ao meu favor e,
infelizmente, apelar ao bom senso deles não era o suficiente. O mundo em
que vivíamos tinha normalizado situações de assédio de uma forma que, a
menos que afetasse a imagem da empresa diante da imprensa, todos
fingiriam que não viram o que ocorreu no casamento de Eliane.
A única maneira de pressioná-los seria transformando aquilo em uma
denúncia pública, e essa exposição era a última coisa que Nathalia queria.
— Nada boa — confessei, sentindo a frustração me tomar ao me
lembrar de como a mulher conseguiu tirar minha paciência ao declarar que
Nathalia induziu Guilherme àquele comportamento grotesco. — Leonor não
vai votar a favor.
Leandro arqueou a sobrancelha.
— Você pode tentar pressionar um pouco — sugeriu, batucando o
indicador no cristal do copo —, ela deve ter alguma coisa que você possa
usar.
Ananda sorriu.
— Uh, eu adoro quando fazemos o trabalho sujo! Você quer um
dossiê? — Os olhos da garota quase brilharam em empolgação com a ideia.
Encarei-a com um vinco na testa, repreendendo aquilo.
— Não vamos fazer desse jeito.
Ananda soltou o ar audivelmente, decepcionada.
— Você era mais divertido antes, Renatinho — provocou Leandro,
jogando o braço no encosto e apoiando as pernas na mesa de centro na
maior folga. — Vai mesmo tentar conseguir os votos sem passar dos
limites?
— Sim, eu vou.
Os dois se entreolharam, debatendo mentalmente o que responderiam
e voltaram a me encarar, desdenhosos.
— Não me diga que está tentando ser certinho por causa da Nathalia?
— Meu sócio implicou, servindo uma nova dose de uísque para si e
ofereceu para a minha secretária que dispensou. — Tenho certeza de que ela
sabe como esse mundo funciona, afinal, Miguel não se tornou o que é hoje
agindo o tempo todo nas quatro linhas.
Rolei os olhos.
— Isso não tem a ver com a Nathalia — esclareci, sincero. —
Chantagear o conselho agora me tira qualquer vantagem no futuro, e você
se esqueceu que o meu relacionamento com ela ainda precisará da
aprovação deles?
Ananda suspirou.
— Mas você a promoveu antes de começarem a namorar —
comentou.
— É, mas o gênio quis dar as próprias cotas para ela, então, ao invés
de ter cotas da tesouraria e ser considerada uma sênior… Nathalia tem o
mesmo poder de voto de um sócio fundador. — Leandro apertou os olhos
em mim, petulante.
— Ela é uma fundadora, ou você se esqueceu que foi ela quem ergueu
o escritório quando Roberta quebrou? — defendi, incomodado com o
assunto que veio à tona.
Era uma dor de cabeça que eu não queria pensar naquele momento.
Não me arrependia de ter cedido minhas cotas.
Era o que ela merecia e que Roberta deveria ter dado no momento da
fusão. O portfólio de Nathalia era um dos maiores da firma, ficando apenas
atrás do meu, de Leandro e Roberta. Minha mulher atendia grandes
corporações e tinha uma rentabilidade muito acima ade muitos outros
sócios. Ela tinha a quarta maior receita da firma, as cotas eram mais do que
merecidas.
— Não estou reclamando, concordo que ela merecia e você fez certo
em ajustar a palhaçada de Roberta…, mas isso te colocou nessa situação de
merda. Então, vale a pena tentar métodos mais incisivos — insistiu,
bebendo um gole longo do uísque.
Ananda meneou a cabeça, apoiando a sugestão de Leandro.
— Você se encontrou com a Nicole no casamento, não foi? —
questionou ela, atraindo a minha atenção e confirmei. — E se usasse isso ao
seu favor?
— Sei muito bem onde você está querendo chegar, e a resposta é não.
— Mas…
— Não, Ananda. — Fui firme, interrompendo-a.
Leandro pareceu não entender e nos encarou, exigindo uma
explicação.
— Usar a influência do pai da Nicole na CVM vai trazer uma
investigação direta para o escritório — esclareci, vendo o entendimento
cobrir o rosto do meu amigo e ele acenou, concordando com a minha linha
de raciocínio.
— É, melhor não. Se os clientes souberem que estamos passando por
uma avaliação, vão achar que estamos fazendo algo errado e isso vai foder
com a nossa imagem — concluiu, enrolando uma mecha fina do cabelo de
Ananda em seu indicador e a puxando, incapaz de ficar quieto e sem
perturbar alguém por mais que cinco minutos. — Eu posso falar com alguns
sócios, assim não fica tão na cara que você está agindo por baixo dos panos.
— É uma boa — confirmei, olhando-o agradecido. — Frederico é
amigo de Nathalia e deve votar a favor, mas não custa ter certeza. Consegue
conversar com ele amanhã?
Leandro confirmou.
— Claro, adoro aquele cara, ele é uma figura!
Minha secretária aproveitou para anotar em sua agenda, removendo
Bellegard da lista de sócios com quem eu planejava me encontrar naquela
semana.
E nos minutos que seguiram, repassamos a lista de sócios e dividimos
entre Leandro e eu.
— E a Roberta? — investigou Ananda, citando o último nome na
lista. — Ela tem quatro votos válidos.
— Se eu tiver seis votos, não preciso dela — falei, franco.
— Mas… ela é, ou ao menos era amiga da Nathalia. Você não acha
válido tentar ver se a gata decide fazer algo bom pelo menos uma vez? —
questionou, sem esconder o rancor.
Ananda estava ciente de tudo o que aconteceu entre Nathalia e
Roberta, tanto porque arrancou informações de Leandro e Bianca, quanto
por ficar bisbilhotando minhas conversas pessoais através do interfone.
Salazar riu com sarcasmo.
— Esquece isso, depois que a Nathalia enfiou o tapa nela? —
relembrou a briga das duas na semana passada. — Roberta vai fazer questão
de votar contra qualquer coisa que favoreça a Miss Google, ou esqueceram
do quanto ela pode ser rancorosa?
Concordei, mais do que ciente daquilo.
Estava contando com o bom senso de Roberta e que ela levasse meu
aviso a sério, mas não podia ignorar a possibilidade de uma tentativa de
retaliação.
A verdade era que o mercado era um campo minado de egos e com
aquele tapa, Nathalia acionou o contador de Roberta.
Nos restava descobrir se a bomba iria explodir ou se desarmaria
sozinha.
Horas mais tarde, minha casa estava ocupada pelos meus amigos que
se espalharam pela sala de estar e conversavam sobre o primeiro tempo do
jogo.
O Uníon jogava contra o Borussia, e o primeiro tempo não foi dos
melhores.
Aquela temporada não vinha sendo boa para o clube espanhol e para
piorar sua situação, no início das oitavas, metade dos seus principais
jogadores estavam no banco devido a diferentes lesões.
Apesar de termos nossos respectivos times preferidos dentro do
campeonato brasileiro, passamos a acompanhar o futebol europeu por conta
de nossos clientes. Muitos desses garotos acabavam procurando a firma
para ajudá-los a gerenciar o dinheiro que ganhavam, já que muitos nunca
lidaram com algo assim antes.
Atualmente, atendíamos cerca de quarenta jogadores dentro da RCI,
espalhados entre portfólios de sócios. Quando assumi o cargo de CEO,
precisei abdicar e repassar alguns dos meus clientes para os associados
lidarem com suas contas. Com o pouco tempo disponível, tive que me
restringir a lidar apenas com os mais importantes e que demandavam mais
experiência e cuidado.
Por conta de nossa amizade, James Martínez, atacante do Uníon del
Madrid, era o único que não repassei para um dos meus associados cuidar.
Especialmente, porque o jogador vinha passando pela pior fase da sua
carreira e vida profissional.
Eu não acreditava em sorte ou azar, mas James me fazia cogitar a
existência de uma maré de má sorte, já que perdi a conta de quantas vezes
precisei me deslocar para Madrid para limpar sua merda.
Após o fim do relacionamento com a melhor amiga da prima de
Leandro, sua vida saiu dos trilhos com a exposição midiática que recebeu e
precisei destacar uma equipe para ficar a postos para livrá-lo das polêmicas
que vinha se envolvendo desde então.
Meu trabalho ia muito além de administrar o dinheiro dos meus
clientes, eu era responsável por cuidar de suas imagens e gerenciar suas
crises — já que qualquer coisa que prejudicasse suas reputações, afetava
seus patrimônios.
Quando o cliente era um empresário ou investidor, era mais simples.
A mídia não ficava em cima, e suas merdas podiam ser facilmente
encobertas. O problema era quando o cliente era uma estrela do futebol
europeu, e todos os meios de imprensa buscavam por uma maneira de lucrar
explorando suas tragédias pessoais.
E bem, era nessa última posição em que James se encaixava.
— Acha que o Uníon vai manter o Martínez na próxima temporada?
— questionou Pedro, sentando-se no banco ao meu lado e desviei a atenção
dos meus filhos que riam das palhaçadas de Marc.
— Não sei — confessei, encarando meu amigo que parecia meio
alheio ao jogo em si.
Pedro não era tão difícil de se ler quanto as pessoas pensavam e o
conhecia o suficiente para reconhecer quando estava incomodado com algo.
— Como estão as coisas com Henrique? — investiguei, sabendo que a
única pessoa que conseguia tirar meu amigo do sério, era o seu irmão mais
velho.
Zimmermann fez uma careta.
— Nada boas. Ele não está contente por Miguel ter me passado o
projeto de Sydney — disse, conciso —, principalmente, porque ele quem
está cuidando dos projetos em andamento na Austrália.
— Bom, se Miguel quer você tomando conta do trabalho, não tem
muito o que Henrique possa fazer — murmurei, voltando-me ao meu caçula
que me chamou para pedir água e me afastei para entregar a ele, não
demorando a retornar para perto do engenheiro. — Esse é o único
problema?
Pedro riu sem humor.
— Bem que eu queria — reclamou, bebendo um gole da sua cerveja.
— Romaine está determinada a me tirar a paciência.
— Por que não a envia para trabalhar no escritório de Nova Iorque
com o Arthur?
Ele torceu os lábios.
— Acha que não tentei? Arthur não quer vê-la nem pintada de ouro
— disse, dando de ombros. — Já é uma merda ele ter que sair da empresa
sempre que Hugo está na cidade. Lidar com a cunhada de ouro não está em
sua lista de desejos.
Meneei a cabeça.
Arthur era o único dos irmãos mais velhos de Pedro com quem ele se
dava bem, mas eles acabaram se afastando depois que o rapaz discutiu com
o pai e acabou agredindo o patriarca da família.
A solução do velho Zimmermann foi enviar Arthur para cuidar de
uma filial da ZAE em outro país, já que não podia deserdá-lo por conta de
Ada, mãe deles.
A dinâmica familiar dos Zimmermann era complexa e Pedro aprendeu
com o tempo que quanto mais distante estivesse dos conflitos, melhor seria
para ele. Eu não o julgava por isso, o seu pai era tudo o que existia de mais
desprezível no nosso círculo social e não escondia que, se dependesse de
sua vontade, nunca teria adotado qualquer um deles.
— E por que Henrique não leva a namorada para trabalhar com ele?
— perguntou Marc, aproximando-se da conversa e trazendo a atenção de
Leandro consigo.
— Talvez, porque nem ele aguenta a Romaine por perto o tempo
inteiro — debochou Salazar, arrancando uma careta de Pedro. — Eu não o
julgaria. Imagine que merda você ter trinta anos, e precisar da aprovação do
papai para escolher com quem vai namorar? E pior ainda, receber uma
namorada repassada, por que o irmão que você detesta se recusou a atender
os caprichos do pai?
Pedro bebeu um gole longo, matando o restante do líquido em sua
garrafa.
— É, eu também não queria estar na pele do Henrique — Marc
resmungou.
— Ele poderia ter recusado — disse o engenheiro, a contragosto.
Leandro meneou a cabeça, concordando.
— Concordo, Henrique não é mais criança e já passou da hora de
parar de viver a vida que o Hugo definiu para ele — murmurou,
levantando-se e indo até o balcão, servindo outra dose de Hennessy em seu
copo.
Observei Pedro, notando seu desconforto por sua vida e de sua família
ter virado o centro das atenções.
— Quando você vai para a Austrália? — questionei, mudando de
assunto.
Seus ombros relaxaram, denunciando o alívio.
— No segundo semestre. Tenho quatro projetos que devem ser
concluídos até maio.
— E quando você volta? — Leandro investigou, espreitando os olhos.
— Sabe que não pode ficar muito tempo longe. Eu não sei lidar com a
ausência dos meus amiguinhos, tenho dependência emocional.
Pedro rolou os olhos, mandando Salazar ir para a merda.
Os três começaram a discutir como sempre, mas minha atenção foi
roubada pelo meu celular. Tinha conversado mais cedo com Nathalia e
soube que ela estava no bar de Joca, um dos meus amigos mais antigos que,
por coincidência, namorava uma amiga dela e de Olívia. Havia sido uma
conversa breve, mas não foi tranquilizante o suficiente para que eu não me
importasse com a ausência de respostas de sua parte.
Como se soubesse que estava me causando o início de um ataque
cardíaco, o aplicativo sinalizou que ela estava digitando e o retorno para a
minha pergunta veio quase que instantaneamente.
Renato:
Posso ir te buscar?
Nathalia:
Não precisa!
Caique está conosco e vai me deixar em casa
Eu sabia que Caique era um dos seguranças que trabalhavam para
Miguel, logo a presença dele deveria me confortar, já que ela não seria
imprudente de dirigir após ter bebido. No entanto, a sua menção a ir para
casa, deixou uma dúvida em minha mente e me obrigou a digitar uma
resposta.
Renato:
Você vem dormir aqui, certo?
Como se quisesse testar o quanto meu cardiologista era bom no seu
trabalho, a mensagem sequer chegou em seu telefone.
De repente, me senti como a porra de um adolescente ansioso,
encarando o aparelho repetidamente, esperando que as duas barras
aparecessem na tela. As reclamações dos meus filhos e dos meus amigos
durante o jogo não me distraíram, tampouco a derrota e eliminação do
Uníon do campeonato.
Por volta de 23h00, meus amigos decidiram ir embora e eu me
dediquei em colocar meus filhos na cama, já que tinham aula na manhã
seguinte e por conta da prorrogação no jogo passaram do horário de ir
dormir.
Matheus foi o primeiro a cair no sono, mal tive tempo de terminar de
abotoar seu pijama e o pirralho já estava mole sobre o edredom,
resmungando palavras incongruentes. Meus olhos se fixaram no escapulário
em seu pescoço, a joia foi um presente de Nathalia para ele, já que meu
filho deu a ela o seu bem mais valioso, o urso Hulk. E desde então, Matheus
não o tirava por nada.
Arrumei-o na cama, coloquei uma das pelúcias de super-herói por
perto, caso sentisse a ausência do brinquedo favorito e o cobri, mantendo
um abajur ligado. Verifiquei a babá eletrônica e encostei a porta, deixando
uma fresta para o caso dele precisar sair do quarto.
Era muito raro, mas quando tinha pesadelos, ele atravessava o
corredor e entrava no quarto para dormir comigo. Não acontecia há algum
tempo, mas eu preferia estar pronto.
— A Nath não vem dormir aqui hoje? — questionou Igor, parado na
ombreira da sua porta com os braços cruzados.
Boa pergunta.
— O que ela disse para você? — questionei, aproveitando para
escutar novamente sobre a conversa que os dois tiveram mais cedo.
Nathalia ligou para Mara e pediu para falar com Igor. Segundo meu
filho, ela explicou que a sua amiga estava na cidade e precisava dela
naquela noite, mas que o compensaria outro dia.
— Que ela vai estar aqui de manhã — disse Igor, ressabiado.
Aproximei-me de vez, passando a mão em seu cabelo e o
tranquilizando, ainda que eu não me sentisse tão sereno.
Sempre tive todas as peças da minha vida bem-organizadas, eu sabia o
que esperar de cada uma delas e como reagir. Nathalia, no entanto, era a
única que eu não conseguia prever os movimentos. Ela bagunçava o meu
tabuleiro e me obrigava a recalcular toda a estratégia.
Porra, ela me deixou ansioso.
Quando foi a última vez que isso aconteceu? Há muito tempo, e em
uma situação muito mais tensa do que a visita de Olívia.
O pior era que eu sequer podia culpar a garota por isso. Ela não tinha
ideia de que os últimos acontecimentos em sua vida desencadearam uma
série de inseguranças em Nathalia. Ainda assim, continuava frustrado por
ela ter escolhido justo aquela semana para visitar a minha mulher.
— E quando foi que ela não cumpriu com algo que te prometeu? —
questionei, vendo seus ombros relaxarem.
Ao menos um de nós precisava ficar calmo.
— Nunca — afirmou, sorrindo aliviado e me deu as costas, indo
direto para a sua cama.
Caminhei logo atrás, aproveitando para o cobrir, ainda que ele fosse
mais velho e pudesse fazer isso sozinho, eu mantinha a tradição e me
sentava ao seu lado por alguns minutos, conversando casualmente e
escutando sobre suas preocupações em relação ao dia seguinte.
Igor era muito dedicado aos estudos, não era uma exigência da minha
parte, mas ele fazia questão de se sair bem em tudo. E como estava prestes a
entrar em semana de provas, isso acabava trazendo muita ansiedade para
ele.
— Podemos repassar a matéria amanhã, o que acha? — Ofereci.
— Pode ser, ainda estou confuso com a parte de cálculo — confessou,
deitando-se e deixei um beijo em sua testa. — Boa noite, pai.
Sorri, afagando seu cabelo e me levantando.
— Boa noite, chefe — desejei.
Na saída, apaguei as luzes do seu quarto e desci para o meu escritório,
adiantando alguns e-mails do dia seguinte e notifiquei o RH sobre a licença
da secretária de Leandro — pedindo que providenciassem alguém para
substituir a Cora.
Meia-noite, verifiquei o celular mais uma vez e nada mudou.
Provavelmente, Nathalia acabou ficando sem bateria. Contudo, a
mensagem de Joca informando que ela saiu do bar há uma hora não me
tranquilizou.
Disquei o número dela, mas caiu direto na caixa-postal.
Meu cérebro fez questão de lembrar que da última vez que isso
aconteceu, ela foi parar na fazenda de sua família na Colômbia.
Minha respiração vacilou e minhas mãos umedeceram.
Empurrei a lembrança para longe e decidi me ocupar. Subi as escadas
e fui direto para o chuveiro, tomando um banho relativamente longo, mas a
ausência de Nathalia ainda era incômoda pra caralho.
Respirei fundo, encarando a parede e tentando acalmar a preocupação
latente.
Não sou um adolescente, porra.
Não vou surtar pela falta de resposta.
Tentei me convencer disso, mas foi inútil.
Apoiei a cabeça na parede, sentindo a água cair sobre minhas costas e
tentei colocar os pensamentos em ordem. Sempre tive autocontrole sobre as
minhas emoções, não mudaria nessa altura do campeonato. No entanto,
sentimentos eram reações irracionais do corpo humano e tentar controlá-los
era inútil, e quanto mais eu tentava tomar as rédeas deles, mais turbulentos
se tornavam.
Um arrepio perpassou meu corpo quando um toque suave acariciou
minhas costas. O cheiro de um perfume familiar preencheu o box e me
virei, dando de cara com Nathalia nua, observando-me com um sorrisinho
de canto.
Suas bochechas estavam coradas por conta do álcool, as pupilas
dilatadas e os lábios vermelhos. Meu braço envolveu seu corpo, trazendo-a
para perto como se precisasse do contato pele com pele para recuperar o
ritmo natural da respiração, e o sorriso em seus lábios triplicou de tamanho,
enquanto seus braços envolviam o meu pescoço e ela ficava na ponta dos
pés.
— Um beijo pelos seus pensamentos? — Ofereceu, a voz soando
rouca e arrastada.
A água morna caiu sobre a sua cabeça, molhando os fios e minha mão
livre capturou seu queixo, aprisionando seu olhar no meu.
Eu amava a forma como ela me olhava.
— Você se divertiu? — perguntei, procurando por sinais de que
deveria me preocupar com algo, no entanto, não encontrei nenhum
resquício da aflição que estampou o seu rosto lindo mais cedo.
— Uhum.
Seus dedos mergulharam em meu cabelo, apertando os fios curtos e
me puxando para perto, roçando seus lábios nos meus. O gosto doce do seu
batom mesclado a tequila enviou um estímulo direto para o meu pau.
Nathalia suspirou e, em um piscar de olhos, suas pernas envolveram
minha cintura e seus lábios colidiram com os meus.
Correspondi, sem hesitação, sua língua travou uma guerra contra a
minha e o beijo se tornou voraz, punitivo. Minha boca castigava a sua,
como se isso pudesse compensar a preocupação e ansiedade que ela me
deixou o dia inteiro.
Suas costas se chocaram contra a parede e um gemido baixinho
escapou do fundo da sua garganta, o aperto de seus dedos ficou mais
intenso e o meu corpo pressionou o seu, impedindo que houvesse qualquer
distância.
Meu coração martelou forte no peito, aliviado por tê-la em meus
braços após um dia inteiro lidando com aquela incerteza.
Relutante, afastei os lábios dos seus, permitindo que recuperasse o
fôlego, mas não parei de beijá-la nem por um segundo. Minha boca
percorreu sua mandíbula, seguindo o contorno delicado e subindo rumo a
orelha.
Nathalia se esfregou em mim, causando uma fricção deliciosa e
fazendo com que o meu pau inchasse mais, ansiando pelo aperto que a sua
boceta oferecia.
— Cogitei dormir no meu apartamento essa noite — compartilhou,
ofegante, obrigando-me a me afastar para mirar seu rosto. Seus orbes doces
se fixaram nos meus, seu peito se movia acelerado e seus lábios estavam
inchados devido ao beijo violento. — Mas… para o seu azar, estou viciada
em dormir com você.
Um sorriso rasgou meus lábios e me aproximei, mordiscando o seu
queixo.
— Que sorte a minha, diabinha… porque eu não sei mais dormir sem
você nos meus braços — confidenciei contra seus lábios, ouvindo seu
arquejo.
Suas pupilas se expandiram mais e ela me olhou por baixo dos cílios.
Deliciosa pra caralho.
Ela era viciante e impossível de se resistir.
— Quanto você bebeu? — investiguei, descendo a mão livre em seu
corpo, arrancando arrepios dela.
Tão sensível e minha…
— Nem perto do suficiente para ficar bêbada — assegurou, rouca e
entregue.
Sorri, arrastando o nariz em sua pele, aspirando seu cheiro doce e
sentindo cada célula do meu organismo ser atingida por ele.
— Isso é ótimo, diabinha… porque tenho alguns planos para essa noite
— falei, juntando sua boca na minha novamente.
Apertei os olhos, concentrando toda a atenção na bola amarela vindo
em minha direção e empunhei mais firme a raquete, acertando-a com um
forehand potente.
A bola rasgou a quadra e Renato correu para a linha de base,
rebatendo com facilidade. Ele vinha praticando comigo nas últimas
semanas e se eu não soubesse que ficou um tempo sem treinar, não
acreditaria quando me falou que era um tenista “mediano”.
A cada lance, ele rebatia com destreza. Chegava a ser irritante. Meu
lado competitivo atingiu o ápice e a adrenalina consumiu cada célula do
meu corpo.
Esse jogo, em especial, me trazia uma urgência maior pela vitória e
quando o Cristiano, meu instrutor, anunciou o fim da partida e a vitória do
cretino, eu quis bater com a raquete na cabeça dele para arrancar aquele
sorrisinho prepotente dos seus lábios.
Inspirei profundamente, descontando a frustração no meu lábio
inferior.
Eu odiava perder.
— Não seja uma péssima perdedora, diabinha — disse ele,
aproximando-se com um sorrisinho de canto.
Fechei a cara, vendo Cristiano recolher nossas raquetes e sair de
fininho, ao mesmo tempo que Renato envolvia minha cintura e me guiava
para perto. Ele desceu o rosto para o meu ombro descoberto pelo top
esportivo, deixando um beijo demorado ali.
— Isso foi sorte de principiante — resmunguei, ressentida.
Sua risada reverberou em meu corpo e cada célula correspondeu a
vibração, relaxando os músculos tensos e me fazendo amolecer em seus
braços.
Nem mesmo a minha competitividade conseguia me deixar ficar com
raiva dele por muito tempo.
Ergui o rosto, encontrando seus olhos sobre mim e os revirei.
Tínhamos feito uma aposta naquela manhã. Renato queria que eu
começasse a treinar boxe, mas não fiquei tão empolgada com a ideia de
acabar levando um soco no rosto durante os treinos, ainda que ele insistisse
que isso não aconteceria e que era apenas para a minha autodefesa. Como o
seu argumento era muito válido e me deixou sem chance de recusar, recorri
a uma aposta.
Pois bem, eu me ferrei. Aparentemente, o meu namorado vinha
escondendo de mim que poderia ser um atleta profissional, se assim
quisesse.
— Claro que foi — zombou, deixando um beijo demorado em minha
têmpora esquerda e acompanhei de canto de olho, Marcus caminhando em
nossa direção. — Começamos amanhã!
Aquiesci, aceitando a derrota e me afastei dele.
— Bom dia, Marcus — cumprimentei o homem, recebendo em
resposta o seu aceno habitual, breve e silencioso. Diferente do irmão que
era mais aberto e divertido, o segurança de Renato era tão na dele que às
vezes, eu quase não notava a sua presença. Virei-me para encarar meu
namorado e esbocei um sorriso fraco —, vou entrar para falar com o meu
pai. Nos encontramos no restaurante?
Renato concordou, soltando-me e dei as costas para os dois,
apanhando a minha bolsa e indo em direção ao prédio principal do Niké.
O céu estava bem mais claro do que quando chegamos no início da
manhã e vasculhei a bolsa, buscando pelo celular e confirmando que ainda
eram seis e meia. Enviei uma mensagem ao meu pai, avisando que estava
indo encontrá-lo no restaurante principal e olhei por cima dos ombros,
vendo que Renato conversava com outros dois homens que nunca vi antes.
Franzi o cenho, mas acabei não dando tanta atenção.
Eu tinha um dia longo pela frente e não me sobraria tempo para
investigar tudo o que acontecia ao meu redor. Não era uma situação
incomum, o objetivo do clube era reunir empresários de sucesso em um
espaço neutro. Aquela era a base da constituição do Niké, e Aaron dava o
seu melhor para garantir que apenas os melhores e mais influentes
perambulassem pelos seus complexos.
Assim que alcancei a escadaria, meu nome ressoou não muito longe e
girei nos calcanhares, buscando a origem do chamado e acabei encontrando
um casal familiar. A mulher era linda, o cabelo carregava um tom de
castanho-avermelhado, as orbes castanhas cintilavam ao sorrir e pela roupa
que usava, parecia estar indo para a quadra que eu acabei de sair.
— Sra. Brandt — cumprimentei, descendo os três degraus que subi e
me aproximei dela, estendendo a mão para um aperto. — É um prazer revêla.
Nos conhecemos alguns meses atrás no aniversário de Igor, na casa
dos pais do Renato, e a encontrei outra vez em um evento da Isobel, mãe de
Leandro. Ada Brandt era um doce de pessoa, extremamente simpática e
divertida, não é à toa que era uma das apresentadoras mais queridas da
televisão brasileira.
No entanto, eu não poderia dizer a mesma coisa sobre o seu esposo,
Hugo Zimmermann.
— Como você está, querida? — perguntou, exalando gentileza. A
mãe dos Zimmermann era tão preciosa que me fez permanecer no lugar,
ignorando o olhar analítico de seu marido. — Ah, que desatenção da minha
parte… — ela se virou para o homem ao seu lado e afagou seu ombro,
carinhosamente —, querido, esta é a Nathalia… namorada do Renato. —
Apresentou, obrigando-me a encarar o engenheiro ao seu lado.
Zimmermann estreitou os olhos em mim, como se pudesse dissecar
minha alma. Apesar de Ada não ter dito o meu sobrenome, eu sabia que o
homem me reconhecia e sabia de quem eu era filha.
Acompanhei Miguel num evento em Londres ano passado, para
prestarmos uma homenagem póstuma a esposa de Robert Westwood, um
velho amigo e cliente do meu pai, e acabamos esbarrando com Hugo nos
corredores do museu, enquanto Ryle, filho mais velho de Robert, nos
mostrava as últimas pinturas da sua mãe. O pai de Pedro certamente me
reconhecia daquele dia — apesar de não termos interagido.
— Nathalia, este é meu marido, Hugo.
Levou tudo de mim para estender a mão na direção do homem e
aceitar seu aperto. Existia algo no olhar aristocrático que ele me
direcionava, que me fazia querer arrancá-lo do seu rosto com as minhas
unhas. Eu já lidei com todos os tipos de pessoas, dos mais esnobes aos mais
humildes, e Hugo Zimmermann era o primeiro que me fazia sentir tanto
desconforto.
— Namorada de Renato? — indagou, olhando discretamente para a
joia delicada em meu pulso. A pulseira que Igor me deu de presente de
aniversário. — Bem, ao menos um deles decidiu se envolver com alguém
que também carrega sangue azul[46]
.
O choque que me atingiu foi tão violento, que a minha audição ficou
oca por alguns segundos e pisquei repetidamente, tentando confirmar se
realmente escutei aquilo.
Ada empalideceu e lançou um olhar de repreensão para o esposo.
Entreabri os lábios, buscando por uma reposta para rebater aquele
comentário elitista, mas não fui capaz.
— Desculpa?! — Soltei, ainda em choque. — Isso realmente faz
alguma diferença?
Minha tentativa de fazer com que retirasse aquele comentário foi
inútil, Hugo não parecia ter se dado conta do quanto tinha sido um babaca.
Quem em pleno século 21, ainda liga para essa besteira?
Zimmermann ergueu o queixo e esboçou um sorriso soberbo.
— Bem, tenho certeza de que a sua família entende a necessidade de
manter seus sucessores em relações de sucesso — murmurou, como se
conhecesse o caráter dos meus pais e avós. — Afinal, Renato é neto de
Vicente, e o barão não permitiria que um dos seus únicos herdeiros se
envolvesse com a ralé — disse, arrogante. — Já basta Amália ter dado o
desgosto de se envolver com um policial.
Sucessores em relações benéficas. Barão.
Em que século eu estou?
Olhei para Ada, numa tentativa de confirmar se ele realmente falou
aquilo.
Pisquei, atônita.
— Mãe? — A voz de Pedro atrás de mim me tirou da letargia e me
virei, porque ele era a única coisa que parecia menos irracional na minha
frente.
O engenheiro era tão estável, que eu me agarrei nele como uma
âncora para confirmar se ainda estávamos nos dias atuais ou se, em algum
momento, acabei atravessando um portal no meio do jardim do Niké que
me levou direto ao século passado.
Encarei-o, vendo seu olhar frio atravessar o meu e uma pequena ruga
surgir em sua testa. Consegui contar até três, antes do engenheiro se virar
para o pai e com um olhar assassino, questionar:
— Que merda você falou? — rosnou Pedro e virei para o seu pai,
meio robótica.
Ada parecia prestes a desmaiar. Hugo fechou a cara e estampando
uma expressão de profundo desprezo, ele retrucou:
— Fale comigo com respeito, garoto! Não esqueça que é graças a
mim que você não morreu de fome naquele buraco que te tiramos…
— Hugo! — Ada esganiçou, olhando-o com lágrimas nos olhos e, por
instinto, afundei as unhas no antebraço de Pedro, impedindo que avançasse
em seu pai. Não porque queria proteger o desgraçado, mas por causa da Sra.
Brandt que parecia profundamente abalada. — Nathalia, me perdoa, de
verdade! — suplicou, deixando uma lágrima solitária rolar e envergonhada,
arrastou o esposo para longe de nós.
Forcei minhas pálpebras a se fecharem e as apertei, abrindo-as
novamente e checando se aquilo havia sido um sonho muito louco, no
entanto, minhas unhas enterradas na pele do engenheiro que tremia de ódio,
deixaram evidente que não foi um sonho esquisito.
Hugo Zimmermann conseguia ser mais desprezível do que eu pensei.
Respirei fundo, soltando Pedro e o olhei de relance.
— Ele sempre foi assim? — investiguei, em um sussurro, temendo
que se falasse mais alto fizesse com que despertasse a sua fúria em cima de
mim.
O engenheiro deixou que seus olhos recaíssem nos meus e acenou.
— Sim.
— Sinto muito.
— Não sinta. Ele sempre deixou claro que só nos adotou, porque
queria manter o casamento com Ada — disse, com uma nota de
ressentimento —, e que nós manchamos a linhagem do seu sobrenome de
merda. — Ele esfregou a mão livre em sua nuca, como se isso pudesse
aliviar sua ira.
— Sua mãe não merecia isso.
— Não, ela não merecia — confirmou, espreitando os olhos em mim
—, cuide-se, Gama.
Meneei a cabeça, esboçando um meio sorriso e dei um passo para
trás.
— Tenha um bom dia, Pedro.
Ele acenou, me dando as costas e entrando na trilha que conduzia
para as quadras esportivas do clube. Acompanhei-o até que sumisse do meu
campo de visão e deslizei os olhos na direção oposta, encontrando Ada e
Hugo próximos da fonte de mármore grego no centro do enorme jardim.
Não precisava estar perto para saber que estavam discutindo, a Sra. Brandt
parecia prestes a estapear o marido, que não se importava em escutar nada
do que ela dizia.
Virei-me ao sentir alguém se aproximar e encontrei o meu pai com
um vinco na testa, olhando de mim para o ponto onde o casal discutia.
— O que houve, fadinha?
Suspirei, balançando a cabeça e girei nos calcanhares, aproximandome do lance de escadas e entrelaçando o braço no seu.
— Se eu te contar o que acabou de acontecer… você não vai acreditar,
papi.
Uma hora depois, estava em casa — e bem longe da situação ridícula
que o patriarca dos Zimmermann criou.
— Aperta mais, Nath — pediu Matheus, ansioso.
Subi os olhos para o seu rostinho lindo, reprimindo a vontade de
apertar suas bochechas. Fiquei boba com o seu pedido para que o ajudasse
com a fantasia para o dia do super-herói no colégio, e desde que cheguei do
clube, estava trancada com ele em seu quarto, porque o pequeno vetou a
entrada de outras pessoas, insistindo que deveria ser uma surpresa.
— Calma aí, apressadinho — zombei, terminando de dar um nó em
sua gravata e a ajeitando na gola da sua camisa branca.
Ele estava dedicado a usar todas as peças do terno feito sob medida, e
se eu pensava que era impossível que Matheus ficasse mais fofo, a imagem
diante de mim comprovava que errei naquela conclusão.
— Acho que você vai sentir calor — observei, preocupada.
Ele sorriu, travesso.
— Super-heróis não sentem calor, bobinha! — Ele bateu com o
indicador na pontinha do meu nariz, arrancando-me um sorriso bobo.
— Certo, certo… pequeno herói, como eu pude me esquecer dos seus
superpoderes? — Bati a mão em minha testa, ouvindo a sua risadinha.
Levantei-me, dando uma última olhada no pequeno e um sorriso
involuntário rasgou meus lábios. O terno delineava seu corpinho e ele
parecia uma versão mirim de um adulto, alguns enchimentos que roubou da
sua fantasia de Hulk marcavam os músculos sob o tecido, deixando-o a
coisa mais adorável desse mundo.
Matheus trouxe a escova de cabelo, indicando que eu terminasse a
sua caracterização, e dei o meu melhor para deixar os fios compridos
minimamente parecidos com o seu herói de inspiração.
— Você é linda — elogiou, de repente, enquanto eu estava agachada
na sua frente.
— Você também é lindo, meu amor — falei, sincera, vendo seu
narizinho enrugar e suas bochechas rasgarem em um sorriso largo, fazendo
com que a covinha aparecesse em seu queixo. — Acho que terminamos! —
Suspirei, dando uma última conferida em seu visual.
— Deixa eu ver!
Tirei-o de cima da cama, o colocando no chão e acompanhei o
pequeno correr para perto do espelho. Matheus encarou fixamente seu
reflexo por cerca de cinco segundos, antes de virar para um lado e para o
outro; arrastar os dedos pelo cabelo e forçar os “músculos” para confirmar
se estavam idênticos aos do super-herói que escolheu. Ao terminar de
checar o resultado, um sorriso maior cobriu seu rostinho lindo, fazendo as
íris esverdeadas se acenderem como fogos de artifício.
— Igualzinho!
Dei risada, concordando.
— Você gostou?
— SIM! — vibrou, correndo em minha direção e abraçando as
minhas pernas. — Obrigado, Nath!
Meu coração golpeou no meu peito, ameaçando escapar da caixa
torácica para se entregar de boa vontade nas mãos daquela criança.
— De nada, meu amor.
Inclinei o tronco, deixando um beijo em sua testa. Ele aproveitou para
envolver meus ombros com seus bracinhos e me dar um abraço apertado,
juntamente com um beijo estalado na minha bochecha. Outro suspiro me
escapou e o apertei contra mim, ansiando nunca o soltar. No entanto, a
batida na porta me trouxe de volta a realidade e me afastei.
— Nath, meu pai disse que vamos nos atrasar — avisou Igor e
confirmei que estávamos saindo.
Matheus correu para a poltrona e apanhou sua mochila — que eu
aproveitei para colocar uma troca de roupas para que não ficasse o dia
inteiro com o terno. A previsão do tempo marcava que aquela tarde seria
uma das mais quentes do ano, e não queria que o pequeno ficasse
desconfortável.
Assim que alcançamos as escadas, encontrei Renato de costas para
nós guardando algo na mochila de Igor e quando escutou nossa
aproximação, ele se virou e passou os olhos por mim, esboçando um sorriso
apaixonado, antes de desviar a atenção para o seu filho.
— Tcharam! — Matheus ergueu as mãos, parando no meio da escada
e dando uma voltinha para que o pai e o irmão vissem a sua fantasia
completa.
Os dois franziram o cenho de forma idêntica. Olhá-los era como ver a
versão infantil e adulta da mesma pessoa, com pouquíssimas diferenças.
— Pensei que fosse dia do super-herói, Mat — disse Igor, confuso.
Matheus fechou a cara, emburrado por não terem reconhecido a sua
fantasia.
— Eu sou um super-herói!
O mais velho coçou a cabeça, ponderando sobre como diria ao irmão
que o traje não se parecia com nenhum herói conhecido dos quadrinhos.
— Fala pra ele, Nath! — pediu, virando-se e me lançando aquele
olhar pidão que era impossível de resistir.
Suspirei, amolecida, e me virei para os outros dois, entrando em
defesa daquele bebê lindo.
— Sim, ele é um super-herói muito especial.
Renato arqueou a sobrancelha, cruzando os braços e observando o
filho com um meio sorriso divertido.
— Claro que você é, pequeno Hulk — confirmou, arrancando um
sorriso do caçula —, mas pode nos contar o nome dele?
Engoli uma risada, percebendo que eles realmente não conseguiram
pescar a referência do traje da criança.
Matheus olhou para mim por cima dos ombros, sorrindo arteiro e
pisquei, incentivando que compartilhasse a sua inspiração para aquele dia
do herói.
— Papai — Matheus disse, ingênuo —, é uma fantasia igual a sua
papai!
Meus olhos acompanharam as emoções que perpassaram o rosto do
pai dos garotos, indo da confusão genuína e passando para o
reconhecimento. O terno que Matheus usava era uma réplica do que Renato
usava no dia em que nos conhecemos. Como o pequeno pediu minha ajuda
algumas semanas atrás, tive tempo de providenciar a peça sob medida e
mantê-la escondida no meu apartamento até o dia que ele fosse usar.
Renato engoliu o nó em sua garganta e seus olhos marejaram,
fazendo com que eu sentisse as minhas próprias lágrimas se acumularem.
Matheus pulou para os braços do pai, contente por ele ter entendido a
referência para sua fantasia de super-herói e meu peito ficou quentinho ao
ver o abraço apertado que trocaram.
Um sorriso se desenhou em meus lábios e desci os degraus restantes,
sentindo-me sortuda por poder assistir de perto aquela cena preciosa. Sabia
como Renato se sentia culpado pelos garotos não terem uma presença
materna em suas vidas, isso fazia com que se esforçasse o dobro para dar
tudo o que os meninos precisavam. Ele vivia por Igor e Matheus, e eu
ficava feliz em saber que mesmo tão pequenino, o caçula reconhecia o que
o pai fazia pelos dois.
— Você gostou, papai? — perguntou o tagarela, afastando-se do
abraço e segurando o rosto de Renato com as duas mãos, apertando suas
bochechas e se aproximou, roçando seus narizes.
Meu namorado respondeu ao filho enchendo-o de cócegas e
arrancando uma gargalhada alta daquele pedacinho de gente.
Desviei o olhar para Igor e me aproximei, calmamente, alinhando
alguns fios bagunçados em seu cabelo e atraindo a sua atenção.
— Como você está? — investiguei, lembrando-me que ele tinha
pedido pela minha companhia durante o jogo na noite passada. — Soube
que o Uníon foi eliminado.
Ele torceu os lábios em uma careta, soltando um suspiro frustrado.
— Pro Borussia, acredita?! — Seus olhos denunciavam a sua
indignação e acenei, compreendendo a chateação. — Estávamos tão perto
das quartas!
— Bem…, mas ainda terão outros campeonatos nessa temporada, não
é?
Igor aquiesceu, aproximando-se discretamente e capturando minha
mão com uma sutileza invejável. Eu já havia percebido esse movimento
outras vezes e ficava fascinada em acompanhá-lo. Assim como o pai, ele
parecia ter necessidade de me tocar a cada segundo, e aproveitava as nossas
conversas para se aproximar bem devagar, como se isso impedisse que eu
rejeitasse o seu toque. Meu peito apertava só de pensar no que a sua
genitora poderia ter dito para que ele se sentisse tão receoso com um
simples entrelaçar de mãos.
Enrosquei nossos dedos, tomando a iniciativa e me agachei na sua
frente para ajustar a gola da sua camisa do uniforme. Seu olhar acompanhou
o meu pulso e um esboço de sorriso surgiu em seus lábios ao ver que eu
usava a pulseira que me deu de presente.
— Você não precisa usar sempre — disse, baixinho.
Encarei-o, sentindo um vinco surgir em minha testa.
— A pulseira — esclareceu, tímido, balançando os ombros para
demonstrar uma falsa indiferença.
— Eu gosto dela.
— Gosta?
Sorri, aquiescendo.
— É a minha favorita! — Olhei-o, sincera.
Não havia motivo para enganá-lo sobre aquilo. Amava ganhar
presentes com significados e ganhei muitos nesse último aniversário. O
colar que Renato me deu não saía do meu pescoço para nada, eu me sentia
nua sem ele. O mesmo acontecia com a pulseira que Igor me deu, a palavra
“Lumos” em referência ao seu amor por Harry Potter, sempre me arrancava
um sorriso e aquecia o meu coração.
Sem dúvidas, eles três eram o feitiço mágico que iluminou a minha
vida e me fez enxergar o mundo ao meu redor com muito mais cor do que
eu via antes.
Três meses atrás, a minha vida girava em torno do escritório e os
meus compromissos eram limitados à minha necessidade de provar ao
mundo o quanto eu era boa no que fazia.
Mas agora? Eu preferia mil vezes voltar para casa mais cedo e passar
algumas horas com os meninos, do que revisando operações e adiantando
tarefas. A presença deles vinha me fazendo perceber que os alertas dos
meus pais e dos meus amigos não eram só implicância, existia uma vida
para que eu vivesse fora do escritório, e eu estava deixando aquela parte de
lado pelo quê? Por conta da opinião de outras pessoas sobre os meus
méritos? Quando eu estava perto deles, isso soava tão irrelevante!
— É? — Igor questionou, desconfiado.
Sorri, arrastando os dedos em sua bochecha macia e acenando em
resposta.
— Sim. Você não se importa se eu usar todos os dias, né? — Pisquei,
mirando as íris esverdeadas.
— Não — sussurrou, incerto.
Meus dedos mergulharam em seu cabelo e o trouxe para perto,
deixando um beijo demorado em sua bochecha e soltei uma risada baixinha
ao ver a marca do meu batom em sua pele.
— Ops, desculpa! — cantarolei, vendo-o olhar seu reflexo no espelho
atrás de mim e seus lábios se repuxarem em um sorriso torto, enquanto o
meu polegar limpava os resquícios da tinta vermelha. — Posso ganhar um
abraço de bom dia?
Igor me devolveu a sua atenção, seus olhos mergulharam tão
profundamente nos meus, que por um segundo cogitei que estivessem
vasculhando a minha alma.
Mais uma coisa que ele tem em comum com o pai!
Ele não respondeu, mas de um jeito fofo e desengonçado, seus braços
me envolveram em um abraço apertado.
Ignorei os olhares sobre mim, enquanto atravessava o corredor que
dividia a área operacional da gestora, das salas de administradores de
fundos e diretoria.
O desconforto em meus ombros me acompanhou durante o trajeto.
A última vez em que me senti confortável na gestora da minha
família, eu tinha por volta de catorze anos. Fazia muito tempo.
Não recordava em que momento todos deixaram de me ver como a
garota com um futuro promissor, e passaram a me enxergar como uma
mimada que estava ganhando as chaves de um império de mão-beijada,
tampouco o que eu fiz para que a ideia que tinham sobre mim mudasse
tanto. Porém, lembrava perfeitamente de como odiava as visitas esporádicas
à Alpha.
Ninguém falava comigo, mas eu conseguia escutar os cochichos e
olhares tortos. Eles estavam por todos os lugares, podia senti-los perfurando
a minha pele e me fazendo querer cavar um buraco no chão para fugir o
mais rápido possível.
A Alpha era o amor da minha vida e a minha maior desilusão.
Nada do que eu fizesse era o suficiente para que as pessoas ali me
vissem sob a lupa dos meus méritos — ao invés do que eu consegui por ser
filha de Miguel.
Era… uma luta constante, e eu sempre perdia.
Mas eu não permitia que vissem o quanto me afetavam. Nunca.
Qualquer sinal de vulnerabilidade naquele lugar, era visto como uma
fraqueza e um atestado de incompetência que eu nunca entregaria nas mãos
deles.
Por isso, enquanto caminhava pelo corredor longo e envidraçado,
mantive o queixo erguido e a melhor expressão de arrogância que eu podia
sustentar. Anos de prática me levaram à perfeição e, às vezes, conseguia
enganar até a mim. Por um curto tempo, mas o suficiente para sobreviver
durante a minha visita.
— Nathalia? — Meus pés estacaram no meio do trajeto ao escutar o
chamado surpreso, e não precisei me virar para reconhecer a voz da minha
madrinha.
Internamente, estapeei meu próprio rosto por não ter feito o caminho
mais longo. Havia me esquecido que a sala de Jessica ficava por ali, e
minha tentativa de passar ilesa de seus sermões sobre como estava perdendo
tempo trabalhando em outros lugares que não eram a Alpha, saiu pela
culatra. Seria impossível fugir da minha madrinha.
Jessica era a determinação em pessoa, e tinha um talento invejável de
entrar na cabeça dos outros e convencê-los de fazer aquilo que ela queria.
Na última vez em que dei atenção para os seus discursos, acabei
acreditando cegamente que todos reconheceriam os meus esforços. O
resultado daquela tentativa, foi a minha mente me aterrorizando com uma
montagem minha dançando sensualmente para o meu pai e o despertar do
monstro da sabotagem. Desde então, eu fugia dela como se dependesse
disso para viver mais um dia.
— Jessica! — Girei nos calcanhares, dando o meu melhor para não
estampar que estava prestes a gritar que o escritório pegou fogo, só para
conseguir correr para longe dela. — Como você está?
A mulher espreitou os olhos castanhos, seu cabelo moldado em um
coque elegante e a maquiagem suave, ressaltavam a sua pele marromescura, os lábios grossos tingidos por um tom de rosa queimado se
ergueram em um sorriso astuto.
— É impressão minha ou estava tentando passar despercebida por
mim?
Eu não tinha o hábito de mentir, mas não significava que eu não sabia
fazer aquilo com naturalidade ao ponto de duvidar da minha própria
palavra. Era um talento nato, principalmente porque o blefe era um dos
nossos principais recursos dentro do mercado. Então, não foi tão difícil
estampar a minha melhor expressão de inocência e levar a mão ao peito,
dando um ar dramático para a minha reação.
— Por que você sempre pensa o pior de mim, Jessie?
Jessica rolou os olhos, dispensando meu olhar de cachorro
abandonado.
— Me poupe do teatro! Pensa que não sei de quem você é filha? —
indagou, dando um passo para perto e esticou a mão em minha direção,
observando-me com um escrutínio irritante. — Soube que está namorando.
— É. — Suspirei, baixinho, olhando de relance para dois operadores
que passaram ao nosso lado, indo para o corredor oposto. — Como vai o
namoro com o Westwood?
Ela fez uma careta, descontente.
— Foi um encontro, apenas. Aquele homem ainda vive com o
fantasma da Abigail em suas costas — disse, ácida.
— Bom, ela era a mãe dos filhos dele e uma namorada da
adolescência.
— Sim, e morreu há anos!
Pigarreei, olhando-a com repreensão.
— Dois anos, Jessica! — falei, incomodada com a sua
insensibilidade. — Eles foram casados por mais de trinta anos, não se
supera isso em pouco tempo.
Minha madrinha deu de ombros, serena.
Jessica era uma das melhores do mercado, sua reputação a precedia e
todos os homens do mercado abaixavam a cabeça quando ela entrava em
uma sala. Sua voz era uma autoridade, mas, às vezes se esquecia de que a
vida afetiva da maioria das pessoas não era tão prática quanto as decisões
que ela tomava no dia a dia na gestora, sob a filosofia do time is money[47]
.
— De toda forma, isso não daria certo — disse, tranquila. — Então,
ao que devemos a sua visita? Não me diga que, finalmente, desistiu dessa
ideia idiota de ir estagiar com o Benjamin?
Fiz uma careta, percebendo que o meu cérebro mal se importava mais
com o resultado do estágio. Eu deveria estar pensando nisso
constantemente, não? Havia sido a minha maior obsessão por todos esses
anos!
— O plano seguirá como definimos, Jessie — falei, sem convencer
nem a mim, quem dirá ela.
— Claro, claro — zombou, apertando minha bochecha como se eu
tivesse cinco anos outra vez. — Você veio ver o seu pai?
— Sim, nós marcamos de almoçar no La Colombiana.
Ela me olhou com pesar, e não precisou dizer em voz alta para que eu
soubesse que minha visita foi em vão. Como se tivesse sido convocado pelo
poder da mente, meu pai surgiu ao meu lado com a sua expressão típica de
desculpas.
— Crise em que continente? — indaguei, olhando-o de relance.
— Desculpe, fadinha… podemos remarcar? — pediu, culpado. —
Preciso ir com a Jessica para Moscou, mas voltamos amanhã à noite.
Franzi o cenho, virando-me para a minha madrinha e notando a
tensão em seu ombro, alternei de volta para o meu pai e reconheci a
preocupação em suas íris.
— O que houve em Moscou?
Papai sorriu, mas não era um sorriso comum. Era o que ele
costumava usar quando algo estava dando muito errado, e isso significava
que a princesa seria trancafiada em sua torre de marfim e a segurança seria
sufocante.
— Nada que precise se preocupar — assegurou, afagando meu rosto
e me guiou para perto, deixando um beijo demorado em meu cabelo. —
Antônio e Caio estão na cidade, aproveite para passar o dia com eles, assim
a viagem não será perdida.
Aquiesci, sem dar atenção para sua sugestão, existia outra coisa me
incomodando.
— Pai? — chamei, vendo dois dos seus seguranças se aproximarem
de onde estávamos. As íris verdes vieram para o meu rosto e engoli em
seco, ignorando o pressentimento ruim que crescia em meu peito. — Está
tudo bem mesmo?
Jessie pigarreou e olhei enfezada em sua direção, recebendo uma
revirada de olhos e um aviso de que esperaria pelo meu pai na garagem.
Assim que ela saiu, voltei a encará-lo e Miguel parecia um pouco
mais relaxado, no entanto, isso não me trouxe qualquer alívio. Eu era uma
boa mentirosa, porque aprendi com o melhor.
— Está tudo bem, minha menina — prometeu, aninhando a mão em
meu rosto e contornando a maçã com seu polegar —, só temos um
problema com um cliente e ele exigiu a nossa presença.
Isso era ainda mais suspeito. Ninguém exigia a presença do meu pai,
ao ponto de fazê-lo largar tudo para ir ao encontro.
Apenas eu e a minha mãe conseguíamos esse feito.
— A última vez que você foi para Moscou… — lembrei-o, receosa.
Eu não era inocente, sabia que Miguel precisou ultrapassar algumas
linhas para se tornar um magnata do setor financeiro, mas a ideia dele
colocar a sua segurança em risco por qualquer motivo, me atormentava.
— Não vai acontecer nada. Não se preocupe. Papai sempre cuida de
tudo, esqueceu? — Sorriu ternamente, e deixou um beijo em minha testa.
Isso normalmente me confortava, mas não teve o efeito esperado naquele
momento.
— Tudo bem…, mas leve Ethan com você — pedi, em um sussurro
estrangulado.
— Claro. Faremos escala em Berlin e ele nos encontrará lá — disse, e
ignorei os olhares curiosos em nossa direção. Meus braços envolveram o
corpo de Miguel e o abracei o mais apertado que eu conseguia, sentindo as
lágrimas se acumularem em meus olhos. — Fadinha, está tudo bem. Não se
preocupe.
— Você disse que sempre devo me preocupar, quando dizem o oposto
— falei, baixinho, escutando a sua risada rouca e os seus braços me
apertaram.
— Sim! Porque normalmente estão mentindo…, mas eu nunca minto
para você, lembra? — Afastei-me, fitando seu rosto e encontrando a
sinceridade habitual em suas íris. — Quando eu menti para você?
Suspirei, angustiada.
Meu pai não mentia, mas não se opunha a esconder várias coisas para
que eu não me preocupasse. Miguel sabia explorar brechas como ninguém.
— Nunca.
— Pois bem, então, não se preocupe.
Aquiesci, ainda incerta.
— Tudo bem…, mas me mande mensagem a cada hora com o nosso
código secreto — ordenei, devolvendo a distância entre nós e erguendo um
dedo em riste, mandona.
Como a nossa família tinha muitos recursos e influência, sempre
cogitamos a possibilidade de lidar com golpes ou sequestros. Era mais
comum entre o nosso círculo social do que eu gostaria de admitir. Por isso,
cada um de nós tinha uma palavra de segurança que devia ser usada em
situações incomuns, assim saberíamos se estava realmente tudo bem com o
outro.
— E eu quero ser informada da sua localização em tempo real. —
Meu olhar se voltou para o chefe de segurança do meu pai, que era
praticamente uma parte do corpo de Miguel, já que estava sempre ao seu
lado. — Não me importo se ele estará em uma reunião com o presidente da
Rússia, ou se divertindo em um puteiro em São Petersburgo!
Isso arrancou uma gargalhada do meu pai e ele balançou a cabeça,
olhando-me como se eu fosse maluca.
— Estou falando sério, Miguel de Bazán Gama!
Ele sorriu, acenando e afundou os dedos em meu cabelo, deixando os
lábios tocarem minha testa com delicadeza.
— Como quiser, fadinha.
Respondi à mensagem de Leandro, confirmando que iria ao seu
apartamento após a minha aula. Ele pretendia dar uma social para os seus
amigos, já que a sua prima, Maria Júlia, estava na cidade com o noivo,
Paulo Marchesim.
Ignorei a sua insistência para que eu faltasse no encontro com o Prof.
Becker naquela noite e bloqueei a tela, encarando os dois homens que
discutiam na minha frente por conta da maior besteira do mundo.
— Os dois estão errados — interrompi, atraindo a atenção deles e
recebendo olhares prepotentes. — A melhor alternativa para ter um bom
hedge na carteira, é investindo nos quatro ativos. Não tem necessidade de
escolher só um, o mercado está relativamente tranquilo… dá para brincar
um pouco.
Bebi um gole do vinho em minha taça.
— Acho arriscado jogar parte do portfólio para o Urânio — insistiu
Caio, cravando as orbes azuis cristalinas nas minhas —, eu me fodi na
última vez que tentei pensar fora da caixa.
Ri baixinho.
— Todos se foderam, Caio, ninguém imaginou que os sauditas iam
comprar aquela briga por quase um mês! — tranquilizei, vendo de relance
Antônio sorrir malicioso para uma loira que passou ao lado da nossa mesa.
Revirei os olhos.
— O Antônio não teve prejuízo — resmungou Caio, atraindo a
atenção do cafajeste que eu tinha como melhor amigo.
Ele abriu um sorriso arrogante, jogando o braço sobre o encosto da
minha cadeira e provocou o nosso amigo:
— Isso é porque eu sou imbatível, Meneguelli!
— Ou talvez seja porque está comendo a filha do seu maior
investimento, e ganhou informação privilegiada — retrucou o moreno,
ressentido.
— Ela tem um irmão, fique à vontade — ofereceu Antônio e bufei,
olhando para os dois com repreensão.
— Ah não… me poupem desse assunto! — reclamei, enojada.
Antônio apertou os olhos em meu rosto, encarando-me com um
cinismo explícito.
— Claro, como se você não soubesse que nós transamos, né?!
— Como se acreditássemos que ela ainda é virgem… — Caio entrou
no embalo e olhei-o, enfezada.
Por que ainda tentava defendê-lo das provocações do traste ao meu
lado? Os dois se mereciam.
Rolei os olhos, mandando-os para à merda e quando nossos pratos
chegaram, eles passaram o almoço inteiro me atualizando sobre todas as
atrocidades que aconteciam em suas vidas sexuais. Eu sairia desse
restaurante com cinquenta traumas diferentes, mas não podia negar que
sentia falta de estar perto dos dois o tempo todo.
Se o mundo fosse um lugar justo, eles morariam mais perto — e eu
não viveria com tanta saudade, a ponto de me submeter a ouvir os absurdos
que falavam.
No fim do almoço, decidimos ir andando para a Alpha, assim
aproveitaríamos o dia ensolarado.
Como optamos pela caminhada, isso alterou o trajeto habitual e
acabamos entrando em uma esquina que ficava na rua atrás do prédio da
Alpha. Era uma parte adorável do bairro, tomada por bistrôs de culinária
europeia, prédios antigos e calçadas arborizadas. A maioria dos restaurantes
precisavam de reservas, o que reduzia bastante a quantidade de pessoas
perambulando por ali, principalmente, porque era uma via fechada para a
passagem de carros.
— Na verdade, Aaron roubou aquela partida! — Caio acusou,
arrancando uma gargalhada alta de Antônio e virei o rosto para ele —, todos
sabem que ele é um péssimo perdedor.
— Ou será que você é um péssimo perdedor, pequeno Caio? —
implicou meu amigo, usando o apelido que Meneguelli odiava.
Caio tinha a minha idade, estudamos juntos a vida toda, e o seu pai
era diretor de operações da Alpha. Apesar de ser apenas dois anos mais
velho, Antônio adorava implicar por sermos mais novos que ele.
Especialmente, com o rapaz ao meu lado, que vivia caindo em suas
provocações no trabalho.
Juntos, eles pareciam ter cinco e sete anos de novo.
Antônio e Caio eram exemplos constantes de como o fato de ter um
pau entre as pernas os isentava dos julgamentos. Os dois eram filhos de
pessoas que participaram da fundação da gestora, cresceram no mesmo
círculo que o meu, tiveram a mesma criação e usufruíam dos privilégios que
a influência de Miguel concedia, mas apenas uma pessoa era subestimada…
e era eu.
Nem quando Caio se assumiu gay, as pessoas questionaram os seus
méritos. Todo o problema girava em torno de mim. Ninguém se preocupava
com o nepotismo no mercado, desde que não beneficiasse uma mulher.
— Pirralha — Caio chamou, mas a minha atenção foi capturada por
um rosto familiar dentro de um bistrô italiano do outro lado da rua de
paralelepípedo.
Eu o reconheceria de longe, era simplesmente impossível vislumbrar
a silhueta de Renato e não saber que pertencia a ele. No entanto, a mulher
ao seu lado era uma grande incógnita para mim, pois estava de costas para o
enorme vidro que cobria a fachada da cantina italiana.
Hesitei no meio da calçada, ignorando que os outros dois
continuaram caminhando e espreitei os olhos na mesa com uma pulga atrás
da orelha.
Meu namorado desviou o olhar para o celular e digitou algo, e quase
de imediato, o aparelho em minha mão vibrou.
Renato:
Estou por perto.
Posso passar para te pegar?
Ergui o olhar para o restaurante, tentando reconhecer quem estava
almoçando com ele, mas foi em vão. A mulher estava mais interessada em
conversar com o garçom, gesticulando de forma excessiva e espalhafatosa.
A voz em minha cabeça ameaçou soltar um comentário venenoso,
mas ela se calou quando cerrei os olhos no anel enorme e oval no anelar
direito da companheira do meu namorado. Eu reconhecia aquela peça de
longe, assim como sabia muito bem quem era a sua dona.
Celine.
Que diabos o Renato está fazendo almoçando com a Celine?
Desbloqueei o celular, abrindo a conversa e digitando uma mensagem
rápida.
Nathalia:
Oi, não precisa.
Jessica viajou e dispensou o Caique, ele vai
me deixar no escritório antes de ir para casa.
Bem, não era uma mentira. O rapaz realmente foi designado por
Miguel a me deixar no escritório antes de ir aproveitar sua folga merecida,
mas isso era irrelevante, eu poderia aceitar a sua carona, se não estivesse
perturbada com aquele evento incomum.
Nunca vi o Renato sequer conversar com a Celine por mais que dois
minutos! Desde quando se tornaram íntimos para almoçarem juntos do
outro lado da cidade?
— Bebê? — Antônio surgiu ao meu lado, obrigando-me a desviar a
atenção do restaurante e me virei para ele, piscando, encucada. — Algum
problema?
Neguei, forçando um sorriso.
— Não, só respondendo uma mensagem. Se importa se eu fizer uma
ligação? — questionei, vendo-o jogar o braço sobre os meus ombros e me
guiar pela rua, enquanto eu discava o número da secretária de Renato.
Ananda atendeu quase instantaneamente.
— Oi, chefinha! No que posso ajudar?
Em dias comuns, o apelido me arrancava um sorriso, mas naquele
momento a minha paranoia não me deixou me concentrar nele.
— Oi… Renato está no escritório?
Ela se calou. O que era suspeito, Ananda nunca ficava quieta por
mais que dois segundos.
— Hã… sim, ele está em uma reunião virtual. Você precisa de algo?
Paralisei, engolindo a sua resposta com um gosto amargo, porque
sabia que era mentira. E antes que pudesse ponderar o motivo disso, o meu
cérebro se concentrou apenas no fato mais explícito: a mentira.
Eu odiava que mentissem para mim.
O sangue esquentou em minhas veias e afundei as unhas na palma da
mão livre, sentindo a raiva começar a consumir o meu sistema. Minha
vontade era dar meia volta e ir tirar satisfação com Renato ali mesmo, no
meio do restaurante. No entanto, meu lado rancoroso sobressaiu a fúria e
inspirei o ar com força, acalmando o meu monstro interior.
— Não, não… só liguei para você confirmar a minha reunião às
catorze — desconversei, ouvindo-a digitar furiosamente no seu teclado.
— Na verdade, o Rui ligou mais cedo e pediu para remarcarmos
para a semana que vem… a filha dele está doente, e a esposa viajou para a
semana da moda.
— Tudo bem. Obrigada.
Ananda cantarolou em resposta, despedindo-se e senti Antônio
esquadrinhar meu rosto, desconfiado. Ele me conhecia desde pequena e
sabia quando havia alguma coisa errada comigo.
— Algo errado?
Ergui o olhar para o seu rosto, apertando a mandíbula para conter a
vontade de gritar com alguém e balancei a cabeça.
— Eu espero que não — falei, entredentes.
Quando cheguei no escritório, mal tive tempo de passar pelas portas
de vidro antes de ser enquadrado por uma ocorrência urgente com um
cliente.
Os únicos casos que atendia sem agendamento, eram os de
gerenciamento de crise que precisavam de uma ação rápida e efetiva da
minha parte para conter os danos. Quando Moacir, um dos meus primeiros
clientes no Brasil, me ligou e compartilhou que estava sendo chantageado
por um dos seus sócios e poderia perder a sua posição no conselho da
multinacional alimentícia, precisei abandonar o almoço com Celine e correr
para a firma.
Por quase sete horas, fiquei trancado na sala de conferência com
diversas equipes internas da RCI tentando encontrar a melhor opção para
conter o problema.
Sequer tive tempo de dar um passo para fora da sala antes de ser
arrastado por Ananda para o fim do corredor.
Franzi o cenho, estranhando os seus olhos arregalados e o rosto
empalidecido.
— O que houve? — questionei, preocupado.
— Acho que fiz besteira — disse em um sussurro estrangulado,
olhando por cima dos ombros como se uma assombração estivesse vindo
buscá-la.
— Como assim?
— Nathalia ligou mais cedo, durante o almoço, e me perguntou sobre
você — esclareceu, voltando o olhar para o meu rosto —, eu acabei dizendo
que você estava em reunião…, mas só depois que eu me toquei que ela
nunca perguntou sobre a sua localização.
Seu aperto em meu braço ficou mais forte e um vinco se instalou em
minha testa, ainda perdido no motivo para que ela estivesse tão nervosa
com aquilo. Eu estava, de fato, em uma reunião com a Celine.
— O problema é que, depois que a Nathalia desligou, eu estranhei e
fui atrás de descobrir onde ela estava. E você sabe que as secretárias se
conhecem e conversam entre si, né? — sussurrou. — Então, eu consegui
falar com a Raabe que é a secretária do Antônio Sturzenecker e ela disse
que os dois não foram almoçar no La Colombiana, mas em um restaurante
que fica na mesma rua que você estava com a Celine.
O motivo do seu nervosismo ainda me parecia uma incógnita.
— O que exatamente você disse para a Nathalia? — questionei,
sentindo os músculos enrijecerem ao perceber o pânico perpassar em suas
íris.
Ananda torceu o rosto em uma careta.
— Que você estava em uma reunião virtual.
Porra.
Pincei a ponte do nariz, apertando-a para tentar alinhar os
pensamentos e refletir sobre o tamanho do problema em que a Ananda me
colocou.
— Por que você mentiu?
Minha secretária abriu a boca para responder, mas não teve tempo
hábil para isso. Meus olhos se concentraram na silhueta que atravessava as
portas de vidro no andar inferior com uma expressão assassina.
Nathalia odiava mentiras. Se ela havia perguntado para a Ananda
onde eu estava, era porque tinha me visto com a Celine no restaurante e
diante da mentira, eu podia pensar em uma dúzia de situações que o seu
cérebro poderia ter deduzido para justificar o meu encontro incomum com a
nossa sócia sênior.
Como se estivesse ciente da minha atenção no parapeito, Nathalia
ergueu o rosto e semicerrou os olhos nos meus. Respirei fundo, vendo-a
marchar pelo escritório como se estivesse pronta para ir à guerra e eu fosse
o seu maior oponente. E naquele momento, graças a mentira da minha
secretária, seria algo parecido.
— Eu não pensei direito! Pensei que se dissesse outra coisa, ela ia
pedir para falar com você.
Aquiesci, dando um passo para o lado ao ver Nathalia alcançar o
último degrau da escadaria e me lançar um olhar de intimação para que a
seguisse.
Desviei para Ananda e meneei a cabeça.
— Não faça isso de novo — falei, sério.
Eu preferia que Nathalia soubesse que eu estava me movimentando
para retirar Guilherme do escritório, do que permitir que a sua mente a
arrastasse para qualquer que fosse o cenário que ele poderia criar. Ananda
me olhou arrependida e deixei para lidar com isso em outro momento,
porque ela também não tinha como adivinhar o tamanho do problema que
criaria com a sua mentira.
Retornei para a sala de conferência e dispensei a equipe para que
fossem embora. As negociações se encerraram há uma hora e eles estavam
apenas esperando a minha liberação para irem descansar, e eu preferia que
estivessem longe quando eu fosse conversar com a minha mulher.
Cerca de dez minutos depois, o primeiro pavimento havia sido
desocupado e todos os funcionários foram embora, inclusive, a minha
secretária. Caminhei para a minha sala, preparando-me para lidar com a
minha pequena diaba e a sua fúria, porque eu sabia o quanto Nathalia
detestava que mentissem para ela, especialmente quando ela já sabia a
verdade.
Empurrei a porta da minha sala, encontrando-a de costas para mim,
observando a movimentação dos carros na avenida lá embaixo. Uma garrafa
de Hennessy na mesa de centro e o copo em sua mão denunciava que ela
não estava no seu melhor momento. E eu me senti como a porra de uma
criança que iria ser repreendida por ter feito algo errado.
Seu olhar se fixou em meu rosto através do vidro escuro da janela e a
acompanhei fechar os olhos e respirar profundamente.
— Onde você estava no almoço? — questionou, entredentes.
— Em uma reunião com a Celine — fui direto, afinal, de que
adiantava esconder isso naquela altura do campeonato?
Nathalia girou nos calcanhares, abandonando o copo vazio em cima
do aparador e cravando os olhos nos meus, buscando pela mentira
escondida.
— Por que a Ananda disse que você estava em uma reunião virtual?
Relaxei as costas na porta e a observei com cuidado, suas bochechas
estavam rubras e uma veia grossa saltava em sua têmpora esquerda,
denunciando a sua irritação.
— Porque eu não queria que você soubesse que eu estava me
encontrando com os sócios sêniores — expliquei, calmamente.
Pude ver um reflexo de confusão perpassar em suas íris, empurrando
a fúria para longe e um pequeno vinco surgiu em sua testa. Suas unhas
fincadas na palma das mãos relaxaram e o ar escapou pelos seus lábios em
um chiado entrecortado.
— Por que você… — calou-se em meio a pergunta, processando a
informação e quando a clareza a atingiu, seus olhos se arregalaram. — Isso
tem relação com o Conselho?
Aquiesci, observando como ela lidava com a notícia e por instinto,
coloquei o meu corpo em frente a porta para impedir que saísse da sala.
Nathalia desviou o seu olhar para a estante com inúmeros livros e prêmios,
como se manter a sua atenção sobre mim impedisse que raciocinasse
corretamente e correu por toda a sala, fazendo um raio x do espaço.
Quando terminou, seus olhos recaíram no meu rosto novamente e ela
entreabriu os lábios, como se não soubesse o que responder.
— Conversamos sobre isso na semana passada e eu fui claro quando
disse que não permitiria que ele se aproximasse de você outra vez — falei,
dando alguns passos para me aproximar dela. Nathalia me acompanhou, em
silêncio. — Vou apresentar a denúncia anônima e a situação com o contrato
no início da fusão, mas isso não significa que eu posso contar com o bom
senso de todos. Por isso, me antecipei em falar individualmente com cada
um.
A maioria dos sócios votantes no Conselho estavam no escritório de
São Paulo, o que me permitia ter uma noção de como a reunião poderia ser
conduzida. Os outros nove sócios ficavam divididos entre as filiais de
Brasília, Porto Alegre e Rio, e eu não os conhecia o suficiente para confiar
que votariam a favor da remoção imediata de Guilherme. No entanto, com o
voto de Celine e de Frederico confirmados, eu só precisava convencer mais
quatro sócios e teria a maioria.
— Eles não vão se importar com uma denúncia anônima, Renato —
disse ela, baixo. — A única maneira para pressionar uma remoção que vai
prejudicar o bolso deles, seria se a vítima estivesse disposta a ir para a
mídia se expor. E adivinhe? Eu não estou.
— Eu sei disso, mas não preciso que eles tenham medo da denúncia
ser exposta para convocar a reunião.
— Mas precisa que a maioria vote ao seu favor — murmurou, dando
um passo para trás quando eu me aproximei, parando a pouco menos de um
passo de distância dela.
— E é exatamente isso que eu estou fazendo — falei, analisando as
emoções conflitantes que atravessavam o seu rosto.
Nathalia engoliu em seco, balançando a cabeça e dando outro passo
para trás, a sua mão livre se arrastou em seu pescoço, esfregando a pele
nervosamente e ela soltou uma risada baixa, rouca e sem humor.
Seu corpo pequeno passou por mim, indo para o bar do outro lado da
sala e servindo mais uma dose de Hennessy que ela virou em um único
gole. Espreitei os olhos, estranhando o seu comportamento e acompanhei
quando arrastou o dorso da mão nos lábios, voltando-se para mim com
fúria.
— Isso foi… estupidez da sua parte! — repudiou, raivosa. — Tem
ideia de como isso te amarra com eles? Você vai ficar em débito com cada
um que votar a favor disso.
— Não me importo com isso.
Ela riu, irônica.
— Claro que você não se importa.
Franzi o cenho, sem entender onde ela estava querendo chegar e
quando ela fez menção a servir uma nova dose em seu copo, precisei
quebrar a distância entre nós e retirar a garrafa da sua mão.
— O que você esperava que eu fizesse, Nathalia? — questionei,
encarando-a e vendo o seu queixo se erguer e seu olhar colidir com o meu.
— Eu esperava que você fosse mais sensato.
Foi a minha vez de dar risada. Existiam milhares de formas que eu
poderia acabar com aquela palhaçada de uma vez por todas e seria muito
mais eficaz do que me reunir com cada sócio, mas em todas eu acabaria
arrastando Nathalia para um confronto que ela não estava pronta para
entrar.
— Acredite em mim, estou sendo — falei, tirando o copo vazio da
sua mão e o abandonando sobre a mesa.
Encarei-a, preocupado com o quanto ela tinha bebido e meus dedos
se aninharam em seu queixo, mantendo os olhos grandes no meu rosto.
— Se eu fosse fazer o que realmente pretendia, você teria passado por
essas portas e descobriria que na sua ausência, eu acabei com essa merda de
Conselho e me tornei a única autoridade nessa empresa — esclareci.
Aquela foi a primeira coisa que passou pela minha cabeça quando me
afastei do corpo inconsciente de Guilherme. Se a situação tivesse que ser
resolvida naquele exato momento, eu teria me desfeito de todos os sócios e
os mandado embora, apenas para que ninguém ousasse me impedir de
remover Guilherme da empresa. Eu poderia nos arrastar para uma briga
interminável com pessoas que não iriam aceitar aquilo tão facilmente e
iriam entrar no ringue e brigar para impedir que acontecesse, mas optei por
seguir as regras dela.
E se eu precisasse passar dos limites para garantir que Guilherme
nunca mais chegaria perto dela, eu não estava dando a mínima para o que
ele pudesse fazer para tentar me atingir. Guilherme não tinha qualquer
influência no meio, era um pária no mercado e tudo o que construiu foi
graças a mim. Eu segurava as cordas da sua carreira e poderia cortá-las
quando bem entendesse.
— Você… acha mesmo que alguém liga para o que ele faz fora do
escritório? — Nathalia perguntou, incrédula. — E se por algum milagre,
você conseguir que a maioria do conselho vote com você… acredita mesmo
que ele não vai buscar por uma revanche? — Ela riu, desvencilhando-se do
meu aperto em seu rosto e caminhando para o lado oposto da sala. — Você
realmente acha que ele vai pegar as coisas dele e sair sem causar qualquer
problema?
— Não, eu não sou estúpido, Nathalia.
Ela girou nos calcanhares e me fitou, por um segundo, não a
reconheci.
— Tem certeza disso?
Por um segundo, eu a encarei em silêncio, processando como lidar
com aquele comportamento dela. Nada fazia o menor sentido, porque eu
tinha certeza de que Nathalia também não queria correr o risco de esbarrar
com Guilherme, logo, não entendia qual era o motivo para tamanha
indignação.
— Eu não entrei nisso ontem, Nathalia — falei em tom baixo,
mantendo meu olhar fixo no dela. —, e esse assunto não está aberto para
discussão.
— Então, por que me promoveu para ser a sua diretora de operações
se, no fim das contas, você não se importa com a minha opinião?
— Nesse assunto, eu não quero saber a sua opinião — esclareci,
olhando-a com frustração. — Eu sou seu chefe e, até onde sei, não preciso
justificar as minhas ações.
— Talvez você não devesse mais ser o meu chefe — rebateu,
ofendida.
Nathalia se calou quase de imediato e a encarei sem saber como
reagir àquilo.
Eu sabia que ela poderia demonstrar descontentamento quando
soubesse que Leandro e eu estávamos recolhendo os votos nas suas costas,
mas nunca passou pela minha cabeça que ela iria comprar uma briga
comigo para defender a permanência de Guilherme na empresa depois de
tudo o que aconteceu na última semana.
— Que merda está acontecendo com você? — questionei, vendo-a
dar outro passo para trás para fugir da minha aproximação e seus olhos
marejaram.
Uma lágrima teimosa escapou e ela meneou a cabeça, impedindo que
eu chegasse mais perto.
— Você está se prejudicando por minha causa — disse, baixinho —,
sabe o que vai acontecer se tirar um sócio do escritório através do
Conselho?
— Eu estou ciente das consequências, Nathalia.
— Não, você não está — insistiu, erguendo os olhos para mim. — Na
semana passada, a Roberta deixou subentendido que poderia expor ao
Conselho que estamos juntos… — franzi o cenho, lembrando-me da
discussão das duas. — Em seguida, você achou que era uma boa ideia
entrar na briga e intimidá-la. Você disse com todas as palavras que se ela
entrasse no meu caminho, ela estava fora do escritório — relembrou, sem
desviar o olhar. — Acredita mesmo que se conseguir tirar o Guilherme com
a maioria dos votos, ela não vai tentar o mesmo com você?
— Se ela quiser tentar, que tente — respondi, simplesmente.
Nathalia balançou a cabeça com tristeza.
— Renato, a Roberta não é o único problema aqui. Você está
movendo o Conselho para eliminar um sócio por causa da sua namorada.
Agora, eles acreditam que estão votando para te fazer um favor, pensando
que isso vai garantir uma posição privilegiada com você no futuro…, mas o
que acha que vai acontecer quando descobrirem sobre nós? — Sua voz
ficou rouca. — Quando souberem que você os manipulou porque mexeram
com a mulher que está comendo?
— Pare de falar de si mesma desse jeito — rosnei, sentindo a raiva
crescer dentro de mim.
— De que jeito?
— Como se fosse uma qualquer que eu estou fodendo.
— Mas é o que eu sou! — rebateu, aumentando o tom de voz. —
Para eles, eu sou só isso. A boceta que você promoveu porque está fodendo
nas costas deles. Acha que eles vão te levar a sério depois disso?
— Você está agindo como se eu me importasse com o que eles
pensam sobre mim. Eu não estou aqui para agradá-los, Nathalia. Com um
Conselho ou não, a empresa pertence a mim — declarei, mantendo meu
olhar firme. — A única pessoa que tem autoridade para me impedir de fazer
qualquer coisa aqui é o Leandro, e ele concorda comigo nessa questão.
Então, a menos que você realmente acredite que, depois do que aconteceu
naquele casamento, eu permitiria que Guilherme se aproximasse de você ou
de qualquer outra sócia, ou funcionária dentro da minha empresa, qual é o
motivo para ainda estarmos discutindo sobre isso?
Ela engoliu em seco, abraçando o próprio corpo e me fitou como se
eu não compreendesse os seus sentimentos. E naquele momento, pela
primeira vez desde que nos conhecemos, eu realmente não fazia ideia do
que estava se passando em sua cabeça.
— A minha opinião não vale de nada?
Respirei fundo, tentando manter a calma.
— Nesse assunto não, eu não volto atrás com a minha palavra,
Nathalia.
Uma lágrima teimosa rolou em sua bochecha e ela meneou a cabeça,
soltando um suspiro derrotado, Nathalia caminhou para perto do sofá e
pegou a sua bolsa, dando aquela discussão por encerrada.
— Você não vai sair daqui sem me explicar o que está acontecendo
— falei, firme e quebrando a distância entre nós para impedi-la de sair da
minha sala.
— Não temos o que conversar, você já tomou uma decisão. Não foi o
que acabou de dizer? — retrucou, ácida.
— É dessa forma que vai agir?
— O quê? Estou sendo imatura demais para você? — Atacou
gratuitamente.
O vinco em minha testa aumentou, porque nada naquele
comportamento dela estava fazendo sentido. Antes que eu pudesse dizer
qualquer coisa, a porta foi aberta bruscamente e Leandro passou por ela e
levou tudo de mim para não arrebentar a sua cara.
— Ah, você está aqui — falou, olhando para ela e Nathalia virou o
rosto em sua direção, aproveitando para se desvencilhar do meu aperto. —
Eu estava pensando em…
Ele não teve tempo de concluir, Nathalia simplesmente virou as
costas e marchou para fora da minha sala, encerrando a discussão de uma
vez por todas. Eu pincei a ponte do nariz, respirando profundamente para
tentar controlar a crescente raiva e frustração que se entrelaçavam dentro de
mim, levando-me ao limite.
— O que houve? — questionou Leandro, obrigando-me a olhar em
sua direção e apertei os punhos, porque se não o socaria mais uma vez. A
última havia sido por instinto, porque ele tentou me tirar de cima do
desgraçado do Guilherme, mas da próxima vez, eu estaria muito consciente
das minhas ações.
— Quantas vezes eu vou precisar te falar para bater na maldita porta?
Leandro arqueou a sobrancelha, mas antes que pudesse me encher a
paciência, caminhei até o minibar e servi uma dose de uísque puro, sem
gelo. Virei o copo de uma vez, buscando uma distração para a minha
irritação, ciente de que se não encontrasse algum tipo de alívio, poderia
descontar toda a minha frustração nele.
Encarei a movimentação dos carros na avenida e servi mais uma
dose, ignorando a voz de Leandro que não parava de falar sobre alguma
merda que tinha acontecido com um dos seus clientes e que por isso, ele
precisaria viajar e precisava de uma secretária.
Na minha cabeça, pintei uma imagem explícita do rosto do
desgraçado enquanto o esmurrava sem parar. Era a única forma de garantir
que isso não aconteceria de verdade.
Atravessei a sala para buscar pelo meu celular e reconheci algumas
chamadas perdidas, mas não dei atenção para elas e busquei pelo número de
Marcus. Ele sempre estava por perto e pronto para atender aos meus
chamados, e eu precisava ter alguma noção de onde Nathalia estava.
Quando a sua resposta chegou, informando que ela tinha saído
sozinha com o próprio carro e que a equipe de Miguel saiu logo atrás dela,
virei-me para Leandro que se sentou na poltrona em frente a minha mesa.
— Você escutou alguma coisa do que eu disse? — indagou,
espreitando os olhos no meu rosto.
— Estou gastando cada pedaço do meu cérebro para não arrebentar a
sua cara — falei, entredentes.
Leandro riu, meneando a cabeça.
— Relevei da primeira vez por causa da situação, mas tente de novo,
eremita — retrucou, relaxando o corpo na poltrona e desviei a atenção do
celular quando Marcus avisou que Nathalia tinha entrado no
estacionamento da faculdade. — É dessa vez que você para com a frescura
de não falar sobre ela comigo?
Observei o homem na minha frente, vendo-o abandonar a
descontração e o seu semblante ser tomado por uma preocupação genuína.
Meus ombros tensos também relaxaram e apesar de não me sentir mais
calmo, ao menos não estava prestes a espancá-lo como estava um minuto
atrás.
Contornei a mesa, apanhando uma garrafa de Bourbon e dois copos
para nos servir e me sentei na poltrona de frente para ele, deixando que as
minhas costas afundassem no estofado de couro.
— Nathalia me viu conversando com a Celine no restaurante — falei,
calmo e tentando reajustar as peças na minha cabeça para compreender o
que havia acontecido para ela reagir daquela forma.
— Não me diga que ela achou que você estava tendo um caso com a
Celine — zombou, mas abandonou o sarcasmo ao ver a minha expressão
fula da vida e ergueu as mãos.
— O problema é que ela ligou para saber do meu paradeiro e a
Ananda achou que a melhor solução para a situação era mentir —
prossegui, bebendo um gole longo do líquido no meu copo —, e
obviamente, Nathalia veio me confrontar.
— E suponho que você contou a verdade.
— Sim.
— E ela ficou com raiva por você ter escondido?
Franzi o cenho, eu estava pronto para lidar com a sua mágoa por isso,
mas definitivamente não me preparei para o que aconteceu.
— Não, o problema foi eu estar recolhendo votos para tirar o
Guilherme da sociedade — falei, sentindo a incredulidade em cada palavra.
Eu me esforçava muito para ser cuidadoso com os sentimentos da
Nathalia e sempre estava disposto a ser mais empático e menos pragmático
com ela. Estava ciente de que sua mente era um terreno delicado que
constantemente tentava arrastá-la para baixo, mas nunca imaginei que isso
resultaria em uma discussão sobre manter ou não um assediador sob o
mesmo teto que nós.
Não dava a mínima para o que Roberta ou qualquer sócio do
Conselho tentasse depois. Nathalia era a coisa mais importante para mim
neste lugar e, se fosse necessário, eu acabaria com tudo e recomeçaria do
zero sem hesitar.
— Ela ficou com raiva por que você está tirando o merdinha daqui?
— A confusão do Leandro refletia a mesma dúvida que pairava em minha
cabeça.
Antes que eu pudesse me juntar a ele naquela questão, duas batidas
na porta me obrigaram a autorizar a entrada da visita inesperada e a
cabeleira loira de Bianca surgiu em meu campo de visão.
— Oi, você vai ir agora? — A pergunta foi direcionada ao Leandro e
ele aquiesceu, mas acabou virando-se para mim e torceu os lábios.
— Lição número um, eremita — disse ele, sinalizando com o
indicador para mim e deixando que sua expressão fosse tomada por
sabedoria —, se quiser entender uma mulher, use sempre o método
PPAMA.
Eu sabia que iria me arrepender, mas naquela altura do campeonato,
até um conselho de Leandro me parecia bem-vindo.
— PPAMA?
Ele sorriu, arrogante.
— Pergunte para a melhor amiga — explicou, como se fosse óbvio e
se virou para a loira, indicando que ela entrasse na minha sala.
Bianca franziu o cenho ao entrar e aceitar o convite, fechando a porta
atrás de si. Ela se sentou na poltrona ao lado de Leandro, que insistiu para
que eu recontasse toda a conversa que tive com minha mulher minutos
antes.
A amiga dela ouviu atentamente cada palavra que compartilhei, o
sorrisinho de canto que se desenhou em seus lábios denunciava que estava
se divertindo com a minha situação.
— E então? — Leandro questionou, olhando-a como se ela fosse um
gênio da lâmpada que lhe concederia todas as respostas do mundo.
Bianca torceu os lábios, roubando o copo da mão dele e bebeu um
gole longo. Ela se virou para mim e sorriu com cumplicidade.
— Bem-vindo ao terceiro estágio de um relacionamento com
Nathalia Maia de Bazán Gama — disse, como se aquilo fosse um rito de
iniciação.
— Terceiro estágio? — indaguei.
A loira meneou a cabeça, arrastando o indicador no contorno da
tatuagem de serpente que contornava todo o seu pulso esquerdo e acabava
no seu dorso.
— Sim — confirmou com um suspiro cansado. — O primeiro estágio
é quando você a conhece. Ela te encanta e sempre que a vê, você se
pergunta como alguém poderia ter coragem de tentar machucar alguém
tão… perfeita, esforçada e adorável — disse, trazendo seu olhar para mim
com sabedoria. — Você a escuta falar sobre seus sonhos e objetivos… e
quer que ela conquiste tudo aquilo, porque é terrível pensar em viver em
uma realidade na qual ela não realiza o que deseja.
Bianca esboçou um sorriso carregado de nostalgia.
— Então, você entra no segundo estágio do relacionamento com ela
— disse, usando os dedos para indicar aquela etapa. — E nessa você se
torna um fã de tudo o que ela faz. Você não aceita que ela não consiga o que
quer e está disposto a fazer qualquer coisa para garantir que está feliz,
porque detesta pensar na possibilidade de que ela esteja infeliz.
Bianca inclinou a cabeça para mim, analisando-me como se soubesse
exatamente o que se passava em minha cabeça.
— Você se torna uma pessoa que está disposta a fazer tudo por ela.
Você passaria dos limites e qualquer outra merda para manter ela no topo,
porque… você sabe que é onde ela nasceu para estar. — Um risinho escapou
do fundo da sua garganta e ela soltou outro suspiro. — E bem, aí você entra
no terceiro estágio, que é exatamente onde você está.
Espreitei os olhos nos seus, esperando que ela prosseguisse.
— Nesse estágio, você não enxerga limites. Se existia uma linha que
indicava até onde você poderia ir, ela simplesmente desapareceu. Por que
você se lembra do que eu disse? Você quer que ela seja feliz e tenha tudo. O
oposto disso é inaceitável. — Deu de ombros. — E é aí que você realmente
conhece a Nathalia e percebe que, por mais que tente muito, ela ainda age
exatamente como foi criada para ser: a herdeira de Miguel Gama. Ela é
mimada, teimosa… e acredita piamente que tem todas as respostas do
mundo — falou, enquanto uma faísca nostálgica brilhava em seus olhos
negros. — E se ela descobrir que você se moveu para fazer algo por ela,
bem, o primeiro instinto dela é se sentir ofendida. É como se você estivesse
cuspindo em seu rosto e dizendo que ela não é capaz de fazer aquilo
sozinha.
Bianca bebeu mais um gole longo do uísque no copo de Leandro.
— E aí você se questiona: o que eu fiz de errado se eu só queria que
ela ficasse feliz e segura? — Apertou os olhos em mim, como se
conseguisse ler a dúvida que estava correndo a minha mente. — O que tem
de tão errado em querer que ela tenha tudo? — Prosseguiu, arrancando as
palavras de dentro da minha cabeça. — Você entra em dúvida se errou,
começa a pensar que interpretou as atitudes dela do jeito errado…, e então,
você se pergunta se tem alguma coisa errada com ela. Afinal, como pode
uma menina ser tão ferrada da cabeça ao ponto de não aceitar a ajuda de
outras pessoas?
“Mas é aí que está o segredo para superar essa fase, porque ela é
bastante rápida e, acredite em mim, Nathalia sempre volta atrás e se
arrepende pela maneira como agiu — ela disse, sorrindo de canto,
indicando que eu deveria prestar atenção em suas palavras. — Cada pessoa
que passou pela vida dessa garota se aproximou com a intenção de tirar ou
obter algo dela. As pessoas sugavam tanto que, quando alguém faz algo por
ela, a primeira reação dela é pensar nos motivos que levaram aquela pessoa
a agir assim. Será que foi por que essa pessoa queria algo de Miguel? Ou
por que achava que ela não era capaz de fazer isso sozinha?”
Bianca circulou a pulseira grossa em seu pulso e meus olhos recaíram
no contorno em volta de uma, notando pela primeira vez que o desenho de
uma caveira mexicana cobria uma cicatriz enorme.
— O fato é que, por mais que ela tente escapar dessa carga, Nathalia
é e sempre será a filha de Miguel Gama, e isso a transformou em alguém
com problemas de confiança. Não apenas em relação às outras pessoas, mas
também em si mesma.
Bianca colocou o copo vazio sobre a minha mesa.
— Ela não está com raiva de você, acredite em mim. Ela está com
raiva de si mesma por não conseguir confiar que a sua única intenção nisso
tudo era protegê-la. Porque, embora ela nunca admita, quando você contou
a verdade para ela, a primeira coisa que passou pela mente dela foi que você
achava que ela não era capaz. — Bianca sorriu para mim, despreocupada.
— Sabe quando você repete constantemente para uma criança que a fada do
dente existe, até que ela acabe acreditando nisso? Agora, substitua a fada do
dente por centenas de pessoas menosprezando e subestimando você,
afirmando que, não importa o que faça, você sempre será apenas a filha do
seu pai… e pronto: aí está a fórmula mágica que moldou a mente de
Nathalia.
Ela olhou de relance para Leandro que estava pensativo.
— E acredite em mim, não é uma coisa da cabeça dela. A Nathalia
não só supõe que as pessoas pensam isso dela… as pessoas realmente falam
isso na cara dela. Centenas de vezes. Eu já presenciei aquela garota escutar
as maiores atrocidades do mundo apenas por querer ser um indivíduo único,
sem ter que ficar sendo comparada ao Miguel a cada instante. Não importa
o que ela faça ou o quanto se esforce… as pessoas sempre encontram uma
forma de criticá-la. Então, quando ela sente que está sendo usada,
subestimada ou criticada… a primeira reação dela é…
— Atacar de volta — concluiu Leandro, parecendo compreender o
motivo da discussão que os dois tiveram algumas semanas atrás.
— Exatamente — confirmou a loira, sorrindo como se ele fosse um
aluno exemplar.
Seu olhar retornou para mim com algo parecido a empatia, como se já
tivesse estado na minha situação anteriormente e soubesse exatamente o
que eu estava passando.
— O lado bom é que, uma vez que você supera essa fase, geralmente
ela não retorna. A verdadeira Nathalia é aquela que você conheceu nos dois
primeiros estágios. O que você presenciou hoje? Foi apenas o reflexo do
que as pessoas fizeram com ela. Bagunçaram tanto a cabeça dela que a
garota acredita ser melhor deixar um assediador escapar e permitir que ele
continue com sua carreira, mesmo que isso signifique lidar com ele todos os
dias e engolir o próprio medo.
Aquiesci, bebendo um pouco da bebida em meu copo e relaxei as
costas na poltrona confortável, sentindo o cansaço do dia me atingir.
— Os estágios acabam em algum momento? — questionei, alçando a
sobrancelha e a loira riu baixinho.
— Bem, até hoje eu já passei por… oito deles — disse, sorrindo
levemente —, o lado bom é que depois que você lida com o terceiro, os
outros são mais simples. Uma insegurança aqui e ali, mas nada que chegue
ao ponto do que aconteceu hoje.
Meneei a cabeça, agradecido pela explicação.
— E como você mapeou isso?
— Eu? Não, quem me passou esse mapa mental dela foi o Antônio.
Ele convive com ela há mais tempo que qualquer um de nós e conhece
todos os demônios que vivem na cabeça daquela garota. — Suspirou,
aceitando a nova dose que Leandro ofereceu. — Quando ela teve aquele
primeiro surto comigo, minha vontade era de jogá-la do penhasco da
fazenda. Por sorte, ele interveio e me passou as lições do manual de como
lidar com ela durante essas crises… que se resumem em: dar-lhe o espaço
que ela precisa, porque ela sempre acaba voltando atrás e percebendo que
exagerou.
O nome de Antônio despertou a minha atenção, mas antes que eu
pudesse questionar algo, Bianca falou:
— No fim, eu juro que compensa. Ela é tudo o que você conheceu
nos primeiros estágios e muito mais. Nathalia é capaz de fazer qualquer
coisa pelas pessoas que ama e sacrificaria qualquer coisa pelo bem dessas
pessoas, mesmo que isso causasse a sua própria infelicidade — disse, dando
de ombros.
Acenei, lembrando-me de tudo o que me contou sobre Roberta e
como ela parecia ter se magoado por ter sido traída por uma pessoa por
quem se sacrificou tanto.
— Qual é a relação dela com o Sturzenecker? — Leandro perguntou,
roubando a pergunta da minha cabeça. — Eu o achei tão babaca.
Ri baixo, sabendo que aquilo era puro ciúmes por ter visto a
proximidade do melhor amigo de Nathalia com a loira sentada ao seu lado.
Bianca o olhou divertida, achando graça no comentário.
— Honestamente? Eu não tenho ideia do que se passa entre os dois
— ela disse, lançando um olhar rápido para mim. — Tudo o que sei é que,
por muito tempo, eles foram as únicas constantes na vida um do outro. E
seja qual for o inferno pelo qual passaram juntos quando eram mais novos…
eles são capazes de matar e morrer um pelo outro.
Sua voz carregava admiração genuína. Bianca se voltou para
Leandro, em tom de advertência:
— Não tente arrumar briga com ele, porque entre o Antônio e
qualquer outra pessoa, Nathalia sempre o escolherá — alertou, sincera. Seu
olhar voltou para mim e ela sorriu, como se achasse graça de algo. — E não
leve para o pessoal o fato dele não ir com a sua cara, Renato. Um dia, ele
vai acabar se dando conta de que você se sente da mesma forma em relação
a ela… eu mesma precisei de um tempo para que ele confiasse totalmente
em mim ao lado dela.
Concordei, mas aquilo não era uma coisa que me preocupava.
Nathalia tinha me contado por cima sobre sua relação com Antônio, e eu
entendia o motivo por trás daquela lealdade cega que existia entre eles.
Algum tempo depois, Bianca e Leandro se despediram e reforçaram o
convite para um jantar que ocorreria na casa de Isobel para comemorar a
chegada de Maria Júlia e Paulo à cidade. O jantar também serviria como
uma prévia da festa de noivado deles, que estava planejada para o próximo
fim de semana.
Depois de resolver algumas pendências, decidi que era hora de ir
embora e fechei o escritório. Enquanto aguardava o elevador chegar ao meu
andar, aproveitei para checar algumas mensagens de amigos e clientes no
meu telefone.
Antes que eu pudesse escutar o áudio de James, uma ligação ocupou
minha tela e não pensei duas vezes antes de atender.
— Oi anjo… — o soluço alto que ecoou do outro lado da linha fez
com que meu corpo inteiro retesasse. — O que aconteceu? — perguntei,
preocupado.
— Eu… — sua voz não teve força para concluir a frase e ela
arquejou, ofegante.
— Nathalia, onde você está? — indaguei, tentando manter a calma.
— Estacionamento… do campus — ela respondeu entre soluços e
arquejos, denunciando que estava no início de um ataque de pânico.
— Chego em cinco minutos — declarei, entrando na caixa de aço e
apertando o botão que me levaria direto para a garagem.
Quando saí do escritório, estava tão furiosa e frustrada que precisava
de alguns minutos fora da bolha sufocante que estava ao meu redor,
asfixiando-me e impedindo que pensasse racionalmente, me arrastando para
o modo de sobrevivência.
Por sorte, naquela noite, a equipe que estava me acompanhando era
uma que não se importava em me deixar sozinha por alguns minutos,
contanto que eu deixasse o GPS do carro e do celular, ligados o tempo
inteiro, os informasse sobre o meu estado a cada hora e não fosse para
qualquer outro lugar que não era minha casa, e claro, que eu também não
deixasse que o meu pai descobrisse que eles permitiam que a princesa
fugisse da torre esporadicamente.
Durante toda a aula do Prof. Becker, minha mente vagou na discussão
com Renato mais cedo e na maneira como tudo saiu completamente dos
trilhos, quando o monstro em minha cabeça ganhou força e comandou cada
palavra que saiu da minha boca.
Além de não prestar atenção à aula, também não ouvi as suas
recomendações quanto ao resultado do estágio da Bentley & Hathaway; e
sequer me animei quando ele contou que um dos gestores que faziam parte
da seleção havia entrado em contato com ele para elogiar o meu trabalho.
Suas considerações sobre a minha monografia foram ignoradas e até
mesmo Diana e Caetano, dois amigos da especialização, acabaram sendo
deixados de lado e acabei me despedindo dos dois no intervalo da aula. Não
me sentia uma boa companhia, tampouco uma boa aluna.
Passei rapidamente na cafeteria para comprar um café, porque teria
que passar a madrugada inteira resolvendo uma situação para a Maitê, e
acenei para alguns rostos familiares que estavam saindo do elevador e me
cumprimentaram, mas não tive disposição para insistir em qualquer
tentativa de diálogo que eles tentaram estabelecer.
No elevador, relaxei minhas costas na parede de aço fria e encarei o
meu reflexo no espelho, sentindo embrulho no estômago apenas por
relembrar do quanto havia sido uma escrota naquela tarde com Renato.
Era infernal não conseguir controlar os próprios impulsos,
principalmente porque eu sabia que a única preocupação dele era me
defender. Ele estava colocando a sua carreira e posição no escritório em
risco por mim. Qualquer pessoa em meu lugar se sentiria lisonjeada, amada
e protegida…, mas meu cérebro preferiu distorcer tudo para se transformar
em algo sobre mim e sobre como vão usar aquilo contra mim.
Como eu podia julgar Pedro ou até a professora do Matheus por
distorcerem minhas ações, sendo que fazia a mesma coisa internamente?
Talvez, a culpa que me nocauteava era justamente porque sempre que
isso acontecia, eu conseguia lidar com o problema sozinha, sem expô-la
para as pessoas. Naquele tarde, no entanto, eu descarreguei em cima do
Renato que não tinha culpa alguma de estar em uma relação com uma
garota completamente fodida da cabeça.
Enxuguei uma lágrima teimosa e meus olhos recaíram no meu
celular, Vagner, um dos seguranças da equipe de Alisson e o que estava
responsável por ficar comigo durante a folga do chefe de segurança,
cobrava pela minha localização.
Tecnicamente, eu teria mais duas horas de aula, mas isso não os
impedia de checar se estava tudo bem. Quando estavam comigo, eles
acessavam o estacionamento e permaneciam por ali até que eu saísse com
Diana e Lucas, apenas para me escoltar de volta.
Na minha cabeça aquilo era tão exagerado, mas discutir com Miguel
sobre isso era impossível. Meu pai se tornava um ditador nesse assunto e
apenas me restava aceitar que onde eu fosse, suas sombras iriam me
acompanhar.
Respondi à mensagem do rapaz, avisando que estava tudo bem e que
informaria quando saísse do campus. Bebi um gole do café, torcendo os
lábios e uma careta tomou meu rosto. A bebida era péssima e eles tinham a
ousadia de cobrar uma pequena fortuna para algo tão ruim, mas ao menos
era eficaz em me manter acordada.
Ergui minha atenção para o monitor que mostrava a previsão do
tempo juntamente com as principais notícias do dia. Os sauditas recuaram e
estavam seguindo o mercado, o que era um alívio e tanto para o mercado.
As pessoas que tiveram prejuízo teriam tempo hábil para se recuperar antes
que outra merda acontecesse e instaurasse um novo caos generalizado.
Assim que as portas do elevador se abriram no estacionamento do
subsolo, meu celular tocou e passei os minutos seguintes ouvindo
atentamente as informações que o investigador da RCI conseguiu reunir
sobre dois membros do conselho da Devilish Angel.
Ao desligar a chamada, vasculhei a minha bolsa para procurar pela
chave do meu carro e então, tudo aconteceu em um piscar de olhos.
Em um segundo, estava revirando os meus itens para encontrar a
chave que se perdeu na bagunça e no seguinte, minhas costas colidiram
bruscamente com o pilar de concreto. Fechei os olhos, gritando de dor com
o impacto e uma mão grande cobriu a minha boca, mas o meu horror se deu
devido à sensação de algo gelado contra a minha barriga.
Abri os olhos, em pânico, temendo que fosse um assalto ou qualquer
coisa do tipo, mas o destino conseguiu transformar todo aquele dia em algo
pior do que já vinha sendo.
Arregalei os olhos, sentindo cada célula do meu corpo ser tomada por
completo desespero e me debati contra o aperto do homem enorme que me
pressionava contra a pilastra. No entanto, quando o seu rosto se aproximou
do meu e as íris pretas e sem qualquer emoção se fixaram em meus olhos,
cada osso no meu corpo ficou enrijecido e não fui capaz de me mover.
— Faremos dessa forma, princesinha… — sua respiração bateu em
meu rosto, causando um embrulho no meu estômago e minhas pernas
perderam a força, deixando-me amolecida em seu aperto. — Vou tirar a
minha mão da sua boca, mas você vai mantê-la bem fechadinha.
Engoli em seco, sentindo meu coração batendo tão forte que poderia
perfurar a caixa torácica a qualquer segundo.
— Você me entendeu?
Meneei a cabeça, em automático, todo o meu cérebro estava
concentrado na pressão fria em minha barriga.
O homem cumpriu com o que disse que faria e lentamente, retirou a
mão da minha boca e o ar escapou com tanta força que eu não me dei conta
de que ele estava restringindo a minha respiração.
Seus olhos percorreram o meu rosto como se eu fosse uma maldita
obra de arte exposta para a sua apreciação e busquei pela minha voz para
enfrentar o meu diabo em carne e osso, mas não a encontrei.
— Senti a sua falta, querida — disse, baixo, olhando por cima do
ombro e não precisei acompanhá-lo para saber que não estava sozinho.
Eu conseguia escutar o motor do carro ligado e o barulho de passos
ecoando pelo estacionamento vazio. Meus olhos percorreram o espaço,
buscando por uma câmera de segurança. O lugar costumava ter uma a cada
dez passos, mas eu não consegui enxergar nenhuma por perto. Essa
constatação me causou um desespero ainda maior.
Isso não está acontecendo.
Isso não pode estar acontecendo.
De novo não, isso não está acontecendo.
As lágrimas umedeceram o meu rosto e senti o aperto da mão grande
em minha garganta, impedindo que eu virasse o rosto para ganhar distância
dele.
— Não vai dizer que sentiu a minha falta também? — indagou, com a
voz carregada de cinismo e apertei os lábios quando seu polegar ameaçou
contorná-lo. — Poxa, princesinha… depois de tanto tempo, é o mínimo que
você poderia fazer.
Depois de tanto tempo, tudo o que eu esperava era que você estivesse
morto.
André inclinou a sua cabeça, apreciando o que estava vendo e a
minha mente foi entorpecida pelo choque em reencontrá-lo depois de quase
cinco anos.
— Ninguém nunca te disse que a realeza precisa ser escoltada quando
sai do castelo, porque pode ter que enfrentar alguns plebeus com fome de
vingança, querida? — questionou, subindo seus dedos pela minha garganta
e aninhando-a em meu queixo, apertando com brutalidade e forçando-me a
erguer o olhar para ele.
Engoli em seco.
Meus olhos correram pelo seu rosto, sentindo o mesmo enjoo de
quando ele surgiu em minha vida pela primeira vez. Aquele homem era a
pior coisa que já entrou em meu caminho, de todos os demônios que
enfrentei nos últimos anos, ele era o único que conseguia me prender em
um torpor de medo.
— Você não vai falar nada? — questionou, visivelmente
decepcionado —, isso torna tudo tão… entediante, princesinha.
Claro que tornava, André era um sádico e adorava saber que a sua
mera existência me deixava com os nervos à flor da pele, mas havia
passado o tempo que eu dava a ele o prazer de saber que me colocava
medo.
— Nenhuma pergunta? — insistiu, aumentando o aperto em meu
rosto ao ponto de me arrancar um grunhido dolorido. — Vamos lá,
querida… você é melhor que isso. Não me diga que um gato mordeu a sua
língua?
Meus músculos enrijeceram ao sentir o cano da arma ser arrastada em
minha pele, lentamente.
Ergui meu olhar, engolindo todo o medo crescente e a maneira como
o meu coração batia dolorosamente no peito. Dei tudo de mim para reunir a
coragem que precisava para retomar o controle da minha própria voz e
aspirei o ar, sem pressa, tentando forçar o meu corpo a responder aos meus
comandos.
— Sabe, para a sua segurança, o melhor a se fazer é me dar o que eu
quero…
— Você não vai me matar — cortei-o, sentindo a minha voz soar
muito mais confiante do que eu realmente me sentia. André espreitou os
olhos, esboçando um sorriso satisfeito ao me escutar dando a ele o que
queria. — Se realmente quisesse me matar, não estaria perdendo o seu
tempo querendo arrancar alguma coisa de mim.
Ele inclinou a cabeça lentamente, arrastando os olhos pelo meu rosto
e aninhou a sua mão em minha garganta, apertando-a com tanta força que
sufoquei. Minha visão embaçou e as lágrimas se acumularam nos meus
olhos, impedindo-me de vê-lo.
— Talvez eu não te mate, princesinha, mas isso não significa que eu
não posso te machucar — disse, aproximando o seu rosto do meu, ficando
tão perto que eu conseguia sentir o seu hálito quente em meu pescoço. —
Sua amiga não te contou o que eu posso fazer com quem testa a minha
paciência?
Meu estômago afundou e o pânico ameaçou me dominar, porque eu
sabia exatamente sobre o que ele estava falando e não duvidava que André
realmente poderia fazer a mesma coisa comigo.
— Seja uma boa menina e não me teste — soprou ao pé do meu
ouvido, e da mesma forma brusca que envolveu meu pescoço, seus dedos
afrouxaram o aperto e ele me devolveu o oxigênio. — Você sabe que é da
realeza e eu não gostaria de te machucar, isso me colocaria na merda de
novo… e apesar de adorar a ideia de te quebrar por completo, sou um
homem de negócios e não quero uma briga desse tamanho.
Meus olhos subiram para o seu rosto e não soube se foi devido ao
pânico crescente ou se depois de tudo o que me aconteceu nas últimas
semanas, eu havia enlouquecido completamente, mas uma risada rouca
escapou do fundo da minha garganta.
Talvez, eu estivesse confiante demais na certeza de que ele não iria
me machucar, ou apenas não me importava mais com o que aconteceria.
— Você teve a sua chance quatro anos atrás — falei, rouca e com a
voz entrecortada devido ao seu aperto que ainda se mantinha firme,
imobilizando-me e impedindo que eu virasse o rosto para o lado oposto. —
A propósito, onde esteve por todo esse tempo?
Ele sorriu, mas não havia qualquer resquício de humor naquele
movimento.
— Não é porque eu estive longe por um tempo que esqueci que temos
assuntos pendentes — disse, em um tom falsamente contido, intimidante.
— Aliás, onde está a minha cadela preferida?
Meu humor descontrolado desapareceu, deixando-me com uma
sensação de letargia se espalhando pela minha corrente sanguínea e me
devolvendo a posição de vulnerabilidade.
— O bicho mordeu a sua língua atrevida? — indagou, aumentando a
pressão em meu estômago e minha respiração vacilou, meus pulmões
colapsaram e ameaçara me deixar a minha própria sorte. — Cadê a Sabrina?
Engoli em seco.
Sabrina.
Um simples nome era capaz de abrir as portas do pandemônio que
mantive escondido debaixo de sete toneladas de concreto e que jurei pela
minha vida que nunca mais permitiria que saísse de lá. Sabrina era o meu
segredo sujo, a única decisão da minha vida que poderia acabar não apenas
com a minha carreira, mas com qualquer coisa que eu tenha tocado e amado
nos últimos anos.
Ela era a bomba engatilhada que poderia explodir e destruir tudo caso
chegassem perto demais.
— Morta — falei, em um sussurro estrangulado. — Ela está morta.
As lágrimas voltaram a embaçar a minha visão, rolando em meu rosto
sem a minha permissão e dando ao André exatamente o que ele queria.
— Não… ela não está — disse ele, com uma segurança invejável.
— Sim, ela está — assegurei, sentindo os meus batimentos errarem o
ritmo das batidas quando escutei o clique da trava da arma. — Ela está
morta! — esganicei, em pânico.
— Não me teste, Nathalia. O tempo não me deixou mais paciente —
rosnou, aumentando o aperto em minha garganta —, onde aquela vadia
está?
Meus pulmões lutaram, buscando pelo oxigênio necessitado e minhas
unhas perfuraram sua pele, afundando em seu antebraço com tanta força
que eu pude sentir o sangue umedecendo meus dedos.
— Ela… está morta. Eu juro! — Solucei, trêmula. — Ela morreu há
dois anos.
André espreitou os olhos em meu rosto, mas antes que pudesse
decidir se iria me matar por ter impedido que ele encontrasse Sabrina
quando ela ainda estava viva, o barulho do elevador atraiu a sua atenção.
Da mesma forma brusca que me emboscou, ele me soltou e
estabeleceu distância entre nós. Seu olhar percorreu o meu rosto com algo
parecido com confusão estampado nas íris negras e ele meneou a cabeça,
escondendo a arma e dando um passo para o lado.
O som de passos se arrastando e conversas paralelas soaram atrás de
mim e ele cobriu a minha boca para impedir que eu gritasse. Eu não
acreditava que seria capaz de conseguir tal feito, meu cérebro havia sido
dominado pelo pânico e mal estava conseguindo forçar meus pulmões a
trabalharem.
André sacudiu a cabeça e sorriu para alguém ao fundo, aproximandose de mim como se fôssemos um casal apaixonado, incapaz de conter os
próprios desejos e se agarrando no estacionamento.
Pude ouvir o barulho das portas do carro se fecharem não muito
longe, mas não consegui saber quão longe estavam de onde nós estávamos.
Uma risada estridente ressoou pelo estacionamento e o corpo de André
apertou o meu contra a coluna, afastando-se apenas quando o carro deu
partida e passou por nós, fazendo o retorno para ir para a saída.
— Para o seu bem, é melhor que Sabrina esteja realmente morta —
disse ele, baixo e me olhando com a ameaça explícita em seus olhos. —
Porque dessa vez, eu não dou a mínima para quem o seu papai vai colocar
atrás de mim. Eu não vou embora enquanto aquela cadela não estiver
realmente a sete palmos abaixo da terra.
Arquejei, sofrendo com o seu aperto em minha traqueia.
— Você sabe melhor do que ninguém que deveria ter continuado no
carro naquela noite, princesinha — soprou em meu ouvido, afastando-se
completamente e meu corpo cedeu, sem forças.
Meus joelhos colidiram com o chão cru e gelado, e minhas mãos
instintivamente foram para a garganta. Pelo canto do olho, pude ver André
entrando na SUV preta estacionada a duas vagas de distância.
Pisquei, tentando recuperar minha visão, e o observei desaparecer
pela passarela que levava à saída, enquanto minha mente era invadida por
memórias daquela maldita noite.
cinco anos atrás
Empurrei o Antônio para longe, sentindo as bochechas doerem
devido às risadas causadas pelas cócegas e estiquei a mão para apanhar o
meu telefone que tocava sem parar, reconhecendo o nome do meu pai na
tela.
Torci os lábios em uma careta e deslizei o ícone para rejeitar a
chamada.
— Você não deveria ignorar o seu pai — Antônio defendeu, me
fazendo revirar os olhos entediada.
— Deixe ele pensar sobre o que fez um pouco — resmunguei,
guardando o celular na bolsa e vi de relance que o segurança sentado no
banco do motorista estava enviando mensagens para Miguel.
Não era como se ele não estivesse sendo informado do meu
paradeiro.
Ele sempre sabia a minha localização mesmo que eu estivesse em
outro continente. Respirei fundo, sentindo o meu bom humor se esvair e
balancei a cabeça, odiando que nem mesmo durante as minhas férias ele
conseguia me deixar sair um pouco da redoma de vidro que me blindava.
— Sabe que ele só estava preocupado com você — meu amigo
argumentou, entrando em defesa de Miguel pela milésima vez naquela
semana.
Eu estava começando a me arrepender de convencê-lo a me
acompanhar na minha visita ao Brasil.
— Isso não justifica ele me arrastar para um avião como se eu fosse
uma boneca sem vontade própria — falei, afundando o corpo no estofado,
ignorando o olhar que Christopher me lançava pelo retrovisor. Não
duvidava que aquela conversa seria repassada em detalhes para o meu pai.
Eu não tinha privacidade.
— Era uma situação complexa, Nathalia — disse Antônio, tentando
aliviar a minha frustração, mas de nada adiantava. — Seu pai estava
preocupado com a sua segurança.
Fechei os olhos, lutando contra a frustração e a culpa que
ameaçavam me consumir. Eu deveria me sentir terrível por estar com raiva
do meu pai depois que ele sofreu um atentado. Deveria estar mais
preocupada com o bem-estar dele, do que com a minha própria liberdade.
No entanto, ter sido arrastada à força pelos seguranças e jogada em
um avião sem saber para onde estava indo ou o porquê de estarem me
arrancando da Itália sem qualquer explicação; tratada como um maldito
cão que deveria apenas se sentar e aguardar pelas ordens do seu dono, não
me deixava nem um pouco feliz.
Talvez saber que ele não estava em risco de vida me deixasse
confortável para sentir raiva.
— Sabe que você não…
Abri os olhos, prestes a mandar Antônio calar a boca e parar de
defender as atitudes do meu pai cegamente, mas antes que eu pudesse dizer
qualquer coisa, meus olhos se concentraram em uma garota correndo em
nossa direção.
— Para o carro! — gritei tão alto que Christopher pisou no freio com
tanta força que nossos corpos foram empurrados para frente.
Uma agitação se instalou no carro, mas eu não me dei ao trabalho de
dar ouvidos a qualquer um deles. Em um instante, estava me desfazendo do
cinto de segurança e no seguinte, pulei para fora do carro sob as ordens
para permanecer dentro dele.
Olhei em volta, sem reconhecer onde estávamos, mas aquele lugar
não parecia ser dos mais agradáveis. Os poucos postes mal iluminavam a
rua e se não estivesse tão focada em me desligar da voz de Antônio, talvez
não tivesse visto a garota correndo em direção ao carro.
Meus olhos recaíram nela caída no chão, algo que deveria ser um
vestido a cobria parcialmente, mas não era nenhum pouco eficaz, uma vez
que a peça estava toda rasgada. A pobre garota estava imunda, seus
joelhos estavam machucados e seu corpo repleto de feridas abertas que
estavam sangrando e misturando o sangue fresco ao que estava seco.
Engoli em seco, ouvindo o tumulto dos homens que estavam saindo
atrás de mim e fugi do aperto de alguém que tentou me arrastar para longe,
correndo para perto da garota ferida.
Existia uma enorme diferença entre ser uma sem-teto e uma pessoa
que foi atacada, e pelos resquícios do que deveria ser um Balmain de duas
coleções atrás, eu tinha certeza de que aquela garota era tudo, exceto uma
sem-teto.
— Nathalia! — Antônio chamou atrás de mim, mas eu não lhe dei
ouvidos, retirando o meu sobretudo, joguei-o por cima da garota seminua
para cobri-la.
— Calma, eu juro que não vou te machucar — falei, sentindo minha
voz sair esganiçada pelo horror com o que estava diante de mim.
Meu estômago embrulhou, sentindo o mau cheiro que vinha dela,
algo mesclado a álcool, urina e…
— Não se aproximem! — berrei, virando na direção dos quatro
homens que corriam na nossa direção.
Meu olhar correu para o rosto de Antônio, o choque trouxe as
lágrimas que faziam a minha visão arder, mas não o suficiente para
impedir que eu visse o reconhecimento perpassar pelos olhos do meu
melhor amigo.
Observei a garota inconsciente na cama do hospital, seus braços
estavam cheios de agulhas e aparelhos médicos para acompanhar o seu
estado.
As lágrimas ainda rolavam sem parar pelo meu rosto e minhas mãos
tremiam, mesmo que o casaco de Antônio estivesse me mantendo aquecida.
Meus olhos se voltaram para o meu melhor amigo, encontrando-o
conversando baixo com o médico do outro lado do corredor. Uma
enfermeira passou por mim, pedindo licença para entrar na sala e trocar
um dos filtros de soro para mantê-la dormindo.
A garota teve um ataque de raiva assim que chegamos no hospital e
não permitiu que ninguém encostasse nela, exceto a enfermeira de idade
avançada que pediu que todos se retirassem para que ela cuidasse da
menina.
Cambaleei para trás, sentindo cada músculo do meu corpo reclamar
pelo tempo em que estava parada em frente ao quarto, observando a garota
como se eu pudesse mudar o que havia acontecido com ela.
Todo o andar do hospital havia sido esvaziado, e Christopher,
juntamente com outro segurança do meu pai, estava na entrada,
restringindo o acesso de qualquer pessoa. Nessa altura do campeonato,
meu pai já estava a caminho do Brasil no primeiro voo disponível, porque
Christopher não hesitou em ligar para Miguel e contar que sua filha tinha
enlouquecido; saltando do carro em um bairro perigoso e recusando-se a
entrar novamente, a menos que levassem a “sem-teto” com eles.
E naquele momento, eu sequer me importava com o quanto meu pai
repreenderia o que eu havia feito ou com o fato de que até algumas horas
atrás, eu estava fazendo um voto de silêncio contra ele. Tudo o que
importava era a garota fragilizada e inconsciente no quarto do hospital.
Virei o rosto, encontrando Antônio caminhando em minha direção
com uma expressão esquisita no rosto. Eram raras às vezes que ele
estampava algo diferente da indiferença, e não precisei que ele colocasse
em palavras para que eu soubesse o que havia acontecido com aquela
garota.
— A policial quer conversar com você — disse ele, com a voz soando
surpreendentemente suave, sem o sarcasmo habitual.
— Eles não encontraram nenhum documento com ela? — questionei,
com um fio de esperança inútil, porque a garota mal tinha tecido para
cobrir o próprio corpo, que dirá para guardar algum pertence.
Antônio balançou a cabeça, negando.
— Christopher vai te deixar na casa da Jessica e…
— Não vou sair daqui — falei, olhando-o firme.
— Nathalia…
— Isso não está aberto para discussões — cortei-o, séria —, eu não
saio daqui enquanto essa garota não estiver consciente.
A aproximação de Miguel me obrigou a desviar a minha atenção de
vigília que estava fazendo pela garota inconsciente.
Na noite passada, conseguimos descobrir que o seu nome era
Sabrina, mas os remédios a colocaram para dormir antes que o delegado
conseguisse arrancar qualquer outra palavra dela.
— Filha, você precisa ir para casa e descansar um pouco — papai
pediu, fazendo carinho em meu rosto e soltei um suspiro, sentindo-me
exausta.
— Não preciso… a cadeira da recepção é muito confortável —
murmurei, ouvindo uma risada fraca escapar do meu pai, fazendo com que
o seu peito vibrasse e eu me agarrei a ela para conseguir conter o choro
que estava entalado na minha garganta.
Para provar a Miguel que estava falando a verdade, aproximei-me da
cadeira que obriguei o diretor do hospital a instalar na frente da porta do
quarto de Sabrina, sentindo todos os meus músculos doerem pelo
desconforto dela.
Minhas costas estavam acabadas, meu quadril doía…, mas eu não
diria isso a nenhum deles porque senão me jogariam por cima dos ombros
e me arrastariam para fora. Exatamente como fizeram no início da semana
passada quando me retiraram da Itália. A diferença era que dessa vez, eu
estava mais do que disposta a lutar pela minha vontade e nem mesmo a
força me tirariam daqui. Eu não era mais criança e poderia muito bem
decidir sobre isso.
— Como ela está? — perguntou Miguel, sentando-se na cadeira ao
meu lado e jogando o braço sobre os meus ombros, me puxando para perto
dele e soltei um suspiro.
— Nada bem — repeti o que o médico disse para mim e para o
Antônio mais cedo. — Será um milagre se ela sobreviver.
Meu pai aquiesceu, desviando sua atenção para a cama ocupada
pela garota desconhecida.
— Ao menos vá para casa, tome um banho quente, descanse na sua
cama por algumas horas e coma algo que não seja ultraprocessado ou fastfood — sugeriu, demonstrando preocupação. — Eu prometo que vou ficar
aqui e não tirarei os olhos da menina.
A sua oferta era tentadora e o meu corpo agradeceria por dormir
mais do que alguns poucos minutos.
— Ouça o seu pai ao menos uma vez, fadinha — pediu, com um vinco
em sua testa. — O andar está fechado, os homens de Christopher estão por
todo lado e quem quer que tenha ferido essa menina não vai chegar até ela.
Soltei um suspiro, talvez fosse a falta de sono decente que estivesse
me deixando sugestionável, mas quando meu pai pediu pela segunda vez,
acabei cedendo e acatando seu pedido para que deixasse Christopher e
Antônio me levarem para casa.
Descansei a cabeça no ombro de Antônio, escutando Christopher e
ele debaterem sobre o último jogo do Bayern München[48]
.
Eu estava me sentindo tão cansada que não tive forças sequer para
provocá-los por terem perdido aquele jogo para um clube espanhol. Minha
mente parecia estar usando as suas vozes como uma canção de ninar e se
Antônio continuasse fazendo cafuné em meu cabelo, não tinha certeza se
conseguiria me manter acordada até chegar na casa do meu pai na cidade.
— Se não fosse aquele filho da puta do Marchesim virando o jogo,
teríamos sido classificados — Christopher disse, arrancando uma risada
do meu amigo ao escutar o segurança xingar o seu cliente. — Apostei que
aquele hurensohn[49]
ia continuar no banco nesse jogo.
Antônio começou a falar alguma coisa sobre Paulo estar avaliando
não renovar com o Napoli no fim do seu contrato. O que levaria Stefan,
irmão e empresário do italiano, buscar por um outro clube que atendesse
às exigências do jogador, mas o cansaço não me permitiu prestar qualquer
atenção na conversa.
Pisquei repetidamente, tentando forçar meu cérebro a permanecer
acordado, mas estava se tornando cada vez mais difícil e o assunto deles
não me ajudava a ficar interessada. Afastei-me de Antônio, endireitando os
ombros e olhei de relance para a janela ao meu lado.
Um motoqueiro que estava a alguns carros de distância, acelerou um
pouco mais quando o semáforo fechou e Christopher olhou pelo retrovisor
para rebater o comentário de Antônio sobre a linha de defesa do time do
chefe de segurança, mas meus olhos capturaram o momento que a luz do
sol refletiu em algo prateado na mão do homem na carona do motoqueiro.
— Abaixa! — gritei e minhas mãos cobriram meus ouvidos quando o
som das balas colidindo com a lataria, preencheram o carro.
Meu corpo foi arremessado para frente quando Christopher acelerou
e Antônio jogou o próprio corpo em cima de mim para impedir que eu fosse
atingida. Encolhi-me no espaço entre os bancos.
Tudo aconteceu rápido demais, os tiros ainda acertavam a lataria e
mesmo que o carro fosse blindado, Antônio não se afastou em nenhum
momento. Minha respiração falhou drasticamente e minhas mãos
começaram a suar frio, trazendo à tona uma crise de pânico.
Não sei em que ponto Christopher conseguiu despistar os
motoqueiros, mas quando ele freou o carro abruptamente, meus olhos se
concentraram na mancha de sangue que estava na porta do passageiro. Um
grito inaudível escapou do fundo da minha garganta e Antônio olhou na
direção, saltando para o banco da frente para socorrer o chefe de
segurança que acabou sendo atingido por uma das balas que perfuraram o
vidro.
dois anos e quatro meses antes
Senti uma mão apertar o meu ombro quando o funcionário da
funerária começou a jogar a terra dentro da cova e não precisei me virar
para saber que era o Antônio.
Ele não precisou dizer uma única palavra e ainda assim, as lágrimas
começaram rolar pelo meu rosto conforme a culpa me atravessava. Meus
olhos se fixaram no nome gravado na lápide.
Sabrina Oliveira
05/07/1990 – 10/06/2014
Lutou até a última batida do seu coração
Não sei ao certo por quanto tempo fiquei encarando a lápide como se
isso pudesse mudar o que havia acontecido, mas quando meu pai quebrou a
distância e me tirou dos braços de Antônio, os soluços escapavam do fundo
do meu peito sem qualquer controle.
— Shh, não chore, minha pequena — disse Miguel, apertando-me
contra seu peito —, você fez tudo o que podia por ela… — sua voz ficou
mais baixa e seus dedos mergulharam em meu cabelo, tentando me trazer
algum conforto. — Finalmente, ela poderá descansar.
Meu pai deixou um beijo em meu cabelo e levei a mão ao peito,
sentindo como se ele fosse explodir de tanto que doía.
— Isso é tão injusto… — solucei, sentindo como se uma faca estivesse
cravada em meu peito e aquela lápide fazia com que ela fosse enfiada cada
vez mais fundo. — Eu prometi que a salvaria.
Papai soltou um suspiro, sem saber o que dizer para me consolar e,
no fim, talvez não existisse nada que ele pudesse fazer para amenizar
aquela dor que me massacrava de dentro para fora.
As lágrimas ainda rolavam pelo meu rosto quando o barulho de um
carro entrando em alta velocidade no estacionamento me fez sobressaltar.
Meus dedos soltaram o volante que eu estava apertando como se
fosse uma âncora, segurando-me na realidade desde que consegui me
arrastar para dentro do carro, buscando abrigo.
Pisquei várias vezes, tentando clarear a visão e a respiração escapou
com alívio dos meus pulmões quando meus olhos se fixaram em Renato
atravessando o estacionamento e correndo em minha direção. No
automático, destravei o carro e ele abriu a porta, levando-me para perto e o
soluço escapou alto e entrecortado.
Um arrepio percorreu a minha espinha ao me lembrar da sensação da
arma sendo arrastada em minha pele e dos dedos de André em minha
garganta, impedindo-me de respirar.
Consegui escutar a voz de Renato falando com alguém, e as palavras
“câmera de segurança” escaparam em uma ordem que fez Marcus se afastar
de nós e entrar no elevador. Meus olhos correram pelo estacionamento
ainda movimentado. A maioria dos alunos estava em aula e não sairia tão
cedo. Imediatamente, me arrependi de ter decidido matar a última aula.
— O que aconteceu, anjo? — Renato questionou, afastando-se o
suficiente para segurar o meu rosto em suas mãos e enxugar as lágrimas que
rolavam sem parar.
Seu rosto estava assombrado e uma veia saltava em sua testa e
garganta, denunciando o seu nervosismo e por mais que eu tentasse
encontrar as palavras para justificar o que havia acontecido, não consegui
achar nenhuma que me impedisse de precisar mentir para ele.
O nome de Sabrina era como uma espécie de maldição, e eu sentia o
peso desse fardo sobre os meus ombros. Cada pessoa que eu envolvia nessa
confusão acabava se machucando de um jeito irreparável, e a montanha de
pessoas pelas quais eu carregava a culpa só aumentava.
Era uma carga que eu precisava suportar sozinha, porque
compartilhar com outra pessoa significava marcá-la e a transformar em um
alvo de André.
O problema era que eu não conseguia mentir.
Não quando Renato me olhava como se eu estivesse segurando o seu
coração em minhas mãos e pudesse quebrá-lo a qualquer momento se
fizesse um movimento incalculado.
Minha voz simplesmente desapareceu. Tentei forçar algumas palavras
a escaparem, mas tudo o que saiu foram chiados que só o deixaram ainda
mais preocupado. Minhas mãos tremiam, geladas e embranquecidas como
se eu fosse um maldito cadáver.
Esse mero pensamento foi o suficiente para trazer à tona as memórias
de cada pessoa que acabou ferida por eu ter os envolvido no meu problema
com André.
Eu não podia falar sobre isso com o Renato. Ele tinha duas crianças
que dependiam dele e que ficariam sozinhas se algo lhe acontecesse, e eu
não suportaria a culpa por arrastá-lo para aquela confusão e…
— Nathalia… — sua voz soou distante e pisquei, tonta e nauseada,
vendo o pânico trespassar pelos seus olhos escuros que eram sempre tão
impassíveis. — Você está machucada?
Não consegui responder, mas a minha cabeça se agitou para negar.
Ou acho que isso aconteceu. Tudo parecia descolado da realidade para mim
e eu não me sentia capaz de fazer muita coisa.
Renato deu ordens para alguém que estava próximo. Suas mãos não
me soltaram em nenhum momento e ele tomou a chave do meu carro,
lançando-a para a pessoa com quem estava conversando.
Seu braço envolveu a minha cintura, amparando-me enquanto
praticamente me carregava nos próprios braços para o seu carro a algumas
vagas de distância.
Eu conseguia ouvi-lo falando comigo, a sua voz parecia estar
afastada, em algum lugar muito distante. E a minha mente havia sido
arrastada para um poço profundo do qual eu não tinha certeza se
conseguiria escapar.
Culpa.
Arrependimento.
Eles estavam crescendo a cada minuto, transformando-se em
monstros que enchiam o poço em que eu estava presa.
Eles me afogariam até que não restasse mais nada para contar
história.
Por anos, mantive aquilo escondido debaixo do tapete. Sabrina foi
uma escolha impulsiva que mudou a minha vida e a das pessoas ao meu
redor de uma forma que eu nunca vou ser capaz de compensar pelos danos
causados. E eu era egoísta demais para sentir qualquer arrependimento por
ter saído do carro naquela noite, mesmo sabendo o caos que aquilo se
transformou.
O remorso que me corroía era unicamente por não ter conseguido
salvar ninguém. Eu só fiz com que as pessoas ao meu redor sofressem e
precisassem mudar suas vidas.
No fim, eu não salvei a Sabrina e ainda consegui levar mais inocentes
para aquele campo minado.
Pisquei, sentindo uma mão quente e gentil se aninhar em meu rosto,
buscando pela minha atenção e virando-me para que o olhasse. As orbes
escuras e familiares me fitavam com tamanha preocupação que eu me sentia
uma babaca por não estar conseguindo sair daquele torpor. A sensação era
que existia uma corda em volta do meu pescoço e ela apertava a cada
segundo, restringindo não só a minha respiração, mas a minha capacidade
de falar.
Renato se afastou por alguns minutos ou horas, não fui capaz de
identificar e seus braços me envolveram, carregando-me para algum lugar.
Minha visão estava desfocada, e quando olhei em volta tudo o que consegui
enxergar era um estacionamento e o carro de Renato ao fundo, ficando cada
vez mais longe.
Nathalia estava em estado catatônico quando a deixei no sofá da
nossa sala.
Ajoelhei-me na sua frente, buscando pelo seu rosto e tentando fisgar
a sua atenção de volta, mas além do olhar desfocado e dos tremores que a
percorriam, o chiado esganiçado era a única coisa que me fazia ter certeza
de que ela não era uma boneca em tamanho humano e que havia vida dentro
dela.
Ela respirava ruidosamente e seu coração batia com violência, eu
podia senti-lo pulsando forte no peito, como se estivesse esmurrando a
caixa torácica para conseguir se libertar.
Eu tinha tantas perguntas, mas era impossível descobrir que merda
havia acontecido para deixá-la daquele jeito.
— O que aconteceu? — questionou Marc, atravessando as portas do
elevador acompanhado de Pedro, Leandro, Bianca e um médico que eu
havia pedido para que o meu advogado trouxesse.
Independentemente do que ela não tinha me contado, eu conseguia
reconhecer as marcas de uma mão em sua garganta. A pele de Nathalia era
extremamente sensível e ficava marcada com muita facilidade, e aquela
mancha avermelhada deixava explícito que ela havia sido atacada no
estacionamento do campus.
— Preciso que você entre em contato com o seu amigo delegado e
peça as filmagens das câmeras de segurança da faculdade da Nathalia —
falei, olhando para o loiro do outro lado da sala.
Ele olhou para a minha mulher, visivelmente preocupado.
— Tudo bem.
O médico se aproximou do sofá e, nos minutos que se seguiram, Dr.
Jonathan, que era um cliente e colega de longa data, examinou a garota
sentada no sofá, que se encontrava completamente fria e pálida.
No caminho para a faculdade, liguei para Marc, pedindo que ele
viesse me encontrar. Eu não fazia ideia do que poderia ter acontecido, mas
preferia tê-lo por perto. Como todos estavam no apartamento de Pedro, não
demorou para que atendessem ao meu chamado e viessem nos encontrar.
O corpo de Nathalia estava rígido, como se fosse uma estátua. Ela
não piscava e, mesmo olhando fixamente para um ponto à sua frente, não
parecia realmente enxergar nada. Seu olhar estava perdido, desfocado e
vazio. O brilho característico que costumava estar presente em seus olhos
havia desaparecido, consequência do que quer que tivesse acontecido para
deixá-la naquele estado.
— O que aconteceu? — Pedro questionou, hesitando a alguns passos
de distância do sofá e desviei meus olhos do rosto de Nathalia,
reconhecendo a preocupação dele.
— Não faço ideia.
Procurei por Marc, que estava na outra extremidade do andar,
andando em círculos enquanto falava ao telefone com o delegado. Virei-me
para Bianca, que também parecia confusa com a situação. Ela insistiu que
nunca tinha visto Nathalia daquele jeito antes.
Aos poucos, Nathalia reagiu ao calor que a minha mão transmitia,
seus dedos apertaram os meus com um pouco de força e seus músculos
foram relaxando gradativamente, reagindo aos estímulos que meus dedos
forçavam em seu corpo. Ela piscou, aturdida e seus olhos buscaram pelos
meus, marejados.
O pedido para que ficássemos sozinhos estava explícito, ainda que
não conseguisse dizer qualquer coisa, e não me demorei a dispensar os
meus amigos para que fossem para suas respectivas casas, prometendo que
amanhã teria alguma explicação para justificar aquilo tudo.
Marc passou por mim, saindo da varanda com um semblante sério.
— Diogo não encontrou nenhuma filmagem do que realmente
aconteceu — disse, mexendo no celular e virou a tela para mim —, quem a
emboscou fez isso em um ponto cego das câmeras e tomou cuidado para se
manter de cabeça baixa o tempo todo em que ficou exposto — explicou,
mostrando um fragmento das filmagens.
Às oito da noite, a G63 de Nathalia entrou no estacionamento, onde
ela se encontrou com Diana em frente ao elevador. Dez minutos depois, um
carro preto de modelo popular também entrou, estacionando a três fileiras
de distância do SUV. Três homens saíram do carro, um deles usando um
boné e mantendo a cabeça baixa o tempo todo. O segundo homem, maior e
musculoso, tinha a cabeça raspada e, por um breve momento, virou o rosto
quando outro carro entrou no estacionamento, mas logo desceu para o
segundo subsolo. O terceiro permaneceu dentro do carro por alguns
minutos, mas quando saiu, também manteve a cabeça baixa e virado de
costas para a câmera.
O vídeo avançou rapidamente, mostrando o momento em que
Nathalia saiu distraída do elevador, falando ao telefone e segurando sua
bolsa. Ela caminhou em direção ao local onde seu carro estava estacionado,
e no próximo frame, desapareceu da filmagem. Marc acelerou o vídeo,
revelando que levou cerca de dez minutos desde o momento em que ela foi
agarrada até ser solta pelo homem. Levou mais aproximadamente quinze
minutos para Nathalia se levantar do chão e correr para o carro.
Em nenhum momento, seus seguranças apareceram, e eles deveriam
estar lá.
— Esse cara aqui? Chamam ele de Caveira — disse Marc, voltando
para uma captura de tela em que metade do rosto do careca estava
aparecendo, não era muita coisa, mas meu investigador daria um jeito de
encontrá-lo. — É procurado pela polícia federal por participar de um
esquema de tráfico e aliciamento de menores. Ele desapareceu há cerca de
dois anos e meio, depois que uma das testemunhas acabou sendo
encontrada morta.
Franzi o cenho, sem entender o que isso tinha a ver com Nathalia.
— Que operação? — questionei, sentindo meus músculos retesarem e
me virei para a Nathalia, encontrando-a tomando um dos calmantes que
Jonathan receitou para que se mantivesse calma.
Mara estava ao seu lado, cuidando dela como se fosse uma criança de
novo.
— Diogo não sabe muito sobre o assunto, mas é um caso que a PF
estava de olho há alguns anos e que acabou sendo arquivado pela ausência
de testemunhas — explicou, encaminhando as imagens para o meu telefone.
— Posso procurar Oliver e descobrir se ele sabe de alguma coisa.
Encarei o meu amigo.
Marc e o pai dele não se falavam há anos e, nas raras exceções, era
por causa da mãe do meu amigo. No entanto, a oferta era tentadora, já que
Oliver Menezes era o atual presidente do STF e tinha acesso legal a alguns
recursos. Eles pararam de se falar ainda na faculdade por conta de
divergências éticas, e a relação não era das melhores.
— Não é necessário — falei, tranquilizando-o e realmente agradecido
por estar disposto a se comprometer dessa maneira por causa da minha
mulher. — Diogo consegue ao menos dizer quando a PF começou a
investigar esse esquema?
Marc meneou a cabeça, afastando-se para fazer uma ligação, e
aproveitei os minutos seguintes para escutar as recomendações de Jonathan
sobre como deveria lidar com Nathalia nas próximas horas.
— O remédio fará efeito em alguns minutos. Ela pode ficar sonolenta
e apática nas primeiras horas… e se acontecer uma nova crise, não hesite em
me ligar — pediu Jonathan, e eu confirmei, guiando-o até o elevador e me
despedindo.
— Renato, posso levá-la para cima? — perguntou Mara, olhando-me
por baixo dos cílios e observei a garota sentada no sofá.
Suas mãos ainda tremiam e ela as encarava como se houvesse algo ali
que não era visível a olho nu.
— Por favor, Mara. Subo em cinco minutos, obrigado.
Ela acenou, tendo todo o cuidado do mundo ao envolver a cintura de
Nathalia com o braço e ajudá-la a subir as escadas em direção ao nosso
quarto. Assim que elas desapareceram da minha vista, Marc se aproximou
com uma ruga na testa e me entregou o celular para que eu pudesse ver a
informação contida no documento enviado por Diogo.
Meus olhos correram pela página, concentrando-se no nome que
rubricava a última página. Era fácil reconhecê-lo, uma vez que eu carregava
o seu sobrenome.
— Meu pai trabalhou na investigação? — perguntei, retoricamente.
A informação estava clara para que eu não tivesse qualquer dúvida, e
a data nele era de um ano antes do incidente que resultou na aposentadoria
do meu pai. Ele acabou sendo baleado e após várias cirurgias para remover
uma bala da sua cabeça, minha mãe exigiu que abandonasse os casos em
que estava trabalhando.
— Ele chefiou toda a operação, ao menos até se aposentar — disse
Marc, apanhando o celular da minha mão. — Eduardo deve ter mais
informações sobre isso, você não disse que ele continuou ajudando o
substituto dele escondido da sua mãe?
Aquiesci, murmurando um agradecimento para o meu amigo e o
acompanhando para a saída.
— Entre com uma ação contra o campus — instruí, parado entre as
portas e impedindo que elas se fechassem. — Pela fortuna que cobram
anualmente, é um absurdo que se descuidem tanto com a segurança.
Afinal, não me pediram nenhuma explicação quando entrei no
campus acompanhado pelos meus seguranças, e considerando que o prédio
serve como local de estudo para os filhos de alguns dos homens mais ricos
do país, isso era, no mínimo, negligente.
Quando me despedi de Marc, enviei uma mensagem para o meu pai e
ele confirmou que viria me encontrar assim que deixasse minha mãe em
casa. Eles tinham ido jantar com os Zimmermann e os Salazar naquela noite
para comemorar o aniversário de Hugo, a pedido de Ada.
— Renatinho, você precisa de mais alguma coisa? — Mara
perguntou, descendo as escadas com um semblante preocupado e desviei
meu olhar das janelas para a mulher que conhecia a minha mulher desde
que ela era uma criança.
No entanto, duvidava muito que Nathalia tivesse compartilhado
qualquer coisa com ela.
— Os seguranças de Nathalia não estavam com ela esta noite —
comentei, lembrando-me de ter percebido esse padrão em alguns momentos
anteriores.
No entanto, como Marcus ou Sérgio sempre estavam de olho nela,
não me preocupei tanto na época. A diferença era que dessa vez eu tinha
motivos, não apenas para me preocupar, mas também para matá-los por não
terem feito o que eram pagos para fazer.
Nas minhas conversas com Miguel, ele sempre deixou claro que a
segurança de Nathalia era sua prioridade e que se eu a colocasse em risco,
estaria arruinado. Eu não me importava com as suas ameaças porque sentia
o mesmo em relação aos meus filhos e a ela, e o entendia perfeitamente.
Mara torceu os lábios, em uma careta que denunciava que estava
familiarizada com a situação.
— É ela tinha esse costume de driblar a equipe de segurança e sair
escondida… era uma dor de cabeça constante para Miguel quando era
adolescente — disse, com uma certa nostalgia.
— Ela fazia isso com frequência?
— Sim, principalmente quando brigava com Miguel — explicou,
dando de ombros —, coisa de adolescente, sabe? É compreensível, às vezes
até eu concordava que Miguel sufocava a coitadinha. — Balançou a cabeça,
olhando-me com uma expressão de sabedoria. — Não demorou para que ela
aprendesse que o dinheiro comprava algumas horas de liberdade. Já a vi
cochichando com os rapazes do Alisson tantas vezes que me surpreenderia
se ela não tivesse arrumado uma maneira de conseguir alguns minutinhos
longe deles.
Respirei fundo, meneando a cabeça em resposta.
— Tudo bem. Obrigado, Mara.
Nathalia já estava dormindo quando subi para o quarto para checar se
ela estava bem.
Eu me agachei na sua frente, observando como, mesmo em meio ao
sono profundo devido ao remédio, um pequeno vinco se instalou em sua
testa e seus dedos apertavam o meu travesseiro. Ela estava usando uma
camiseta minha da época da faculdade e estava tão encolhida na cama
enorme, que parecia ainda menor do que o normal.
Com cuidado, deixei que minha mão fosse ao encontro do seu rosto e
meus dedos escovaram sua bochecha macia, ouvindo um suspiro baixinho
escapar dos seus lábios. Seus dedos envolveram o meu pulso, impedindo
que eu me afastasse e permaneci ali por alguns minutos, tentando entender
como a filha de um magnata do mercado financeiro global acabou entrando
no caminho de um homem envolvido com aliciamento de menores.
Nada naquela história estava fazendo sentido na minha cabeça.
Quando a notificação do uso do elevador surgiu no meu celular,
deixei um beijo em sua testa e com cuidado para não a acordar, sai do
quarto e caminhei pelo corredor, checando rapidamente se os garotos ainda
estavam dormindo. Na escada, meus olhos se fixaram no meu pai saindo de
dentro do elevador com uma expressão de preocupação estampada no rosto.
Não era comum eu chamá-lo para ir até minha casa no meio da
madrugada. A última vez que algo assim havia acontecido foi há quase dez
anos, quando ele precisou ir até Londres para me ajudar com uma situação
que caiu no meu colo.
— O que houve? — indagou e indiquei em silêncio para que
seguíssemos para o meu escritório no corredor paralelo, assim não corria o
risco de qualquer um dos três acabar acordando.
Caminhei direto para o bar, servindo duas doses de conhaque e
virando-me para entregar um copo para ele.
— Algum problema com os meninos? — Eduardo investigou,
espreitando os olhos em meu rosto, buscando pelo motivo por trás do meu
silêncio e respirei fundo.
— Não — murmurei, sentando-me no sofá na sua frente e descansei
os cotovelos nos joelhos, olhando-o com tranquilidade.
Eduardo nunca gostou de falar sobre a época em que foi DiretorGeral da Polícia Federal, e eu sempre respeitei isso, evitando fazer
perguntas, mesmo tendo várias em mente. Algumas delas poderiam explicar
o motivo pelo qual ele havia sofrido um atentado. Como pai, compreendia
que existiam certas coisas que não eram compartilhadas com os filhos, mas
eu não era mais um adolescente ingênuo. Eu sabia como o mundo
funcionava.
— Há oito anos, a polícia federal começou uma investigação sobre
uma rede de prostituição que atuava no eixo Rio-São Paulo — falei
calmamente, vendo seus ombros retesarem e seus dedos se apertarem no
cristal do copo. — Você era o responsável por comandar a operação e
chegou a executar algumas batidas em escritórios de contabilidade e
advocacia…
Meu pai cerrou a mandíbula, meneando a cabeça.
— Algum cliente seu está envolvido na lista?
— Lista?
Eduardo meneou a cabeça.
— Sim, existe uma lista com cerca de trezentos nomes. Empresários,
políticos… pessoas ocupando altos cargos no governo federal — enumerou,
bebendo um longo gole de conhaque. — Há cerca de três anos, uma prévia
da lista chegou a vazar, contendo cerca de vinte nomes, mas não houve
nenhuma consequência para os envolvidos… especialmente porque as duas
testemunhas que poderiam confirmar a veracidade da lista foram
encontradas mortas.
Apanhei o meu celular sobre a mesa de centro, desbloqueando a tela e
entregando aberto na cópia da filmagem que Marc me enviou.
Meu pai assistiu calmamente, analisando e ampliando a imagem vez
ou outra para ver algo com mais cuidado.
— O amigo de Marc disse que o motorista que está fumando durante
a gravação é conhecido pelo nome: Caveira — murmurei, afundando as
costas no estofado, observando com atenção —, meu investigador descobriu
que ele se chama Kauãn Novaes.
— Essa é a Nathalia?
Aquiesci, vendo meu pai piscar com claro atordoamento.
— Quem é o outro homem? — indaguei, vendo-o apertar os dedos
em torno do aparelho.
— André — murmurou, trazendo seu olhar para o meu rosto —, o
sobrenome que ele usa é falso e ninguém conseguiu encontrar qualquer
outra informação. — Meu pai fez uma careta e levou a mão até a têmpora,
como se sentisse o retorno das dores de cabeça recorrentes desde a cirurgia
para remover a bala de sua cabeça.
— Ele é o chefe do esquema?
— Sim, o Cavei… Kauãn é só a pessoa que limpa a sujeira dele. O
outro cara é novo, nunca ouvi falar sobre ele — explicou, olhando-me de
relance como se estivesse refletindo sobre algo.
— Ele tem ligação com o atentado que você sofreu?
— Possivelmente, nunca consegui comprovar. — Deu de ombros,
abandonando o celular na mesa de centro e bebendo mais um pouco do
conhaque. — E depois que eu me aposentei, os meus substitutos não
tiveram muita sorte com o avanço da investigação. A última coisa que eu
soube foi que ele acabou desmontando a operação no Brasil e desapareceu.
— Na mesma época do vazamento da lista?
— Sim.
— Você sabe quem estava lidando com as testemunhas? —
investiguei, tentando juntar as peças em minha cabeça.
— Não, Rodolfo só me contou o nome delas: Letícia e Sabrina. Elas
eram menores de idade quando começaram a trabalhar na “agência de
modelos” que o André usava como fachada para recrutar as meninas —
disse, engolindo o desgosto com aquele caso. — Ele vendia para elas o
sonho de serem modelos internacionais, mas quando as enviava para o
primeiro trabalho, na verdade, estava as enviando para serem abusadas.
O enjoo invadiu meu estômago.
— As duas garotas morreram?
Meu pai confirmou.
— Letícia foi baleada na frente do fórum, os dois seguranças
particulares que estavam a escoltando morreram na hora, mas a menina
acabou falecendo no hospital durante a cirurgia. Ela tinha dezenove anos, e
era vendida pelo André desde os dezesseis. — O tom sombrio que cobriu a
voz do meu pai repercutiu em meu próprio corpo.
— E a outra garota?
— Teve um fim muito pior — disse, nauseado. — Ela era a
testemunha principal e quem estava a protegendo precisou mantê-la fora do
país por alguns meses, mas acabou não adiantando. O corpo dela foi
encontrado no fundo de uma represa na zona leste da cidade.
— Fora do país…?
— Colômbia, se não me engano — respondeu, dando de ombros. —
Rodolfo só me deu mais alguns detalhes depois que as duas foram mortas e
ele recebeu uma ordem direta de cima para encerrar qualquer investigação.
Aquela era a única informação que precisava para solucionar o
quebra-cabeça que estava se formando em minha cabeça.
Bianca havia comentado mais cedo sobre Antônio e Nathalia terem
passado por algumas situações complicadas das quais ela não tinha
conhecimento, mas que os deixaram mais unidos do que antes.
— Acha que Nathalia tem alguma ligação com o André?
— Com as vítimas — corrigi, sincero.
Era tão característico de Nathalia querer se sacrificar para ajudar
todas as pessoas por quem se afeiçoava que eu não duvidava que ela tivesse
esbarrado com uma dessas garotas e decidido protegê-las, mesmo que isso
colocasse a sua própria vida em risco.
Isso também justificaria a superproteção de Miguel em relação a ela,
mesmo no Brasil, onde ela não tinha a imprensa em cima o tempo todo.
— Vou entrar em contato com o Rodolfo para descobrir se ele ainda
está acompanhando o esquema do André, mas acho válido falar com
Miguel sobre aumentar a segurança da menina — meu pai sugeriu,
levantando-se para ir para casa. — No vídeo ficou claro que eles sabiam
exatamente quais eram os passos dela, pode ser que estejam seguindo a
garota há um tempo.
Engoli em seco, meneando a cabeça, tentando alinhar os
pensamentos.
— Isso serve para você e os meninos também — frisou, atraindo o
meu olhar —, se André está seguindo a Nathalia, ele já deve estar sabendo
que ela tem um relacionamento com você.
— Sérgio e Marcus já estão informados da situação.
Meu pai negou.
— Só os dois não será o suficiente — falou, firme —, não subestime
o André. Se ele retornou para o Brasil mesmo sabendo dos riscos que isso
poderia trazer, não vai medir esforços para conseguir o que quer.
— Tudo bem, vou conversar com Sérgio para expandirmos a equipe
de segurança — tranquilizei-o, observando meu pai terminar o conteúdo
restante em seu copo e concordar comigo.
Em seguida, ele se despediu e retornou para sua casa.
Minhas pálpebras pesavam uma tonelada.
Me custaram alguns minutos até que meu cérebro despertasse
completamente e se desfizesse da névoa que o envolvia, mantendo-me tão
letárgica que mal conseguia reconhecer o cômodo em que estava.
Minha cabeça doía e meus ossos pareciam ter sido esfarelados, como
se um caminhão tivesse passado por cima de mim, deixando apenas os
restos espalhados.
Forcei meu corpo para cima, espalmando o colchão macio e usando as
mãos como um suporte para me manter sentada. Ao meu lado, Matheus
dormia serenamente enroscado na sua pelúcia do Hulk. Um pequeno bico
em seus lábios o tornava ainda mais adorável, e a sensação de que uma mão
apertava meu coração com força diminuiu um pouco.
Olhei em volta, buscando por Renato, mas ele não estava em lugar
algum.
Aos poucos, flashes da noite passada retornavam para a minha mente,
lembrando-me de como o dia anterior estava fadado a ser péssimo.
Engoli em seco, levando a minha mão para o meu pescoço como se a
mão de André ainda estivesse pressionando, impedindo-me de respirar
corretamente. Sem pressa, sai da cama e fui direto para o chuveiro,
precisando de uma ducha quente para tentar desfazer a sensação de que
meus músculos estavam rígidos como pedra.
Conforme a água caía sobre a minha cabeça, o meu cérebro repassava
a conversa no estacionamento da faculdade.
Uma profunda sensação de frustração pesou sobre meus ombros.
Parecia que nada podia dar certo para mim por muito tempo. Eu enfrentava
um demônio e avançava no campo de batalha, apenas para me deparar com
um ainda pior. Lidar com Guilherme era uma brincadeira de criança em
comparação com André, e eu preferia mil vezes enfrentar as consequências
de revelar meu envolvimento com Renato ao conselho de sócios, com todas
as ofensas possíveis, do que lidar com aquele homem asqueroso que me
assombrava há anos.
As lágrimas rolaram pelo meu rosto, lembrando-me de que não havia
dinheiro que pudesse me livrar do fardo de ter meu destino nas mãos de
André. Ele era o próprio diabo, reunindo os demônios mais influentes do
sistema para mantê-lo protegido e impune por todo o mal que causou às
garotas inocentes.
Funguei, arrastando o dorso em minha bochecha ao sentir a
aproximação de alguém e ergui o rosto para o espelho que refletia o meu
corpo enrolado na toalha, encontrando Renato me examinando como se eu
fosse uma projeção etérea que desapareceria a qualquer momento.
— Como você está se sentindo? — investigou, relaxando as costas na
parede de mármore grego. Não havia qualquer sinal de descontração em sua
pergunta, apenas preocupação. — Sem mentiras.
Engoli em seco, abandonando o creme em cima da pia e me virando
para ele. Essa não foi uma boa decisão. Seus olhos recaíram no hematoma
em minha garganta e suas narinas inflaram, as íris escureceram e uma veia
saltou com tamanha violência em sua testa que considerei que fosse
explodir.
Era perceptível que ele estava se controlando muito para não quebrar
a distância entre nós, talvez por medo de que eu me sentisse intimidada.
Entreabri os lábios, buscando por uma resposta que fosse sincera, mas
nenhuma impedia que ele fizesse mais perguntas.
Minha visão embaçou e quando uma lágrima teimosa rolou sem a
minha permissão, Renato não pensou duas vezes antes de romper com a
distância desnecessária e envolveu meu rosto em suas mãos como se
pudesse quebrar se manuseasse da maneira errada.
— Shh, meu anjo — sussurrou e o soluço escapou do fundo do meu
peito. Seus dedos mergulharam em meu cabelo e ele fez carinho, apertando
meu corpo contra si. — Está tudo bem, você está bem e segura.
Aquilo não estava nem perto de ser verdade, mas como eu poderia
julgá-lo por acreditar nisso quando não fazia ideia do tamanho da merda em
que eu estava enfiada?
Agarrei-me nele, deixando que o choro escapasse pelo tempo
necessário para aliviar o meu peito daquele desconforto angustiante, e ele
não se afastou. Renato se manteve ali, amparando e me confortando. E por
mais egoísta que fosse permitir que ele me consolasse por um problema que
eu mesma criei, permiti que suas palavras mansas e repletas de confiança
invadissem minha mente, substituindo as ameaças de André.
Eu estava exausta.
A sensação era que eu estava no fundo do poço e a cada segundo que
eu tentava escalar para escapar dele, alguém que estava muito determinado
a me manter nele, simplesmente jogava mais água e aos poucos, ela ia
chegando tão perto do limite que eu sabia que iria me engolir e me afogar.
Para cada passo que eu dava, uma situação inesperada me arrastava de
volta para o ponto de partida anterior e, no fim, eu nunca saía do lugar e
permanecia naquela armadilha, esperando pelo monstro que viria me
devorar de uma vez por todas.
A camiseta branca de Renato ficou umedecida por conta das minhas
lágrimas e me afastei um pouco, sentindo seus dedos encontrarem seu
próprio caminho para o meu rosto, afagando a minha bochecha com uma
ternura que não era habitual para ele.
— Preciso que você se vista, anjo — disse, baixo e grave.
Balancei a cabeça, deixando que ele me guiasse para fora do seu
banheiro. Um pequeno vinco surgiu em minha testa ao ver que metade do
seu closet havia sido esvaziado, e os ternos perfeitamente alinhados e feitos
sob medida, foram substituídos pelas… minhas roupas?
Virei o rosto para o homem ao meu lado, percebendo que a
impassividade havia retornado aos seus olhos. A mesma expressão que ele
usou na tarde passada, quando me disse que não aceitaria minha opinião
sobre o que estava fazendo, estava presente novamente.
— Bianca e Mara trouxeram o que julgaram mais importante —
explicou casualmente, como se não tivesse enlouquecido de uma vez por
todas —, quando resolvermos algumas questões, você pode trazer o
restante. Conversei com o Pedro e ele vai designar uma arquiteta para
transformar o quarto ao lado em uma extensão do armário e…
— Renato — chamei-o, interrompendo a sua explicação. — Por que
as minhas coisas estão aqui?
Ele engoliu em seco.
— É melhor você se vestir e descer, anjo. — Foi tudo o que disse,
deixando um beijo em minha testa e me dando as costas para sair do quarto.
Pisquei, confusa.
Meus olhos se voltaram para o armário, onde minhas coisas estavam
perfeitamente arrumadas entre os cabides e prateleiras, como se sempre
tivessem pertencido àquele lugar. Não soube se foi devido à letargia que me
dominava ou à incredulidade da situação, mas forcei meus pés a se
arrastarem pelo espaço e peguei um vestido qualquer.
O relógio na cabeceira da cama indicava que já passava das três da
tarde, o que significava que eu havia perdido todos os meus compromissos
do dia e os meninos não foram para o colégio também.
Vinte minutos depois, deixei o quarto de Renato para trás e me
arrastei para as escadas, tentando forçar o meu cérebro a voltar ao normal e
se dispersar daquela letargia que me controlava.
No entanto, hesitei na escada ao avistar uma silhueta familiar de
costas, próxima à escadaria. Reconheceria aquela figura em qualquer lugar,
pois era a imagem que mais se enraizava em minhas lembranças quando
pensava nele. Virei meu rosto para o outro lado da sala e deparei-me com
Renato e Antônio conversando. Precisei me beliscar com força para ter
certeza de que não estava sofrendo de alguma alucinação.
Infelizmente, foi em vão, quando um arquejo involuntário escapou, os
três pares de olhos impiedosos se voltaram para mim, exibindo expressões
nada amigáveis.
Eu estou tão fodida.
Pigarreei, apertando meus dedos no corrimão da escada e tentei
manter a calma, afinal, o pior que eles poderiam fazer era dizer o quanto eu
havia sido irresponsável por burlar a minha segurança. Meu pai foi claro
que arrancaria a minha cabeça do pescoço se isso acontecesse outra vez,
mas se Renato conseguiu qualquer filmagem do estacionamento… ele sabia
que havia algo muito errado.
Engoli em seco, forçando meus pés a se moverem para descer os
degraus restantes.
— Onde está o Igor? — indaguei, tentando ganhar tempo ao ver que,
diferente de Matheus que estava dormindo na nossa cama, o primogênito de
Renato não estava em nenhum lugar.
— Com o Pedro — murmurou o pai dele, aproximando-se da escada
ao reconhecer o meu nervosismo. Dos três, Renato era o que parecia estar
mais calmo e ainda assim, isso não chegava nem perto de ser reconfortante.
Acenei, aceitando a sua mão e entrelaçando meus dedos aos seus com
tanta força que cogitei que pudesse quebrá-los. Tentei forçar um sorriso
para os outros dois homens, mas nem isso aconteceu. Meu pai estava me
encarando com aquele olhar. O mesmo que por alguns anos causou muitas
discussões entre nós.
Virei-me para o Renato, pedindo por socorro e ele me guiou para a
mesa na varanda onde havia uma mesa posta. Aquilo me cheirava a
emboscada, eu conseguia sentir as agulhas afiadas que os outros dois
homens arremessavam em minhas costas.
— Tudo bem — falei, sentando-me à mesa e vendo meu pai e Antônio
se sentarem na minha frente.
Renato parecia um pouco mais relaxado, o suficiente para tomar a
iniciativa de começar a retirar as rebarbas do pão e passar um pouco de
geleia, antes de colocar no meu prato com tranquilidade.
Minhas mãos estavam trêmulas e eu odiei como meu pai às vezes me
fazia sentir como uma criança de novo.
— Eu prefiro que você comece a gritar — murmurei, acuada. As
orbes verdes espreitaram meu rosto como se fosse um animal selvagem
prestes a devorar o seu filhote.
— Acredite em mim, você não prefere — falou, rude.
Ele estava certo, eu não preferia, mas era melhor do que aquele
silêncio incômodo.
— Sabe por que eu gasto uma fortuna com uma equipe de segurança
para acompanhar cada passo que você dá? — questionou, relaxando as
costas na cadeira e mantendo os olhos sobre mim, como navalhas me
rasgando. A decepção estava estampada em suas íris.
— Eu sei…
— Não, você não sabe — cortou —, porque se soubesse, não seria
estúpida ao ponto de suborná-los para não fazerem o que são pagos para
fazer!
— Pai, eu…
— Eu não quero explicações, Nathalia — interrompeu bruscamente, e
apesar de não ter levantado a voz em nenhum momento, o tom baixo e lento
que usava era ainda mais mortal. — O motivo de ter aceitado o seu pedido
para vir morar em São Paulo, foi porque contei com o seu bom senso e
acreditei que essa palhaçada de fugir das pessoas que são pagas para te
manter segura, havia ficado na adolescência!
Engoli em seco.
— Você tem ideia do que poderia ter acontecido ontem? Do que
André poderia ter feito com você?
Meu coração martelou forte no peito e meu olhar correu para Renato,
odiando meu pai por tê-lo envolvido nisso e piorou ainda mais quando meu
namorado sequer piscou ao ouvir o nome desconhecido.
Ele sabia de tudo.
Olhei para o meu pai, sentindo a raiva começar a crescer dentro de
mim.
— Se ele quisesse realmente fazer alguma coisa comigo…
— Não ouse tentar argumentar — interrompeu novamente, obrigandome a calar a boca. — Se você quer agir como uma maldita adolescente
rebelde de novo, eu não vou me importar em te conceder qualquer
benevolência, porque acredite… o único motivo para você ainda estar aqui,
é porque o seu namorado foi mais responsável do que você!
Bufei, empurrando o prato para longe, perdendo o apetite.
— Você nem está me deixando explicar o que aconteceu. Está agindo
como um ditador de novo!
— Eu sou a porra do ditador quando se trata da sua segurança.
Passamos dessa fase, Nathalia. — A brusquidão em sua voz era como um
tapa na minha cara. Odiava lidar com aquela versão do meu pai.
Antes que eu pudesse falar qualquer coisa em minha defesa, meus
olhos recaíram nas juntas dos seus dedos vermelhos e repletas de cortes
recentes. Desviei para Antônio, reconhecendo o mesmo tipo de machucado
em suas mãos.
— Seu pai e eu conversamos, anjo — disse Renato, em um tom de
voz mais ameno, quebrando a tensão instalada na mesa, levando meu pai e
eu ao limite.
Talvez minha mãe estivesse certa e eu fosse mais parecida com ele do
que eu pensava. No entanto, havia uma diferença entre nós: eu nunca
permitiria que meus filhos se sentissem prisioneiros em suas próprias vidas.
Sabia melhor do que ninguém o quanto era sufocante olhar em volta e
constatar que cada passo era vigiado.
Pisquei, tentando conter as lágrimas que ameaçavam escapar.
— Por hora, você vai morar comigo — disse Renato, olhando-me
com a mesma ternura de mais cedo, eu conseguia sentir a preocupação em
sua voz.
— Renato, isso…
— Isso não está aberto para discussões. — Miguel me interrompeu e
meus punhos se fecharam, tentando conter a frustração que queimava meus
ossos.
Virei meu rosto para o meu pai, aspirando o ar profundamente.
— Quer liberdade? Essas são as suas duas opções — disse ele,
abandonando a xícara de café sobre a mesa e alinhando a postura. — Opção
A: você vai parar de ser teimosa e ficará morando com o Renato, estará sob
a vigilância constante dos homens que ele mais confia e, consequentemente,
permanecerá na RCI sob as minhas regras — anunciou, sem tirar os olhos
dos meus. — Opção B: você vai arrumar as suas coisas agora, entrar no
carro comigo e com o Antônio e usufruir de toda a maldita liberdade que
você tanto quer. Sem seguranças. Em uma ilha no Leste Asiático.
Uma risada incrédula escapou do fundo da minha garganta e olhei em
volta, buscando pelo momento em que um deles me diria que essa era uma
piada.
No entanto, suas expressões denunciavam que estavam falando sério.
— Isso só pode ser brincadeira… — balbuciei, incrédula.
Antônio tomou a frente antes que meu pai perdesse a cabeça comigo e
me entregou o seu celular, aberto em uma conversa recente com Alisson.
Havia duas dezenas de fotos do meu apartamento, e eu levei alguns minutos
para reconhecê-lo porque estava completamente destruído.
— O que… — não pude concluir, um dos arquivos era um vídeo das
câmeras de segurança do hall do meu apartamento e a filmagem mostrava
André, juntamente com outros dois homens, invadindo o meu apartamento.
Meus olhos correram para as informações no canto superior da
gravação, percebendo que havia sido duas horas antes do meu encontro com
ele.
— André sabe onde você mora e entrou na sua casa. Provavelmente,
procurando por qualquer informação sobre a Sabrina ou a lista — explicou
Antônio, obrigando-me a erguer o rosto para encará-lo.
— Eu não tenho nenhuma lista. Você sabe disso.
— Sim, mas a Sabrina tem.
— A Sabrina está morta! — Minha voz ficou estridente.
Odiava reviver aquele assunto, principalmente porque agora eles
estavam de novo envolvendo um inocente na minha bagunça.
— É, mas ele sabe disso? — retrucou Antônio, calando-me.
Não, ele não sabe.
Ele veio atrás de mim exigindo que a entregasse, mas isso não
mudava o fato de que Sabrina estava morta e que não existia a menor
chance dele colocar as mãos nela novamente.
Meus olhos se moveram para o meu pai, sentindo as lágrimas
enturvarem minha visão e pude reconhecer um resquício de amolecimento
perpassar suas íris, mas ele não demorou a afastá-la e manter a
impassividade.
— Pai…
— Não vou correr o risco de te perder por causa da sua teimosia —
disse, simplesmente, enfiando uma faca no meu peito e a girando —,
escolha uma das opções ou eu vou escolher por você, e acredite em mim…
Ele não precisava concluir, eu sabia exatamente o que ele diria.
Meu pai não confiava em Renato para me manter segura.
Aceitar a possibilidade de eu ficar no Brasil sob a tutela do meu
namorado era sua maneira de tentar, de alguma forma, impedir que eu o
odiasse completamente por me forçar a abandonar a minha vida.
Engoli em seco, virando-me para o homem ao meu lado que, ainda
que de um jeito tão autoritário quanto os outros dois, era o único que estava
me oferecendo uma opção menos parecida com uma prisão.
— O que eles te contaram sobre isso? — perguntei, em um sussurro
quase inaudível, sentindo aquele aperto no meu peito aumentar.
Renato buscou pela minha mão gelada, aprisionando-a na sua
extremamente quente.
— Tudo.
Culpa recaiu em meus ombros ao reconhecer a determinação em suas
íris.
— Você sabe que isso pode respingar em você, não sabe? — indaguei,
tentando fazer com que ele fosse racional. Renato tinha dois filhos, pelo
amor de Deus! Como meu pai podia ser tão irracional?
Trevisan desviou o olhar para o meu pai, perdendo a ternura e
proteção que estava direcionando para mim. Sua mão não me abandonou,
tampouco perdeu o cuidado. No entanto, seu rosto foi dominado pela
mesma expressão feroz de quando foi tirado de cima do Guilherme. Ele não
estava nem um pouco contente com o meu pai, e não era por causa do seu
autoritarismo. Longe disso, a possessividade em seus olhos deixava claro
que Renato queria esmurrar Miguel apenas por considerar a ideia de me
tirar de perto dele.
— Isso já está decidido. Nathalia ficará comigo e é minha
responsabilidade mantê-la segura — declarou, com firmeza e imponência.
Antônio fez menção de questionar, mas meu olhar o silenciou. — Agora, se
vocês já deram seus recados e não se importam, eu gostaria de ficar a sós
com ela.
Meu pai estreitou os olhos, observando-nos atentamente em busca de
uma resposta da minha parte. Embora soubesse que ele queria me proteger e
que, em algum momento, eu conseguiria lidar com a situação de forma mais
tranquila e compreenderia o seu ponto de vista, naquele momento eu me
sentia ressentida por ter sido colocada contra a parede e impedida de sequer
me explicar.
— Você já teve a sua resposta — falei, levantando-me da mesa e
olhando com mágoa —, mas esteja ciente de que você não vai poder me
tratar como uma criança indefesa para o resto da vida. Goste ou não, eu sou
uma adulta. Eu tenho o direito de opinar sobre como vou viver a minha
vida, e se eu quiser ser irresponsável e me colocar em risco, também é um
direito meu. Eu sou a sua filha, não um objeto de decoração que você
decide onde vai ser colocado.
Encarei Antônio, igualmente magoada. Existia uma regra entre nós
dois, e nunca jogávamos no time que prejudicava o outro, mas dessa vez ele
havia se posicionado ao lado do meu pai, mostrando que no fim sempre
concordaria com o autoritarismo dele. Porque, para eles, eu sempre seria
vista como a garotinha estúpida que precisava da proteção deles, como se
eu não fosse capaz de me defender sozinha.
Exausta pela discussão e por tudo que aconteceu nos últimos dias, eu
me retirei da varanda e subi de volta para o quarto, torcendo para que
aquele pesadelo acabasse de uma vez por todas.
Não me dei ao trabalho de ficar na sala para me despedir do meu pai e
do meu melhor amigo. Naquele momento, eu não gostava nenhum pouco
deles e não estava com vontade de fingir.
Quando a porta do escritório de Renato foi aberta, meus olhos se
afastaram da janela que eu estava encarando, sem realmente prestar
atenção, e se moveram para ele. Calmamente, ele fechou a porta e
caminhou em minha direção.
— Eu não queria que você soubesse de nada disso — falei, sincera e
ele meneou a cabeça, demonstrando que estava ciente. — Esse é o
momento em que você deveria terminar comigo — prossegui, vendo sua
sobrancelha se arquear e ele contornou o sofá.
Abaixando-se na minha frente e descansando as mãos em minhas
coxas, impedindo que eu me afastasse.
— Estou começando a ficar ofendido por você pensar que eu me
assusto tão facilmente — resmungou, falsamente divertido e teria me
arrancado um sorriso em qualquer outro assunto, exceto naquele.
— Você tem duas crianças… eu nunca vou me perdoar se acontecer
qualquer coisa com vocês — confessei, sentindo que aquela corda invisível
estava sendo amarrada em torno do meu pescoço novamente.
Ele meneou a cabeça, compreensivo.
— Não se preocupe com isso, anjo.
— É fácil para você me mandar não me preocupar, mas adivinhe? Eu
sou a pessoa que se preocupa com tudo, Renato. — Enxuguei as lágrimas
que não paravam de rolar.
Renato se sentou no sofá ao meu lado e capturou o meu pulso,
levando-me para me sentar em seu colo e manteve o braço pesado ao meu
redor, impedindo que eu tentasse sair de perto dele.
— Eu entendo que você se sinta culpada pelo que aconteceu com
Sabrina e com todas as outras pessoas envolvidas nessa história — disse,
com uma voz calma —, mas essa não é a primeira vez que enfrento uma
situação que demanda mais cuidado e oferece risco para as pessoas ao meu
redor. Não me subestime, anjo. Eu sei exatamente em que tipo de problema
estou me envolvendo, e isso não muda nada do que te disse nos últimos
meses. — Seus olhos intensos se encontraram com os meus, prendendo-me
em sua aura de controle. — Ficar ao meu lado também implica em riscos, e
você aceitou, não foi?
Balancei a cabeça em resposta, confirmando.
— Em que momento nos últimos meses, eu dei a entender que estou
disposto a abrir mão de você? — indagou, ciente de que não havia uma
resposta para aquela pergunta.
— Isso é diferente de lidar com um conselho de sócios, Renato.
— Não, não é — falou, me fazendo começar a considerar que ele
tinha enlouquecido completamente. — Acha que nunca me enfiei em uma
confusão por tentar ajudar uma pessoa?
Franzi o cenho, estranhando o tom sombrio que cobriu a sua voz.
— Já?
— Sim, mas não importa… já faz muito tempo — murmurou,
desgostoso. E, embora eu sentisse vontade de perguntar sobre o que ele
estava falando, era perceptível que aquele assunto tinha para ele o mesmo
peso que o da Sabrina tinha para mim. — A questão é que vivemos em um
mundo diferente da maioria das pessoas, anjo. Os meninos estão
constantemente em risco apenas por serem meus filhos, então, apesar de
não concordar com o seu pai na forma como ele aborda as coisas, ele não
está errado quanto à necessidade de te proteger.
Engoli em seco, sentindo seu polegar se arrastar na minha pele,
lentamente.
— Estar em um relacionamento comigo também coloca você em
risco. É impossível chegar onde eu cheguei sem conseguir alguns inimigos
no meio do caminho — falou, e seus olhos se tornaram nebulosos.
Apesar de uma parte minha estar considerando que ele estava
tentando me confortar para que a situação não parecesse tão ruim, uma
outra não conseguiu ignorar o remorso que queimou nas íris escuras.
— Você não precisava ter me trazido para morar com você — falei,
mudando de assunto para que ele não ficasse desconfortável com qualquer
que fosse a lembrança que estava o assombrando.
Renato soltou uma risada baixa.
— Bem, estamos casados há meses… acho que já passou da hora de
você vir morar na minha cama — falou, mergulhando a sua mão em meu
cabelo e me guiando para perto, deixando um beijo demorado em minha
têmpora. — E não existia a menor possibilidade de que eu deixasse você
voltar para o seu apartamento.
Suspirei, lembrando-me das fotos do meu apartamento destruído.
André realmente acreditava que Sabrina tinha me dado uma lista de
cada desgraçado que fazia parte da sua clientela, e que eu a esconderia no
meu apartamento?
Estremeci, sentindo o pânico me atravessar com a ideia de que ele
esteve na minha casa e mexeu nas minhas coisas. Isso fez com que Renato
apertasse os braços ao meu redor, transmitindo o seu calor para o meu
corpo.
— E se eu tivesse aceitado a maluquice da ilha? — perguntei
baixinho, tentando distrair a minha cabeça do monstro peçonhento que
começava a arrastar as suas garras em meu cérebro, ameaçando me pegar
pelos tornozelos e levar de volta para o fundo do poço.
Renato pareceu refletir naquela possibilidade. Seu aperto ao meu
redor ficou um pouco mais bruto e ele soltou um suspiro pesado.
— Bem, eu teria que aprender a sobreviver como os meus
antepassados — refletiu, obrigando-me a erguer o rosto para encará-lo
porque ele realmente estava falando sério. — Mas acho que poderíamos
nos sair bem, levar uma vida meio A Lagoa Azul.
A risada que escapou da minha garganta foi inevitável e a corda que
apertava em volta da minha garganta afrouxou, libertando-me daquela
sensação de sufocamento.
— Está realmente falando sério?
— Eu estou sempre falando sério, diabinha — assegurou, deixando
um beijo demorado em meu ombro. — A ideia, na verdade é muito
tentadora. Imagine que mundo fantástico ter você só para mim o tempo
inteiro…
Sorri, sentindo o fardo em meus ombros aliviar um pouco e ele
permaneceu fazendo carinho em minhas costas, espalhando arrepios pela
minha pele.
— Me desculpe por ontem — falei, baixinho, escondendo o meu rosto
na curva do seu pescoço e sentindo os meus músculos relaxarem ao ser
nocauteada pelo seu perfume.
Renato subiu sua mão livre para o meu rosto, afagando a minha
bochecha.
— Está tudo bem, anjo — assegurou, deixando um beijo em minha
testa. — Você vai ficar bem. Não vou permitir que ninguém te machuque.
Soltei um suspiro, sentindo o cansaço crescer. Não soube se era efeito
do calmante, do estresse dos últimos dias ou do reconfortante carinho que
Renato estava me proporcionando, mas decidi confiar na sua promessa e me
entreguei ao sono.
As últimas seis semanas passaram tão rápido, que eu sequer consegui
ter tempo hábil de me adaptar à mudança de casa.
Todos os problemas do mundo decidiram afligir os meus clientes e,
entre escritório, especialização e a nova rotina em casa, ainda estava
tentando me adaptar ao esquema de segurança que foi colocado ao meu
redor.
Se eu pensava que Miguel Gama era exagerado e superprotetor
demais, Renato Trevisan vinha tentando me provar que ele conseguia ser
muito mais. Aparentemente, nas últimas semanas ele se confundiu e
começou a acreditar que namorava a futura Rainha da Espanha, porque era
única coisa que eu conseguia pensar para justificar o aparato logístico que
ele desenvolveu com o seu chefe de segurança.
— Eu realmente não preciso de segurança dentro da minha sala —
falei, olhando para o Caique sentado na poltrona perto da estante de livros.
Na entrada da minha sala, já existia uma montanha humana que se
chamava, Victor. Esse parecia um soldado russo saído diretamente dos
filmes de Hollywood. Victor era tão alto que quando passava pelas portas da
minha sala para fazer uma vistoria — como se o André fosse escalar mais de
trinta andares e atravessar as janelas de vidro blindado —, ele precisava se
abaixar para não acabar batendo a cabeça. Os ombros largos eram repletos
de tatuagens escuras e pretas, os olhos negros pareciam dissecar a alma das
pessoas e a cicatriz em seu rosto, que ia da sua têmpora direto até o seu
queixo, me fazia ter pesadelos com o que poderia ter motivado aquele
ferimento.
Se a intenção de Renato era me afastar do perigo, eu podia confirmar
que ele foi mais do que efetivo. Não tinha como estar em risco quando o
armário humano que colocou na minha frente colocava medo em todo
mundo. E eu me incluía nisso. Minhas poucas tentativas de interação com
Victor foram frustradas porque o homem era monossilábico.
Ele seria o segurança ideal para o Pedro Zimmermann.
Felizmente, depois de muitas tentativas e promessas de que não
subornaria o rapaz como fazia com os outros, Renato trouxe Caique para a
equipe de segurança e isso me ajudava a me sentir um pouco menos
sufocada, já que se a intenção do meu namorado era aproveitar que eu estava
com seus seguranças para impedir que qualquer ser humano chegasse perto
de mim, Caique falhava miseravelmente nessa função.
O rapaz era extremamente bem-humorado e sorridente, o que me
garantia algumas risadas sinceras ao longo do dia e tirava um pouco do peso
de estar sendo escoltada por todos os lados até mesmo dentro do escritório.
— Estou apenas cumprindo ordens — disse ele, recebendo uma
olhada feia de Victor por simplesmente falar comigo.
O que não mudava muito a maneira como o garoto agia e havia sido
justamente por isso que insisti tanto para trazê-lo para integrar a equipe.
Quando Caique saiu da sala e me deixou sozinha, meus olhos recaíram
no meu celular e chequei algumas mensagens mais recentes dos meus
amigos e avós.
Minha mãe estava literalmente contando os dias para o início do
próximo mês, já que aconteceria o aniversário de oitenta anos do meu avô e
eu iria finalmente conhecer seu namorado, Sebastian. Eles estavam saindo
há seis meses, mas ela só quis me apresentá-lo agora, o que era uma quebra
nos seus padrões e me deixava um pouco mais curiosa em relação ao
homem.
Como estava tentando fazer as pazes comigo após o seu último ataque
de autoritarismo, meu pai não se incomodou de me enviar uma cópia de todo
o arquivo que mandou seu investigador puxar do empresário.
Sebastian Wright era o CEO da Wright Oil Companies e apesar de
conhecer a sua reputação por acompanhar a sua empresa — que era um dos
maiores conglomerados petrolíferos da atualidade e havia sido prejudicado
pelo movimento dos sauditas no início do ano —, eu estava aliviada em
saber que o homem não era nenhum monstro. Sua ficha era relativamente
limpa e ele não havia feito nada que fosse realmente preocupante.
E dado ao histórico de Tatiana, era surpreendente.
Às vezes, minha mãe conseguia ser tão ingênua que eu não sabia o
que seria dela sem o meu pai por perto. O que era um tanto irônico, já que a
superproteção dele era um dos principais motivos para as nossas brigas.
Em minha defesa, Tatiana tinha um histórico terrível com homens.
Eles a viam como um bilhete premiado e ela só conseguia se dar conta disso
quando era tarde demais e então, meu pai e eu precisávamos correr até
Boston para ajudá-la a recolher os caquinhos e conter os danos que o
desgraçado causou. E apesar de ainda ter um pé atrás com o Wright, estava
curiosa para conhecê-lo pessoalmente. Ele era o primeiro homem que ficava
por tanto tempo e minha mãe realmente parecia estar muito apaixonada.
Meu pai vinha se contendo bastante nos últimos meses também. Eu
nunca conseguia ficar com raiva dele por muito tempo e, muito mais calmo,
ele soube reconhecer que havia sido extremamente rude comigo na sua
última visita. O lado bom de ser tão parecida com ele era justamente que
isso me permitia perdoá-lo muito mais rápido. O mesmo acontecia com o
Antônio.
Odiava quando meu melhor amigo se colocava contra mim para
defender o regime autoritário do meu pai, mas também reconhecia que
Antônio sempre buscava garantir minha segurança e, se realmente fosse um
exagero de meu pai, ele teria ficado ao meu lado.
Com o passar das semanas, comecei a enxergar as coisas com mais
clareza e a aceitar toda a decepção que ambos sentiram em relação à minha
irresponsabilidade.
Não me arrependia de muitas coisas na vida, mas a decisão de
dispensar a equipe de segurança naquela noite assombrava meus
pensamentos há semanas.
Desde aquela noite no estacionamento, André desapareceu
completamente. Por vários dias, cheguei a considerar que sua aparição tinha
sido fruto da minha imaginação e que eu estava enlouquecendo. No entanto,
as filmagens da câmera de segurança confirmavam que aquilo realmente
aconteceu, e a lembrança viva da sensação da arma em minha pele só
reforçava a certeza de que não foi apenas um pesadelo.
Desde o casamento, Guilherme também não cruzou meu caminho, e
sua ausência trazia um certo alívio considerando o retorno do pior demônio
com o qual já lidei. Renato e Leandro estavam se movimentando para
convocar uma reunião com o Conselho, e embora Renato evitasse discutir
detalhes desse assunto comigo para evitar gatilhos, acabei descobrindo por
Leandro que eles haviam encontrado outra garota que havia apresentado
uma denúncia de assédio sexual contra Guilherme em seu antigo escritório,
mas que não tinha avançado muito.
Aparentemente, o CEO conseguiu encobrir o caso e fez com que a
garota assinasse um acordo de confidencialidade com uma multa tão absurda
que a impedia de falar qualquer coisa sobre o seu tempo trabalhando na
gestora.
E não se sabia exatamente o que Renato tinha contra o homem, mas
foi o suficiente para convencer Rogério Bandeira a abrir mão do acordo de
confidencialidade; permitindo que a garota pudesse falar com Raphael,
amigo de Marc e delegado responsável pelo caso. Embora o caso dela já
estivesse prescrito, impossibilitando uma denúncia formal, era o suficiente
para provar ao Conselho que existia um padrão de comportamento e eu não
havia sido um caso isolado.
Uma vez, eles poderiam se apoiar a desculpa de sempre: foi um malentendido. Mas e na segunda vez? E se houvesse uma terceira? E se eu fosse
apenas um nome em uma lista muito maior?
Era o tipo de pergunta que me assombrava o suficiente para não tentar
questionar mais as movimentações que Renato vinha fazendo para garantir
os votos. Ele tinha me pedido para confiar nele, e eu estava tentando cumprir
com a minha palavra e deixá-lo conduzir a situação.
Por sorte, eu não vinha tendo tempo de me concentrar tanto nisso
graças ao trabalho e a minha vida fora do escritório.
Separados, Bianca e Leandro me enlouqueciam, e juntos, me faziam
querer esganá-los por não conseguirem se manter estáveis em seus próprios
acordos por mais do que alguns poucos dias. Minha cabeça explodia sempre
que precisava escutá-los desabafando, porque, apesar de não ser o maior
exemplo de racionalidade na Terra, até mesmo eu conseguia reconhecer que
a falta de diálogo entre eles era absurda.
Bebi um gole longo de uísque, deixando o aparelho de lado e encarei a
porta vendo a cabeça de Ananda passar por ela, carregando o iPad para
validar a minha agenda do dia seguinte.
— Como foi a reunião com a Maitê? — questionou, sorridente.
Soltei um suspiro, aliviada por ter conseguido resolver um dos
problemas que vinha me causando a maior dor de cabeça nas últimas
semanas.
— Alberto aceitou a nossa sugestão de adiantar a aposentadoria —
falei simplesmente, sem entrar em detalhes —, e concordou em vender as
ações dele para a Maitê.
Ananda sorriu, ela adorava aquela parte do nosso trabalho.
— Então é menos um velho querendo ditar como uma mulher vai
mandar na empresa dela — cantarolou, alegre, arrancando-me uma risada
sincera. — E a cada vitória como essa, o mundo fica muito mais bonito.
Encarei-a, achando graça do brilho idealista que cobriu seus olhos.
— É a nossa intenção — falei, aceitando o envelope lacrado que ela
me entregou com uma cópia do acordo que Renato negociou com Ricardo,
um dos sócios do lado da Roberta na fusão.
Ele era o último com quem os dois sócios majoritários iriam se
encontrar naquela semana, e eu não estava tão esperançosa quanto ao bom
senso se fazer presente na conversa com ele. Se Roberta era ambiciosa e
disposta a fazer qualquer coisa para se manter em posição de poder, Ricardo
era pior, afinal, havia aprendido com ela.
Meus olhos percorreram o acordo que já havia sido redigido pela
equipe de Marc e que estava assinado por Renato e Leandro. A única coisa
que ele precisava para ser totalmente finalizado, era da assinatura da diretora
de operações.
Franzi o cenho, lendo rapidamente o documento e me deparando com
algo totalmente diferente do que estava esperando.
— Ele quer sair do escritório? — questionei, confusa.
Erguendo o meu rosto para a garota na minha frente e Ananda acenou,
sentando-se na poltrona na minha frente.
Todos os sócios possuíam uma cláusula de não-competitividade em
seus contratos, o que garantia que, caso decidissem sair da firma, eles não
poderiam levar nenhum dos clientes que haviam conquistado durante o
período em que estiveram na RCI. Além disso, não poderiam entrar em
contato com os colaboradores nem utilizar os nomes dos clientes e
informações privilegiadas às quais tiveram acesso durante seu tempo no
escritório.
Era uma forma de garantir que o que aconteceu com a Roberta há
quase três anos não se repetisse.
— Isso não faz sentido — falei, sentindo um vinco surgir em minha
testa ao ver que os dois não apenas haviam reivindicado a cláusula de nãocompetitividade, como também permitiriam que Ricardo levasse os seus três
maiores clientes.
Ananda me observou como se já soubesse que eu ia falar aquilo e
semicerrei os olhos nela.
— Onde está o Renato?
— Na sala de arquivo — disse, soltando uma risada baixinha que eu
não me atentei em tentar descobrir o motivo.
Em passos apertados, caminhei para fora da sala e atravessei o
corredor, descendo para o primeiro pavimento que estava parcialmente
vazio. Naquele dia, o expediente havia sido encerrado mais cedo devido à
véspera de um feriado internacional. Além dos poucos operadores ocupados
finalizando os relatórios do dia, a equipe de limpeza começava a se espalhar
para cuidar da bagunça. Não havia ninguém no meu caminho.
Não era um hábito comum descermos para o arquivo, os assistentes
cuidavam daquela parte quando precisávamos de um documento antigo.
Então, quando a minha biometria liberou a entrada na sala blindada,
meus olhos vasculharam pelos inúmeros corredores e prateleiras, buscando
por um sinal de barulho de onde o CEO poderia estar.
Calmamente, caminhei pelas beiradas, seguindo o barulho da máquina
de xerox que estava ligada e trabalhando a todo vapor. A entrada ali era
restringida para o horário de expediente e monitorada pelo Fabrício, o rapaz
que ficava responsável por organizar toda aquela montanha de papelada.
Após o horário, apenas duas pessoas tinham acesso liberado: o diretor
executivo e a diretora de operações.
De costas para mim, Renato estava em frente a máquina, esperando
que ela terminasse de fazer as cópias que ele precisava. As mãos escondidas
nos bolsos e as mangas da camisa branca dobradas até seus cotovelos. Seus
ombros estavam retesados e ele parecia perdido nos próprios pensamentos, o
que não era comum e me deixou preocupada.
Pigarreei, atraindo a sua atenção e ele virou o rosto, abrindo um
sorriso quase de imediato ao me ver. Meu pobre coração sofreu as
consequências, porque eu estava morrendo de saudades dele.
Nos últimos dias, Renato precisou ir para Madrid para lidar
pessoalmente com uma situação envolvendo um jogador de futebol que ele
atendia. Foram apenas quatro dias longe, mas parecia que tinha sido uma
eternidade, e vê-lo na minha frente de novo me fez esquecer completamente
do motivo pelo qual eu havia marchado até aqui.
— Oi, meu anjo — disse, tão baixo e grave que a sua voz repercutiu
pelo meu corpo, arrepiando cada centímetro de pele e trazendo à tona aquela
sensação de que o chão tremia sob os meus pés.
Suspirei, entorpecida, enquanto o observava caminhar em minha
direção com uma calma invejável. Seus olhos fixos em mim pareciam ter o
poder de atravessar minha pele, mergulhando tão profundamente em meu ser
que eu me tornava completamente refém da sua presença.
— Você chegou há muito tempo? — perguntei em um sussurro,
sentindo o meu coração golpear forte quando sua mão grande se aninhou em
meu rosto e o seu polegar circulou a minha bochecha, como se sentisse falta
de sentir a textura da minha pele.
— Menos de cinco minutos — falou, rouco.
As olheiras ao redor de seus olhos denunciavam que ele não tinha tido
uma boa noite de sono nos últimos dias. Com todo o escândalo envolvendo
James, eu mal conseguia imaginar o trabalho que ele teve para controlar os
tabloides que estavam atacando o rapaz impiedosamente.
— Como você está? — perguntei, aproximando-me mais dele e
deslizando meus dedos em seu peito, devagar, sentindo sua respiração ficar
mais pesada à medida que me aproximava de seu rosto.
A barba por fazer marcava sua mandíbula e mesmo assim, ele
conseguia parecer tão lindo que era desconcertante.
— Muito melhor agora — assegurou, inclinando o seu rosto sobre o
meu e, em um piscar de olhos, sua boca estava contra a minha e um gemido
baixinho escapou do fundo da minha garganta quando minhas costas
colidiram com a estante atrás de mim.
Meus braços envolveram o seu pescoço, trazendo-o para perto e
tentando acabar com aquela distância incômoda entre nós e ele não demorou
a descer sua mão livre em meu quadril, apertando minha nádega por baixo
do meu vestido e como se eu não pesasse mais que uma folha de papel,
impulsionou-me para cima.
Minhas pernas enlaçaram o seu quadril, buscando por apoio e meus
dedos enroscaram em seu cabelo, reivindicando cada sopro de oxigênio que
fluía pelos seus pulmões. Odiava quando ficávamos tanto tempo longe,
porque quando nos reencontrávamos parecia que eu nunca tinha controle
sobre meu próprio corpo.
No entanto, Renato conseguia reunir todo o domínio dele e o
manuseava da maneira que queria, tirando tudo o que queria de mim com
um simples olhar.
Meus pulmões queimaram, implorando pelo oxigênio e meus dedos
apertaram sua nuca, impedindo que ele se afastasse e foi em vão, Renato
aprisionou meu lábio inferior entre os dentes, apertando-os e me arrancando
um arquejo débil.
Seus lábios se arrastaram pela minha mandíbula, subindo por todo o
contorno e alcançando o lóbulo da minha orelha. Ele mordiscou, chupou e
espalhou arrepios pela minha espinha e um gemido baixinho me escapou.
— Não faz ideia do inferno que foi acordar nos últimos dias e não ser
recepcionado com os seus gemidos, diabinha — confidenciou, rouco.
Meu cérebro embriagado tomou consciência do percurso que seus
dedos estavam fazendo e cada célula do meu corpo correspondeu,
incendiando o sangue em minhas veias e me fazendo hiperventilar quando
ele os arrastou sobre o tecido de renda da minha calcinha.
— Consigo ter uma ideia — soprei, em meio a um soluço
enfraquecido quando seus lábios desceram pelo meu pescoço, mordiscando a
minha pele e afastando o tecido que o impedia de acessar a minha boceta.
Sua mão em minha nuca aumentou o aperto, inclinando a minha
cabeça para trás e me forçando a olhar em seus olhos e sendo envolvida pelo
calor que eles emanavam.
— Seu vídeo não ajudou a tornar as coisas mais simples — pontuou,
me arrancando um sorriso ao lembrar do vídeo que enviei na noite passada.
O período fértil tirava todo resquício de sanidade da cabeça de uma
mulher. Quando me deitei, só conseguia pensar em como queria que ele
estivesse ali, em cima de mim, martelando tão forte e duro que me faria
esquecer de todos os problemas daquele dia.
O estresse, aliado ao tesão e a uma sacola com vários brinquedos
eróticos que Marc havia me dado naquela tarde durante minha visita à sua
loja, resultou em um vídeo que enviei para Renato para que ele soubesse
exatamente o que sua ausência me causava. Como era madrugada em
Madrid, eu sabia que ele só veria o vídeo pela manhã.
Engoli em seco, sentindo seus dedos se arrastarem pela fenda melada,
devagar, provocando-me e causando uma pequena arritmia pela antecipação.
— Mas serviu para te fazer voltar mais cedo — soprei, lembrando-o
que o seu retorno estava previsto para o fim da semana e ele voltou dois dias
antes.
Ele sorriu, mas não havia nada de singelo naquele gesto, aquele
sorriso trazia um brilho quase diabólico ao seu rosto e ferrava com cada
fragmento racional do meu cérebro. Quando ele aparecia, eu era capaz de
arrancar as minhas roupas e foder com o Renato em qualquer lugar, sem
qualquer pudor.
— Então, essa era a sua intenção, coisinha manipuladora? —
investigou, trazendo o seu rosto para perto e escovando meus lábios com os
seus, arrancando todo o meu fôlego. — O vibrador não conseguiu te
satisfazer? — Um arquejo alto escapou dos meus lábios quando ele
escorregou três dedos em minha boceta, preenchendo-me sem qualquer
aviso. — Você gozou imaginando como seria se o meu pau estivesse ali?
Balancei a cabeça, embriagada.
Um gemido estrangulado ressoou pela sala de arquivo, sobressaindo o
barulho da copiadora que ainda estava trabalhando. Minhas paredes se
apertaram em torno da sua invasão e meu quadril impulsionou contra o seu
avanço, intensificando cada investida que eles aplicavam. Sua boca buscou
pela minha, engolindo os gemidos desenfreados que escapavam dos meus
lábios.
Eu sequer conseguia raciocinar que se alguém passasse por ali,
poderia acabar me ouvindo gemer alto a cada estocada dos seus dedos,
porque era isso o que Renato fazia comigo; ele roubava o meu controle e se
apoderava dele, manuseando-me da forma que bem entendia.
— Sabe como você me deixou no inferno com aquele vídeo? —
perguntou, sua voz não passando de um sussurro grave, a respiração tão
pesada quanto a minha. — De como eu não consegui escutar nada durante
toda a maldita reunião, por que só conseguia me lembrar dos seus gemidos?
Suas investidas se tornaram mais fortes, fazendo com que minha
cabeça pendesse para trás e ele arrastou a língua pela minha garganta,
mordiscando o meu queixo. Minhas unhas fincaram em sua pele,
descontando nele o prazer que atravessava o meu corpo e meu quadril
ondulou, buscando pelo orgasmo tão necessitado.
— Tem ideia de como eu queria destruir aquele maldito vibrador por
ser o responsável por arrancar aquele orgasmo de você? — incitou, a voz
carregada de posse e me arrancando um sorrisinho bêbada.
— Não me diga que ficou com ciúmes de um vibrador? — provoquei,
sentindo o aperto dos seus dedos em meu cabelo aumentar. — Tão
possessivo…
Ele sorriu, pressionando seu corpo contra o meu e diminuindo o ritmo
das investidas como punição pela implicância.
— Sua boceta pertence a mim, diabinha — disse ele, autoritário —,
cada orgasmo seu pertence a mim — prosseguiu, trazendo seu rosto para
perto do meu, marcando suas palavras a cada nova estocada bruta dos seus
dedos —, é um espetáculo que só eu posso apreciar.
Mordiscou minha mandíbula, arrancando-me um suspiro entrecortado
quando ele me abandonou. Abri os olhos, pronta para mandá-lo ao inferno
por ter parado quando eu estava tão perto do orgasmo. Eu realmente
precisava dele, porque mesmo após duas sessões com o vibrador na noite
passada, nada conseguia me satisfazer como a sensação de preenchimento
que ele me proporcionava.
O vibrador era ótimo, mas não me apertava e puxava meu cabelo
enquanto entrava tão fundo que me fazia perder a força nas pernas; ele não
falava sobre o quanto amava me comer em qualquer posição e sobre como
era viciado no gosto da minha boceta; ele não gemia quando eu o apertava
dentro de mim, tampouco enroscava os dedos em torno da minha garganta e
sorria cafajeste, incentivando-me a gozar em seu pau.
E era por isso que nenhum vibrador se comparava ao sexo com o
Renato. Na verdade, nenhuma outra experiência anterior se comparava ao
que eu sentia quando estava sendo devastada por ele. Porque era isso o que
ele fazia.
Renato não me fodia, ele me arruinava completamente.
Pisquei atordoada, tentando desanuviar a visão e meus olhos cravaram
nos seus dedos melados pela minha excitação. Renato esboçava aquele
sorriso maligno que fodia com o meu cérebro e meus lábios se entreabriram,
ansiando pelo seu incentivo quando os trouxe para perto do meu rosto.
No entanto, ao invés de me instruir a chupá-los para provar do meu
próprio gosto, Renato os arrastou pelos meus lábios, como se fosse uma
espécie de gloss e quando terminou, colidiu com sua boca com a minha.
Minhas unhas afundaram em sua pele, arrancando sangue dele e eu me
esfreguei como uma desesperada, necessitando da invasão do seu pau. O
barulho da copiadora cessou, denunciando que ela havia acabado de fazer
todas as cópias que ele precisava e isso pareceu ser um incentivo para ele.
Provando-me que conseguia me tirar completamente dos trilhos,
Renato se afastou um pouco e me carregou pelo corredor, colocando-me
sentada em cima da máquina. Meus olhos percorreram o espaço, buscando
pela câmera de segurança que eu sabia que estava em algum lugar da sala,
mas eu não tive tempo de processar, porque o cretino desgraçado arruinou a
minha calcinha, rasgando-a como se ela fosse feita de papel e jogou minhas
pernas sobre seus ombros.
Eu mal tive tempo de me amparar na base da copiadora, antes dele
mergulhar o rosto entre as minhas pernas e sua língua percorrer toda a minha
boceta.
— Puta merda! — gritei, usando uma mão para tentar abafar o meu
descontrole, mas quando Renato agarrou a minha cintura e me impediu de
me afastar, meus dedos enroscaram em seu cabelo e ele me devorou.
Sua língua investia dentro de mim, lambia entre as dobras, circulava o
clitóris sensível e arrancava cada gemido existente do fundo da minha
garganta.
Não soube se foi pela saudade, pela situação inesperada ou pela
probabilidade de sermos pegos de surpresa pela equipe de segurança, mas
cada gota de sangue no meu sistema se transformou em lava quente, e eu
estava me sentindo prestes a entrar em erupção.
Minhas mãos espalmaram a máquina, buscando por equilíbrio e, sem
querer, apertei o botão que a ligava novamente. O pânico me atingiu quando
o barulho dela entrando em funcionamento soou e uma luz brilhou entre as
minhas pernas. Renato não se importou, isso lhe deu mais incentivo e sua
língua investiu com mais fome, como se aquela fosse a última chance que
ele teria na vida de experimentar o gosto da minha boceta.
O calor no meu corpo se tornou tão insuportável, que meu cérebro
começou a se desligar do que acontecia ao meu redor, eu só consegui me
concentrar na sua boca entre as minhas pernas e na pressão que crescia em
meu âmago, levando-me para a beira do precipício e me arremessando
naquele ponto onde, nada mais importava senão o prazer que queimava os
meus ossos.
O orgasmo me atingiu com tamanha intensidade que precisei morder
minha própria mão para conter o grito que irrompeu da minha garganta.
Minhas pernas tremiam, meus pulmões lutavam em busca do oxigênio
perdido em algum ponto dos últimos minutos e cada célula do meu corpo se
transformou em pó.
Meus dedos apertaram os fios do cabelo castanho, impedindo que ele
continuasse com os estímulos, e o puxei para cima, sem qualquer cuidado.
Renato costumava dizer que eu era uma diaba, mas ele também poderia ser o
meu diabo particular, tentando-me a cometer os maiores pecados contra
minha própria racionalidade.
— Você ainda vai acabar comigo — sussurrei, ofegante.
Meus dedos buscaram pela gola da sua camisa, vendo aquele maldito
sorriso cretino se desenhar em seus lábios. Ele ficava tão gostoso quando
conseguia me arrancar um orgasmo, que eu não sabia se queria estapeá-lo
por ter tanto controle sobre mim ou implorar para que ele nunca deixasse de
me arruinar. Puxei-o, buscando pela sua boca e ignorando o barulho da
máquina que ainda estava em funcionamento.
Nessa altura do campeonato, eu já estava no inferno e só estava
aproveitando cada segundo nele.
Sequer conseguia me preocupar mais com o motivo para ter vindo
atrás dele. Ricardo podia até levar meus clientes se quisesse, contanto que
não perfurasse a bolha em que eu estava inserida.
— Senti sua falta — confidenciei, aquilo não era realmente um
segredo, mas eu precisava frisar o quanto sua ausência tinha sido sentida por
mim.
— Eu também senti a sua, pequena diaba — disse contra os meus
lábios, me dando um beijo um pouco mais suave, sem tanto desespero como
os anteriores, como se estivesse tentando conter a bagunça que causou em
meu corpo.
E ele conseguiu sem esforço. Aos poucos, minha respiração se
equilibrou e voltou ao ritmo normal, os tremores em minhas pernas
diminuíram e a sensação de arrebatamento que me dominava, me fazendo
perder o foco das coisas ao meu redor, ia se desfazendo.
Suspirei, percebendo que a máquina havia parado de funcionar e
pisquei, olhando em volta e buscando pela câmera de segurança. Quando
não a encontrei, soltei outro suspiro de alívio ao ver que não fomos tão
inconsequentes assim.
Meus olhos recaíram nas folhas de papel que Renato observava com
um sorriso demoníaco e as minhas bochechas ruborizaram ao reconhecer a
imagem gravada nelas.
— Dios mío… — ofeguei, em espanhol, atraindo a sua atenção e seus
olhos sombrios brilharam em lascívia. — Livre-se disso!
— Por que eu faria isso?
— Renato!
— O quê? — perguntou, em meio a risada baixa. — Essa é uma
lembrança que eu, definitivamente, quero manter registrada.
Arregalei os olhos, sem conseguir acreditar que ele estava realmente
falando sério.
— Você não vai guardar uma cópia da minha bunda! — Olhei-o, rindo
nervosa. — Inclusive, você vai ter que dar um jeito de ir até o setor de TI —
anunciei, olhando em volta e me segurando em seu ombro para que ele me
devolvesse ao chão. — Ou além de você, todos os analistas vão descobrir
como é a bunda da diretora de operações.
A diversão se esvaiu do rosto dele e seus dedos esmagaram a minha
cintura com aquela possessividade habitual. Afastei-me, arrumando meu
vestido e vendo com pesar o estrago em minha calcinha que ficou
inutilizável.
O celular dele tocou, atraindo a sua atenção e meus olhos
reconheceram o nome de Leandro na tela. Renato respirou fundo e trouxe
sua atenção de volta para mim, ignorando a ligação do amigo.
— Vou providenciar que apaguem dos registros — prometeu e acenei,
sorrindo agradecida.
Nas pontas dos pés, deixei um beijo em seus lábios, afastando-me
antes que ele me levasse de volta para a bolha que nos envolvia.
— Tenho uma reunião agora, mas vamos conversar mais tarde sobre
aquele acordo que assinou com o Ricardo — avisei, olhando-o séria e ele
meneou a cabeça, espalmando a minha bunda sob o tecido do vestido. — Eu
te amo.
Ele sorriu, deixando um beijo em minha testa.
Após terminar a minha última reunião do dia, virei-me para Victor
ligeiramente irritada com a sensação de ter uma sombra atrás de mim.
— Estou literalmente atravessando um corredor, tem necessidade de
me acompanhar até aqui? — perguntei, enfezada.
Victor olhou para mim como se eu sequer estivesse ali e murmurou
uma resposta em confirmação, o que me fez revirar os olhos. Tentei ignorálo durante todo o percurso, sentindo falta de Caique fazendo piadinhas sobre
o mau humor do brutamonte. Ao chegar em frente à minha porta, acabei
hesitando e mudando de ideia, abrindo a porta do meu vizinho sem precisar
bater.
Renato estava no telefone com um cliente, falando em inglês e meus
olhos percorreram a sala iluminada pelo fim de tarde. A cidade continuava
caótica como sempre lá fora, mas na sua sala tudo estava confortavelmente
quieto.
Seu olhar veio em minha direção e ele instruiu que eu me
aproximasse. Virei-me para Victor para questionar se também iria entrar
atrás de mim, mas o homem estava de costas para a porta, mais atento na
movimentação inexistente no corredor.
Suspirei, fechando a porta atrás de mim e entrando de vez na sala.
— Claro, é uma possibilidade de investimento no Brasil,
principalmente com a conclusão da torre na Faria Lima — disse ele, sem
desviar a sua atenção de mim.
Contornei a mesa, apoiando-me nela e percebi que ele estava
analisando os relatórios da Karadağ Equity Holdings. Um vinco surgiu em
minha testa enquanto o olhava com curiosidade. Não sabia que Kerem
Karadağlı era seu cliente. Eu havia conhecido o turco há três anos, durante a
última exibição das obras de arte de Abigail Ballard, e competimos por um
dos quadros em um leilão que ocorreu no aniversário de sua morte.
A artista faleceu devido a um linfoma uterino raro, e o leilão tinha
como objetivo financiar o tratamento de outras mulheres com o mesmo tipo
de câncer que levou a esposa de Robert Westwood. A peça em questão havia
sido uma das últimas telas que ela pintou antes de sucumbir à doença, o que
tornou a disputa acirrada.
Renato capturou a minha cintura, levando-me para o seu colo e me
sentei, arrastando os dedos em sua nuca e tentando aliviar a rigidez em seus
ombros.
Ele não demorou a desligar a chamada e quando o fez, trouxe seus
olhos para mim com um pequeno vinco de preocupação.
— O que aconteceu? — perguntei, antes que ele o fizesse. O seu
problema parecia ser muito maior do que o meu.
— Nada de importante — disse ele, relaxando os ombros e semicerrei
os cílios em seu rosto —, como foi a sua reunião com o Gregory?
— Você está mudando de assunto — reclamei, afastando-me um
pouco, sem conseguir ganhar tanta distância devido ao peso de seu braço em
volta da minha cintura. — Algum problema?
Ele balançou a cabeça, negando.
— Karadağlı quer investir em uma empresa no Brasil, mas como ela
não está à venda, teríamos que entrar com uma aquisição hostil — explicou,
consternado e parecendo não saber como me explicar a situação.
— Qual é o problema? É a coisa mais comum do mundo — falei,
confusa.
Kerem era CEO de uma companhia de privaty equity e era conhecido
por ser implacável quando queria adquirir as ações de uma empresa.
Descobrir que ele era um dos clientes do Renato fazia com que muita coisa
fizesse sentido na minha cabeça, já que sempre me questionei quem era o
responsável por administrar o patrimônio do turco.
Uma careta cobriu o rosto do meu namorado e ele deixou seus dedos
se arrastarem em minha pele, devagar.
— Sim, mas dessa vez existe um conflito de interesses — falou,
enterrando seus olhos em mim.
— Com quem? — Ele não precisou dizer para que eu soubesse o que
queria dizer. Seu conflito de interesses era comigo. — Qual cliente?
— Ele vai desistir, anjo.
Meus ombros enrijeceram.
— Qual é o cliente? — insisti, sem deixar aquele assunto de lado.
— Devilish Angel — respondeu, me fazendo arregalar os olhos. —
Um dos membros do comitê encontrou com Kerem no Niké em Nova Iorque
e apresentou os relatórios de performance do semestre passado e…
— Isso é uma informação confidencial — falei, sentindo meus ombros
retesarem e Renato meneou a cabeça, e apesar de não ter dito em palavras,
estava claro que pretendia dizer que aquilo era a coisa mais comum do
mundo.
Maitê teria que provar que o homem forneceu as informações para
Kerem, e para isso…
— Você não pode contar para ela — falou, olhando-me sério. — É
uma informação confidencial que o meu cliente me deu, então…
— Conflito de interesses.
Ele meneou a cabeça.
— E pelas regras da empresa, nesse caso… nossa prioridade é a
empresa do Kerem — falou, olhando-me com preocupação —, a KEH é
maior e traz mais lucro para a firma do que a D.A.
Engoli em seco, entendendo a sutilidade em seu comentário.
— Por que justamente a Devilish? — questionei, ressentida —, tem
milhares de empresas no Brasil, por que tinha que ser logo a da Maitê?
— Ela está se saindo bem no projeto de consolidação da marca na
América Latina, e se o próximo passo for a expansão para a América do
Norte e Europa, a empresa tem potencial para se transformar em uma
referência no setor de varejista de moda íntima… — explicou pacientemente,
e por mais que eu soubesse que tudo aquilo fazia sentido e que se fosse
inverso, eu estaria do lado de Maitê naquele movimento, ainda me soava tão
injusto.
— Qual é a chance dele conseguir efetuar a compra?
— É praticamente uma certeza. O comitê não está contente com a
gestão da Maitê.
— Claro que eles não estão contentes — retruquei, sentindo o meu
bom humor se desfazer e antes que me levantasse, Renato me aprisionou em
seu colo.
— Ele ainda não decidiu se vai comprar a empresa.
— Deixe-me adivinhar… está esperando a sua opinião — falei, sem
conseguir conter a acidez em minha voz.
— Sim.
— E o que você vai fazer?
Renato franziu o cenho, parecendo genuinamente em conflito.
— Como eu disse, é um conflito de interesses.
De repente, a minha vitória de mais cedo parecia ter sido
completamente irrelevante. Por bem ou mal, o chantagista do Alberto ao
menos não tentou vender o trabalho de anos da Maitê em suas costas.
— Entendi.
— Você não pode falar com ela sobre isso.
— Eu sei.
Ele me olhou, analisando se eu realmente tinha noção do quanto isso
poderia prejudicá-lo com Kerem se o turco descobrisse que Renato me deu
aquela informação.
— Vou dar um jeito de resolver a situação — assegurou, apertando os
dedos em minha cintura, tentando me confortar. — Não se preocupe com
isso agora.
Assenti, desanimada.
— Tudo bem.
— Anjo…
Balancei a cabeça, tentando clarear minha visão, e respirei fundo,
odiando-me por me sentir tão afetada por aquilo. Era a coisa mais comum do
mundo. Eu havia ajudado em inúmeras aquisições hostis e sabia melhor do
que ninguém como tudo funcionava. No entanto, o fato de que isso afetaria
uma pessoa pela qual eu me importava e que estava de mãos atadas parecia
machucar ainda mais.
Pigarreei, espantando as lágrimas e o olhei, deixando aquele assunto
de lado temporariamente.
— Victor precisa realmente me acompanhar por todo o escritório? —
indaguei, lembrando-me do motivo para ter vindo em sua sala.
— Sim, nós já conversamos sobre isso.
— André não vai entrar no prédio, Renato. E você também proibiu a
entrada do Guilherme…
— Isso é inegociável, anjo — disse ele, sem se abalar pelo meu
descontentamento —, você conseguiu uma brecha e trouxe o Caique, mas é
só isso.
Bufei, olhando-o enfezada.
— Trouxe o Caique, mas ele só fica comigo quando estamos dentro do
carro, porque em todos os lugares é o seu soldado russo que me acompanha
— falei, mal-humorada.
— Confio no Victor.
— E eu confio no Caique.
Ele fez uma careta.
— Mas eu não. E até que se prove confiável para mim, você continua
alternando entre o Victor e o Sérgio — falou, firmemente.
Respirei fundo, massageando as minhas têmporas e sentindo a cabeça
latejar pela quantidade de coisas que havia lidado naquele dia.
— Você é tão tóxico… — resmunguei, frustrada.
— Não vou pedir desculpas por te manter segura.
Rolei os olhos, desistindo de discutir com ele sobre esse assunto.
— Você vai para casa agora? — perguntei, olhando de relance para a
sua agenda e percebi que as próximas duas horas estavam ocupadas.
— Preciso resolver algumas coisas antes, por que não vai na frente e
aproveita para descansar? — sugeriu, atencioso. — Leandro disse que vocês
ficaram até tarde trabalhando.
Meneei a cabeça, soltando um suspiro.
— Tudo bem, nos vemos em casa — murmurei, deixando um beijo
suave em seus lábios.
Depois de acertar toda a minha agenda com a Ananda, saí da minha
sala e desci para o estacionamento, acompanhado pela montanha de
músculos. Meus olhos percorreram as mensagens mais recentes, mas ignorei
a conversa com Maitê. Eu não queria ter que mentir para ela e estava
acreditando na promessa de que Renato cuidaria disso.
Caique estava distraído no celular quando chegamos ao subsolo e
quando escutou a nossa aproximação, ele endireitou a postura e sorriu
preguiçosamente para o Victor.
— Você não consegue sorrir nem no fim do expediente, Brutus? —
provocou o homem atrás de mim, me arrancando uma risada baixa ao ver o
olhar assassino que o segurança lhe enviou.
Caique não se intimidou, ele abriu a porta do passageiro para mim e
me deu um meio sorriso cativante.
— Ele realmente precisa de um docinho para alegrar a vida —
cochichou.
Victor estapeou sua nuca e pelo semblante de dor que tomou conta do
rosto do garoto, parecia ter sido doloroso. Mas, independentemente do
problema com o brutamonte, era evidente que ele sentia falta de ser
perturbado pelo mais novo quando Caique estava de folga.
Quando as portas foram fechadas, Caique assumiu o volante e deu
partida para fora do estacionamento, saindo de dentro do complexo em que o
escritório ficava.
Meus olhos se voltaram para o celular, ignorando as provocações do
garoto com o outro segurança e franzi o cenho ao ver uma mensagem de
Ethan, o investigador e braço-direito do meu pai.
Havia conversado com ele há algumas semanas, pedindo que
investigasse Guilherme, mas com tudo o que aconteceu e a falta de
respostas, pensei que ele tinha me ignorado. Nas poucas vezes em que
convivemos, Ethan sempre foi cordial, mas nunca se aprofundou em
responder minhas perguntas. Talvez ele tivesse receio de que eu descobrisse
suas reais funções relacionadas ao meu pai.
Número desconhecido:
Entro em contato quando conseguir algo útil.
Foi tudo o que ele respondeu, direto e reto, sem dar espaço para
quaisquer outros questionamentos. Meus dedos vacilaram no teclado,
ponderando se iria insistir em uma resposta um pouco mais explicativa, mas
desisti quando uma notificação incomum surgiu em minha tela.
A notícia era de algumas horas atrás e anunciava a morte de uma
garota em um bairro da zona norte da cidade. Enquanto eu rolava a tela para
ler mais detalhes sobre o trágico incidente, ia perdendo o foco na voz de
Caique ao fundo. No entanto, quando me deparei com a foto da garota na
tela, meu coração parou momentaneamente.
Ramona Neves.
Seu nome e rosto não me eram desconhecidos.
Na época em que tudo aconteceu, buscamos por ela em todos os
lugares, já que havia sido a responsável por levar Sabrina até a agência de
André.
Em algum momento, aquela garota deixou de ser uma vítima e se
tornou uma cúmplice, levando mais garotas ingênuas para as garras daquele
demônio desprezível; mas assim como ele, Ramona desapareceu e
consideramos que estivesse morta.
Agora ela realmente está morta.
— Caique — chamei, atraindo a atenção dos dois e interrompendo o
falatório —, preciso passar em um lugar antes de ir para casa.
Virei o rosto para o telefone em cima da minha mesa ao ouvi-lo tocar.
Abandonei o copo vazio no minibar e me aproximei, reconhecendo o
nome de Victor na tela e como ele estava com Nathalia, atendi
imediatamente.
— O que aconteceu? — Victor nunca me ligava e como não havia
informado que havia chegado em casa, comecei a considerar o pior.
— Hm… a senhorita decidiu alterar o destino e Caique a trouxe para a
zona leste da cidade — informou e meus olhos se moveram para as janelas
que concediam uma visão privilegiada do sol se pondo.
— Que lugar da zona leste?
— Cemitério São Pedro — disse ele, e não precisei pensar muito para
saber o motivo dela ter ido parar do outro lado da cidade.
Meu pai havia me informado há alguns minutos sobre a morte de uma
garota que trabalhava com André na agência e o caso já havia vazado para a
imprensa, Nathalia certamente acabou descobrindo.
— Ela está bem?
— Acredito que não… ela está… hm… chorando — compartilhou,
pigarreando com desconforto.
Soltei o ar carregado dos meus pulmões e pincei a ponte do nariz,
tentando pensar em uma maneira de aliviar aquela culpa dos ombros de
Nathalia, mas não importaria o que eu fizesse; ela sempre se sentiria
responsável por tudo que envolvia Sabrina.
— Chego aí o mais rápido possível — avisei, escutando sua
confirmação antes que eu desligasse a chamada. Uma batida na porta
ressoou. — Entre.
Bianca passou pela porta, olhando-me com uma expressão sem jeito.
Isso me fez desviar os olhos do computador que estava desligando para
observá-la.
— O que aconteceu?
— Hã… eu não quero ser a amiga que se mete na vida do casal… —
falou, entrelaçando as mãos nas costas, visivelmente nervosa.
A garota não costumava conversar comigo sozinha. Apesar de
aparentar ser descontraída, Bianca era, na verdade, muito tímida. Nas raras
ocasiões em que ela falava comigo, era porque estávamos acompanhados
por Leandro ou Nathalia.
— Mas está tudo bem com a Barbie Malibu? — questionou,
visivelmente preocupada. — Desde a tentativa de assalto, ela tem estado
meio… aérea, não sei ao certo.
Encarei Bianca, reconhecendo seu cuidado com Nathalia. Ela parecia
genuinamente perturbada com a mudança de comportamento da minha
mulher nas últimas semanas.
Nathalia não queria envolver ninguém no problema com André, o que
significava que tivemos que inventar uma boa explicação para justificar a
ocorrência no campus. Nossos amigos acreditaram na mentira sobre uma
tentativa de assalto, o que não os levou a questionar o aumento da
segurança ao redor dela e das crianças.
Numa tentativa de evitar contar tantas mentiras, ela acabou evitando
qualquer conversa sobre aquele dia e se afastando um pouco dos
compromissos sociais. Em parte, era por causa da mentira que inventamos,
mas também por medo de que André estivesse nos seguindo e ela acabasse
colocando as pessoas ao nosso redor em perigo.
Esbocei um meio sorriso, tentando tranquilizá-la.
— Está tudo bem, não se preocupe — falei, fechando o cofre da
minha sala e me virando para a loira. — Como a sua mãe está? —
perguntei, mudando de assunto.
Bianca engoliu em seco, me dando um sorrisinho triste.
— Ela está bem.
Ela mentiu miseravelmente, embora estivesse determinada a agir
como se a situação crítica de sua mãe não a afetasse, Bianca não era uma
boa mentirosa. Seus olhos denunciavam o quanto estava preocupada, e eu
sabia que o câncer estava avançando rapidamente e que o tratamento não
estava mais surtindo efeito.
Não foi difícil descobrir que Bianca não tinha conhecimento de que
Nathalia era a pessoa por trás do financiamento do tratamento de Adelaide
em um dos melhores institutos oncológicos do país. Como resultado, todos
os progressos que ocorriam com Adelaide eram relatados a ela em um
relatório semanal pelo médico responsável, pois se dependesse da garota
loira para contar a verdade, nunca saberíamos o verdadeiro estado de sua
mãe.
Aquiesci, olhando-a com calma.
— Fique à vontade para se afastar por alguns dias, caso precise —
falei, vendo suas bochechas ruborizarem.
— Não será necessário.
— Tudo bem.
Cruzei os braços em frente ao meu peito, percebendo que ela
aparentava não ter dormido por dias. A maquiagem não conseguia disfarçar
completamente as olheiras profundas e os olhos ligeiramente avermelhados.
Além disso, suas unhas pintadas de preto estavam muito mais curtas do que
o habitual, e ela as descascava compulsivamente, sem nem se dar conta.
— Você e Leandro conversaram? — investiguei, intrigado.
Ela parecia um pouco mais relaxada quando estava com ele e, apesar
de ser um porre e um teste de paciência constante, Leandro era ótimo
quando se tratava de distrair as pessoas. Era exatamente o que Bianca
parecia precisar naquele momento, mas considerando o relacionamento
instável dos dois, não parecia que estavam em bons termos.
— Está tudo bem — mentiu novamente.
Assenti, ouvindo-a murmurar um pedido de desculpas pela
interrupção e se virar para me dar as costas.
Normalmente, eu não interferia na vida pessoal dos meus amigos.
Anos de experiência me levaram a aprender que se eles realmente
precisassem da minha ajuda, viriam atrás de mim e a pediriam. Forçá-los a
falar sobre o que estava acontecendo só fazia com que agissem de maneira
ainda mais estúpida e, bem, Leandro era um especialista quando o assunto
era pisar na bola por impulso.
— Bianca — chamei-a, vendo a loira girar nos calcanhares e me fitar
confusa —, as coisas seriam muito mais simples, se você contasse para ele
o que realmente está acontecendo — aconselhei.
— Não quero que ele sinta pena de mim.
— Prefere que ele acredite que está o usando como uma segunda
opção?
Ele abriu um sorriso fraco, dando de ombros.
— Vai nos poupar de muita dor de cabeça — falou, sincera. — Você e
Nathalia nasceram para ficar juntos. Todos perceberam quando vocês se
conheceram, era algo destinado a acontecer, sabe? — Ela inclinou a cabeça
para o lado, ponderando. — Leandro e eu? Somos completamente opostos
um do outro.
— Por que você tem tanta certeza disso?
— Porque é a verdade. — Sorriu amargamente. — Leandro está
comigo porque é divertido para ele. Eu sou o brinquedo novo na vitrine,
mas assim que perder o interesse, vai voltar a ser a mesma pessoa que era
antes de nos envolvermos. Eu sempre estive ciente disso e não preciso me
iludir achando que ele vai mudar.
Arqueei a sobrancelha.
Leandro era uma pessoa insuportável na maioria das vezes, imaturo
na maior parte do tempo e péssimo com relacionamentos sérios, mas como
alguém que o conhecia há mais tempo que qualquer um, eu podia afirmar
sem dúvida alguma que nada do que ela disse condizia com o caráter dele.
— É o que você quer acreditar?
— Se for tornar as coisas mais simples? Sim. — Deu o assunto por
encerrado. — Boa noite, Renato.
Aquiesci, acompanhando a garota sair da minha sala e não demorei a
sair também, trancando tudo.
Por conta do trânsito, levei o dobro do tempo estimado para chegar ao
cemitério em que Nathalia estava com os seguranças.
Com a compensação de uma gorjeta singela, o funcionário não se
importou em manter o lugar aberto por mais alguns minutos. Abandonei o
carro na vaga ao lado dela e sinalizei para que Marcus ficasse por ali
mesmo, enquanto descia pela pequena trilha até a parte em que os túmulos
começavam.
Já havia escurecido completamente e as poucas luzes nos postes de
energia me permitiam caminhar pelo lugar sem me perder, uma vez que eu
conhecia o lugar apenas na teoria. O contato do meu pai na polícia federal
me entregou todos os arquivos referentes ao caso arquivado, e em meio aos
documentos havia a localização do túmulo da Sabrina. Entre o labirinto de
covas, não foi difícil encontrar a silhueta de Victor, parado a alguns metros
de distância de onde Nathalia estava encarando a lápide.
— Ela disse alguma coisa? — questionei, assim que os olhos dele
vieram para o meu rosto e ele balançou a cabeça.
— Não moveu um músculo desde que chegou.
Aquiesci, olhando em volta e buscando pelo garoto que deveria
acompanhá-los.
— Ele foi até a máquina comprar água — avisou Victor, sabendo
quem eu estava procurando.
Ele estava responsável por ficar de olho em Caique, porque apesar de
confiar na palavra de Nathalia de que não se repetiria os padrões que tinha
com a equipe de segurança antiga, eu não confiava no rapaz perto dela.
Caique não tinha qualquer característica similar aos outros seguranças
com quem eu trabalhava. Além de ser mais jovem que todos, ele também
não parecia levar as coisas tão a sério. Talvez fosse ridículo da minha parte,
nessa altura do campeonato, mas havia momentos em que eu tinha vontade
de socá-lo só por ter a ousadia de arrancar um sorriso da minha mulher.
Deixando Victor para trás, retirei meu blazer e me aproximei
cuidadosamente da garota parada em frente ao túmulo, localizado sob uma
árvore.
Entre todas as lápides ao seu redor, aquela era a mais bem cuidada. As
flores sobre o túmulo eram recentes, a grama ao seu redor era mais verde e
saudável do que nas demais áreas, e a lápide parecia nova, de tão bem
cuidada que estava.
Sabrina Oliveira
05/07/1990 – 10/06/2014
Lutou até a última batida do seu coração
Como se sentisse a minha aproximação, Nathalia virou o rosto na
direção e piscou, enxugando uma lágrima grossa que rolou sem permissão.
— Oi… o que está fazendo aqui? — perguntou baixinho, a voz soando
entrecortada devido ao choro contido.
— Eu poderia te fazer a mesma pergunta — murmurei, oferecendo o
meu casaco para que ela o vestisse.
O tempo havia mudado drasticamente e o vento gelado estava
ricocheteando com força em seu corpo pequeno, Nathalia aceitou vestir a
peça no modo automático. A letargia estava explícita em seus olhos e
quando se virou para mim, eu a trouxe para perto e deixei um beijo em sua
testa.
— Você viu a notícia? — investiguei, ainda que já suspeitasse da
resposta.
— Ele está queimando arquivo — refletiu, apertando seus dedos em
minha camisa —, a próxima serei eu?
Suas palavras causaram um impacto tão violento no meu peito que
precisei apertá-la contra o meu corpo com mais força, para que ela nunca
mais ousasse pensar qualquer coisa minimamente próximo disso.
— Ele não vai encostar um dedo em você, anjo — assegurei,
escondendo meu rosto em seu cabelo e sentindo a minha camisa ficar
umedecida pelas lágrimas silenciosas.
Minha equipe de segurança tinha praticamente triplicado de tamanho,
o que antes se restringia a Sérgio, Marcus e mais quatro homens; agora se
tornaram dezesseis pessoas que estavam disponíveis vinte e quatro horas
por dia, preparados para cuidar dela em qualquer situação.
Sérgio traçava constantemente novas rotas para evitar repetições e
garantir a segurança dela. Ela estava proibida de ficar exposta na rua em
qualquer ocasião. As idas ao clube diminuíram e agora ela treinava na
quadra do condomínio, alternando entre os treinos habituais de tênis e a
nova rotina de treinar boxe comigo.
Após o incidente no estacionamento, concordamos que ela faria as
provas restantes do semestre online. Devido à falha grave de segurança e na
tentativa de evitar um processo, a reitoria não teve objeções em convencer o
Prof. Becker a permitir que ela concluísse o período de orientação por meio
de chamadas de vídeo.
Suas aulas tinham se encerrado na semana retrasada e a sua
monografia havia sido aprovada pela banca, o que significava que só
precisava aguardar pela formatura que ocorreria no próximo mês e Nathalia
teria encerrado a especialização.
Naquela semana, a Bentley & Hathaway começaria a entrar em
contato com todos os candidatos ao estágio para informá-los se haviam sido
aprovados ou não para o programa de outono. Apesar de Nathalia estar um
pouco desligada disso, eu estava acompanhando de perto a situação e
tomando todas as providências necessárias para que ela não se sentisse
culpada caso precisasse se ausentar para passar uma temporada em Nova
Iorque.
— Você quer ir para casa? — perguntei, vendo que estava começando
a garoar e ela estava aqui há horas.
Nathalia meneou a cabeça, aceitando a minha mão e entrelaçando seus
dedos gelados nos meus. Com cuidado, a guiei para o estacionamento,
vendo Caique caminhar na nossa frente e Victor em nossas costas, atento a
movimentação ao inexistente ao nosso redor.
— Sabe, Victor… — Nathalia murmurou, olhando para o homem ao
lado e ele desviou a sua atenção para ela —, nós estamos em um cemitério à
noite e, a não ser que você acredite em assombração, acho que você pode
relaxar — brincou, tentando aliviar um pouco o clima pesado.
Um esboço de sorriso se desenhou em meus lábios ao ver a esperança
brilhando em seus olhos, esperando conseguir arrancar algo além das
monossílabas do homem. No entanto, ele apenas meneou a cabeça e
ignorou a brincadeira. Victor era uma indicação do meu cliente mais antigo,
Theo. Eles haviam trabalhado juntos no passado, e quando procurei pelo
García para obter mais informações sobre André, Victor acabou sendo
recomendado.
Caique, no entanto, caiu na risada e me fez rolar os olhos ao ver
minha mulher sorrir para ele.
— Ainda vou demitir esse fedelho — resmunguei, arrancando uma
risada dela e Nathalia se aproximou mais, passando os braços em volta do
meu corpo.
— Pare de ser tão ciumento, ele não está fazendo nada demais —
falou ela, em defesa do garoto.
Escondi uma careta. Nathalia poderia acreditar que Caique era
competente para o trabalho, mas eu tinha as minhas dúvidas e o fato dele
parecer não levar nada a sério não ajudava muito a conquistar a minha
confiança.
— O que você acha de ir ver a Bianca? — perguntei, quando
chegamos ao estacionamento e ela trouxe o seu olhar para mim. — Ela está
preocupada com você.
Nathalia engoliu em seco e meneou a cabeça, entrando no carro e
colocando o cinto de segurança. Olhei por cima dos ombros, vendo os
quatro seguranças parados em frente aos seus respectivos carros,
aguardando por uma instrução.
— Vamos para o hospital em que a Adelaide está — informei Sérgio,
ele meneou a cabeça, buscando pelo celular e calculando uma rota mais
curta e movimentada.
Durante todo o trajeto, tentei manter Nathalia falando comigo.
Por sorte, ela estava tão intrigada com toda a situação envolvendo
James que me interrogou durante todo o trajeto de volta para o centro da
cidade. O hospital em que a mãe de Bianca estava internada ficava a cerca
de dez minutos de distância de carro do escritório, próximo à estação de
metrô Paraíso.
Felizmente, naquele horário, não precisávamos nos preocupar tanto
com o trânsito e depois que saímos da Radial Leste, não demorou para
estacionar em uma das vagas do complexo médico.
Quando entramos no elevador, Nathalia já estava a par de cada
desgraça que atingiu a vida de James nos últimos três anos e entrou para o
seu time de defensores, juntamente com Maria Júlia — prima de Leandro e
o seu noivo, Paulo Marchesim.
— Credo, e eu me achava azarada — comentou, fazendo uma careta.
Ri baixo e acenei em cumprimento para a recepcionista com quem já
estávamos familiarizados. Eu havia visitado o hospital duas vezes nos
últimos dois meses, ambas para fazer companhia a Nathalia, que sempre
saía do quarto onde Adelaide estava internada completamente devastada e
precisando de conforto.
Enquanto atravessávamos o corredor, Nathalia soltou minha mão e
seguiu adiante, indo em direção ao único quarto ocupado naquele corredor.
Com uma batida leve na porta e uma autorização para entrar, Nathalia abriu
a porta e sorriu gentilmente para a mulher deitada na cama.
Ela estava sozinha no quarto, seus olhos pareciam ainda mais
cansados do que na última vez em que a vi, mas isso não impediu que
abrisse um sorriso largo ao ver a minha mulher se aproximar da cama.
— Oi Adê — cantarolou Nathalia, com uma alegria que eu sabia que
não sentia naquele momento, mas ela ainda arrumava forças para não deixar
a mulher debilitada preocupada. — Como você está?
Adelaide foi diagnosticada com câncer no pâncreas quando Bianca
tinha quinze anos. Apesar de ter iniciado o tratamento precocemente e ter
explorado várias opções nos últimos anos, ela foi diagnosticada com o tipo
mais agressivo da doença. E devido a complicações de saúde, estava
internada no hospital há seis meses.
— Estou ótima — disse a mulher e por mais irônico que pudesse
parecer, ela não parecia estar mentindo. Em algum ponto do tratamento, ela
havia se conformado com as dores constantes e as intravenosas em seus
braços o dia inteiro. — Olá Renatinho, querido… essa lindinha está dando
muito trabalho?
Sorri, escondendo as mãos nos bolsos da minha calça e descansei o
corpo na ombreira da porta.
— Ela está sendo uma boa garota nas últimas semanas — assegurei,
vendo a minha mulher revirar os olhos em resposta.
Adelaide sorriu, fascinada.
— Isso é ótimo! Viu, querida? Não é tão difícil assim ser responsável
com a sua segurança e bem-estar — disse Adelaide, olhando-a com
sabedoria.
Nathalia mordeu a pontinha da língua e virou o rosto para mim.
— Você veio aqui mais cedo e a subornou para me dizer isso? —
provocou, tentando divertir a mulher e eu sorri, embarcando na sua
brincadeira.
— Qual seria o sentido se eu admitisse?
Ela espreitou os olhos, fingindo decepção.
— E eu pensando que você era mais resistente às chantagens, Adê…
— resmungou, fingindo decepção ao falar com a mulher que abriu um
sorriso enorme.
— Mas ainda é considerado chantagem quando ele só precisou me
olhar com aquele rostinho lindo? — indagou a mulher, arrancando uma
risada de Nathalia.
— Tire o olho, sua safada, ele é meu!
Adelaide levou a mão ao peito, dramática.
— Que mundo cruel! — lamentou, relaxando as costas nos
travesseiros e buscando pelo controle da televisão, colocando-a no mutado.
— Como estão as coisas no escritório? Já tiraram aquele mercenário?
— Ainda não, mas ele está bem longe dela — garanti, recebendo um
olhar de aprovação da mulher.
— Isso mesmo, Renatinho. Cuide dessa menina, porque ela esquece
que é uma joia preciosa — disse, apertando as bochechas de Nathalia e de
onde estava, pude ver minha mulher engolir em seco, tentando conter as
lágrimas que começaram a se acumular em seus olhos.
Nathalia suspirou, levantando-se e contornando a cama para disfarçar
seu momento de vulnerabilidade e aproximou-se do vaso de flores,
arrumando o arranjo.
— Você é uma traidora, sabia, Adê?
Adelaide revirou os olhos, piscando com cumplicidade para mim.
— Onde está a Bianca? — perguntei, curioso por ela não estar aqui. A
mãe da loira soltou um suspiro.
— Consegui convencê-la a ir para casa e tomar um banho em um
lugar que não seja o banheiro do hospital — explicou, chamando a atenção
da minha garota. — Estou preocupada com a Bianca… ela não está
dormindo bem e está perdendo peso — observou, segurando a sua mão. —
Não somos ingênuas para não perceber o que está acontecendo, não é
mesmo?
Pude notar Nathalia engolindo em seco e seus ombros se tensionando.
— Vou cuidar disso — prometeu Nathalia, acariciando a mão da mãe
de Bianca.
Adelaide sorriu e levou a mão do meu anjo para perto do rosto,
depositando um beijo carinhoso no dorso.
— Leve-a para dar uma volta — pediu Adelaide —, eu estou
adoecendo mais a cada dia que passa só por vê-la confinada nesse quarto
comigo, ao invés de vivendo a sua própria vida.
Nathalia soltou um suspiro.
— Sabe que não posso tirá-la de perto de você, Adê. Não agora.
O sorriso amoroso que a mulher sustentava se desfez e ela olhou para
a minha mulher com uma seriedade incomum.
— Você me prometeu que não a deixaria adoecer comigo.
— Eu sei, mas…
— Você me prometeu.
Nathalia a olhou sem saber o que fazer e respirei fundo, precisando
intervir. Pigarreei, atraindo a atenção de Adelaide que suavizou o olhar
rígido ao se virar para mim.
— Sua filha não vai aceitar sair de perto de você depois do novo
diagnóstico, Adelaide — expliquei, tentando fazê-la ser mais maleável.
Não era justo que jogasse aquela responsabilidade nos ombros de
Nathalia. Se acontecesse algo com ela enquanto Bianca estivesse longe,
seria em cima da minha mulher que Bianca descontaria todo o seu luto.
A mulher não cedeu.
— Então, não deixem que ela saiba do diagnóstico — disse, incisiva.
— Não posso esconder da sua filha que você está piorando, Adelaide.
A mãe de Bianca olhou para a minha mulher, com uma cobrança
explícita nas íris castanhas e Nathalia se encolheu, amuada.
— Ela vai me odiar se algo acontecer com você.
Adelaide deu de ombros, irredutível.
— Então, vamos rezar para que nada aconteça — disse simplesmente,
e meus olhos se voltaram para a loira que caminhava em passos apressados
pelo corredor.
Bianca hesitou ao me ver e por um momento seu rosto empalideceu.
Não era pela minha presença no hospital, pois isso já era algo comum para
ela. Talvez fosse pelo fato de considerar que algo grave tivesse acontecido e
o hospital tivesse ligado para Nathalia, que era o segundo contato de
emergência de Adelaide.
— O que houve? — Bianca perguntou, atravessando as portas do
quarto às pressas e buscando pela mãe na cama.
Seus olhos correram de uma para a outra, buscando por um sinal de
que algo havia acontecido. Adelaide virou o rosto para ela lentamente,
lançando um olhar sério para Nathalia e esboçando um sorriso doce para a
filha, tão convincente que teria me enganado se eu não tivesse visto seu
estado mais cedo.
Meus olhos se concentraram em Nathalia, as íris que normalmente
brilhavam tanto estavam desfocadas e ela parecia prestes a entrar em
colapso com a quantidade de coisas que estava lidando em tão pouco
tempo.
— Nathalia? — Bianca chamou, olhando para a amiga em um pedido
por respostas, afinal, Nathalia nunca mentia.
Ela odiava mentiras com tudo de si, as repudiava com tanta força que
eu podia reconhecer a autoflagelação em seu olhar quando esboçou um
sorriso fingido e acenou, apertando a mão de Adelaide e confirmando:
— Tudo ótimo. Estava brigando com a Adelaide por tentar roubar
meu namorado de mim, acredita nisso? — perguntou, com o tom divertido
de sempre e eu odiei vê-la naquela situação.
Bianca olhou para mim, buscando por uma segunda confirmação de
que estava tudo bem e Nathalia me lançou um olhar suplicante, que me vi
obrigado a embarcar na mentira juntamente com elas.
Quando deixamos o quarto de Adelaide, meus olhos buscaram pelos
de Nathalia e as lágrimas estavam ali.
— Anjo, vem aqui — chamei-a para perto, enquanto esperávamos que
o elevador chegasse ao nosso andar.
Nathalia veio até mim sem hesitar, seus braços envolvendo meu corpo
enquanto ela escondia o rosto em meu peito, deixando o choro
sobrecarregado escapar do fundo de seu peito. Passei meus dedos pelo seu
cabelo macio, odiando vê-la naquele estado e sentindo-me impotente diante
da pressão que ela carregava.
Nos minutos que seguiram, guiei Nathalia pelo estacionamento e
joguei a chave do meu carro para que Sérgio o conduzisse, enquanto me
sentava ao lado dela no banco traseiro. Durante todo o trajeto para casa,
permaneci ali, ao seu lado, fornecendo apoio para que ela pudesse
descarregar todo aquele turbilhão de sentimentos que a sufocavam.
O caminho havia sido mais longo do que o habitual por conta da
quantidade de desvios que Sérgio fez para ter certeza de que não estávamos
sendo seguidos, e quando entramos no estacionamento privado para o meu
apartamento; pedi que ele nos deixasse a sós e fosse descansar. Aquele era
um dos condomínios mais seguros da cidade e nada a atingiria aqui.
Quando Sérgio saiu do carro, trouxe Nathalia para o meu colo e minha
mão buscou pelo seu rosto, enxugando as lágrimas grossas que rolavam e
sentindo o meu próprio peito doer por vê-la desse jeito.
— Você já sentiu… como se tivesse uma corda enrolada em volta do
seu pescoço e, a cada passo que dá adiante, ela fica mais apertada e começa
a te sufocar? — sussurrou, entre os soluços entrecortados. — E não importa
o quanto você tente se libertar, ela nunca afrouxa, até o ponto em que você
sente que vai ser asfixiado de uma vez por todas?
Engoli em seco ao tocar sua bochecha com os meus dedos, sentindo-a
tão gelada e pálida que, por um instante, parecia ser uma boneca de gelo.
— Porque é assim que eu me sinto todos os dias — confidenciou,
trazendo os olhos para os meus, marejados —, e eu não sei por quanto
tempo mais vou conseguir impedir que ela me sufoque.
Meneei a cabeça, compreendendo como ela estava se sentindo.
Nos últimos meses, ela vinha enfrentando uma série de golpes, um
atrás do outro. Desde o início da fusão, parecia que tudo ao seu redor estava
destinado ao caos. Roberta, Guilherme, Olívia, o maldito casamento,
André… e agora, como se isso não bastasse, ainda estava sendo obrigada a
esconder de sua melhor amiga que sua mãe estava em um estado muito pior
e que as chances de encontrar um tratamento eficaz eram praticamente
nulas.
Os médicos estavam começando a considerar iniciar o tratamento
paliativo, o que indicava que eles não acreditavam que existia mais
qualquer alternativa para Adelaide.
Como eu podia prometer para ela que tudo ficaria bem, sem soar
como um mentiroso também?
Meu dinheiro e influência conseguiria conter a ameaça de André, a
afastaria de Guilherme e qualquer outra coisa que tentasse entrar no seu
caminho, mas eu não podia remover o câncer da mãe de sua amiga. Se
pudesse, pagaria o preço que fosse para garantir que Nathalia não precisaria
lidar com aquele fardo sobre suas costas, principalmente porque não era um
que pertencia a ela.
O tempo todo, ela se esforçava para ajudar todos ao seu redor, para
garantir que todos estivessem felizes e que tudo corresse bem. Não era justo
que Adelaide colocasse sobre ela a responsabilidade de lidar com o luto de
Bianca, de submetê-la ao risco de ser culpada pela amiga por tê-la afastado
quando sua mãe estava em estado grave e, principalmente, por esconder a
verdadeira gravidade do câncer.
Adelaide partiria, mas seria Nathalia quem lidaria com o
ressentimento de Bianca; e tudo o que ela vinha fazendo nos últimos anos,
era tentar ajudar aquela família.
Por mais que eu entendesse o lado da Sra. Castro, odiava ver minha
esposa sendo consumida por aquele fardo. Nathalia mal sorria nas últimas
semanas, constantemente olhava por cima dos ombros e estava
abandonando sua própria rotina, tudo porque tentou fazer o que era certo.
— Jogue um pouco do fardo para mim, anjo — pedi, buscando pelos
seus olhos e ao ver o sofrimento estampado neles, senti como se uma faca
estivesse perfurando os meus ombros. — Estou aqui com você, então
sempre que sentir que essa corda está apertando… segure-se em mim,
porque eu vou estar pronto para impedir que ela te leve — assegurei, com
mais sinceridade do que ela poderia imaginar.
Eu atravessaria o inferno se fosse necessário para livrá-la de tudo isso.
Ela soltou um suspiro, envolvendo meus ombros com seus braços e
escondendo o rosto na curva do meu pescoço, apertando-me como se
precisasse daquela estabilidade para se manter firme. O aroma doce de seu
perfume, que lembrava sua flor preferida, me fazia concordar mais uma vez
com Lilian sobre aquela comparação.
A força de Nathalia era algo admirável; eu já tinha presenciado
pessoas muito mais velhas e experientes do que ela, quebrarem por muito
menos.
— Eu amo você, sabia? — falou, baixinho, arrancando um pequeno
sorriso dos meus lábios.
Eu amava como ela não tinha vergonha alguma de me dizer aquelas
três palavras, elas fluíam pelos seus lábios com tanta naturalidade e
sinceridade, que mesmo a tendo ouvido repetir tantas vezes, eu nunca me
acostumava com o impacto que elas repercutiam sobre o meu corpo e
mente.
Não acreditava em destino, sorte ou qualquer conceito semelhante,
mas a cada minuto ao lado do meu doce anjo, percebia que cada decisão
que tomei na vida tinha como propósito me conduzir diretamente para esse
momento, onde ela estaria nos meus braços e seria minha por completo, de
corpo e alma.
Aquilo fazia com que tudo valesse a pena, pois cada desencontro em
minha vida havia me guiado para que eu me encontrasse com ela.
Bianca estava certa.
Em algum lugar das nossas almas, Nathalia e eu estávamos destinados
a nos encontrar exatamente nesse momento de nossas vidas, e era minha
responsabilidade zelar para que nada a atingisse.
Meus dedos mergulharam em seu cabelo, afastando-a o suficiente
para que pudesse ver os seus olhos e agradecendo que, aos poucos, o choro
vinha cessando.
— Eu também te amo, pequena diaba — confidenciei, vendo seu
rosto se iluminar e um sorriso se desenhar em seus lábios, aquecendo o meu
coração.
No entanto, Nathalia não fazia a menor ideia de como aquelas três
palavras não chegavam nem perto do que eu sentia por ela. Amor era
eufemismo perto da realidade.
Nathalia me consumia por inteiro e fazia com que meu mundo girasse
ao seu redor, ela era a minha supernova e cada pedaço da minha existência
havia sido forjada para reverenciá-la.
Meus olhos se abriram assim que senti a ausência de um corpo ao
meu lado na cama e, imediatamente, me levantei e olhei em volta,
procurando pela garota que deveria estar ao meu lado.
No entanto, um barulho vindo da cozinha me tranquilizou e muito
mais calmo, tomei uma ducha rápida e vesti uma calça de moletom, antes
de passar no quarto dos garotos.
Eram quatro e meia da manhã, e como estavam de férias do colégio,
não havia necessidade de acordá-los cedo. No entanto, ao passar pelo quarto
de Matheus e notar que ele não estava na cama, um sentimento de
preocupação começou a se instalar em minha testa. O mesmo ocorreu
quando percebi que Igor também não estava em seu quarto.
Intrigado pela ausência dos três na cama, desci para o primeiro piso e
acompanhei o som que vinha da cozinha, tomando cuidado para não fazer
barulho. Igor e Matheus estavam sentados na ilha, rindo enquanto Nathalia
se desdobrava entre mexer o que estava na panela e retirar algo do forno.
Cruzei os braços, descansando os ombros na pilastra ao lado e
observei a interação deles em silêncio.
Igor sorria como eu não via há muito tempo. Nas últimas semanas,
ele abandonou um pouco os livros e passou a interagir mais com as pessoas
ao seu redor, brincando com os tios e implicando menos com o irmão
caçula. Toda vez que olhava para Nathalia, suas íris brilhavam e ele sorria
fascinado, deixando com que as covinhas em suas bochechas surgissem.
Dra. Luiza também vinha notando suas melhoras. Fazia um tempo
que eu não recebia um convite para visitar a diretoria do colégio devido a
brigas causadas por ciúmes de Isabelle, e até mesmo as discussões entre
eles haviam diminuído em comparação ao que era antes.
Matheus ainda era o mesmo, com a diferença que agora tinha uma
defensora ferrenha que atendia a todos os seus pedidos por doces. Ele
sequer precisava se preocupar mais com as chantagens emocionais
direcionadas a mim, já que bastava pedir para Nathalia e com um olhar, ela
conseguia o que quisesse em nome dele.
A principal diferença na rotina do meu caçula era que agora ele tinha
companhia aos finais de semana. A professora Cordélia cumpriu a palavra
que deu a Nathalia e permitiu que Bernardo viesse brincar com o meu filho.
O pequeno era trazido pela avó antes dela ir para o colégio, onde também
trabalhava aos finais de semana, e voltava para sua casa no início da noite,
quando ela passava para buscá-lo e um dos meus seguranças os levava para
casa.
Meus olhos se apertaram na forma redonda onde o que deveria ser
um bolo, mas que havia se transformado em uma massa deformada que só
cresceu de um lado. Morar com a Nathalia havia me provado que meu anjo
perfeito, na verdade, era uma péssima cozinheira.
Claro, ela tinha os seus momentos e eu precisava dar os méritos para
a sua habilidade em fazer panquecas, principalmente, porque ela dominava
a arte de fazer desenhos e os meninos adoravam aquilo. O seu café
colombiano com uma lasca de avelã e canela também se tornaram um item
essencial na minha rotina, e eu havia perdido o hábito de tomar o
tradicional, já que a sua mistura excêntrica era incomparável.
Mas quando ela arriscava algo além disso, era um desastre.
Leandro e ela poderiam dar as mãos e juntos, fundar um projeto que
tinha como principal objetivo, causar intoxicação alimentar nas pessoas.
Obviamente, eu não compartilhava essa opinião com ela.
Era adorável ver o quanto ela se dedicava para nos agradar e como os
seus olhos se iluminavam com expectativa.
Que tipo de desgraçado eu seria se confessasse que, na última vez em
que tentou preparar o jantar, a comida havia ido direto para a lixeira mais
próxima assim que ela virou as costas?
De toda forma, não era um hábito recorrente e, nas poucas vezes em
que a chefe de cozinha diabólica aparecia, eu conseguia salvar a receita
antes que ficasse um desastre.
— É um bolo diferente — disse Igor, tentando não a deixar chateada
ao ver que o bolo só havia crescido de um lado. — Quando jogar o recheio
em cima, vai ficar parecendo uma montanha com neve.
Nathalia olhou para ele com um meio sorriso e eu tive que conter
uma risada baixa que quase escapou. Nunca pedi aos meninos para
esconderem dela as suas opiniões sobre suas habilidades culinárias, mas
eles o faziam naturalmente. E como não era uma mentira prejudicial, eu não
via necessidade em corrigi-los, já que as suas intenções eram apenas não
ferir os sentimentos dela.
— A montanha faz: kabum!
Matheus incentivou a ideia do irmão, usando o seu boneco do
Homem-Aranha para simular que o amigo da vizinhança estava deslizando
pela neve. O rosto de Nathalia se iluminou e após a noite de ontem, eu me
sentia realmente aliviado em vê-la sorrindo plenamente, sem ser fingimento
para não preocupar outras pessoas.
Consciente da minha observação, meu anjo virou o rosto para mim e
sorriu lindamente. Seus olhos doces se fecharem em fendas e me fizeram
perder o controle do meu ritmo cardíaco.
— Bom dia — saudei, atraindo a atenção dos outros dois que
sorriram em resposta.
— Dia, papai! — cantarolou Matheus, balançando a cabeça e os pés,
agitado, enquanto comia alguns morangos que Nathalia havia colocado em
uma tigela para ele. — Bolinho!
Dei risada, sem nem precisar pensar de quem tinha sido a ideia de
pedir doce para Nathalia naquele horário e me virei para ela, deixando um
beijo em sua têmpora e sentindo o cheiro doce do seu shampoo.
— Tudo bem, mas vocês sabem que só vão comer bolo mais tarde,
certo? — perguntei, vendo os dois balançarem a cabeça em resposta.
Matheus chamou a atenção do irmão para uma luz que brilhava no
peito do seu boneco novo, havia sido um presente do pai de Nathalia, que
tinha vindo visitar a filha no início da semana.
— Como você está se sentindo?
Ela sorriu, apertando os braços em volta do meu corpo.
— Estou bem — assegurou —, sempre fico bem com vocês.
Meus olhos se voltaram para ela, esquadrinhando seu rosto lindo e
percebendo que algumas poucas horas de sono lhe fizeram bem. Nathalia
ficou na ponta dos pés, deixando um beijo suave em meus lábios e se
afastou, avisando que iria se trocar para descermos para o treino.
Nathalia estava prestes a guardar o bolo recém-cortado, quando seus
olhos se desviaram para a entrada da cozinha e Pedro passou pelo arco,
olhando em volta com curiosidade.
— Pepeu! — vibrou Matheus, arrancando uma careta de Pedro
porque ele não era dos mais adeptos a apelidos.
— Garoto — disse ele, balançando a cabeça em um cumprimento
sutil. Sua atenção recaiu em Nathalia e Pedro espreitou os olhos no bolo
montanha que ela servia uma nova fatia. — Não como doces.
Nathalia meneou a cabeça, entregando o prato para ele de qualquer
jeito.
— Uma fatia não vai fazer mal, é bom que adoça um pouco o seu
humor, Pepeu — retrucou, mais do que ciente de que ele detestava o
apelido, mas relevava apenas porque era Matheus que o usava.
Minha mulher estava experimentando uma nova abordagem com
Pedro. Depois de desistir de implicar com ela e agir de forma um pouco
mais amigável quando estavam no mesmo ambiente, Nathalia estava
confiante de que eles poderiam se tornar bons amigos. E, por mais que
Pedro negasse, era perceptível que ele se divertia com as brincadeiras e
implicâncias dela.
Zimmermann fez uma careta, sentando-se na cadeira ao lado de
Matheus e meu filho deitou a cabeça em seu ombro, sorrindo travesso.
— Esse bolo deveria ser…? — perguntou, intrigado pelo formato
incomum.
Igor e Matheus estavam na metade da fatia, comendo como se fosse a
melhor coisa do mundo, mas bastou uma pequena garfada para que eu
soubesse que Nathalia confundiu o açúcar com o sal, o que deixou a massa
do bolo extremamente salgada.
Bebi um gole de água, vendo meu amigo olhar desconfiado para os
meus filhos, como se estivesse tentando descobrir a pegadinha por trás
daquilo. Pedro havia sido o único dos meus amigos que ainda não tinha
descoberto a pequena terrorista alimentar que morava comigo.
— Bolo de montanha do Homem-Aranha — explicou Matheus,
enquanto devorava mais uma colherada e fazia um sinal de aprovação para
Nathalia, que abriu um sorriso enorme em resposta.
— E então…? — Nathalia incentivou Pedro, seus olhos brilhando de
nervosismo.
Eu lancei um olhar expressivo para meu amigo, deixando claro que
era melhor ele preparar seus melhores elogios, caso contrário correria o
risco de ganhar um olho roxo por ousar apagar aquele brilho do rosto dela.
Obviamente, Pedro já tinha escutado as opiniões dos meus amigos
sobre as aptidões culinárias dela, por isso eu entendia a sua apreensão. Com
uma lentidão absurda, ele pegou um pedaço e sob o olhar atento de
Nathalia, experimentou a iguaria peculiar.
Zimmermann respirou fundo, abandonando o talher sobre a mesa e
refém de quatro pares de olhos atentos. Igor o chutou por baixo da mesa,
isso motivou meu amigo a soltar um som ininteligível e balançar a cabeça
sem parar, tentando ganhar um tempo para formular um elogio que não o
fizesse apanhar de nós três.
Pude acompanhar o movimento de deglutição quando ele engoliu o
pedaço do bolo e virou rosto para a Nathalia, forçando algo que parecia
com um sorriso.
— Está bom — falou, recebendo outro chute na canela vindo de Igor.
Eu podia vê-los perfeitamente de onde eu estava, mas como Nathalia estava
do outro lado da bancada, não pôde ver a pancada que meu amigo recebeu.
— Um dos melhores bolos que já comi na vida.
Nathalia abriu um sorriso tão grande que eu pensei que suas
bochechas se rasgariam. Ela já esperava elogios da nossa parte, mas vindo
de Pedro, que tecnicamente “não gostava” dela, parecia ter um pouco mais
de significado.
— Que bom, se você quiser mais…
— Claro, claro — Pedro balbuciou, buscando pela jarra de suco de
laranja.
Ela piscou para mim, avisando que ia se arrumar para irmos para o
escritório e assim que sumiu do nosso campo de visão e ouvi a porta ser
fechada no segundo andar, Pedro me olhou horrorizado.
— Desde quando você deixa a masterchef do capeta cozinhar? —
questionou, horrorizado, bebendo mais um pouco do suco.
Dei risada, balançando a cabeça.
— Não ficou tão ruim.
— Ou talvez você já tenha perdido o paladar — retrucou, olhando
para os meus filhos que ainda estavam comendo o bolo e pareciam
realmente ter gostado. — Vou para Las Vegas no sábado — informou,
atraindo a minha atenção e abandonei o prato na lava-louças.
— O torneio já é nesse fim de semana? — questionei, perdido nas
datas.
— Não, vai ser no próximo, mas como entreguei todos os projetos e
vou começar a ir para Sydney a partir do mês que vem, decidi adiantar um
pouco minhas férias — murmurou, comendo o restante do bolo, distraído na
brincadeira de Matheus com o boneco de super-herói.
— Pretende passar o seu aniversário sozinho em Las Vegas?
Pedro balançou os ombros, indiferente.
— É um dia como qualquer outro, só muda que fico mais velho —
falou, afastando o prato vazio e me olhou, intrigado. — Como ela está? —
investigou.
— Ela está bem.
De todos os meus amigos, Pedro havia sido o único que não comprou
totalmente a história do assalto e que sempre que tinha a oportunidade,
retornava ao assunto.
Ele meneou a cabeça, levantando-se e dando a volta na ilha, ao
mesmo tempo que Nathalia voltava para a cozinha, dessa vez, pronta para ir
para o escritório.
— Você vai comer mais? — perguntou, animada.
Zimmermann olhou para ela, em seguida, para mim e pela primeira
vez na vida me surpreendeu ao dizer:
— Sim.
Após o retorno do almoço, precisei de alguns minutos sozinha na
minha sala enquanto tentava reunir coragem para abrir o e-mail que havia
chegado quando estava no restaurante com Renato e Leandro.
A vida tinha um jeito engraçado de testar os nossos objetivos, e
mesmo quando achávamos que sabíamos exatamente o que queríamos e o
que precisávamos fazer para alcançar esse lugar, tudo parecia sair dos
trilhos. Os caminhos que havíamos estudado por anos se embaralhavam e
nos levavam de volta a um labirinto de incertezas.
Nos últimos sete anos, cada passo que dei na minha vida foi dado
com o objetivo de me levar àquele maldito e-mail. Passei noites e mais
noites sem dormir, me sacrifiquei de tantas maneiras para garantir o
resultado que queria, que acabei me fechando para o mundo e esquecendo
de viver uma vida além do âmbito acadêmico e profissional.
E agora que finalmente estava alcançando o que desejava, sentia um
misto de frustração e derrota.
A verdade era que eu estava tão concentrada em provar para as
pessoas que eu conseguia me destacar sem estar associada ao meu pai, que
não parei para pensar nas coisas que teria que renunciar quando isso
acontecesse. Talvez porque tudo o que eu tinha me agarrado no Brasil
poderia ser facilmente reajustado.
Bianca poderia me acompanhar e eu conseguiria colocar Adelaide em
um dos melhores hospitais do mundo, afinal, o único motivo para a mãe da
minha amiga não estar sendo tratada no mesmo hospital que Tatiana
trabalhava, era por puro orgulho de Bianca, que não aceitava receber minha
ajuda de jeito nenhum.
Era como se ela pensasse que, em algum momento, eu jogaria na sua
cara tudo que havia feito por ela em todos esses anos. No entanto, isso não
era do meu feitio.
Tudo bem que fiz isso com a Roberta, quando a lembrei de que tudo
que havia conquistado nesses últimos anos havia sido por minha causa?
Sim, mas era uma situação completamente diferente.
Bianca nunca me apunhalaria pelas costas para tirar proveito de mim.
Desde que entrou na minha vida, implorava para que eu não fizesse nada
por ela e se isso não fosse o suficiente, Bianca era mais do que uma mera
amiga. Ela era a irmã que eu sempre quis e nunca tive, minha família havia
a abraçado e eu amava a sua mãe e sua irmã.
Nada do que eu fazia por elas era um sacrifício.
Então, levá-las para ficar comigo em Nova Iorque não seria nada
impossível e por saber que Bianca iria aonde eu fosse, talvez não tivesse me
atentado tanto aos detalhes.
Mas agora que existiam outras pessoas que não poderiam
simplesmente abandonar tudo para me seguir, eu estava me dando conta de
que não pensei tão bem quanto achei que tinha feito.
No fim, também era egoísmo esperar que a Bianca abandonasse tudo
para me seguir, sendo que ela tinha uma vida na cidade.
Desde que recebi a notificação do e-mail, vinha adiando ao máximo
abrir sua mensagem. Como se esse simples ato pudesse de alguma forma
diminuir a realidade de que eu precisaria tomar uma decisão mais
rapidamente do que esperava.
Soltei um suspiro, exausta e tentando reunir coragem para abrir o email e descobrir de uma vez o seu conteúdo. Pelo menos, se eu fosse
aprovada, poderia me atormentar com um pouco mais de certeza, sabendo
que precisaria tomar uma decisão o mais rápido possível. Se tivesse sido
recusada, ao menos eu pararia de me torturar dessa maneira e enfrentaria o
sentimento de frustração de frente.
Antes que meu pequeno surto de coragem surtisse efeito, meus olhos
se voltaram para a porta que tinha sido aberta bruscamente e eu capturei o
momento exato em que Roberta passava por ela, olhando-me com uma
selvageria que eu não entendia o motivo.
— O que você pensa que está fazendo? — questionou, entredentes.
Atrás dela, Caique estava com a mesma expressão de confusão
estampada no rosto e parecia não ter entendido em que momento a mulher
passou por ele. Abandonei meu celular na mesa, encarando-a como se fosse
um quebra-cabeças que eu conseguia montar, e normalmente, era algo que
eu conseguia fazer sem precisar de esforço.
Roberta se escondia embaixo de várias camadas e personagens, mas
havia um padrão em todos eles, e no final, eu sempre acabava encontrando
a melhor maneira de lidar com a situação. No entanto, naquele momento, eu
não sabia se era por causa da decepção que ela tinha me causado ou se era
porque eu realmente tinha coisas mais importantes na minha vida para lidar,
acabei desistindo de tentar entender o que se passava em sua cabeça.
Entrelacei meus braços em frente ao peito e recostei o corpo na
minha mesa, olhando-a com paciência.
— Do que você está falando? — indaguei, tentando manter a
cordialidade ou aquela conversa sairia dos trilhos.
Os últimos dias foram infernais e após a minha visita ao hospital, eu
não sentia que estava completamente no controle das minhas emoções e não
poderia garantir minha responsabilidade pelos meus atos se ela me tirasse
do equilíbrio.
Por isso, fiz o possível para me manter calma e vi de relance quando
Caique levou o indicador ao ponto em seu ouvido, provavelmente para
avisar Victor que tinha deixado uma mulher de 1,70m passar por ele.
Roberta me fuzilou com o olhar, como se eu estivesse fingindo que
não sabia do que se tratava, mas eu juro que não tinha ideia do que poderia
ter causado tanta raiva nela. Nos últimos meses, eu estava fazendo o meu
melhor para evitá-la no escritório e, nas poucas vezes em que nos
cruzávamos na frente dos funcionários, eu agia com diplomacia.
Ela praticamente jogou o documento na minha cara, o que me levou a
respirar fundo várias vezes antes de olhar sobre o que se tratava. No pedaço
de papel, havia um pedido formal de desligamento de Ricardo na sociedade,
com efeito imediato.
Um vinco surgiu em minha testa, porque eu realmente não sabia do
que aquilo se tratava. Não cheguei a conversar com Renato sobre o motivo
para abrir mão da não-competitividade, mas pensei que isso significava que
Ricardo queria se livrar dela apenas para poder usar no futuro, não que
aquilo teria efeito imediato.
— Por que você acha que eu tenho alguma coisa a ver com isso? —
Meus olhos se ergueram para ela, confusa. — Eu não fiz nada.
— Acha que eu nasci ontem? — Atacou gratuitamente, dando um
passo em minha direção, incisiva. Isso trouxe Caique para dentro da sala e
meus dedos apertaram a folha de papel com um pouco mais de força. —
Você sempre disse que se dependesse de você, Ricardo estava fora da firma
e, agora, magicamente, ele decide que quer sair?
Rolei os olhos ao entender o que ela estava dando a entender.
— Ah, pelo amor de Deus! Acha mesmo que eu vou perder o meu
tempo brigando com um sócio? — perguntei, inconformada. — Se eu
estivesse querendo tirar qualquer pessoa desse escritório, essa pessoa seria
você. Ricardo não faz diferença alguma na minha vida.
— E ainda assim, você se dedicou em me provar que ele não era bom
para ser sócio!
Dei risada, incrédula em como ela distorcia completamente as coisas.
— Eu não estava dedicada em provar que ele não era um bom sócio.
Eu só estava te avisando que ele agiu de forma desonesta usando
informações privilegiadas! — Defendi-me, sentindo-me incomodada com a
acusação. — Ele teve sorte de que a operação deu certo para o cliente dele,
mas se não tivesse sido assim, o cliente poderia tê-lo denunciado ou, pior
ainda, nós poderíamos ter sido investigados pela CVM, porque você deu a
ele liberdade para fazer o que quisesse!
— Você o acusou sem provas.
— Só uma pessoa tinha aquela informação, Roberta. Não finja que é
estúpida. Você é muitas coisas, mas não é burra ao ponto de acreditar que,
por algum acaso divino, ele soube que a empresa do Gregory ia anunciar a
construção de um hospital em Dubai, exatamente no mesmo dia em que eu
recebi a documentação — falei, entredentes. — Só o fato de ter usado
aquele documento, fez com que o meu cliente perdesse uma fortuna e
desistisse de um negócio que era importante para ele.
Gregory não se importava com o dinheiro que perdeu quando seu
concorrente o ultrapassou e, pagando o dobro do valor inicial, adquiriu os
direitos para construir o centro clínico no meio do deserto. No entanto, isso
não muda o fato de que meu cliente foi prejudicado para beneficiar o dele, e
que invadiu a minha privacidade para conseguir aquilo.
Balancei a cabeça, encarando-a com descrença.
— Você não pode ter se tornado tão gananciosa ao ponto de não
conseguir reconhecer quando algo está errado.
— Ricardo fez o que qualquer pessoa faz para sobreviver aqui,
Nathalia.
— Não importa! Você deu espaço para ele da mesma forma que deu
para o Filippo, e o que aconteceu no final das contas? — perguntei, vendo a
raiva arder em seus olhos ao ouvir aquele nome. — Se você cria uma cobra
em casa, eventualmente ela se vai se voltar contra você e te atacará.
Ela meneou a cabeça, concordando.
— Talvez eu tenha criado mais cobras do que pensei.
Arqueei a sobrancelha, compreendendo perfeitamente o que ela
queria dizer com aquilo. Se a intenção dela era me atingir de alguma forma,
tudo o que conseguiu despertar em mim foi uma sensação de pena.
— Se todo mundo em volta de uma pessoa acaba se transformando
em um vilão, talvez o problema seja essa única pessoa que é constante,
Roberta — falei, dando de ombros.
No fim, essa era a verdade, certo?
Desde que conheci Roberta, tudo o que eu ouvia eram histórias de
como as pessoas haviam sido cruéis com ela e a haviam usado para obter
algum benefício. Esse foi o motivo pelo qual me apeguei a ela e estava
disposta a assumir a responsabilidade de reerguer a empresa. Eu sabia como
era ser usada pelas pessoas, entendia completamente a sensação de que as
relações ao meu redor só funcionavam porque eu era útil de alguma forma.
Odiava essa sensação. Roberta sabia disso e sempre me contava como as
pessoas a usavam e a abandonavam assim que conseguiam o que queriam.
Ela me fez projetar tudo o que eu sentia nela, para que assim eu não
enxergasse os seus defeitos e não percebesse como, no fim das contas, ela
era uma grande egocêntrica narcisista que só pensava em si mesma.
Era ela quem usava as pessoas para alcançar seus objetivos e quando
não precisava mais delas, as transformava em vilões para poder enganar
outro idiota que cairia naquele teatro.
Eu não fui uma pessoa perfeita nos últimos anos, mas não tinha sido
tão ruim para merecer tanto desprezo e desrespeito.
O problema era que, quando a gente percebia que estava sendo usado
era tarde demais, o dano já havia sido feito e a pessoa já tinha nos
transformado na pior pessoa que passou pela sua vida.
— Você fala como se fosse perfeita — disse ela, pegando o
documento da minha mão, enquanto eu a encarava com calma. — Mas já
passou da hora de admitir que todo esse seu altruísmo, na verdade, não
passa de uma fachada para esconder que você é tão ambiciosa e narcisista
quanto qualquer pessoa deste lugar.
— Eu nunca disse que era perfeita.
— Não, você não diz, mas age como se todos precisassem te ver
como um modelo — retrucou, fazendo com que meu cenho se franzisse.
Talvez Roberta estivesse certa. Talvez eu fosse tão podre quanto
qualquer pessoa nesse meio, mas eu precisava de algo para me fazer
acreditar que era melhor do que eles. Talvez eu merecesse ser alvo de tudo
o que acontecia ao meu redor, afinal, como poderia ser inocente quando
estava cercada por cobras?
No entanto, havia se passado o tempo em que eu concedia as minhas
inseguranças em uma bandeja de prata para que Roberta se banqueteasse e
me manipulasse.
— Então, talvez todos devessem realmente ser mais parecidos
comigo — falei, enquanto observava a silhueta do corpo de Renato surgir
pela porta com uma expressão nada boa.
Ele havia deixado claro para Roberta que ela deveria se manter
afastada de mim, e de preferência, evitar qualquer contato direto comigo. A
mulher virou o rosto na direção dele e recuou com toda a selvageria que
estava direcionando a mim até alguns segundos atrás.
Isso me intrigou, porque Roberta nunca recuava.
— Algum problema aqui? — interrogou, rudemente.
Seus olhos concentrados em Roberta com uma mensagem
subentendida que eu não fui capaz de interpretar. Ela deu um passo para trás
e engoliu em seco, esticando o braço para que ele visse o documento.
Renato não pareceu se surpreender com o conteúdo na folha.
— O que tem? — questionou, a encarando sem qualquer interesse na
raiva que ela estava sentindo.
— Você não tinha o direito de passar por cima de mim e renunciar ao
acordo de não-competitividade dele! — falou e tudo fez mais sentido na
minha cabeça.
Então, aquele chilique não tinha nada a ver com o seu garoto estar
saindo da firma, mas o fato de estar saindo e com permissão para contatar
cada cliente com quem interagiu nos últimos anos. O que significava: os
clientes da Roberta.
Renato franziu o cenho, demonstrando sua confusão ao ouvi-la.
— Eu não tenho o direito? — Repetiu e meus olhos cravaram em seu
rosto, atordoada com a sua tranquilidade. — Você sabe com quem está
falando?
— Eu sou tão fundadora desse escritório quanto você, Renato.
Ele meneou a cabeça.
— Não preciso te dar explicações sobre minhas ações, Roberta —
esclareceu, mantendo a postura impenetrável de sempre. — A quebra do
acordo exigia o consenso de dois sócios, que deveriam ser a maioria entre
os fundadores… não violei nenhuma cláusula do contrato que justifique ser
questionado.
— Isso é apenas uma forma de você se esconder atrás do Leandro, já
que ele faz tudo o que você manda!
— Está insinuando que meu sócio não é capaz de assumir
responsabilidade por suas próprias decisões? — ele retrucou.
Roberta hiperventilou. Seus olhos esquartejaram Renato com tanta
violência, que ele deveria agradecer aos céus pelas navalhas terem sido
apenas mentais, caso contrário, eu teria presenciado seu corpo sendo
dilacerado.
Ela balançou a cabeça, arrancando a folha da mão dele.
— Não pense que eu não sei o que você está fazendo, e eu não vou
deixar isso passar ileso — ela o alertou, apontando um dedo em sua direção.
— Você não é intocável.
A mulher virou as costas para ele, marchando para fora da minha sala
e quase levando o pobre Caique junto. O rapaz fez menção de se desculpar
por tê-la deixado entrar, mas Renato fechou a porta na sua cara e me
encarou com um olhar sério.
— O que ela te disse?
Soltei um suspiro, espalmando minhas mãos sobre a mesa e dando de
ombros.
— Nada que fosse realmente importante — murmurei em resposta,
vendo-o se aproximar de mim com aquele olhar imperturbável e intenso. —
Você não precisava vir ao meu socorro.
Ele meneou a cabeça, concordando.
— Estou começando a perder a cabeça com todos jogando suas
merdas em cima de você — falou, aninhando sua mão em meu rosto,
preocupado.
Torci os lábios em uma careta.
— Estou bem — assegurei, ciente de que ele estava falando sobre o
meu descontrole emocional na noite passada. — Na verdade… eu queria
conversar com você sobre uma coisa.
Renato assentiu, mantendo os seus olhos compenetrados em mim.
— Do que você precisa? — perguntou, solícito.
Uma batida na minha porta me impediu de dizer a ele que havia
recebido o retorno do estágio, e nossa atenção se voltou para a porta quando
Ananda passou por ela com um olhar tranquilo.
— Theo García já está na sala de reuniões — informou.
— Tudo bem. Diga que o encontro em breve — avisou, dispensandoa e trouxe o seu olhar para mim quando a porta foi fechada novamente. —
O que você ia me dizer, anjo?
Engoli em seco, sentindo o turbilhão de mais cedo retornar e apenas
esbocei um meio sorriso, balançando a cabeça em resposta.
— Conversamos em casa.
Ele franziu o cenho, aproximando-se de mim e segurando meu rosto
em suas mãos com cuidado.
— Tem certeza? — ele insistiu, examinando-me como se estivesse
procurando pelo que estava me incomodando.
Balancei a cabeça e, ficando na ponta dos pés, deixei um beijo suave
nos lábios.
— Sim, não era nada importante.
E o pior de tudo era que, naquela altura do campeonato, aquele
estágio realmente não tinha mais a mesma importância.
Uma batida soou na porta da minha sala quando desliguei a chamada
com um cliente e me virei, murmurando que entrassem.
Não demorou para que Leandro surgisse por ela, implicando com o
Victor que havia substituído Caique depois da invasão de Roberta. Revirei
os olhos ao vê-lo atravessar a sala como se fosse o rei dela e se jogar no
sofá, colocando os pés sobre a mesa de centro.
— Quais são os seus compromissos do dia? — investigou, curioso.
— Hm… depois de verificar toda aquela pilha de documento. —
Apontei para a montanha de arquivos em minha mesa, apenas das
operações daquela semana. — Estou pensando em descansar um pouco
antes de continuar com o meu plano maquiavélico de dominar o mundo.
Leo sorriu, reconhecendo o sarcasmo e não duvidava que Ananda já
tivesse contado para ele sobre a visita de Roberta.
— Uh, posso me juntar?
— Depende, você é tão dissimulado quanto eu? — perguntei,
olhando-o com cinismo e ele gargalhou, concordando.
— É a minha maior qualidade!
Rolei os olhos e me sentei ao seu lado no sofá, examinando seu rosto
em busca de algum sinal de que estava tudo bem. Leandro e Bianca haviam
terminado o que estavam tendo há alguns dias e tiveram uma briga feia o
suficiente para estarem me evitando.
Pensei que eles acabariam se resolvendo como nas outras vezes, mas
depois que Renato me contou sobre a conversa que teve com a Bianca, eu
estava começando a considerar que dessa vez poderia ser um término
definitivo.
— Quer conversar comigo sobre o que aconteceu no fim de semana?
— investiguei, vendo o seu rosto bonito ser distorcido por uma careta
amargurada.
— Não.
— Tudo bem… — suspirei, relaxando os ombros —, em que posso
ser útil, meu querido?
— Na verdade, vim te buscar para você participar de uma reunião
comigo — disse, levantando-se como se tivesse chegado a alguma
conclusão e agora estava sem tempo para perder.
— Como assim?
— Tenho uma situação com um cliente e preciso de uma pessoa
imparcial para lidar com isso — falou, calmamente.
— E por que eu? — Aquilo não fazia muito sentido na minha cabeça,
ele tinha a sua própria equipe que poderia cuidar disso.
Leandro deu de ombros, como se aquilo não fosse importante o
suficiente para lhe dar uma resposta. Ele estendeu a mão para mim e eu a
aceitei, sendo arrastada para fora da minha sala sem nem mesmo ter tempo
de pegar meu iPad. Assim que passamos pela porta, Victor posicionou-se
atrás de mim e Salazar fez uma careta, mas não reclamou. Ele me guiou
pelo corredor daquele andar até uma das últimas salas do outro lado.
— Sabe, eu poderia me preparar melhor para isso se você me dissesse
o que… — minha voz se calou ao olhar para dentro da sala e encontrar
Joaquim D’Avila sentado em uma das cadeiras.
Eu só o conhecia por conta dos jornais e por saber que era uma das
maiores operações do Leandro. O relatório dele caiu na minha mesa
algumas vezes, o que me dava alguma instrução para saber que aquele
homem comandava todos os meios de telecomunicações do país.
D’Avila ergueu os olhos do aparelho em suas mãos e esboçou um
meio sorriso educado que retribui ainda mais confusa.
— É uma reunião confidencial, brutamonte — alertou Leandro
quando Victor fez menção a entrar na sala para revistá-la.
Rolei os olhos, encarando o segurança e dando um meio sorriso.
— Está tudo bem, Victor. Me dê alguns minutos e qualquer coisa, eu
grito — assegurei, vendo-o balançar a cabeça e dar um passo para trás para
permitir que Salazar fechasse a porta. Virei-me para o homem de cabelo
grisalho nos observando e Leo soltou a minha mão.
— É um prazer conhecê-la, senhorita Gama — disse ele,
extremamente educado e simpático —, Leandro e Renato me falaram muito
sobre você.
Arqueei a sobrancelha, vendo meu amigo servir uma dose exagerada
de uísque e virar em um único gole, visivelmente incomodado com alguma
coisa. Desviei meu olhar para o empresário, aceitando o seu aperto de mão
e abrindo um sorriso fraco.
— Em que posso ajudá-lo, Sr. D’Avila?
Ele dispensou com um aceno.
— Joaquim é o suficiente — pediu, entregando-me o celular em sua
mão, que estava pausado em um vídeo. — Desde já, peço desculpas pelo
inconveniente que será assistir essa gravação.
Engoli em seco, olhando para Leandro em busca de alguma instrução,
mas ele parecia realmente perturbado com a situação e me preocupei de
imediato.
Leandro era bom em esconder os seus problemas com um humor
conturbado e implicante, mas era visível que ele tinha várias questões
internas para lidar. Aparentemente, o que estava no vídeo no celular de
Joaquim desencadeava alguma espécie de gatilho que estava o deixando no
limite.
Virei-me para o cliente dele, meneando a cabeça e contornando a
mesa para alcançar o meu amigo que estava servindo mais uma dose de
uísque. Ele fez menção a brigar comigo, mas bastou um olhar para que se
calasse e se sentasse em uma cadeira ao meu lado.
Diante do olhar dos dois e da falta de respostas, só me restou
destravar o vídeo e pelos minutos seguintes, eu precisei processar que
Leandro me arrancou da minha sala para ver o vídeo de sexo mais
promíscuo do mundo, estrelado pelo seu cliente, no meio de uma orgia com
outros três homens.
Pisquei, atônita.
— Eu… hã… — balbuciei, tentando encontrar as palavras e olhei para
o homem ao meu lado. — Certo, você está sendo chantageado por um
desses caras?
Uma risada amarga escapou de Leandro e olhei-o de relance.
Joaquim pigarreou, atraindo a minha atenção de volta para si. Era
perceptível o quanto ele estava incomodado e constrangido com a situação,
mas ele ao menos não estava bebendo enlouquecidamente e me fazendo
ficar preocupada com o seu estado emocional.
— Sim… quer dizer, eles estão envolvidos no meio disso, mas… —
suas mãos buscaram pela sua gravata, afrouxando o aperto como se
estivesse sufocando. — Eles foram pagos por uma pessoa para isso e estou
sendo chantageado por ela.
Meneei a cabeça, deixando o celular sobre a mesa.
— Eles pediram dinheiro? Isso não é um problema para o senhor —
murmurei, sem entender o que eles estavam esperando de mim.
Não me parecia uma situação que exigisse uma visão imparcial; era
algo bastante comum em nosso meio, e eu havia perdido a conta de quantas
negociações desse tipo havia liderado.
O vídeo não era nem tão absurdo, eu já tinha visto piores e muito
mais explícitos.
— A filha dele é a pessoa que está chantageando — explicou
Leandro, deixando um copo com o líquido âmbar ao meu lado e virou um
pouco do seu próprio, cravando seu olhar em meu rosto. — Fernanda
D’Avila.
Demorei alguns minutos para conseguir entender o que estava
acontecendo e mais alguns para buscar em minhas lembranças o motivo
pelo qual aquele nome me soava familiar. Foi quando uma conversa que
tive com Leandro, meses atrás, em minha sala, ressurgiu em minha
memória. Compreendi o motivo por trás daquele descontrole emocional do
meu amigo e o motivo pelo qual ele havia solicitado a presença de uma
pessoa imparcial.
Pisquei, tentando me encontrar na situação e me virei para o homem
simpático e gentil, sentindo o coração apertar por ver o vislumbre de
decepção em seus olhos azuis.
— O que ela quer?
— Nada.
— Impossível, eles sempre querem algo — falei, alternando meu
olhar entre os dois e tentando entender o que não estavam me contando. —
Se vocês não me explicarem, não posso ajudar.
Joaquim meneou a cabeça, me dando um sorriso sem jeito e explicou:
— Fernanda era noiva do Leandro, então… por isso decidimos que
era melhor uma pessoa imparcial liderar a situação para negociar com ela
— falou o homem, olhando-me com cautela. — Não me importo se ela
quiser dinheiro, eu dou o que ela quiser… só preciso que ela não exponha
isso.
Respirei fundo, meneando a cabeça.
— Sua esposa sabe sobre o caso? — perguntei, vendo-o confirmar.
— Sim. Paula e eu somos bons amigos, ela também vive a vida dela e
sempre fomos muito reservados quanto ao que fazemos — explicou,
tranquilo. — Nunca nos envolvemos com quem não tenha sido checado
várias vezes, eles passaram por todos as análises da minha equipe…
— Certo, eu… você assinou algum acordo de confidencialidade?
— Sim.
— Tudo bem, preciso que os seus advogados me enviem, porque não
se trata só de conter a sua filha, mas impedir que eles falem também —
esclareci, olhando-o com seriedade —, também preciso saber se realmente
está disposto a dar dinheiro para a Fernanda. — Pude ver de canto de olho,
Leandro apertar os dedos em volta do copo. — Eu não faria o meu trabalho
se não te alertasse que, normalmente, isso se repete um tempo depois.
Joaquim soltou um suspiro consternado.
— Fernanda só é uma… menina, sabe? É carente de atenção e faz de
tudo para ser uma prioridade para as pessoas — disse, baixinho.
— Então, o senhor está ciente de que dar dinheiro para ela não vai ser
o suficiente? — insisti, porque precisava ser franca com ele.
Dessa vez ela pediria uma quantia relativamente alta, na próxima, um
valor dobrado… e aquilo nunca acabaria.
O homem olhou para o meu amigo sobre os meus ombros, lançando
um olhar inquisidor e esperando por instruções.
— Tudo bem — disse por fim, trazendo seus olhos para mim. —
Deixo nas suas mãos para que lide da forma que for mais eficiente.
Aquiesci, expondo um sorriso fraco.
— Considere feito — assegurei, e nada tinha a ver com o problema
daquele homem.
Ele poderia lidar com o dano que a exposição causaria, e o resto
poderia ser resolvido com uma boa gestão de crise. Eu tinha certeza de que
a emissora contava com os melhores profissionais da área para lidar com
esse tipo de situação. No entanto, aquilo se tornou uma questão pessoal
quando, mesmo sem dizer uma palavra, eu percebi que a intenção por trás
de tudo aquilo não era apenas mexer com o pai. Fernanda havia feito aquilo
para desestabilizar Leandro, sabendo muito bem que o pai iria atrás dele.
E, seja lá o que ela havia feito para ele, eu não permitiria que ela
conseguisse o que queria.
Eu não permitia que fizessem mal aos meus amigos.
A última semana havia sido estranhamente tranquila.
Embora minha agenda estivesse enlouquecida e por conta do
afastamento de Guilherme da empresa, eu precisasse me dividir na ponte
aérea entre Rio e São Paulo, tudo estava alinhado para a reunião do
Conselho que aconteceria no início do próximo mês.
Alinhar as agendas para que todos pudessem estar na matriz havia
sido mais desafiante do que conseguir recolher os votos, e com a saída de
Ricardo e oito sócios ao meu favor, mesmo que houvesse qualquer
reviravolta e alguém decidisse voltar atrás com o acordo, eu ainda teria a
maioria dos votos graças à saída de Ricardo. Revogar a cláusula de nãocompetitividade dele era um preço insignificante em comparação com a dor
de cabeça que poderia me causar no futuro.
Quando Nathalia me contou, há alguns meses, durante uma conversa
regada a taças de vinho, como ele invadiu sua sala e usou um documento
em sua mesa para fechar negócio com um cliente concorrente, eu soube que
precisava encontrar uma maneira de removê-lo sem causar pânico entre os
outros funcionários. Por ironia do destino, ele estava mais do que disposto a
sair da empresa, contanto que eu permitisse que ele levasse seus clientes
consigo.
Assim que cheguei na pista de decolagem, busquei pelo meu celular e
aceitei a bebida que a comissária de voo me ofereceu, verificando como os
meus filhos estavam e assistindo aos vídeos e fotos que minha mãe havia
enviado.
Naquele fim de semana, ocorreria o aniversário de oitenta anos do
avô da Nathalia e após muita insistência deles, permiti que os garotos
fossem passar alguns dias na fazenda da família Bazán-Gama,
acompanhados pela babá e seus seguranças.
Normalmente, no período em que os meninos estavam de férias, eu
conseguia me afastar do escritório por algumas semanas para levá-los para
viajar, mas, por conta de tudo o que aconteceu e por estar tendo que gerir
dois escritórios simultaneamente, não tinha conseguido fazer uma pausa.
Por mais que Leandro estivesse dividindo o fardo comigo e cuidasse
de um escritório enquanto eu estava lidando com outro, ainda era
complicado para mim ficar tanto tempo longe de casa, sabendo que meus
filhos e minha mulher esperavam pelo meu retorno.
Quando o piloto me informou que iríamos decolar, fiz uma ligação
rápida para Sérgio e conversei com os garotos apenas para checar como
estavam e se precisavam de algo. Os avós de Nathalia os mimavam o dia
inteiro, Matheus havia ganhado um pônei no terceiro dia na fazenda, e Igor
estava se divertindo aprendendo tudo o que Miguel Gama se dispôs a
ensiná-lo.
No início do meu envolvimento com a Nathalia, estava genuinamente
preocupado com a possibilidade de que sua família não aceitasse bem o
relacionamento, principalmente pelo fato de eu já ter dois filhos. No
entanto, para minha surpresa, isso nunca pareceu ser um problema para
eles.
Sempre que vinha para a cidade, Miguel fazia questão de trazer
presentes e mimar meus filhos, deixando claro o afeto que sentia por eles.
Tatiana, por sua vez, abraçava o papel de “abuelita” dos garotos e mantinha
uma comunicação constante com eles, conversando todos os dias durante os
intervalos de seus plantões em Boston. Quase toda semana, os garotos
recebiam presentes dela, o que estava os deixando mal-acostumados.
Nathalia estava tão envolvida com o caso de Joaquim D’Avila na
última semana que adiou todas as suas reuniões para se dedicar àquele
assunto. Embora tudo o que descobriu sobre o relacionamento de Leandro
com Fernanda foi que ela o abandonou no altar, durante todo o circo que ela
criou em cima da cerimônia. Meu pequeno anjo não precisou que meu
amigo remoesse ainda mais aquela lembrança para estar determinada a
colocar um fim na aproximação de Fernanda.
Essa era uma distração bem-vinda, assim ela não ficava tão focada no
fato de que André havia desaparecido e que não fazíamos ideia de quais
eram os planos dele.
Eu tinha mobilizado todos os meus contatos na busca por aquele
desgraçado, oferecendo dinheiro para quem o entregasse. No entanto,
mesmo com muitas pessoas atrás dele, parecia que André nunca tinha
estado no país. Isso me preocupava, mas eu preferia manter em segredo e
não deixar minha mulher constantemente assustada, como se estivesse em
constante perigo de ser emboscada por ele a qualquer momento.
Nathalia já tinha muito para lidar e não permitiria que André fosse
um fantasma tirando suas noites de sono.
Durante o voo, aproveitei para ler alguns relatórios da semana e
despachar alguns acordos que seriam liberados após a reunião do Conselho,
como uma cortesia por terem cumprido com suas respectivas partes da
negociação.
Cerca de uma hora depois, peguei meu celular para avisar Nathalia
que eu poderia buscá-la no restaurante onde ela estava jantando com
Leandro. No entanto, acabei encontrando uma mensagem dela informando
que eles tinham mudado de ideia. Ela o levou para um bar junto com a
equipe da mesa de Renda Variável, para que ele pudesse se recuperar do pé
na bunda que havia levado.
Se eu fosse um pouco imaturo, poderia estar tirando sarro da sua
situação, já que quando foi a minha vez ele não me poupou das suas
provocações. Mas, antes que eu pudesse alcançar o carro que me esperava
no meio da pista, meu telefone tocou e o nome de Caique surgiu na tela.
Ele ainda não era a minha opção preferida para ficar responsável por
cuidar dela, mas minha mulher realmente simpatizava com o garoto e eu me
via sem muita opção; o que me restava aceitá-lo e confiar que não pisaria na
bola.
Naquele dia, decidi dar a ele uma chance. Nathalia sempre insistia
que eu não dava oportunidades para o rapaz mostrar que era capaz de
desempenhar o trabalho para o qual havia sido contratado. E como eu não
queria irritá-la naquela semana, já que havia a possibilidade de não
conseguir convencer Kerem a desistir da compra da Devilish Angel, acabei
acatando seu pedido de deixá-la sozinha com Caique e outro segurança.
Porém, quando atendi o telefone, descobri que havia sido a pior
decisão que eu tomei na minha vida.
— O que você disse? — exigi, sentindo o sangue esquentar em minha
veia ao ouvir a notícia que o garoto compartilhou.
— Aparentemente, ela foi drogada com Boa Noite Cinderela e…
— Onde vocês estão? — interrompi, sentindo a minha visão ser
cegada e tudo não passar de uma cortina vermelha na minha frente.
— No Albert Einstein.
Não esperei por mais explicações, ou corria o sério risco de acabar
com esse garoto antes mesmo de pisar naquele hospital.
Assim que entrei no carro, Sérgio assumiu o volante e partimos do
aeroporto Campo de Marte. Durante todo o trajeto, procurei por mais
informações sobre o que havia acontecido com Nathalia, e isso só aumentou
minha raiva em relação ao segurança, que deveria protegê-la de situações
como aquela, e também em relação ao meu amigo e sócio, que na sua rotina
insana de agir como um irresponsável novamente, acabou a submetendo a
uma situação de risco.
Eu não queria nem imaginar o que poderia acontecer com Nathalia,
caso outra pessoa que não fosse Leandro, tivesse percebido que ela estava
passando mal e ajudado. Aquilo havia sido proposital, e com tudo o que
vinha acontecendo nas últimas semanas era impossível não considerar que
André estivesse no meio disso tudo.
Durante todo o trajeto, recebi atualizações em tempo real de Marcus,
que assim que avisei o que havia acontecido, se deslocou para o hospital
para acompanhar de perto.
Durante minha época na faculdade, encontrei no boxe uma forma de
canalizar minha raiva e estresse, deixando esses problemas de lado. Com o
nascimento dos meus filhos, essa raiva ficou mais contida. No entanto,
desde que Nathalia entrou em minha vida, despertou novamente esse lado
que eu acreditava ter deixado para trás há muito tempo.
Ao atravessar as portas do elevador no andar indicado por Marcus,
deparei-me com Caique sentado na sala de espera, aguardando alguém. Ele
rapidamente se levantou ao me ver, mas eu tive que controlar minha raiva
para não agredi-lo ali mesmo, apesar de estar num hospital, onde ele seria
enviado diretamente para a UTI.
O menino mal teve tempo de abrir a boca, meu olhar em sua direção
foi categórico ao dizer:
— Está demitido.
— Mas, Renato…
— Demitido — repeti, olhando-o sem deixar que tentasse se
justificar.
Ele havia perdido essa chance, quando mesmo trabalhando comigo há
dois meses e sabendo exatamente o motivo para que Nathalia estivesse
sendo escoltada, decidiu que era uma boa ideia deixá-la sozinha em um bar
na Rua Augusta.
Não existia absolutamente nada que pudesse me dizer, que faria com
que eu lhe desse outra chance para ficar perto de Nathalia ou dos meus
filhos. Ele tinha uma simples tarefa e havia falhado nela.
Sérgio, que estava atrás de mim, indicou para Caique sair do meu
caminho, caso contrário, ele acabaria recebendo toda a raiva que eu estava
tentando conter. Meus pés hesitaram na frente do quarto que meu segurança
havia informado, e meus olhos se fixaram na garota com uma intravenosa
na veia, o rosto abatido e ligeiramente dopada, enquanto escutava algo que
o desgraçado que me prometeu que cuidaria dela — e que eu não precisava
me preocupar — dizia.
Quando Leandro virou o rosto em minha direção, eu o sentenciei a
morte.
Eu acabaria com aquele desgraçado para que assim, algum juízo
entrasse em sua cabeça e quando meu punho acertou seu rosto, a única
coisa que me conteve de acabar com ele, foi o chamado estridente de
Nathalia.
Levei meu olhar em sua direção, vendo-a me encarar os olhos
arregalados.
— Porra, Renato! — Leandro disse, levando a mão ao maxilar e
meus pés me guiaram para cama, buscando por qualquer sinal de que
Nathalia pudesse estar machucada. — Você ficou completamente louco?
Ignorei-o, era melhor para a sua segurança que eu continuasse com a
minha atenção concentrada em Nathalia e ela me lançou um olhar
tranquilizante, que não repercutiu qualquer efeito sobre minha preocupação.
Eu conhecia muito bem as terríveis consequências que aconteciam
com as garotas que tinham suas bebidas adulteradas. Era uma triste
realidade em que, quase toda semana, surgia uma notícia sobre uma jovem
que estava simplesmente aproveitando a vida, mas teve sua trajetória
devastada. Essas garotas enfrentavam dificuldades para encontrar justiça,
mesmo com evidências de abuso. Em vez disso, eram ridicularizadas e
culpabilizadas por terem “bebido demais”.
Era uma situação revoltante e injusta.
A ideia de que algo semelhante ao que acontecia com essas meninas
tivesse ocorrido com Nathalia, ou chegasse minimamente perto de ocorrer,
devido à imprudência do meu melhor amigo, me deixava cego.
— Ei, calma, está tudo bem — disse ela, segurando minha mão com
delicadeza e só naquele momento, me dei conta de que estava respirando
com um pouco de dificuldade. — Eu estou bem, Renato… foi só um susto.
Olhei para ela, sem conseguir acreditar que ela ia realmente tentar me
fazer acreditar que aquilo havia sido um mero acaso.
— Respire, por favor — pediu ela, instruindo que eu tentasse acalmar
meus batimentos acelerados e pude ver de canto de olho Leandro passar
perto de mim, mas antes que eu olhasse em sua direção, Nathalia esticou a
mão e segurou meu rosto. — Eu estou bem.
Ela guiou meu rosto para perto, seus dedos desenharam círculos em
volta da minha nuca e meus batimentos aos poucos, foram se acalmando
quando eu fui tomando consciência de que ela estava inteira. Não havia se
machucado. Leandro a tirou do bar antes que a pessoa responsável pela
droga em sua bebida colocasse as mãos nela.
Seus lábios roçavam nos meus, suavemente, deixando-me sentir o seu
gosto doce e me agarrar nele para poder me acalmar. Quando assumi o
controle da minha própria cabeça e respiração, Nathalia abriu os olhos e
prendeu as orbes castanhas e grandes em meu rosto.
— Você não pode sair batendo nos seus amigos por minha causa —
soprou ela, baixinho, sem afastar o rosto do meu e sem deixar de afagar a
minha nuca.
— Sim, eu posso — falei, baixo e grave. — Principalmente, se eles
estiverem negligenciando a sua segurança.
Nathalia soltou um suspiro, afastando-se o suficiente para me olhar
por inteiro, o que me fazia perceber que Leandro não estava no quarto mais,
ele tinha se retirado em algum momento, aproveitando da minha distração.
— Inclusive, Caique está demitido.
Ela abriu a boca para responder, mas o médico bateu na porta,
atraindo a nossa atenção. Durante os minutos que seguiram, o doutor
informou que Nathalia tinha sido drogada com uma dose pequena; o que era
bom, já que ela poderia ter complicações muito sérias, caso tivessem
exagerado na dose.
A cada exemplo que o médico recitava; mais forte eu apertava a mão
de Nathalia para garantir que não acabaria com o idiota que chamava de
amigo.
Quando o médico avisou que ela passaria aquela noite no hospital em
observação, virei-me para ela.
— O que aconteceu? — perguntei, querendo ouvir a história
novamente da sua boca.
Eu sabia a versão que Leandro contou para Marcus, mas queria saber
as coisas da perspectiva dela. Nathalia me olhou com um semblante
confuso, como se nem mesmo ela soubesse exatamente como aquilo havia
acontecido e eu me sentei ao seu lado, fazendo carinho em sua mão macia e
gelada.
— Eu não sei, de verdade — disse, sincera e mantendo seus olhos em
mim. — Nós estávamos em uma parte privada do bar, o Leandro garantiu
que só nós entraríamos ali. Aí chegaram o Guto, Joca e a Geovana. Eu
estava conversando com eles, não bebi nada… só água.
Aquiesci, ouvindo atentamente tudo o que ela estava me contando. O
médico havia deixado claro que nada de pior aconteceu porque Nathalia não
tinha ingerido bebidas alcoólicas, caso contrário a droga teria tido efeito
mais rápido e ela não teria notado que não estava se sentindo bem.
— O Leandro não saiu de perto de mim em nenhum momento. Você
precisa pedir desculpas para ele! — repreendeu, olhando-me com os cílios
cerrados, entrando em defesa do meu amigo. — Não sei ao certo o que
aconteceu depois. Só lembro de me sentir um pouco tonta e de perguntar se
podíamos ir embora.
Ela pressionou os dedos na têmpora, massageando como se isso
pudesse fazer as coisas ficarem um pouco mais nítidas.
— Na mesma hora, ele percebeu que eu não estava bem e concordou.
Depois disso, só lembro de sairmos do mezanino e quando chegamos na
saída… tudo ficou preto. — Torceu os lábios em uma careta. — E você não
vai demitir o Caique.
— Não só vou, como já demiti.
Nathalia me olhou, incrédula.
— Não, você não vai! — retrucou, incisiva. — Ele não tem culpa de
nada.
— Ele deveria ficar com você o tempo inteiro.
— Eu estava bem, e ele teve um problema familiar — falou, em
defesa do garoto. — Leandro prometeu que ficaria comigo o tempo todo e
cumpriu, ele nem bebeu para garantir que não tiraria os olhos de mim —
explicou, apertando os meus dedos. — Se quer ficar irritado com alguém,
fique comigo! Fui eu quem disse a ele que poderia ir, e dispensei o outro
rapaz para que esperasse do lado de fora do bar, porque realmente não havia
motivo para ele ficar lá dentro.
Respirei fundo, tentando relaxar o meu corpo, mas a tensão ainda
estava presente, pois ela poderia ter sido tanto uma vítima aleatória quanto
planejada. E as duas opções me deixavam tenso.
— Sabe o que seria de mim se algo acontecesse com você? —
questionei, tentando mostrar a minha perspectiva para que ela entendesse
que não me importava se eles olharam para o lado e viram que só havia
unicórnios ao seu redor.
Sua segurança era inegociável para mim, e não existia a menor
possibilidade de abrir exceções. Eu não me importava se parecia exagerado
ou extremista para qualquer um que ouvisse, mas se algo acontecesse com
Nathalia, eu seria aniquilado. Não havia a menor chance de que eu
sobreviveria em um mundo onde não fui capaz de mantê-la segura.
Seus olhos marejaram e ela meneou a cabeça. Com um suspiro
cansado escapando dos seus lábios, descansou o corpo nos travesseiros e
me olhou com compreensão queimando nas íris.
— Eu sei, e sinto muito por isso, Renato — disse baixinho, a voz
começando a ficar embargada. — Eu me odeio todos os dias por te colocar
nessa posição.
A culpa estampou o seu rosto e fez com que meus ombros relaxassem
um pouco. Não porque ela estivesse consciente de que errou, mas porque eu
sabia que Nathalia se culpava o tempo todo por André ter retornado para a
sua vida exatamente naquele momento, quando estava comigo. E eu estava
cansado de vê-la sendo responsabilizada por coisas que não estavam sob o
seu controle.
— Está tudo bem, anjo — falei, buscando pelo seu olhar que escapou
do meu, porque odiava não ter seus olhos me encarando, hipnotizados. —
Vamos descobrir o que rolou e tomar as providências necessárias para
encontrar a pessoa responsável — assegurei, apertando meus dedos em seu
queixo. — Até lá, Sérgio vai ficar com você.
— Mas… — ela até tentou começar a argumentar, mas sabia que não
teria chance de conseguir um meio-termo naquela condição e acabou
concordando.
Sérgio costumava ficar comigo porque era meu braço-direito, ele
comandava toda a equipe de segurança e me mantinha informado sobre o
que estava rolando com todos ao mesmo tempo. Além disso, era o único em
quem eu confiava para me acompanhar em alguns compromissos de
negócios. No entanto, naquele momento, fazia mais sentido que ele
estivesse ao lado dela, já que entendia a gravidade da situação e não sairia
do lado dela nem se a vida dele dependesse disso.
— Como você está se sentindo? — perguntei, soltando o seu rosto
para apanhar uma garrafa de água lacrada, entregando para que ela bebesse
um pouco enquanto continuava sendo medicada através do soro.
— Minha cabeça está explodindo — disse, massageando a veia
latente na sua têmpora, a mesma que sempre surgia quando estava em crise
de enxaqueca. — Mas… como foi a reunião com Eliane e os outros sócios
do Rio? — questionou, piscando um pouco sonolenta.
Afaguei seu rosto, vendo suas pálpebras começarem a pesar.
— Isso não é importante — falei simplesmente, escorregando meus
dedos em seu cabelo, vendo seus olhos se fecharem e um suspiro baixinho
escapar dos seus lábios. — Descanse um pouco, anjo — pedi, deixando um
beijo em sua testa.
Nathalia murmurou em resposta, apertando seus dedos em volta da
minha mão, impedindo que eu me afastasse.
— Fica aqui comigo, só um pouquinho.
Meu coração martelou forte no peito, porque não havia nada que ela
não me pedisse quando me olhava daquela maneira, doce e angelical, que
eu não seria capaz de fazer.
Nathalia me tinha nas suas rédeas e estava consciente disso.
Aquiesci, lançando um olhar para Sérgio que nos observava do outro
lado do corredor, através da porta aberta. Ele entendeu perfeitamente o
recado que lhe enviei e se aproximou um pouco, fechando a porta e
sumindo do meu campo de visão. Ao mesmo tempo, me sentei no espaço
que Nathalia cedeu, permitindo que ela se aninhasse ao meu corpo e
deitasse sua cabeça em meu peito.
Meus braços a envolveram, como se isso pudesse impedir que ela
fosse ferida de alguma forma e seus dedos apertaram meu antebraço,
agarrando-se em mim como se eu pudesse ousar sair de perto dela naquele
momento.
Escondi meu rosto em seu cabelo, o aroma de rosas e canela
acalmando meu pulso que ainda estava ligeiramente acelerado. Nathalia não
disse uma palavra, aos poucos sua própria respiração foi ficando mais
ritmada, até que ela adormecesse completamente.
Encarei meu amigo e advogado, sentindo a pálpebra começar a
tremer.
— Nenhuma câmera de segurança do bar estava funcionando? —
Repeti, tentando fazer com que as coisas fizessem mais sentido e o loiro
meneou a cabeça, confirmando que eu havia escutado certo.
Meus olhos se voltaram para Leandro que estava segurando uma
bolsa de gelo no olho inchado, ainda me olhando irritado e resmungando
ameaças de que iria devolver aqueles dois últimos socos em algum
momento.
— É, Leandro… você também não se ajuda — Fabio disse, bebendo
um gole longo da cerveja e olhando para o Salazar com certo bom-humor,
tentando amenizar um pouco a tensão no meu escritório. — Não existe
alguma lei que proíba que os estabelecimentos usem câmeras de segurança
falsas?
— Constitucional não, só no Código de Defesa do Consumidor —
explicou Marc, cruzando os braços em frente ao corpo e recostando o corpo
na minha estante de livros, pensativo. — Posso pedir para um amigo meu
fazer uma batida no local também. Se não registram o que acontece lá, é
porque deve acontecer muita merda — disse, o que não melhorou nenhum
pouco a situação de Leandro.
Ele fez uma careta.
— Que merda você tinha na cabeça de levar a minha mulher naquele
chiqueiro? — A pergunta escapou como um rosnado, arrancando uma
careta dele.
— Isso foi muito elitista da sua parte, Renatinho — implicou,
enviando o dedo do meio para mim —, em defesa do Poção Fedida, ele é
muito bem avaliado no Google.
Respirei fundo, considerando socá-lo novamente. No entanto, a sua
mais nova defensora ferrenha entrou na minha sala, atraindo a nossa
atenção.
Nathalia deu um sorriso fraco para os meus amigos ao ser
recepcionada calorosamente e revirei os olhos ao vê-la caminhar até
Leandro e segurar seu rosto com delicadeza, me lançando um olhar de
repreensão ao ver o corte no supercílio dele.
— Ainda está doendo, meu bem? — inquiriu, deixando um vinco em
sua sobrancelha e ele aproveitou a preocupação dela para me aporrinhar.
— Demais, diabinha — lamentou, teatralmente. Eu ainda vou matálo. — Sabe, você passa tanto tempo se dedicando em uma relação, dando
tudo de si para a outra parte, e no fim descobre que não valeu de nada… —
disse, arrancando risadas de Fabio e Marc. — O que dói mais não é nem o
machucado no meu rostinho lindo, porque isso vai sarar com o tempo…,
mas e a ferida no meu coração? É um corte que ainda vai sangrar.
Bufei, observando-o segurar o pulso dela, impedindo-a de tirar a mão
do seu rosto. O filho da puta sabia que eu detestava quando Nathalia se
aproximava de qualquer um, assim como desejava descontar minha raiva
em todos que se atreviam a tocá-la. Mesmo assim, ele teve a audácia de
mantê-la tocando-o apenas para me provocar.
— Você sobrevive — rosnei, entredentes.
— Para a nossa desgraça — complementou Fabio, recebendo um
olhar bravo de Nathalia. — O quê? Eu falei a verdade.
Ela revirou os olhos, soltando o rosto de Leandro e caminhando em
minha direção com um semblante preocupado. Enlacei sua cintura,
trazendo-a para perto e ela se sentou em meu colo, esquadrinhando o meu
rosto.
— O que houve?
Balancei a cabeça, tentando manter a tranquilidade para que ela não
se preocupasse.
— As câmeras de segurança do bar eram falsas — expliquei, vendo a
compreensão percorrer suas íris e ela retesou os ombros. — Vou cuidar para
que eles não funcionem mais.
Ela sorriu fraco, concordando.
Leandro a chamou, fazendo-a desviar os olhos lindos do meu rosto
para encará-lo e meus dedos apertaram sua cintura, com força, para não
acabar deixando o seu olho direito roxo também.
— Sabia que fui tratado muito mal no restaurante na semana passada?
— questionou, abrindo um sorrisinho —, o que acha de irmos almoçar lá na
próxima semana, assim o Renatinho também fecha o estabelecimento?
O rosto de Nathalia se iluminou e uma risada deliciosa escapou do
fundo da sua garganta ao entender o que ele estava querendo dizer. E apesar
de detestar que a gargalhada havia sido por conta de algo que o filho da
puta disse, meus ombros relaxaram um pouco e a vontade de matá-lo
diminuiu.
— Só precisamos mantê-la longe do Inferninho, aquele lugar é um
estabelecimento bem imaterial da cidade — alegou Fabio, arrancando
confirmações dos outros dois e cativando a curiosidade de Nathalia.
— O que seria o Inferninho?
Salazar riu, levantando-se para ir embora.
— Você não tem acesso a esse nível de informação, cleputamaníaca.
Ainda precisa passar pelo rito de iniciação — falou ele, enrolando uma
mecha do cabelo dela entre os dedos e puxando-a levemente.
— Tipo um sacrifício de virgem?
— Algo parecido com isso, mas não vamos te contar, é um segredo
— disse, dando de ombros e avisando que estava de saída, levando os
outros dois homens consigo.
Assim que o barulho do elevador sendo aberto ressoou pelo meu
apartamento e confirmou que estávamos sozinhos, ela trouxe os olhos para
mim com aquele brilho curioso extraordinário.
— Então, você guarda segredos de mim, Sr. Trevisan? — questionou,
jogando seus braços em volta dos meus ombros e ajustando seu corpo sobre
mim, deixando um joelho de cada lado da poltrona.
Abandonei o copo na mesa de apoio ao lado, segurando-a e
impedindo que se afastasse. Meus olhos vasculharam seu rosto, procurando
por qualquer sinal de que ainda não estava se sentindo bem. Ela tinha sido
liberada do hospital no início da manhã e já fazia um tempo que estávamos
em casa, mas até aquele momento não havia nenhum indício de que ela
estivesse se sentindo mal.
— Não se preocupe, Sra. Trevisan… — meus dedos escorregaram em
sua nuca, trazendo-a para perto. — Você sabe todos os meus segredos.
Nathalia sorriu radiante.
Seus lábios roçaram nos meus, suavemente, mas antes que eu me
deixasse levar pela sua aura hipnotizante, o celular tocou e meus olhos se
voltaram para ele, reconhecendo o nome de Ananda na tela. Eu havia a
avisado que não iríamos para o escritório naquela sexta-feira, mas que ela
poderia me ligar em caso de urgência.
— O que aconteceu?
— Nossa… já chega assim, nem um: bom dia melhor secretária do
mundo, como você está? — Sua voz ressoou pela sala, arrancando um
sorrisinho de Nathalia.
— Bom dia, Ananda. Como você está?
Ela suspirou, dramática.
— Tudo bem, ainda não era o cumprimento que eu esperava, mas
uma luta de cada vez — refletiu, me fazendo revirar os olhos. — Estou
ligando porque vi que você pediu para cancelar todos os compromissos de
vocês até o dia três…, mas acho que se esqueceu de que tinha marcado uma
reunião com o Kerem em Las Vegas amanhã.
— Não tem problema, diga que tive um problema pessoal e que vou
precisar adiar…
Nathalia me olhou, incrédula.
— Não diga nada disso, Ananda! — ordenou, me lançando farpas
pelos olhos. — Ele vai para a reunião, pode confirmar.
— Tudo bem, chefinha!
Bufei, pedindo que Ananda esperasse um pouco e silenciei a
chamada, olhando para a minha mulher com seriedade.
— Eu não vou deixar você sozinha depois do que aconteceu.
— Mas você precisa ir para a reunião, porque se não for, o Kerem vai
comprar a empresa da Maitê! — disse, categórica.
— Isso não é o que mais importa para mim.
— Mas importa para mim! Maitê trabalhou por anos para construir a
empresa, Renato, você prometeu que cuidaria disso. — O olhar que ela me
direcionou era do caralho, porque era aquele mesmo que me fazia abrir mão
de tudo por ela.
Até mesmo do meu compromisso com o meu cliente, porque, sendo
friamente calculista, a aquisição hostil seria extremamente vantajosa para o
Kerem nesse momento. A empresa ainda possuía um valor de mercado
relativamente baixo, e se ele esperasse mais, poderia acabar tendo que
comprá-la por um valor muito maior. E se o comitê estava disposto a dar o
golpe na presidente, fazia parte do jogo.
Mas a Devilish Angel era importante para a Nathalia, e o que era
prioridade dela, tornava-se minha também. Bianca estava certa, era
insuportável viver em um mundo onde Nathalia Gama não conseguia o que
queria.
Respirei fundo, vendo as íris castanhas me fitando com aquele brilho
raro e balancei a cabeça, desistindo de tentar argumentar contra ela. Voltei
para o celular, destravando o microfone e sem tirar os olhos dela, informei
para a minha secretária:
— Tudo bem, Ananda. Avise ao piloto que chegaremos no aeroporto
no horário marcado — falei, vendo um sorrisinho satisfeito se desenhar nos
lábios da minha mulher.
Quando desliguei a chamada com a minha secretária, após acertar
todos os detalhes sobre aquele fim de semana com ela, Nathalia franziu o
cenho.
— Espera… ela não vai com você? — questionou.
— Não, é aniversário do Gabriel.
Nathalia me olhou confusa.
— Mas você disse que… quem vai com você?
— Você.
Ela arregalou os olhos e deixei uma palmada em sua bunda.
— Você decidiu isso nesse exato momento? — Ela parecia
genuinamente surpresa, mas a ideia não me parecia tão ruim.
Os meninos estavam se divertindo na fazenda dos avós dela. As
coisas estavam relativamente tranquilas no escritório naquela semana, e
Leandro poderia lidar com qualquer problema que surgisse. Nathalia
precisava de um pouco de distração, e eu já estava planejando uma viagem
para depois da sua formatura. Adicionar uma parada em Vegas não seria um
sacrifício.
— Você não quer que eu ajude a Maitê?
— Sim, mas…
— Mas…?
Ela riu baixinho, incrédula.
— Você é inacreditável, Renato Trevisan. — Suspirou, balançando a
cabeça e se levantando do meu colo. — E louco se acredita que eu vou
conseguir preparar uma mala para três dias fora, em menos de uma hora.
Chequei o relógio no meu pulso e percebi que, levando em
consideração a distância até o aeroporto de Guarulhos e a possibilidade de
encontrarmos um trânsito relativamente tranquilo, não teríamos muito
tempo disponível.
— Na verdade, você tem exatamente trinta minutos — avisei, vendoa se levantar do meu colo em um salto e correr para fora do escritório.
Balancei a cabeça, soltando um riso baixinho, antes de me levantar
para ligar para o investigador que havia me enviado uma mensagem mais
cedo, querendo falar sobre algo que havia descoberto sobre André.
Quando abri os meus olhos, estava sozinha na cama.
Em cima da mesa de cabeceira, havia um bilhete de Renato me
avisando que estava no restaurante do hotel para a sua reunião com Kerem.
Após catorze horas de viagem, chegamos em Las Vegas no início da
tarde e encontramos Pedro no restaurante do hotel para almoçar juntos. Meu
namorado insistia para que eu descansasse um pouco, já que ficaríamos na
cidade por mais um dia antes de irmos para Medellín. No entanto, estava
acontecendo uma exposição de arte em uma galeria que eu costumava
visitar quando vinha com meu pai para a cidade, e eu queria que Renato
visse pessoalmente uma das peças mais bonitas que eu já tinha visto.
Abigail Ballard era uma das minhas artistas favoritas, e todas as suas
pinturas me deixavam completamente hipnotizada. Infelizmente, um dos
meus quadros preferidos não estava disponível para venda, mas a família
permitia a sua exposição na Galeria Elena Bulatova. Sempre que eu vinha
para a cidade, fazia questão de mostrá-la para todas as pessoas.
Quando voltamos para o hotel com três quadros novos na bagagem
que eu pretendia dar de presente ao meu avô, o cansaço e o jetlag me
atingiram. Como a reunião de Renato com Kerem aconteceria durante o
jantar, acabei deixando que o sono me vencesse, acreditando que dormiria
por mais do que apenas algumas horas. No entanto, ao perceber que não
haviam se passado mais do que duas horas e eu me sentia descansada,
decidi que poderia dar uma volta pelo cassino do hotel.
Tateei meu celular, encontrando uma mensagem de Ethan e isso me
ajudou a despertar um pouco mais rápido. Fazia um tempo desde a última
vez que ele havia entrado em contato comigo, e eu tinha me esquecido que
ele estava atrás de sujeira do Guilherme.
Número desconhecido:
Soube que está hospedada no Marine em Vegas.
Me encontre no bar às 9PM.
Acredito que consegui o que você queria.
A mensagem tinha chegado a pouco menos de trinta minutos e eu
teria um tempo hábil para me arrumar. Nos minutos seguintes, gastei todo o
meu tempo me tornando minimamente apresentável, já que ainda sentia que
estava estragada por conta do Boa Noite Cinderela.
Pronta para descer, enviei uma mensagem para Renato avisando que
estaria no bar do hotel e sua resposta veio de imediato, avisando que
mandaria Sérgio descer para me encontrar — já que ele estava
acompanhando Renato no restaurante no rooftop.
Rolei os olhos, digitando que não era necessário. Eu estava no hotel
do meu avô e todos naquele lugar me conheciam. Era impossível que
qualquer um mexesse comigo ali porque desde que eu tinha cinco anos e
comecei a frequentá-lo, todos os funcionários tinham ordens explícitas para
não tirarem os olhos de mim e notificar meu pai e avô de qualquer coisa que
não parecesse certa.
E eles levavam aquela ordem muito a sério.
Renato:
Não negociamos sobre isso.
Nathalia:
Faremos assim, eu poderia simplesmente sair do quarto sem nem te
avisar. Isso não vale nada?
Renato começou a digitar e meus olhos se voltaram para o meu
reflexo. A maquiagem era uma benção na vida do ser humano, porque eu
tinha conseguido esconder as olheiras perfeitamente. Ninguém que me
visse, acreditaria que eu tinha problemas mais sérios do que o meu próximo
horário no salão.
Renato:
Tudo bem.
Encontro com você em uma hora.
Eu não duvidava disso, ele seria capaz de mandar Kerem calar a boca
e abandonar a reunião, apenas para cumprir com o que me prometeu.
Respondi sua mensagem, pedindo que não tivesse pressa e dei uma última
olhada em meu reflexo, antes de chamar o elevador para que descesse para
a área social do hotel.
Faltavam dez minutos para o horário marcado com Ethan e eu
prezava pela pontualidade. O meu tempo era escasso e qualquer atraso
arruinaria todos os meus planos, e sabia que Ethan pensava da mesma
forma. Não me lembrava de uma única vez em que ele não aparecia em casa
no horário que dizia ao meu pai que estaria. Parecia quase cronometrado.
Conforme andava pelo saguão, eu conseguia sentir dezenas de pares
de olhos em minhas costas e não precisava olhar na direção, porque era
extremamente comum que isso acontecesse quando eu estava ali.
Naquela noite, o hotel estava um pouco mais movimentado. Todo
ano, a filial do Niké na cidade promovia um torneio de pôquer entre os
membros, que acontecia no cassino do Marine. Meu avô era um fissurado
no jogo e o via como um esporte. Por anos, ele era o vencedor e, se não
tivesse decidido abandonar tudo para ir viver na fazenda com a minha avó,
certamente estaria entre os homens que caminhavam para dentro do cassino,
que, naquela noite, permitia apenas a entrada de convidados.
Se Antônio não estivesse em Xangai à negócios, a probabilidade de
esbarrar com ele era enorme. Ele era um adepto do jogo e amigo de Aaron,
o que significava que seu nome sempre estava na lista, mesmo que não
aparecesse.
Durante os torneios, a segurança também era reforçada, então a cada
passo que eu dava no corredor que me levaria ao bar externo que Ethan
havia indicado, eu esbarrava com um homem que parecia ter servido ao
exército.
Quando a música animada alcançou os meus ouvidos, abri um sorriso
para a garota na recepção e estiquei a mão para que ela carimbasse o meu
punho para permitir a minha entrada.
A cada visita, o hotel parecia diferente de alguma maneira, meu avô
adorava arquitetura e sempre dava um jeito de renovar os espaços,
mantendo-os modernos e atraentes.
Alcancei uma mesa vazia sob um pergolado e pedi por uma água.
Não soube se havia sido por conta do trauma recente, mas fiquei alguns
minutos encarando a garrafa como se ela fosse se transformar em um
monstro a qualquer momento.
Pisquei, atordoada e ergui os olhos ao ver alguém se aproximar e
sentar na cadeira de frente para mim. A pele marrom-escura e os olhos
repletos de sabedoria eram familiares, a barba ligeiramente grisalha era uma
novidade, mas ele permanecia muito parecido as minhas lembranças de
quando era mais nova.
— Ethan — cumprimentei, o vendo acenar em resposta, olhando em
volta como se estivesse sob uma ameaça iminente.
Era típico também. Meu pai nunca se aprofundou em me dizer como
tinha conhecido o homem na minha frente, ele se limitou a dizer que Ethan
salvou a sua vida há alguns anos e que se mostrava leal; o que para Miguel
era mais do que o suficiente para que eu confiasse em Duncan também. Eu
tinha quase certeza de que ele era britânico, e apesar de ser muito bom em
manter o sotaque neutro, entre uma palavra ou outra, sempre acabava
deixando escapar um vício linguístico característico dos ingleses.
Ele semicerrou os olhos em meu rosto, esquadrinhando cada
centímetro em busca de algo e por fim, balançou a cabeça, aprovando o que
concluiu.
— Como você está? — questionou, cordial.
— Estou bem — menti descaradamente. Se eu fosse contar para ele
tudo que havia me acometido nos últimos quatro meses, acabaria tomando
mais do seu tempo do que ele tinha me concedido. — Você disse que
encontrou algo?
Ethan confirmou, colocando um envelope grosso sobre a mesa e
manteve sua mão calejada sobre o embrulho, sem tirar os olhos dos meus.
— Você comentou com alguém sobre a Sabrina? — perguntou.
Meus ombros retesaram automaticamente.
— Por quê?
— Estão procurando por ela — explicou, sem rodeios —, o que não
faz sentido, porque ela está morta.
Soltei um suspiro. Ethan Duncan me ajudou indiretamente com todo
o assunto em relação à Sabrina. Ele tinha olhos e ouvidos em vários lugares,
e na época em que tudo caiu no meu colo, meu pai o colocou no meio de
tudo para tentar garantir que as coisas se acertariam da melhor forma.
— André está procurando por ela.
— Soube disso, mas você não disse que ela está morta?
— Acho que ele não vai deixar isso de lado, enquanto não ver o
cadáver com seus próprios olhos — falei, dando de ombros, sentindo o nó
em minha garganta retornar.
— Bom, que ele veja então — disse, sem tirar os olhos do meu rosto
e dei risada, mas não havia humor.
— O quê? Você quer que eu diga para ele onde ela está enterrada, só
para ele ver o corpo em decomposição?
— Se isso for tirá-lo do seu caminho, sim.
Pisquei, incrédula.
— Ela está morta, Ethan. Não merece ser violada até mesmo no
caixão.
Ele meneou a cabeça, concordando comigo, ou ao menos fingindo
para não precisar se preocupar com isso. Seus olhos se voltaram para o
dossiê em cima da mesa e o empurrou em minha direção. Eu sabia como
aquilo funcionava e apenas peguei o envelope pesado, colocando-o dentro
da minha bolsa.
— É tanta coisa assim? — perguntei, sentindo um vinco surgir em
minha sobrancelha.
— Ele é bom em esconder o que faz, preciso dar os créditos — disse,
sincero. — Mas depois que você puxa um fio, consegue desfazer toda a
costura que esconde as merdas e, bem… é material suficiente para mais do
que só tirar ele da sociedade.
Arqueei a sobrancelha, mas não tive tempo de pedir por mais
explicações. Meus olhos se fixaram no homem que caminhava em nossa
direção com uma indiferença típica. As mãos escondidas nos bolsos de sua
calça e os olhos castanhos fixos em mim denunciavam que o único motivo
para que Renato tivesse sido tão solícito em me liberar de Sérgio era porque
tinha enviado seu outro cão de guarda, que também estava na cidade.
Pedro era péssimo em fingir casualidade.
— Algum problema? — interrogou, direto, lançando um olhar de
reconhecimento para o Duncan.
— Zimmermann — saudou o homem na minha frente, dando um
aceno sutil de cabeça para Pedro e se virando para mim. — Se você precisar
de ajuda com o outro assunto, me avise… podemos estudar uma maneira de
colocar um fim nisso de uma vez por todas.
Suspirei, aquiescendo e o vi se levantar para nos deixar sozinhos.
Ethan sorriu para Pedro, apertando sutilmente seu ombro, e então nos deu
as costas, desaparecendo pelo salão com a iluminação baixa.
Meus olhos se voltaram para o engenheiro com uma pergunta
explícita.
— Não atire no mensageiro — disse ele, sentando-se no lugar que
antes estava ocupado por Ethan.
O tom de voz rabugento que ele usou, me arrancou uma risada
sincera.
— Você poderia ter apenas negado.
— Bem, então você lidaria com o segurança que não é dos mais
maleáveis — retrucou, dando de ombros e sinalizando para o garçom que
trouxesse mais uma dose do seu negroni. — Foi-se o tempo que meu amigo
era racional.
Seus olhos afundaram em meu rosto com uma acusação subliminar
de que eu era a responsável por aquilo, e soltei um suspiro, finalmente
tomando coragem para romper o lacre da garrafa e beber um gole longo.
Pedro não era dos mais simpáticos, mas ao menos cuidaria de mim se
algo acontecesse. Se não fosse por bom senso, seria para manter seu rosto
intacto.
Ignorei o seu escrutínio e olhei ao redor, considerando voltar para o
quarto e esperar pelo meu namorado lá. Apesar de ter parado com as
acusações e comparações injustas, Pedro não se tornara mais fácil de lidar
com o tempo. As poucas palavras que eu conseguia arrancar dele ainda
pareciam ser mais por receio de acabar ficando em maus lençóis com
Renato e as crianças do que por vontade própria.
No entanto, também tentava me agarrar ao que meu pai dissera no
meu aniversário. Zimmermann não era o tipo de pessoa que fazia as coisas
por obrigação, então eu podia não ser uma das suas pessoas preferidas no
mundo, mas ao menos não estava entre as que ele odiava.
— Você vai falar a verdade sobre o que está acontecendo ou eu vou
precisar fingir que não sei que aquela história de assalto foi mentira? —
perguntou, de repente, obrigando-me a virar o rosto para confirmar se ele
havia falado mesmo.
— O que…
Pedro dispensou o que eu diria com um aceno e aceitou a bebida que
o garçom trouxe para ele. Zimmermann deixou seu olhar recair na minha
garrafa de água, olhando-a como se fosse um alienígena. Quando o garçom
se afastou, o engenheiro trouxe sua atenção de volta para mim.
— Não sou estúpido, Nathalia — disse ele, me chamando pelo meu
nome pela primeira vez. — Renato está claramente preocupado com alguma
coisa e dado à comitiva da rainha que foi instaurada ao seu redor, suponho
que existe algo além do assalto. Ele não estaria tão paranoico por causa
disso.
Engoli em seco.
— Você não acabou de dizer que ele deixou de ser racional?
Um esboço de sorriso surgiu nos lábios do engenheiro e ele meneou a
cabeça.
— Não ser racional é uma coisa. Ele está paranoico — disse Pedro,
franco. — É alguma coisa a ver com o problema no Rio?
Soltei um suspiro. Nessa altura do campeonato, eu realmente gostaria
que o único problema ao nosso redor, fosse o assédio de Guilherme.
Endireitei os ombros, olhando para Pedro com um meio sorriso.
— Não se preocupe, está tudo bem com o Renato — assegurei, vendo
seu olhar cínico.
— Não é com ele que estou preocupado.
Dei risada, levando a mão ao peito e balançando a cabeça.
— Se você continuar assim, vou começar a considerar que está
gostando um pouquinho de mim, Pedro — impliquei —, já podemos nos
tornar amigos ou você ainda está na fase de me odiar?
— Não somos amigos.
Suspirei.
— Então, você não merece saber o que está acontecendo — retruquei,
apenas para poder mantê-lo falando comigo. Ele arqueou a sobrancelha.
— É assim que você faz amizade?
Dei risada.
— É assim que você começa qualquer relação, Pedro. — Dei de
ombros, tranquila. — Você fala um pouco sobre a sua vida, a outra pessoa
faz a mesma coisa… e tcharam!
Ele rolou os olhos, bebendo um pouco da sua bebida.
— Por que está na cidade?
— Não somos amigos.
Chiei, ofendida.
— Você é tão irritante.
— Olhe quem fala — resmungou, olhando por cima dos meus
ombros e virei o rosto na direção, vendo uma mulher bonita praticamente
posando para uma sessão de fotos para ele.
— Fique à vontade — falei, afinal, de que adiantava mantê-lo aqui se
ele não pretendia conversar comigo? Era melhor que fosse transar.
O engenheiro riu baixo, enquanto meu celular vibrava, anunciando
uma mensagem de Renato para checar se estava tudo bem comigo.
Respondi rapidamente, voltando a encarar o engenheiro que havia se
afastado. Pensei que ele tivesse saído para falar com a garota, nem se dando
ao trabalho de se despedir. No entanto, quando virei o rosto na direção que
ele havia seguido, o encontrei no balcão do bar, conversando com o
funcionário que anotava seu pedido.
Arqueei a sobrancelha, desviando o olhar para a mulher loira que
parecia estar esperando pelo momento em que o engenheiro se aproximaria
dela com uma bebida. Por mais que eu soubesse que era meio invasivo ficar
de olho, estava curiosa demais para não acompanhar o homem que mal
conseguia manter uma conversa por mais de cinco minutos, flertando.
A mulher enrolou uma mecha loira do cabelo, tentando fingir
naturalidade enquanto conversava com sua amiga, e meus olhos se voltaram
para o Zimmermann, que havia abandonado o balcão e estava caminhando
de volta em minha direção.
Franzi o cenho, ao vê-lo colocar um Bloody Mary na minha frente.
— É sem álcool — elucidou, diante da minha confusão. — Renato
comentou que você está fazendo um tratamento para enxaqueca e não pode
beber.
Aquiesci, ainda atordoada.
— E então — murmurou, sem dar muita importância ao meu silêncio
—, a sua maneira de fazer amigos, é insistindo neles até que desistam?
Eu poderia me concentrar na possibilidade dele estar dando a
entender que eu era teimosa, mas meu cérebro só se atentou ao fato de que
ele estava puxando assunto comigo. Do seu jeito e esquisito, mas estava.
— Sou obstinada em conseguir o que quero.
Ele meneou a cabeça.
— Faz sentido — ponderou, mantendo seus olhos concentrados em
mim. — O que eu preciso te falar sobre mim para você me contar a
verdade?
Dei risada, incrédula.
Será que ainda estou drogada?
— Você está negociando por informações comigo? — questionei,
vendo-o dar de ombros.
Eu não entendia por que Pedro estava tão interessado em descobrir a
verdade sobre aquela noite no estacionamento, mas não acreditava que ele
seria capaz de manter uma conversa comigo por tempo suficiente para me
arrancar a verdade.
— Tudo bem… vamos começar pelo básico — falei, espreitando os
olhos nele. — Como você conheceu o Renato?
Ele deu de ombros, sem dar muita importância.
— Minha mãe era amiga da mãe dele.
— Não é assim que uma troca de informações acontece.
— Você não foi específica.
— Na verdade, fui sim. Eu perguntei como você o conheceu, não
através de quem — frisei, olhando-o com seriedade —, e isso implica todos
os detalhes da situação.
Pedro me encarou por alguns minutos, parecendo ponderar sobre
como me mandar para a merda e desistir daquilo. No entanto, quando o
garçom trouxe uma porção de hambúrgueres para nossa mesa, fui
surpreendida ao vê-lo começar a me contar tudo o que havia acontecido em
sua vida na semana em que foi adotado.
Pedro e meu avô faziam aniversário no mesmo dia.
O engenheiro acabou deixando escapar na noite passada que o seu
aniversário era no último dia de maio, e eu não sabia se me sentia realizada
por ele ter se aberto comigo e contado um pouco sobre como foi a sua vida,
antes de ser adotado pela Ada. Ou se ficava triste por ele ter decidido passar
o aniversário longe de todos, porque acreditava que àquela data não fazia
diferença alguma na vida das pessoas ao seu redor.
Naquela manhã, eu estava decidida a fazer com que Pedro deixasse
aquele pensamento de lado e meu namorado parecia particularmente
interessado em assistir aquela intervenção.
— Você vai ter que me ajudar — falei, olhando séria para Renato. Ele
descansou sua mão em minha coxa desnuda, desenhando círculos com o
polegar. — Se ele disser que não, você usa a força física.
Meu namorado riu.
— Tenho certeza de que você vai conseguir com os seus argumentos,
eles são extremamente válidos — incentivou, arrancando-me uma risada.
— Meu único argumento é: eu quero.
Renato sorriu, deixando um beijo em minha mão antes de dizer:
— Como eu disse: é um argumento válido. — Apertou minha mão
levemente, mas apesar do bom humor que estava naquela manhã, algo não
parecia certo e Renato estava meio distraído.
— Está tudo bem? — investiguei, sentindo um vinco surgir em minha
testa e sua mão alcançou o meu rosto, deixando um afago gostoso em minha
bochecha.
— Sim, não se preocupe — disse, me fazendo soltar um suspiro.
A culpa ameaçava esmagar meu peito ao perceber quantos problemas
eu tinha trazido para a vida de Renato nos últimos meses, sem saber como
ele ainda não havia perdido a cabeça. Ele estava acostumado com uma vida
tranquila, mas desde que eu apareci… só trouxe caos. Toda essa situação com
Guilherme e André era o limite para ele, e isso estava começando a fazer
com que ele descontasse nos próprios amigos. Isso só me deixava ainda mais
culpada.
— Ei — chamou, como se soubesse que o monstro em minha cabeça
estava ameaçando sair das correntes que eu havia o prendido. — Lembra do
que combinamos? Jogue em mim quando estiver pesando demais.
Engoli em seco e me aproximei dele, deixando minha mão deslizar
suavemente por seu rosto. Ele era tão perfeito e tão meu, que eu não sabia o
que tinha feito de tão certo para ser escolhida entre tantas pessoas para
capturar sua atenção. Às vezes, considerava que o nosso encontro fosse fruto
de um estranho desencontro do destino, talvez ele estivesse destinado a
encontrar alguém menos caótica e, infelizmente para ele, o roteirista
tropeçou, embaralhou todas as páginas e acabou conectando nossos destinos.
— Eu te amo — confidenciei, sentindo uma necessidade de deixar
aquilo claro para ele.
Era engraçado como, quando essas palavras eram dirigidas a ele,
fluíam dos meus lábios como se fosse a coisa mais natural do mundo,
mesmo que eu estivesse colocando toda a minha alma e coração nelas. A
intensidade do que eu sentia por ele era assustadora, não podia ser resumida
por três míseras palavras, porque cada pequena partícula da minha existência
havia sido marcada por ele.
Em algum lugar muito profundo dentro de mim, seu nome estava
gravado.
Renato arrastou seu polegar em minha pele, aninhando sua mão em
minha nuca e nivelando meu rosto ao seu, fazendo com que nossos lábios
roçassem. Meus olhos se fecharam involuntariamente. Refém do seu toque.
Era isso ao que eu havia sido resumida, uma prisioneira do sentimento
avassalador que ele despertou em mim.
Um pigarro soou, atraindo nossa atenção e me virei, encontrando
Pedro nos observando sem jeito. Ri baixinho, ouvindo Renato xingá-lo e me
levantei, contornando a mesa para alcançar o engenheiro.
— Feliz aniversário, Pedro! — cantarolei, quebrando a distância entre
nós e meus braços envolveram seus ombros, obrigando-me a ficar na ponta
dos meus pés.
Eu estava preparada para lidar com todas as possíveis consequências
que aquele gesto meu poderia desencadear. Embora tivesse considerado
aquela aproximação na noite anterior, o medo de ser rejeitada me fez esperar
pela segurança proporcionada por Renato.
Pelo menos, se Pedro tentasse me escalpelar viva, não seria capaz de
concluir, pois seu amigo o silenciaria antes. Eu poderia me acostumar com
aquela proteção constante, quem sabe até fundaria uma associação para
reunir outras patricinhas com namorados superprotetores prontos para
defendê-las de qualquer um que as ameaçasse.
No entanto, quando os braços de Pedro se pairaram ao meu redor e seu
corpo ficou tenso, pensei que havia conseguido paralisar o engenheiro.
Zimmermann claramente não sabia como retribuir a um abraço, já que seus
braços não chegaram a me tocar e ele mal parecia respirar.
Olhei para Renato por cima dos ombros do engenheiro e o vi esboçar
um sorriso de incentivo. Nós concordamos que, como ele conhecia o
engenheiro melhor do que ninguém, poderia me avisar se Pedro estivesse se
preparando para me matar. Contei até dez e quando pensei em me afastar,
pude ouvi-lo engolir em seco e suas mãos se mexerem ao meu lado.
Desengonçado, sem jeito e sem delicadeza, Pedro Brandt
Zimmermann afagou minhas costas e retribuiu ao meu abraço à sua própria
maneira.
Ele pigarreou e interpretei isso como um sinal para me afastar, mas
não retirei o sorriso largo do meu rosto. Um vinco se formou em sua testa,
quase unindo suas sobrancelhas, e seus lábios cerrados o deixavam ainda
mais mal-humorado do que o habitual. No entanto, não havia qualquer
indicação de que ele estava planejando me estrangular.
Pedro só estava muito confuso.
— Hm… obrigado — disse, lembrando-me de um personagem de
desenho animado que eu havia assistido com os meninos recentemente.
Ri baixinho, percebendo que o engenheiro era um babaca na maior
parte do tempo. Ele conseguia ser rude desnecessariamente e implicava com
as pessoas por motivos estúpidos, mas… quando não estava tão determinado
em ser um idiota, ele podia ser a sua própria versão de “Meu Malvado
Favorito”.
É isso, Pedro Zimmermann é uma versão humana do Gru!
— De nada — cantarolei, voltando para perto do Renato e sentindo
seu braço enlaçar a minha cintura, impedindo que me afastasse dele de novo.
— Nós estávamos te esperando para alinhar a viagem para Medellín.
— Vocês vão hoje?
Aquiesci, sentindo o carinho de incentivo que Renato fazia em minha
cintura.
— Nós vamos. Isso incluí você.
O vinco na testa de Pedro triplicou de tamanho e ele me encarou como
se não tivesse entendido uma mísera palavra do que eu disse.
— O quê?
Sorri, como se estivesse prestes a anunciar que o Natal aconteceria
mais cedo naquele ano.
— Você vai para a fazenda conosco — falei, o olhando incisiva para
que soubesse que não havia a menor chance de que aceitasse que ele saísse
daqui com algo diferente de um: “estou indo fazer minhas malas”.
Aceitei a mão que Renato me ofereceu para descer do helicóptero e
usei a outra mão para tentar me cobrir do impacto do vento gelado em meu
corpo.
Naquela época do ano, a fazenda ficava mais fria do que nunca e
como estávamos na parte mais alta, era mais difícil de ignorar o vento
cortante que ricocheteava contra a nossa pele. Renato jogou seu braço sobre
meus ombros, levando-me para perto dele e acenei em despedida para o
piloto que havia ido nos buscar no aeroporto de Medellín, antes que ele
partisse.
Pedro olhou em volta, como se estivesse fazendo um mapa mental do
lugar e meu pai foi o primeiro a se aproximar, dando um sorriso lindo ao
abrir os braços para me receber. Renato me soltou e quebrei a distância entre
nós, sentindo a segurança que meu pai proporcionava se espalhar pelo meu
corpo.
Havia pedido para o Renato não contar nada sobre o que aconteceu no
bar, ou meu pai acabaria cumprindo com a sua ameaça de me enfiar em uma
ilha isolada no meio do Leste Asiático.
— Como você está, fadinha? — perguntou, fazendo carinho em meu
cabelo e soltei um suspiro, esboçando o meu melhor sorriso confiante.
— Estou bem. Como foi experimentar o cargo de avô nesses últimos
dias? — brinquei, vendo-o rir baixinho e seus olhos se iluminarem com a
minha pergunta.
Meu pai tinha adorado os filhos de Renato.
Eu não tinha dúvidas de que, se minha mãe não tivesse tido tantas
complicações quando estava grávida de mim, Miguel teria considerado ter
mais filhos. Como isso não aconteceu, ele acabou meio que adotando os
meus amigos por consequência. Antônio foi criado junto comigo e meu pai
era quem ele via como uma figura paterna.
Era para Miguel que meu amigo recorria quando precisava de um
conselho que eu não era capaz de ajudar. Miguel também cuidava de Bianca
e da sua família para me fazer feliz, e até mesmo o Zimmermann tinha o
apreço do meu pai.
Ele nunca escondeu que sentia falta de quando eu era criança, e pelo
brilho em seu rosto; era visível que aqueles últimos dias lhe fizeram bem.
— Bom, lembra daquele projeto de casa na árvore que você
desenvolveu, mas nunca executamos? — perguntou, jogando o braço sobre
meus ombros após cumprimentar os outros dois homens com um aceno,
guiando-me para a pequena trilha que nos levava para a casa principal. —
Digamos que não está mais no papel.
Franzi o cenho, olhando em volta para a decoração que estava sendo
arrumada pela empresa que minha abuelita contratou para preparar tudo.
Vovô não gostava de comemorar todos os seus aniversários, ele dizia que era
de péssimo tom ficarmos o lembrando de que estava ficando velho. O que
era um desastre para a minha avó que amava dar festas.
Ellen cresceu naquele meio dos eventos extravagantes. Sua família era
conhecida em Medellín por conta de toda a influência política que exercia no
país. Vovó foi criada para ser uma esposa perfeita, o símbolo do que ainda
restava da linhagem real da sua família materna. Seu pai estava pronto para
casá-la com um homem quase vinte anos mais velho do que ela, apenas para
garantir que o casamento traria mais influência para ele.
Felizmente, a minha bisavó foi atingida pelo bom senso e ajudou a
filha a fugir de casa, enviando-a para morar e estudar com alguns parentes
na Espanha. Minha avó foi a primeira De Bazán, em décadas, que se casou
porque amava o homem com quem estava se casando, não porque seu pai
ordenou que assim fosse.
Não conseguia imaginar o inferno pelo qual ela passou nos anos que
antecederam o momento em que encontrou com meu avô, mas ficava feliz
em saber que ela havia conseguido quebrar aquele ciclo abusivo que sua
família carregava. Isso me deu a liberdade para fazer a mesma escolha. Eu
conhecia algumas pessoas que tiveram uma criação semelhante à minha e
não tinham o mesmo privilégio.
Eu me sentia tão sortuda por ter a família que tinha, que me sentia
culpada por não visitá-los com mais frequência. Principalmente, quando eu
sabia que algumas pessoas precisavam lidar com pessoas como Hugo
Zimmermann em suas famílias.
— Você construiu uma casa na árvore? — questionei, olhando para
uma das maiores árvores da propriedade, vendo a estrutura que havia sido
construída em volta dela.
Miguel riu, meneando a cabeça e me soltando quando uma onda de
euforia me atingiu.
— Bem, eu tive ajuda — disse ele, indicando para os meninos que
estavam brincando perto nela.
Igor apareceu na janela, gritando ordens para o que parecia ser o seu
exército secreto, e pude ouvir a gargalhada de Matheus vindo de algum
lugar, embora não conseguisse encontrá-lo. Ele estava muito bem escondido,
e aparentemente, era a ele que Igor estava dando as ordens para procurar.
Um sorriso se desenhou em meus lábios e virei-me para o meu pai,
sentindo o meu coração golpear tão forte no peito.
— Você é o melhor, papi! — falei, abraçando-o apertado e vi por cima
dos seus ombros, Renato e Pedro analisando a construção.
— Claro, eu aceito a opinião de um engenheiro profissional — disse
Miguel, atraindo a atenção de Pedro que esboçou um sorriso, escondendo as
mãos nos bolsos e parecendo tímido. — É bom vê-lo aqui, filho.
Pedro deu um aceno contido, e considerei que ele fosse dizer ao meu
pai que eu não tinha lhe dado muita escolha. No entanto, Zimmermann
apenas murmurou:
— É interessante descobrir que o que vocês chamam de fazenda, na
verdade, é uma ilha particular — disse ele, em um tom divertido.
Renato riu, concordando.
— Sim, eu estava realmente achando que era uma fazenda — disse,
apertando os olhos ao me encarar, e dei de ombros.
— É mais humilde dizer para as pessoas que meus avós moram em
uma fazenda do que dizer que é em uma ilha. Você tem ideia de como as
pessoas costumavam me olhar quando eu dizia isso? — perguntei, com
inocência.
Pedro arqueou a sobrancelha.
— Como uma patricinha? — implicou.
— Sim, mas não se preocupe, plebeu… — falei, o olhando com
diversão —, você ainda pode ser o meu amigo, tá?
Meu pai e Renato sorriram, o engenheiro se limitou a revirar os olhos
e meu corpo girou na direção oposta, instintivamente, quando um chamado
alto e estridente, repleto de euforia me encontrou:
— Naaaaath! — Matheus gritou, saindo de trás do forte em que estava
escondido, abandonando suas tropas imaginárias e correndo em minha
direção com os bracinhos abertos.
Um sorriso enorme rasgou minhas bochechas, e só tive tempo de me
agachar antes de ser nocauteada pelo abraço mais gostoso de todo o mundo.
— Oi, meu bem — falei, apertando aquele pacotinho louro contra o
meu peito, como se isso pudesse fazer com que ele nunca crescesse.
O aniversário do Matheus seria em agosto, o que significava que
tínhamos dois meses antes dele completar três anos. Nos últimos dias,
Amália e eu vínhamos tentando fazer com que o pequeno entrasse em uma
decisão sobre o tema da festa, mas cada vez que eu pensava que ele tinha
feito uma escolha, ele aparecia com um pedido novo e inusitado.
— Eu ganhei um cavalinho! — contou, sorridente e dei risada,
virando-me para o meu pai que apenas deu de ombros, olhando para o pai do
garotinho e dizendo:
— Não soube dizer não.
Renato sorriu, compreensivo.
— Mas o vovô disse que não posso levar ele — disse, roubando todo
o controle do meu coração quando fez beicinho ao chamar meu pai de
“vovô”.
Eu levei alguns minutos para processar, olhando para ele
completamente fascinada e senti minhas bochechas doerem, enquanto meus
dedos escovavam suas maçãs rechonchudas.
— Que nome você deu para ele? — perguntei, curiosa.
Matheus mordeu a pontinha da língua, deixando que suas covinhas
surgissem e afastei os fios dourados da sua testa.
— Teddy!
Meneei a cabeça, deixando que ele me abraçasse de novo e senti todo
o peso dos últimos dias ir embora. Não era justo que eu me concentrasse em
qualquer coisa quando o garotinho estava por perto.
— É um bom nome.
— Melhor do que Pulga — implicou Antônio, saindo de dentro da
casa e meus olhos foram para o garotinho ao seu lado.
Luke era idêntico ao meu melhor amigo em vários detalhes. A pele
alva, o cabelo tão preto quanto ônix e o sorrisinho enviesado eram tão
característicos dele que, ao olhar para o seu filho, era como se estivesse
vendo uma versão mais jovem dele mesmo. No entanto, havia uma diferença
notável: os olhos de Luke eram de um azul tão claro que pareciam feitos de
vidro. Essa característica era uma lembrança explícita de um fantasma do
passado que meu amigo não gostava de falar sobre.
Apesar de ser muito parecido com o pai e não ter qualquer traço que
lembrava Amber, sua genitora, o pequeno Luke tinha os olhos idênticos aos
de Madison, irmã do meu amigo que faleceu aos quinze anos devido a
complicações médicas causadas pelo Lúpus.
Se eu não soubesse que o filho era realmente dele, poderia cogitar que
os dois fossem irmãos.
— Auntie[50]
! — chamou o pequeno, atraindo o olhar enciumado de
Matheus que apertou os bracinhos ao meu redor e espreitou os olhos no meu
afilhado.
— Minha! — falou Matheus, olhando emburrado.
Luke semicerrou os olhos, erguendo o rosto para o pai dele e meu
amigo bagunçou seu cabelo, achando graça na pequena briga dos dois. Sorri,
erguendo o olhar para Antônio e sorrimos com certa nostalgia.
— Acho que você é a Tatiana deles — zombou, me arrancando uma
lembrança de quando ele passava os finais de semana conosco.
Por um tempo, antes de nos tornarmos próximos como somos
atualmente, Antônio e eu tivemos uma fase de pura implicância um com o
outro. Eu era a garotinha chata que queria que ele fosse meu melhor amigo,
e ele o garoto metido a sabe-tudo que queria ganhar a atenção do meu pai.
Então, meio que começamos a ter algumas brigas por ciúmes e, em
uma certa vez, eu acabei, sem querer, batendo com uma raquete de tênis na
cabeça dele, só porque ousou abraçar a minha mãe. Eu tinha seis anos,
Antônio tinha dez; e uma pequena cicatriz na sua cabeça, lembrava-me do
motivo para ter começado a fazer terapia.
Dei risada, balançando a cabeça.
— Não vamos deixar chegar nesse ponto — falei, deixando um beijo
demorado na bochecha do meu pequeno e ele relaxou os ombros, me dando
um sorriso lindo.
— Oi papai! — falou Matheus, acenando para o homem atrás de mim
e arrancando uma risada baixa do meu pai e do Pedro, que se divertiram com
o fato de que, só naquele momento, o pequeno se deu conta da presença de
Renato.
— Oi pequeno Hulk, pensei que nunca iria falar comigo — respondeu
ele, olhando para o filho com as íris brilhando de carinho.
Matheus revirou os olhos, lançando um aviso silencioso para que
Luke não se aproximasse de mim. O pequeno me soltou e correu até o pai,
que se abaixou para pegá-lo nos braços e envolvê-lo em um abraço apertado.
Olhei em volta, sem conseguir conter o sorriso ao ver meus avós
dançando juntos no meio da pista.
Era incrível ver como, após tantos anos juntos, Ellen e Elias ainda
pareciam os mesmos dois jovens que se apaixonaram perdidamente depois
de muito tempo acreditando que se odiavam e que eram inimigos. Soltei um
suspiro, desviando meu olhar para o outro lado do jardim, iluminado por fios
luminosos que estavam entre as árvores, iluminando o espaço na escuridão
daquela noite.
Pedro conversava com meu pai e Antônio, os três pareciam
concentrados enquanto o engenheiro compartilhava como havia sido o
torneio de pôquer, do qual ele saiu vitorioso. No meio da pista, Matheus
dançava com Sebastian, o namorado da minha mãe, que se divertia com as
travessuras do pequeno. Sentado em uma mesa não muito distante, Igor
ouvia atentamente enquanto minha mãe compartilhava um pouco sobre sua
vida como neurocirurgiã.
Bianca e Leandro até tentaram dar uma trégua naquele sábado, o que
era uma vitória em comparação aos últimos dias. Apesar de terem se evitado
o tempo todo, não adiantou muito, pois acabei de me despedir de Leandro,
que estava retornando para São Paulo após uma discussão com Bianca.
Soltei um suspiro, vendo o namorado da minha mãe deixar o Matheus
com a minha avó e se aproximar de mim.
Sebastian era um cara legal. O tipo de homem que minha mãe merecia
ter encontrado antes de ter tido o coração partido tantas vezes, e levando em
consideração que quando se tratava das pessoas que se aproximavam dela,
eu era muito parecida com o meu pai, isso queria dizer muita coisa.
Ele também era bonito.
— Soube que você ainda tem um pé atrás comigo — disse ele,
olhando-me com um meio sorriso, simpático.
Cruzei os braços em frente ao meu corpo, esboçando um sorriso de
canto.
— Não leve para o pessoal — falei, dando de ombros e ele meneou a
cabeça, sentando-se no banco ao meu lado, juntando-se a mim na
observação. — Só que, se você fizer mal para a minha mãe… — virei o rosto
em sua direção, mantendo a expressão neutra para que ele soubesse que não
era um blefe —, eu vou me dedicar a fazer da sua vida um inferno.
Eu sabia que meu pai havia dito o mesmo para ele. Porque era o que
Miguel fazia com todas as pessoas que se aproximavam das mulheres que
ele amava, e o divórcio não fez com que ele amasse menos a minha mãe, só
mudou o tipo de amor que tinha por ela.
Mamãe ainda era a sua melhor amiga, e ele não permitiria que
ninguém a ferisse.
— Não tenho qualquer intenção de fazer mal para a Tatiana —
assegurou, olhando nos meus olhos, sem hesitar. — Não estou esperando
que confie em mim, afinal acabou de me conhecer…, mas, acho que é justo
que me dê o direito de te mostrar que eu não sou como os que vieram antes.
Uma parte do meu cérebro gritou o quanto eu era hipócrita. Estava
pré-julgando Sebastian com base nas experiências passadas, exatamente
como Pedro havia feito comigo meses atrás. No entanto, essa era uma coisa
sobre mim que poucas pessoas sabiam: eu conseguia ser uma grande
hipócrita na maior parte do tempo.
Roberta não estava tão errada quando me acusava de esconder o meu
narcisismo com uma máscara de perfeição. Eu costumava agir com tanta
diplomacia que as pessoas, por vezes, não percebiam que, no fundo, eu era
como uma política. Eu representava uma coisa no palanque para atrair
eleitores, mas, no final, não passava de uma charlatã.
Meus olhos correram pelo rosto de Sebastian, reconhecendo a
sinceridade em sua intenção de se aproximar da única filha da mulher por
quem estava apaixonado. Eu sabia como era importante para o
relacionamento dos dois que Sebastian e eu nos déssemos bem, caso
contrário, minha mãe não pensaria duas vezes em romper com tudo para não
correr o risco de se afastar de mim.
Esse era o nível do quanto ela me amava.
Meu pai e ela eram capazes de sacrificar suas próprias vidas, apenas
para me deixarem feliz.
Soltei um suspiro, meneando a cabeça.
— Tudo bem — murmurei, empurrando aquele bichinho da
desconfiança para longe e deixando que meus ombros relaxassem. — Me
conte um pouco sobre a sua história, Sebastian. — Apertei os olhos nele,
virando um pouco o corpo para encará-lo, enquanto a música latina ainda
tocava. — O que aconteceu para um homem como você, estar solteiro?
Afinal, Sebastian era o tipo de homem que só permanecia solteiro, se
fosse porque não valia nada. Wright era presidente de um dos maiores
conglomerados de petróleo do mundo, era bonito, simpático e se cuidava. Se
eu não soubesse que ele tinha a idade da minha mãe, jamais acreditaria que
já passava dos cinquenta anos.
Então, o que havia de errado com ele para que nunca tivesse se casado
ou aparecido publicamente com qualquer mulher? No arquivo que meu pai
me enviou, não existia qualquer informação sobre a sua vida pessoal.
Ele deu de ombros.
— Escolhas erradas — disse ele, simplesmente —, quando você se dá
conta do peso que uma única escolha pode trazer para a sua vida, você
começa a se perguntar: vale a pena passar por isso?
Franzi o cenho.
— Você acredita que estar em um relacionamento não vale a pena?
— Bem, eu acreditava que não, até conhecer a sua mãe — esclareceu,
me dando um meio sorriso. — Tatiana é o tipo de mulher que, mesmo que
eu não pudesse enxergar, seria impossível não notar a sua presença. Ela
conseguiu colorir o mundo ao meu redor, quando tudo o que eu enxergava
era a vida no preto e branco.
Não havia qualquer mentira em suas palavras. O olhar apaixonado que
direcionou para a minha mãe, era genuíno.
— Quem foi? — questionei, curiosa. Seus olhos castanhos voltaram
para o meu rosto e ele me encarou, sem entender a minha pergunta. — A
pessoa que te fez pensar que não valia a pena passar por isso.
Ele sorriu.
— Uma mulher do passado.
Eu não me importava se estava sendo intrometida ou invasiva. Era o
coração da minha mãe que estava em jogo, e não havia a menor chance de
eu dar meu aval ao Sebastian se houvesse sequer uma possibilidade de ele
ainda ter sentimentos por essa outra mulher. Minha mãe não merecia viver
em um relacionamento em que ela fosse apenas o prêmio de consolação.
Na verdade, ninguém merecia ser a segunda opção de uma pessoa.
— Passado? — Insisti e ele meneou a cabeça.
— Vinte e cinco anos — falou, tranquilo —, não se preocupe. Lara
não é mais uma parte importante da minha vida, e a sua mãe sabe de tudo
em relação ao meu envolvimento com ela.
Aquiesci.
— Vocês namoravam?
— Não — disse, sem qualquer emoção em sua voz, não havia nenhum
sentimento romântico ao falar sobre ela. — Eu não era bom o suficiente para
ela, mas o meu melhor amigo era.
Aquela informação me pegou de surpresa. Sebastian me olhou de
relance e pareceu se entreter com a curiosidade em meus olhos.
— Lara queria um herdeiro — esclareceu —, alguém que pudesse
alimentar não apenas o seu ego, mas também a sua ânsia por tudo o que
outras pessoas não podiam alcançar. Ela me amava, mas não desejava uma
vida em que precisasse lutar por qualquer coisa. Então, escolheu aquele que
ofereceu isso a ela.
O vinco em minha testa se tornou maior.
— Mas você… sua família sempre foi influente no setor petrolífero.
Seu amigo era um herdeiro de verdade, por acaso? — perguntei, sem
conseguir conter o desdém.
Aquilo arrancou uma risada de Sebastian e ele bebeu um gole longo
do seu conhaque, balançando os ombros em resposta.
— Quando conheci a Lara, eu queria conhecê-la de verdade. A pessoa
por trás da supermodelo que todos idolatravam quando entrava na passarela
— falou, mantendo seus olhos nos meus. — Não pensei que para isso, eu
precisava mostrar para ela quanto dinheiro eu tinha.
Uma risada escapou do fundo da minha garganta e balancei a cabeça,
lembrando-me de como minha mãe havia o conhecido.
— Você fingiu que era pobre.
Ele sorriu.
— Pobre não, mas… não tão rico quanto eu realmente sou. — Ele
torceu os lábios em uma careta. — Já sentiu que, às vezes, parece que as
pessoas ao seu redor só estão ali por causa das portas que o seu sobrenome
pode abrir?
Engoli em seco, mais do que consciente de como era aquela sensação.
— É uma merda.
Sebastian riu, sem humor, e ergueu o copo em um brinde silencioso.
— Sim — concordou, desviando os olhos para a minha mãe e
esboçando um sorriso de cumplicidade quando ela virou o rosto para ele,
como se estivesse ciente da sua atenção. — Chega um determinado
momento da vida em que aprendemos que é melhor ter apenas uma pessoa
ao nosso lado, alguém que esteja conosco porque realmente nos ama, do que
uma dúzia que esteja presente apenas para tirar proveito de nós.
O olhar da minha mãe veio em minha direção, em busca da resposta à
pergunta que ela me fazia silenciosamente desde que me apresentou ao
homem sentado ao meu lado.
Soltei um suspiro, sentindo a apreensão dela, e esbocei um sorriso
sincero, erguendo o polegar para que ela soubesse que eu gostava de
Sebastian.
Assim que Renato se afastou para deixar o Matheus no quarto,
acompanhei Antônio se aproximar com tranquilidade e jogar o braço sobre
os meus ombros, esquadrinhando o meu rosto com uma pequena ruga em
sua testa.
— Por que seu pai ainda não sabe que você esteve no hospital? —
perguntou, sem rodeios.
Revirei os olhos, deduzindo que Bianca acabou dando com a língua
nos dentes e contou para ele o que tinha acontecido.
— Porque eu gosto da minha vida do jeito que está — resmunguei, o
olhando com firmeza para que entendesse que não deveria contar para
Miguel sobre aquilo. — E não quero mudar isso.
Antônio cerrou os cílios.
— É por isso que ainda não respondeu ao e-mail da Bentley &
Hathaway para confirmar a sua entrevista? — investigou, entreabrindo os
lábios. Senti o coração pular uma batida ao ser descoberta em flagrante. —
Wall Street é um lugar pequeno, bebê. Achou mesmo que a herdeira de
Miguel Gama seria selecionada para trabalhar no concorrente dele, e
ninguém iria comentar sobre?
Soltei um suspiro, estava tão acostumada com a privacidade que tinha
no Brasil que havia esquecido completamente que, em Manhattan, cada
passo que eu dava era seguido por uma dezena de olhares atentos.
Depois da minha discussão com Roberta, estava disposta a abrir o email com Renato quando chegássemos em casa, mas acabamos sendo
arrastados para a briga de Bianca e Leandro; depois para o problema de
Maitê, Joaquim e seus compromissos na filial do Rio… e eu acabei
esquecendo completamente da existência daquele e-mail.
O resultado só caiu no meu colo há dois dias, quando a líder do setor
para o qual fui selecionada me ligou para marcar a nossa reunião daqui a
duas semanas. Eles queriam aproveitar o fato de eu estar em Manhattan para
a minha formatura, já que eu precisaria me mudar até o fim de julho para
iniciar o estágio em agosto.
Havia sido por conta disso que eu aceitei sair para beber com Leandro
e seus amigos. Precisava colocar meus pensamentos em ordem e decidir o
que iria fazer, pois tinha que escolher o que iria sacrificar: o estágio ou
minha rotina com Renato e os meninos.
E a resposta estava na ponta da minha língua, eu sabia exatamente
qual seria e pretendia contá-la ao Renato naquela noite, quando chegasse em
casa. Mas, então, acabei no hospital e não encontrei uma oportunidade para
contar que tinha sido aprovada para passar os próximos meses em outro país.
— Você foi aprovada para o estágio? — A voz de Renato me fez girar
nos calcanhares, e encontrei seus olhos escuros fixos em mim.
Uma ruga surgiu em sua testa, denunciando sua confusão, e senti um
aperto forte na minha garganta. Antônio também pareceu se assustar ao ver
que Renato havia saído da casa justamente naquele momento. E sem se dar
ao trabalho de me ajudar a consertar a confusão que havia desencadeado, ele
simplesmente saiu sorrateiramente.
Desgraçado!
Olhei para Renato, reconhecendo a mágoa em seus olhos ao descobrir
aquilo daquele jeito, e apertei os dedos em minha taça, olhando por cima dos
ombros. As crianças estavam dormindo, o que nos dava um pouco de espaço
para conversar em um lugar mais tranquilo.
Os olhos escuros de Bianca encontraram os meus, e fiz um pedido
silencioso para que ela me cobrisse. Quando ela acenou em resposta,
busquei a mão de Renato, indicando que ele me seguisse.
Ele me acompanhou em silêncio e eu conseguia sentir a tensão em
seus ombros. Nós nunca tínhamos conversado sobre o que aconteceria com o
nosso relacionamento caso chegássemos naquele ponto, em partes, por
minha culpa. Eu deletei o estágio da minha cabeça, porque estava mais
preocupada com uma dúzia de coisas mais relevantes.
Com calma, descemos pela pequena trilha do outro lado do jardim e
não demorou muito para chegarmos à faixa de areia. A maré estava baixa e o
mar estava calmo, o que me permitiu tirar as sandálias e afundar meus pés
na areia macia.
Renato olhou para mim como se eu fosse uma projeção prestes a
desaparecer diante dos seus olhos se ele piscasse.
— Há quanto tempo você sabe? — questionou, dando início a
conversa inevitável e fiz uma careta.
— Recebi o e-mail na semana passada, mas não li. Só soube, de fato,
anteontem quando me ligaram para marcar a entrevista pessoal — falei,
sincera e ele meneou a cabeça.
— Era sobre isso que queria conversar comigo naquele dia?
Aquiesci.
— Eu só não sabia como te contar a minha decisão, porque eu sabia o
que você iria me dizer… — murmurei, sentindo meus ombros ficarem tensos.
O som das ondas quebrando nas rochas próximas preencheu o
silêncio, já que da praia não era possível ouvir a música que tocava no
jardim.
Renato continuou me olhando, calmo, a mágoa sendo substituída por
algo parecido com neutralidade, e eu odiava aquilo. Porque eu sabia
exatamente o que ele estava fazendo. Renato estava tentando tornar aquela
escolha confortável para mim. Ele estava tentando demonstrar que tudo
ficaria bem entre nós, caso eu optasse por ir embora, apenas para que eu não
desistisse daquilo que desejei a vida inteira. E esse era o maior problema
aqui.
— Você esperou por esse estágio a vida inteira, Nathalia.
— Eu sei, mas… — minha voz ficou embargada pelas lágrimas, e me
odiei por não ter qualquer controle emocional. — Eu não quero mudar a
minha vida por causa desse estágio, eu gosto de como as coisas estão entre a
gente.
Ele engoliu em seco, era óbvio que eu havia dito o que ele mais temia.
O maior medo do Renato era que, por conta do nosso relacionamento, eu
precisasse abdicar de alguma coisa.
— O estágio não vai mudar nada, anjo — disse, aproximando-se e
acariciando meu rosto, fazendo com que eu olhasse nos seus olhos. — Você
estará apenas a algumas horas de distância, é só isso. Ainda será minha
mulher, e eu serei seu. — Seu polegar roçou meus lábios. — E quando você
voltar, nossa vida estará aqui, exatamente como estava quando você saiu.
Balancei a cabeça, olhando para ele sem saber como conseguiria
explicar que não era essa a questão. Eu não tinha dúvidas de que ele
continuaria sendo meu e que encontraria uma maneira de estar ao meu lado
durante metade do tempo em que estivesse em Nova York. Ele conseguiria
ajustar tudo, porque Renato sempre resolvia tudo. Mas o problema não era
esse.
— Não, você não está entendendo… — soltei um suspiro, sentindo-me
estúpida por perceber aquilo apenas naquele momento. Eu teria sido
poupada de tantas coisas se tivesse percebido antes. — Eu não quero ir para
o estágio. — Minha voz soou firme. — Eu gosto da minha vida aqui. Eu
gosto de ser diretora de operações da RCI, de acordar todas as manhãs e
ouvir Igor e Matheus contarem sobre seus sonhos da noite anterior… eu
gosto de saber que quando você viaja, se esforça para voltar para casa o mais
rápido possível porque não suporta ficar longe de mim e dos meninos. Eu
gosto da estabilidade da nossa vida, Renato.
Pisquei, tentando afastar as lágrimas que embaçavam minha visão.
— Quando eu estou perto de você, não importa quanta merda está
acontecendo ao meu redor ou quantas facas estão sendo arremessadas na
minha direção… eu estou segura. — Meus dedos se fecharam em volta do
seu pulso. — Quando entro em casa, eu posso deixar que o mundo queime lá
fora, porque a única coisa que realmente importa para mim está ali dentro.
Puxei o ar, tentando controlar o meu pulso acelerado, sem desviar os
olhos dos seus.
— Eu não quero largar isso só para ir para um estágio onde vou
recomeçar do zero e descartar tudo o que construí nos últimos dois anos. —
Torci os lábios, sentindo a pressão dos seus dedos em meu queixo aumentar.
— Na verdade, eu nunca quis. Eu só sentia que precisava ir para provar para
as pessoas que eu era capaz. Mas o que eu realmente quero está aqui, não em
Nova Iorque.
Soltei o ar que estava segurando e ele não me perdeu de foco nem
mesmo por um segundo.
— Anjo… você pensou direito nisso? — investigou, sem conseguir
deixar a preocupação de lado e eu me aproximei, levando minha mão livre
para o seu rosto e arrastando meus dedos em sua pele.
— Sim, e eu não vou mudar de ideia — falei, sentindo a minha voz
ser tomada por uma confiança incomum. — Não existe nada que a B&H
possa me oferecer para a minha carreira, que eu não consiga conquistar na
RCI também.
Seus olhos vasculharam meu rosto, buscando por um sinal de
insegurança, mas eu sabia que ele não encontraria.
— Nathalia…
Uma risada fraca escapou dos meus lábios e fiquei na ponta dos meus
pés, nivelando meu rosto ao seu e sentindo a sua respiração pesada bater em
mim. Eu não precisava procurar pela voz do monstro em minha cabeça, ele
não tinha qualquer poder sobre aquela decisão. Poucas vezes estive tão certa
e irredutível quanto a uma decisão, e aquela era uma delas.
— Eu estou dizendo que vou ficar, Renato — falei, contra seus lábios,
sentindo seus dedos que estavam em meu queixo, escorregarem em minha
pele, envolvendo minha garganta. — Eu disse que ficaria por quanto tempo
você me quisesse. — Relembrei-o da minha promessa de meses atrás,
quando invadi o seu apartamento. Seus olhos escureceram e o seu aperto se
tornou mais firme. — Você quer que eu vá embora?
A intensidade que aquela pergunta desencadeou em seus olhos, fez
com que meus joelhos fraquejassem e agradeci mentalmente por seu braço
livre estar em volta do meu pescoço, ou eu teria perdido o equilíbrio.
— Nem em um milhão de anos, diabinha — respondeu, sua voz não
passando de um sussurro rouco que espalhou milhões de arrepios pelo meu
corpo, causando um dano severo em meu sistema.
Sorri, embriagada pela sua presença.
— Então, esse é o momento em que você aceita que está amarrado a
mim e que sou a melhor a aposta que você fez na sua vida — provoquei,
lembrando-me de todas às vezes em que ele deixou claro que nunca pararia
de apostar em mim.
Um brilho iluminou as íris escuras de Renato e ele intensificou o seu
aperto ao meu redor.
— Alguém já te disse que você soa arrogante, sua pequena diaba? —
Ele rosnou contra meus lábios, e eu sorri, entrelaçando meus dedos em seu
cabelo curto.
Naquele momento, esqueci completamente do mundo ao meu redor,
permitindo que ele me levasse para um lugar único no universo, onde tudo o
que importava era ele e o que tínhamos juntos. Não tive tempo de responder
qualquer coisa. Seus lábios colidiram com os meus e Renato roubou todo o
meu fôlego.
No domingo, decidimos voltar para o Brasil no início da tarde, já que
eu teria alguns compromissos no escritório bem cedo.
Durante todo o vôo, Renato e eu ficamos com as crianças que
aproveitaram a partida da fazenda para nos contar o quanto tinham se
divertido com o meu pai e os meus avós. Igor havia sido o que havia
aprendido mais coisas naquela semana, já que conseguiu fazer com que
todos ensinassem algo para ele.
Era admirável o quanto ele gostava de aprender e isso cativou o meu
pai, que o mimou com vários livros da sua coleção pessoal. Ele também
havia aproveitado aquele meio tempo para aprender um pouco sobre
hipismo, já que o estábulo havia terminado de ser reformado e a família de
equinos tinha retornado para a fazenda.
Já Matheus aproveitou aquela semana para comer todos os doces
existentes que a Pilar, uma das cozinheiras mais antigas da fazenda,
preparava. Seus olhos brilhavam enquanto ele compartilhava com o pai o
quanto adorou experimentar as obleas[51] que o meu avô fazia, e como
queria que a nossa cozinheira aprendesse para fazer para ele todos os dias
de manhã.
Durante todo o trajeto, a mão de Renato permaneceu entrelaçada na
minha, a soltando apenas para limpar a bagunça que Matheus fazia com o
arequipe. Porque tinha aquele detalhe também, agora, Renato tinha dois
viciados em comer doce de leite com morangos.
Cinco horas depois, a cidade de São Paulo ganhou forma abaixo de
nós, conforme íamos perdendo a altitude e iniciávamos o plano de pouso.
— Podemos ir de novo? — perguntou Matheus, olhando para o pai
dele com os olhinhos verdes brilhando daquele jeitinho que era impossível
recusar.
Renato observou o filho com um meio sorriso, limpando o canto dos
lábios do pequeno e relaxou as costas na poltrona.
— Vou pensar no seu caso — prometeu, arrancando um sorriso do
pequeno. Igor fechou o livro que estava lendo, o guardando em sua mochila
e me olhou com curiosidade.
— Podemos jantar naquele restaurante mexicano que abriu? — pediu,
diretamente para mim, já que sabia que o que eu dissesse, Renato
concordaria.
Isso arrancou uma risada do homem ao meu lado.
— Hm… aquele do cacto com um chapéu luminoso?
Ele sorriu, concordando, e olhei para o pai dele, que também assentiu,
concordando com o plano sugerido pelo pequeno. No início do mês,
passamos em frente ao restaurante Niké, mas como estava na semana de
inauguração e sabíamos que estaria lotado, decidimos adiar o jantar para um
outro dia.
— Tudo bem!
Igor olhou para o irmão que parecia perdido no assunto e começou a
explicar sobre a decoração do espaço, e bastou que ouvisse chapéu e luzes
piscantes para que Matheus se empolgasse.
Durante o pouso, o sinal do celular foi reestabelecido e eu só me dei
conta daquilo porque meu celular e o do Renato começaram a vibrar
incessantemente, anunciando a chegada de várias notificações.
Apanhei o aparelho de cima da mesa, arregalando os olhos ao ver que
tinha mais de cem ligações perdidas do Leandro, outras vinte de Marc e
algumas ligações perdidas de Celine e Frederico. Um pressentimento ruim
se instalou no meu peito e virei o rosto para o homem ao meu lado, vendo
que o seu estado era ainda pior, uma vez que o seu celular havia travado de
tantas notificações que não paravam de chegar.
A vitamina de morango que eu havia bebido pesou no meu estômago
e levei a mão até a barriga, sentindo-me nauseada e minha mente começou
a trabalhar a todo vapor para descobrir o que havia acontecido. Um arrepio
violento me atingiu quando me virei para o Renato, sentindo o pânico
embaçar a minha visão quando eu perguntei:
— Você resolveu o problema com a sala de arquivos? — perguntei,
sentindo minha voz trêmula, mas dando tudo de mim para não surtar na
frente dos meninos.
Não precisei explicitar sobre o que estava me referindo, já que
Renato sabia muito bem o que havia acontecido na sala de arquivo na
semana passada. Ele ainda guardava as cópias da nossa irresponsabilidade
em seu escritório de casa, e a ideia de que mais alguém tivesse visto isso me
assombrou de um jeito tão absurdo, que eu senti vontade de vomitar.
— Calma, anjo, eu resolvi isso e não tem como qualquer um ter visto
— assegurou, buscando pelo meu rosto e suas mãos pareciam infinitamente
mais quentes do que o meu corpo naquele momento.
Meus lábios pareciam ressecados e arrastei a língua entre eles,
tentando aliviar a sensação. Renato se levantou, se soltando por tempo
suficiente para alcançar a minicozinha da aeronave e voltar com uma
garrafa de água, entregando-me para que eu bebesse e me acalmasse.
— Nath, tudo bem? — perguntou Igor, franzindo o cenho em
preocupação e engoli em seco, concordando.
— Tudo, eu só… tenho medo do pouso — menti miseravelmente, mas
Igor só tinha oito anos e não precisava saber o motivo para que o pânico
estivesse correndo pelas minhas veias.
Renato chamou Sérgio, pedindo para que ele alinhasse com os outros
seguranças que estavam conosco no avião para que levassem os meninos
para casa, e depois de garantir que eu não teria um AVC, ele se afastou com
o telefone de emergência da aeronave, ligando para Leandro para entender o
que havia acontecido.
Na minha cabeça, apenas duas coisas poderiam justificar aquela
bagunça em meu telefone: o escritório pegou fogo ou todos descobriram
sobre mim e o Renato.
Nós pretendíamos contar em algum momento, depois que todo o
turbilhão com Guilherme e o Conselho passasse, mas agora eu achava que
não fazia mais diferença o que nós havíamos planejado.
Quando o avião pousou na pista, Igor se soltou do cinto de segurança
e se sentou ao meu lado, entrelaçando minha mão trêmula na sua, quente e
estável. Eu não tinha percebido que estava hiperventilando e a constatação
só me atingiu quando o garotinho de oito anos afagou minha mão.
— Calma, Nath… nós já pousamos, tá tudo bem. — Igor sorriu com
tanta inocência, que eu precisei forçar os meus pulmões a funcionarem
normalmente.
Sorri fraco, colocando minha mão livre por cima da sua e fazendo
carinho.
— Obrigada, meu bem.
Ele deu de ombros, tímido.
— Tá tudo bem ter medo, a Luiza disse que é normal — disse ele,
todo atencioso e isso fez com que a minha mente se concentrasse em outra
coisa.
No entanto, quando Renato voltou para perto de onde estávamos e se
agachou na frente do seu filho mais velho, eu soube que realmente tinha
acontecido alguma coisa e não era nada boa.
— Chefe, vou precisar que você vá para a casa dos seus avós junto
com o seu irmão, o Marcus e a Mara — disse Renato, olhando para o filho
com uma calma que não parecia sincera. Na verdade, os seus olhos nunca
pareceram tão sombrios e violentos quanto naquele momento.
Aquela sensação da corda se enrolando em volta do meu pescoço
voltou e a náusea me atingiu, obrigando-me a beber um gole longo de água.
Um vinco surgiu na testa de Igor e eu me soltei do cinto de
segurança, precisando da liberdade para me mexer e Renato me lançou um
olhar tranquilizante, mas não havia nada de sincero nele. O que era ainda
mais perturbador, sua mão descansou em minha perna e a apertou com um
pouco mais de força, como se isso fosse necessário para me manter presa na
realidade.
Minha mão escorregou em busca da sua e ele não demorou a
entrelaçar os nossos dedos, segurando-me com firmeza.
— Hm…, mas ainda vamos para o restaurante? — perguntou Igor,
chateado.
— Vou dar o meu melhor para isso, mas, se não der para irmos hoje,
prometo que vamos amanhã, tudo bem? — Ofereceu, mantendo o tom de
voz calmo.
Igor meneou a cabeça, concordando.
Os acontecimentos seguintes correram diante dos meus olhos em
câmera lenta e em zumbidos que eu não conseguia distinguir. Meu cérebro
começou a pensar em tudo de pior que poderia ter acontecido, que mal
consegui retribuir ao abraço de Igor e Matheus quando eles se despediram
de mim e do pai deles, correndo com Mara para a SUV que os esperava
perto do hangar.
Quando os meninos se afastaram o suficiente, outra SUV parou na
nossa frente e Renato abriu a porta para que eu entrasse, mas meus pés
hesitaram e virei o rosto na sua direção, forçando o meu cérebro a sair da
letargia que havia me colocado.
— O que aconteceu? — perguntei, em um sussurro estrangulado.
Sua mão alcançou o lado esquerdo do meu rosto, segurando-o em sua
palma e transmitindo o seu calor para mim.
— Guilherme convocou uma reunião emergencial com os sócios.
— Mas ele não… ele foi afastado! Não tem direito de solicitar nada.
Renato meneou a cabeça, parecendo tão perdido no que aconteceu
quanto eu. Pisquei atônita, decidindo entrar no carro de uma vez por todas.
Ele veio logo atrás, dando instruções para os outros seguranças que estavam
conosco.
Sérgio assumiu o volante enquanto meus dedos esmagavam a mão de
Renato, numa tentativa de conter o nervosismo, enquanto ele conversava no
telefone com alguém. Tentei, com muito esforço, me concentrar no que
estava sendo dito, mas só conseguia pensar que, de alguma forma, Renato
não conseguiu apagar o registro da máquina de cópias. Além disso, havia a
filmagem da câmera de segurança que registrou nossa entrada, e Guilherme
pretendia expor tudo aquilo para que todos os sócios soubessem.
Não soube dizer se o chefe de segurança estava atravessando todos os
semáforos e acelerando como se estivesse em uma corrida pela sua vida, ou
se eu estava tão confusa com tudo que não estava conseguindo desembaçar
minha visão, mas quando Renato desligou o telefone, sua mão buscou pelo
meu rosto e ele me obrigou a encará-lo.
— Anjo, está tudo bem — disse ele, preocupado com o meu estado.
— Você tem certeza de que cuidou dos registros? — sussurrei
gritando, precisando da sua confirmação porque eu sabia que ele não
mentia.
Não, não.
Renato nunca mentia para mim.
Se existisse a menor possibilidade dele não ter certeza se tinha dado
um fim naquilo, ele me contaria.
— Sim — assegurou, aumentando a pressão dos seus dedos em meu
queixo para me manter olhando para ele. — Preciso que respire fundo, ou
vou precisar dar meia volta e te levar para um hospital.
Engoli em seco, tentando forçar meu cérebro a obedecê-lo e sem
desviar os olhos dos seus, soltei o ar que estava segurando, puxando-o
novamente e o soltando mais uma vez. Não sei ao certo quanto tempo
permaneci perdida em seus olhos, apenas seguindo suas instruções, mas,
aos poucos, meus músculos começaram a relaxar e minha respiração
encontrou o próprio ritmo.
Renato afagou minha pele, levando meu rosto para perto do seu e
deixou um beijo demorado em minha testa, aspirando o cheiro do meu
shampoo como se isso pudesse acalmá-lo também. Minhas unhas
afundaram em sua pele e fechei os olhos, tentando expulsar os pensamentos
invasores que estavam tentando enrolar aquela corda em minha garganta.
Ele se afastou de mim e meus olhos se voltaram para frente, vendo
que já estávamos na esquina do complexo corporativo.
— Como ele conseguiu convencer todo mundo a vir para São Paulo
em um domingo? — perguntei, baixinho.
Leandro e Renato passaram o último mês inteiro tentando alinhar as
agendas de todos, e havia sido uma missão quase impossível conseguir que
a maioria se disponibilizasse a entrar em consenso em uma data. Para
convocar uma reunião emergencial, Guilherme precisaria que pelo menos
quinze sócios aceitassem aquilo e assinassem um documento para validar a
convocação. Ele não tinha tanta influência assim entre os sócios seniores
para conseguir isso…
Virei-me para Renato, como se quisesse ter certeza de que a minha
linha de raciocínio estava certa e quando suas íris escuras colidiram com as
minhas, eu soube que tínhamos chegado na mesma conclusão.
— Roberta — sussurrei e ele meneou a cabeça, concordando.
Pior do que o choque de ter sido apunhalada por ela no passado, de
ter ouvido suas acusações infundadas e lidado com seus ataques, foi o
impacto de perceber que, mesmo sabendo que seria melhor não bater de
frente comigo ou com Renato, Roberta seguiu em frente com sua ameaça de
provar a ele que não era intocável.
Ela era a única que tinha proximidade com a maioria dos sócios.
Pisquei, tentando me livrar da sensação de ardência nos meus olhos e
apertei os dedos de Renato com mais força ao ver Sérgio entrar no
estacionamento do complexo. Conforme ele descia para o pavimento
reservado para a RCI, meu aperto na mão do meu namorado se tornava
mais desesperado.
Naquele dia, o lugar estava particularmente cheio de SUVs
importadas e quando senti que meu coração ia perfurar o meu peito, vireime para Renato mais uma vez para tentar reencontrar o equilíbrio e
encontrei seus olhos sobre mim.
— Vai ficar tudo bem, anjo.
Aquiesci, me agarrando nessa promessa.
— Nós deveríamos ter contado — falei, baixinho, em um tom quase
estrangulado. — Eu odeio a sensação de que vamos ser pegos
desprevenidos.
Renato apertou minha mão fria, trêmula e úmida de suor devido ao
meu nervosismo.
— Tenho um plano de contingência, não se preocupe.
Balancei a cabeça, no automático, confiando nele. Eu não conseguia
pensar no que de pior poderia acontecer e busquei pelas cláusulas do
contrato que mais importavam naquele momento, mas não tive tempo de
repassá-las mentalmente.
Eu sabia quais eram as consequências de me envolver com o Renato,
só não pensei que precisaria enfrentá-las. Talvez Roberta estivesse errada, a
única pessoa na relação que se julgava intocável, era eu. Me dei o direito de
acreditar que sairia disso ilesa, e não busquei por saídas de emergência para
me livrar daquele caos.
A pior estrategista de todos os tempos.
Aquela voz sussurrou em minha mente, lutando para se libertar das
amarras que a mantinham presa. Apertei ainda mais a mão de Renato,
lembrando-me de que não estava sozinha naquela situação e de que ele não
me deixaria cair. Ele havia prometido que eu não seria prejudicada por estar
envolvida com ele.
Sérgio e o outro segurança, Mauro, saíram do carro na nossa frente e
Renato abriu a porta, descendo antes de mim e me estendendo a mão para
que eu saísse também. Aspirei o ar, enchendo os meus pulmões e o soltei
lentamente, conforme aceitava o seu apoio e descia do carro.
O estacionamento estava vazio, tudo parecia irritantemente calmo,
em um nível tão absurdo que parecia ser o prenúncio de um desastre
iminente. Outros dois seguranças desceram da SUV que estava nos
acompanhando desde a pista do aeroporto e apertei os dedos com mais
força, afundando as unhas na pele de Renato.
Ele não se queixou, seus olhos estavam concentrados no nosso trajeto
e eu o conhecia o suficiente para saber que estava projetando todos os
cenários possíveis do que poderia estar nos esperando.
Talvez, nós estivéssemos sendo imediatistas.
Talvez, Guilherme não tivesse nada para apresentar aos sócios.
Talvez, ele estivesse sendo agraciado pelo bom senso pela primeira
vez em sua vida e tudo aquilo estava sendo feito para nos anunciar a sua
retirada.
Ou talvez você esteja tentando se enganar!
O monstro gritou em minha cabeça e me encolhi, sentindo o
nervosismo me acompanhar enquanto o som dos nossos passos ecoava pelo
piso de concreto liso. O meu café da manhã pesou no meu estômago, eu
conseguia ouvir os seguranças conversando entre eles, repassando o
esquema.
— Os meninos já chegaram na casa dos seus pais, Renato — Sérgio
anunciou, após receber a informação em seu ponto eletrônico e meu
namorado meneou a cabeça.
Então, tudo aconteceu em uma fração de segundo.
Sempre ouvi as pessoas dizerem que quando estamos à beira da
morte, nossa vida passava diante de nossos olhos em câmera lenta, e todas
as lembranças mais importantes eram projetadas em nossa mente.
Era como se o cérebro tentasse nos confortar diante da agonia de
estar morrendo.
Eu costumava acreditar que isso era apenas uma maneira de
reconfortar as pessoas diante do medo iminente da morte. Não tinha o
hábito de pensar em como seria morrer, mas sabia que não queria sentir dor.
Não queria que as pessoas que amava sofressem.
A antecipação da morte era mais assustadora do que a morte em si.
Quando alcançamos a segunda fileira de carros, perto do elevador,
minha visão periférica capturou o momento em que um homem com uma
touca que cobria todo o seu rosto saiu de dentro de um carro.
E assim como me disseram que aconteceria, tudo o que aconteceu na
sequência se projetou na minha frente como um filme passando em câmera
lenta.
O primeiro tiro acertou Mauro, que estava ao meu lado direito. Então,
meu corpo foi lançado no chão e uma dor agonizante me atingiu e minha
visão ficou completamente desfocada. O barulho dos tiros ricocheteando
contra a lataria do carro eram tão altos que eu não conseguia escutar nada
além deles.
Meus pulmões queimaram e fechei os olhos, sentindo minha caixa
torácica ser comprimida pelo peso de um corpo muito maior sobre mim.
Abri os olhos, tentando descobrir o que havia acontecido e minha visão
embaçada encontrou o rosto empalidecido de Renato.
A sensação de sufocamento desapareceu quando ele saiu de cima de
mim, mas não foi o suficiente para me livrar do pânico quando reconheci o
meu vestido manchado de sangue.
Meus olhos correram pelo meu próprio corpo, buscando pela origem
do ferimento, mas o sangue não era meu e a sensação de ter o chão tirado
debaixo de mim, atingiu-me com violência quando me dei conta de que
todo aquele sangue era do Renato.
— Individuo neutralizado! — A voz de alguém soou, mas eu não
pude identificar de quem era, porque a única coisa que meus olhos se
concentraram era no sangue manchando o peito de Renato.
Sua camisa branca estava completamente manchada, e eu me arrastei
em sua direção, tentando descobrir de onde vinha o ferimento. Seus lábios
se moviam, falando com alguém, mas minha audição estava prejudicada e a
única coisa que eu conseguia escutar era o rugido acelerado do meu
coração.
Fui afastada de Renato por duas mãos fortes, e tudo o que pude fazer
foi lutar para me libertar.
Meu cérebro foi tomado pelo horror e eu não conseguia respirar
normalmente. Passos apressados ecoavam por todo o estacionamento, e
enquanto me debatia para me libertar da pessoa que me segurava, meus
olhos capturaram o momento em que dois homens enormes o levantaram do
chão e o colocaram em outro carro. Ao mesmo tempo, o homem que me
segurava me jogou dentro de outro veículo e bateu a porta com força.
Meu cérebro capturou o som dos pneus cantando, mas quando meus
olhos recaíram nas minhas mãos ensanguentadas, a única coisa que me veio
em mente foi o rosto de Renato e o sangue em seu peito.
— Nathalia! — O chamado brutal de alguém me tirou da letargia e
ergui os olhos, vendo Sérgio buscando pelo meu rosto como se quisesse
verificar que eu estava bem e se não havia sido atingida também.
— O Renato…
— Foi levado para o hospital.
Abri e fechei a boca, tentando me localizar no que estava
acontecendo, e as lágrimas começaram a rolar pelo meu rosto.
— Você deveria estar com ele!
Sérgio franziu o cenho, balançando a cabeça em negativa.
— Renato foi claro ao dizer que você era a prioridade — afirmou,
categórico.
Meu estômago embrulhou e olhei por cima dos ombros, tentando
encontrar o carro em que ele estava, mas tudo ao meu redor não passava de
borrões.
Minhas mãos tremiam incontrolavelmente, úmidas e frias. Meu olhar
se ateve nelas, vendo o vermelho escuro contrastando com minha pele
pálida. Minha respiração acelerou quando meu cérebro me lembrou de que
aquele sangue era de Renato. Ele havia sido baleado. Por minha culpa.
Eu sabia disso. Lá no fundo do meu peito, eu tinha plena consciência
de que tudo aquilo era culpa minha. Um filme se desenrolou em minha
mente, rebobinando cada pessoa que foi arrastada para aquele inferno
simplesmente porque estava em minha vida enquanto eu lidava com André.
Não existia nenhuma outra explicação que justificasse aquele ataque.
Aquela corda em volta do meu pescoço me apertou com tanta força,
que meus pulmões colapsaram. O medo e a culpa me dominaram e eu só
conseguia pensar que era tudo minha culpa.
Aquilo tudo era minha culpa.
Eu estava no hospital e ao meu lado, estavam Victor e Caique.
Não sabia em que momento eles chegaram, tampouco em que
momento minhas mãos foram limpas do sangue, mas nem toda a água foi
capaz de limpar a lembrança que estava vívida em minha mente.
— Nathalia? — Caique chamou pela quinta vez nos últimos vinte
minutos, mas eu não conseguia desviar os olhos das minhas mãos trêmulas.
Ainda que eu soubesse que não havia mais sangue algum ali, eu ainda
conseguia vê-lo, de alguma maneira. O garoto se abaixou na minha frente,
suas sobrancelhas grossas se uniram e ele colocou uma garrafa de água na
minha frente, em um incentivo para que a aceitasse.
Mas eu não estava com sede.
Também não estava com frio, ainda assim, colocaram um casaco
sobre as minhas costas enquanto me arrastavam para dentro do hospital, ao
mesmo tempo que Sérgio gritava com a equipe do hospital para que
fechassem aquele andar inteiro.
Mas as minhas mãos tremiam e eu sentia a garganta seca.
Pisquei, tentando espantar as lágrimas que se acumulavam e meus
olhos vasculharam a sala de espera vazia. Com exceção de uma enfermeira
que me olhava como se eu fosse uma assombração, e cerca de sete
seguranças espalhados pelos principais pontos da sala, não havia mais
ninguém ali.
Eu estava sozinha e Renato tinha sido levado para algum lugar que
não me deixaram saber, tampouco acompanhá-lo.
Minha bolsa estava na poltrona ao meu lado e meio que no
automático, busquei pelo celular. Caique desistiu de tentar me fazer beber
água e se afastou para falar com o Victor que estava do outro lado da sala,
perto dos elevadores.
As últimas notificações no meu celular eram apenas de Bianca,
avisando que tinha ficado sabendo da reunião emergencial e perguntando se
eu precisava de alguma coisa. Não tive cabeça para respondê-la, e meus
olhos se concentraram na notificação que apareceu em seguida, vindo de
um número desconhecido.
No piloto automático, cliquei na mensagem; recebendo um soco na
boca do meu estômago ao ler o conteúdo dela.
Número desconhecido:
Esse foi o meu último aviso.
Minhas mãos perderam a força e o celular escorregou delas, caindo
no chão e atraindo a atenção de sete pares de olhos. Um choro copioso
irrompeu do fundo do meu peito. Escondi o rosto entre as mãos, tentando
conter os soluços que escapavam da minha garganta, mas isso só os tornava
mais altos e contínuos, sufocando-me.
Se existia qualquer pedaço do meu cérebro que estivesse disposto a
tentar me convencer de que aquilo não era minha responsabilidade, aquela
mensagem deixava claro que eu era a única culpada por tudo aquilo.
E a culpa era a pior coisa que existia nesse mundo.
Ela massacrava o meu peito, me fazendo ansiar fazer qualquer coisa
apenas para poder acabar com aquilo de uma vez por todas.
Trouxe minhas pernas para cima da poltrona, me encolhendo, porque
tudo o que eu queria naquele momento era me tornar tão pequenina que
acabaria desaparecendo de uma vez por todas, assim não seria o motivo
para todas as pessoas ao meu redor serem prejudicadas.
Se aquela era a consequência dos meus atos, eu deveria ser a única a
estar sendo ferida, não?
Pela primeira vez em anos, eu me arrependi daquela noite, cinco anos
atrás.
Pela primeira vez, eu desejei nunca ter saído daquele carro.
Pela primeira vez, rezei para que pudesse voltar no tempo e nunca
tivesse conhecido a Sabrina.
De que havia adiantado encontrar com ela, se aquilo sempre acabava
ferindo todas as pessoas que eu amava?
O fardo se tornou ainda mais insuportável quando os meus olhos se
fixaram nas fotos polaroid que estavam espalhadas pela minha bolsa. Em
uma delas, Matheus segurava o Sr. Pulga, meu coelho, e ele mostrava a
língua para o meu pai — que havia sido o responsável por registrar aquele
momento.
Em outra, Igor estava perto do que parecia ser a fundação da casa na
árvore que ele passou a semana inteira construindo junto com o meu pai, e
que estava tão orgulhoso em mostrar para mim e para o Renato.
Minhas escolhas não feriam apenas a mim, mas colocavam em risco a
estabilidade e segurança daqueles dois garotinhos. O que aconteceria com
eles se, por minha causa, Renato se machucasse de uma forma irreparável?
As lágrimas rolaram pelo meu rosto e, em um determinado ponto, eu
não pensei que ainda tinha como continuar chorando, e ainda assim, as
lágrimas não paravam de rolar.
Uma silhueta familiar chamou minha atenção e meus olhos se
voltaram para o homem com um semblante sério e concentrado. Ele tinha
sido responsável por me afastar de Renato, alegando que meu namorado
havia dito que eu era sua prioridade. No entanto, eu sabia que eu era a única
culpada por tudo aquilo. Aquela bala era destinada a mim.
Arrastei o dorso da minha mão em minha bochecha, enxugando as
lágrimas e engoli o soluço preso na garganta, virando-me para o chefe de
segurança, buscando pela acusação. Eu merecia que ele me apontasse o
dedo e me responsabilizasse por ser a responsável para que o seu patrão
estivesse ali.
— Como ele está? — perguntei, em um sussurro estrangulado, rouco.
Sérgio se agachou na minha frente, apanhando o celular que estava no
chão e, como a tela não havia sido bloqueada, ele conseguiu ler a
mensagem de texto que estava ali.
— Ele vai ficar bem, foi um tiro de raspão — disse, tranquilizandome e senti a corda afrouxar o aperto em minha garganta. — Ele te mandou
mensagens antes?
Balancei a cabeça, negando.
Sérgio chamou pelo Victor que rapidamente se aproximou, levando o
meu celular com ele para algum lugar que não me atentei em me preocupar.
— Eu posso ver ele? — perguntei, baixinho.
O chefe de segurança do Renato concordou, levantando-se e estendeu
a mão para me oferecer apoio, como se soubesse que eu não tinha forças
para me levantar sozinha.
Sérgio soltou a minha mão no início do corredor e parou no meio do
caminho, avisando que Renato estava no último quarto. Abracei meu
próprio corpo, sentindo-me nauseada porque meu vestido ainda estava sujo
com o sangue dele.
Esfreguei as mãos no tecido em minha cintura, como se isso pudesse
diminuir o quanto eu me sentia suja, embora a sensação não estivesse
relacionada à sujeira física. Eu mal conseguia me importar com a sujeira
externa, pois a sujeira que me atormentava era interna.
Hesitei na porta do quarto, porque ainda que Sérgio tivesse me dito
que havia sido apenas de raspão, a lembrança da quantidade de sangue que
o manchava estava cravada em minha mente e espalhada em meu vestido,
impedindo-me de esquecer do que havia acontecido.
Renato meneou a cabeça, concordando com o que quer que o médico
tenha dito, mas seus olhos se fixaram nos meus quase que
instantaneamente.
Seu olhar percorreu todo o meu corpo e pude ver seus lábios se
moverem, o que fez com que o médico desse o último ponto em seu braço,
me permitindo ver onde ele havia sido atingido.
Pisquei, tentando conter as lágrimas que ameaçavam escapar mais
uma vez e meus lábios tremeram, enquanto minhas unhas afundavam em
minha pele, numa tentativa de espantar a imagem do seu rosto
empalidecido.
O médico passou por mim, acompanhado pela enfermeira, e com o
incentivo do homem dentro da sala, entrei no quarto de hospital. Em uma
bandeja, o que restava de sua camisa estava lá, ao lado de um pequeno
projétil sujo com o sangue de Renato.
Sérgio não me disse que foi de raspão?
— Ei, anjo, está tudo bem — disse ele, fazendo menção a se levantar
do sofá em que estava sentado e balancei a cabeça, sentindo a minha visão
embaçar de novo.
— Não, não está — soprei, sentindo a voz soar embargada. — Você…
isso é minha culpa.
Renato se levantou, ignorando meu pedido para que não se movesse
e, em um piscar de olhos, estava na minha frente, segurando meu rosto em
suas mãos, impedindo que eu me afastasse.
— Isso não é sua culpa, Nathalia — disse, olhando-me como se eu
fosse louca por ousar dizer aquilo, mas eu estava apenas dizendo a verdade.
— Foi o André — sussurrei, como se isso fosse resposta mais do que
suficiente para explicar como aquilo tudo era minha responsabilidade, mas
ele não se importou.
— Você não tem responsabilidade pelas ações de outras pessoas,
anjo. — Seu polegar roçou em minha pele, lentamente, como se ele também
precisasse confirmar que eu estava na sua frente, inteira e segura.
A diferença entre nós era que eu não conseguia tocá-lo, pois temia
sujá-lo com a minha própria sujeira, aquela que deveria ter permanecido
escondida sob sete toneladas de concreto, exatamente como esteve durante
todo esse tempo.
Renato deu mais um passo à frente, e eu dei outro para trás, tentando
impedir que ele se contaminasse comigo. Eu me sentia podre. Tudo o que
eu tocava parecia ser destruído diante dos meus olhos, enquanto eu persistia
porque as pessoas se colocavam na linha de fogo por mim.
Balancei a cabeça, incapaz de conter as lágrimas que escorriam.
Meus olhos se fixaram no ponto onde Renato havia sido atingido,
percebendo que estava exatamente na minha altura. Se ele não tivesse se
colocado na frente, aquela bala teria acertado minha cabeça e tudo teria
acabado ali.
Ele não teria sido machucado.
E Mauro, o outro segurança que também foi atingido, não estaria no
centro cirúrgico para a remoção da bala no seu peito.
— Olhe para mim — exigiu, e meus olhos se moveram para o seu
rosto contra a minha vontade, obedecendo ao seu comando sem titubear. —
Não tire os olhos de mim — prosseguiu, aproximando-se e dei mais um
passo para trás, sentindo as minhas costas colidirem com a porta atrás de
mim. — Anjo… não fuja de mim.
O soluço que eu tentava conter explodiu da minha garganta quando
ele se aproximou de mim, tão perto que eu podia sentir o calor emanando
dele, aquecendo o meu sangue que parecia congelado.
— Mantenha os seus olhos em mim, amor — pediu, colocando a mão
em meu rosto, pressionando suavemente meu queixo, incentivando-me a
manter contato visual com ele.
Fechei os olhos, incapaz de me deparar com o seu olhar sobre mim
naquele momento, porque eu não suportava a culpa de tudo aquilo. O
soluço preso em minha garganta me sufocou e um tremor violento
percorreu meu corpo, quando seu polegar traçou o contorno da minha
mandíbula.
— Amor, olhe para mim — suplicou, fazendo com que meu peito
fosse dilacerado e meus olhos se abrissem, atendendo ao seu pedido.
Seus olhos mergulharam nos meus com tanta veemência, que eu
precisei usar toda a minha força para me sustentar em pé, meus dedos
buscaram pelo seu braço, encontrando o apoio necessário e ele engoliu em
seco.
— Isso precisa acabar — sussurrei, entre soluços —, eu…
— Não.
— Renato…
— Nós já passamos dessa fase, Nathalia — disse, firmemente. —
Não chegamos até aqui para você querer voltar ao ponto de partida.
Balancei a cabeça, descendo os olhos pelo seu rosto, indo em busca
dos pontos recentes, mas ele aumentou a pressão dos dedos em meu rosto,
impedindo que eu desviasse o olhar.
— Eu disse que não teria volta.
— Isso foi antes de tudo.
— Não importa. — Ele foi categórico.
As lágrimas grossas rolaram em minhas bochechas e ele as enxugou,
aproximando-se totalmente e pressionando o meu corpo entre o seu e a
porta.
— Deveria ter sido eu — sussurrei, vendo seus olhos escurecerem e
seu aperto se tornar um pouco mais bruto. Não ao ponto de me machucar,
mas descontando a fúria que as minhas palavras causaram.
— Nunca mais diga essa merda.
— Mas…
Eu não tive tempo de concluir.
Em um instante, eu estava pronta para listar todos os motivos pelos
quais ele deveria se afastar e me tirar de sua vida; no seguinte, sua boca
colidiu com a minha em um beijo violento e punitivo. Eu fui tão estúpida
que, em vez de afastá-lo como cada parte da minha consciência gritava para
fazer, eu joguei meus braços em seus ombros, afundei meus dedos em seu
cabelo e o puxei para mais perto, como se isso pudesse apagar tudo o que
havia acontecido nas últimas horas.
Sua mão que segurava meu rosto, escorregou para a minha nuca e ele
enrolou meu cabelo em seu pulso, o puxando com força moderada para
nivelar o meu rosto ao seu e não restringir o seu acesso aos meus lábios.
Um arquejo escapou do fundo da minha garganta quando a pressão
do seu corpo se tornou mais intensa e meus dedos apertaram seu cabelo, o
trazendo para mais perto, porque eu precisava dele esmagando meu corpo
para tentar aplacar aquela angústia que crescia em meu peito.
Renato não se importou com o ferimento recente, tampouco com o
fato de que estávamos a algumas portas de distância dos seus seguranças,
muito menos que qualquer um pudesse entrar ali e nos interromper.
E o pior era que eu também não conseguia me preocupar com isso.
O seu peito nu pressionado ao meu, ainda que separados pelo tecido
fino do meu vestido, emanava tanto calor que eu conseguia senti-lo
invadindo e dominando cada fibra do meu organismo.
A racionalidade que deveria estar presente, desapareceu.
A única coisa que pairava sobre a minha mente, era a necessidade
latente de tê-lo em mim, me fazendo sentir outra coisa que não fosse aquele
desespero que ameaçava me levar direto para aquele fundo do poço e, dessa
vez, eu não tinha certeza se teria forças para tentar escalar.
Sua mão livre escorregou pelo meu corpo, apertando-me nos pontos
certos para lembrar ao meu cérebro atrapalhado que eu pertencia a ele.
Quando seus dedos escorregaram por dentro do meu vestido e
apertaram minha nádega, em um movimento involuntário, segurei-me em
seus ombros e impulsionei o corpo para cima, entrelaçando minhas pernas
ao redor do seu quadril. Renato tateou a porta atrás de mim, girando a
tranca para impedir que qualquer um entrasse e meu centro pulsou ao sentir
sua ereção pressionando contra o meu núcleo úmido.
Eu estava tão perdida em minha mente que a ideia de tê-lo dentro de
mim, mesmo depois de tudo o que havia acontecido anteriormente, parecia
ser a única opção viável para recuperar o equilíbrio necessário e evitar que
eu caísse da corda bamba em que vinha caminhando nas últimas horas.
E ele parecia pensar da mesma forma, porque sua mão livre
escorregou entre os nossos corpos, encontrando seu próprio caminho para
alcançar a minha calcinha e afastá-la. Um arquejo escapou do fundo da
minha garganta, quando sem qualquer aviso, seu pau me invadiu;
destruindo cada fragmento do meu cérebro que ainda não havia sido
entorpecido pelo seu calor.
Seus lábios pressionaram contra os meus, engolindo o gemido que
escapou, quando minhas paredes se fecharam ao seu redor,
involuntariamente, impedindo que tentasse se afastar. A sensação de
preenchimento que me atingiu foi tão violenta e arrebatadora, que meu
corpo convulsionou ao seu redor e meu quadril se moveu por conta própria,
esfregando-se nele como uma desesperada, ansiando pela devastação que
ele me proporcionava.
Seus dentes aprisionaram meu lábio inferior e um rosnado escapou do
fundo da sua garganta quando minha boceta moeu ao seu redor. Seus dedos
apertaram minhas coxas, segurando com tanta força que eu sabia que ficaria
a marca ali por dias, mas eu não me importava.
Naquele momento, eu não precisava da sua gentileza e cavalheirismo.
Eu o queria por completo, daquele jeito bruto e forte, como se
quisesse ser marcado em meus ossos para que eu nunca mais ousasse
cogitar que poderia viver de outra maneira que não fosse sendo sua mulher.
A angústia e a culpa foram substituídas por algo muito mais
poderoso, algo que só ele conseguia despertar em mim e que tinha o poder
de transformar minha mente em um lugar pacífico. Não havia monstros
espreitando, nem culpa ameaçando me destruir. Era um lugar neutro, onde
só existia ele.
E quando ele me afastou da porta, me carregando para a cama, tentei
me agarrar àquele fio de racionalidade que faiscou, tão fraquinho que eu
precisei me afastar para tentar acabar com aquela insanidade.
Por Deus, ele havia acabado de levar um tiro por minha causa!
— Os pontos… — tentei argumentar, colocando minha mão em seu
peito, mas ele não me deu qualquer atenção.
Havia algo de sombrio despontando em seus olhos, uma necessidade
tão primitiva, que Renato mal conseguia se importar com os pontos que
estouraram e o sangue que manchava seu bíceps.
— No dia que algo me impedir de comer você como merece… — seu
pulso aumentou o aperto em meu cabelo, impedindo que me afastasse —,
nesse dia eu estarei morto, diabinha — assegurou, irredutível, capturando
meus lábios de volta e me penetrando mais uma vez, tão forte e duro, que
minhas unhas perfuraram sua pele, tentando aliviar a onda de prazer que me
atravessou.
A cada investida, ele se marcava tão profundamente em meus ossos,
que eu não conseguia pensar em outra coisa que não fosse no quão fundo
ele ia.
Minhas pernas apertaram ao seu redor, sentindo o impacto de cada
invasão como se fosse a primeira vez que ele estava dentro de mim. Eu
conseguia sentir minha boceta encharcada, o som das suas bolas batendo
em mim. Sem intervalo, sem me dar um segundo de folga, levando-me para
a borda do precipício.
Choraminguei, sentindo o meu orgasmo se aproximar e o calor se
concentrar em meu ventre com tanta intensidade que embaçou a minha
visão. Minhas unhas se arrastaram em sua pele, o punindo como eu
conseguia e ele devolveu batendo mais forte dentro de mim.
Quando senti que o orgasmo viria e me destruiria, Renato se retirou
de mim e o desespero e raiva queimaram em meu interior, mas não duraram
por tempo suficiente para que eu pudesse reclamar.
Ele me virou de costas para si, mantendo meu corpo colado em seu
peito e o seu aperto em meu cabelo, foi substituído por seus dedos em torno
da minha garganta, segurando do jeito certo para fazer com que meus olhos
girassem nas órbitas quando meteu forte, rasgando-me.
Sua mão que segurava firme meu quadril, alcançou o centro entre
minhas coxas e ele arrastou os dedos, melando-os com a minha
lubrificação, brincando com o meu clitóris, instigando-me a chegar tão
perto do orgasmo, apenas para me fazer voltar ao ponto de partida e
recomeçar tudo de novo.
— Renato… eu preciso gozar — supliquei, sentindo o desespero
queimar em meus ossos.
Contra a minha pele, pude sentir seus lábios se moldarem em um
sorrisinho cretino e ele mordeu meu ombro, arrancando-me um tremor
avassalador quando seus dedos que, antes estimulavam o meu clitóris,
encontraram seu caminho em minha bunda, estimulando aquele ponto
sensível com precisão e fazendo a minha boceta apertar mais em resposta.
Joguei a cabeça para trás, deixando que meu quadril se movesse
contra as suas estocadas, intensificando ainda mais aquele turbilhão que
atravessava o meu corpo, me fazendo sentir que estava prestes a entrar em
erupção.
Quando ele me invadiu com um dedo lá atrás, sem qualquer aviso,
meu fôlego se perdeu e acho que gritei, sentindo o orgasmo mais intenso do
mundo sacudir meus ossos, fazendo com que minhas pernas falhassem em
me sustentar de pé.
Renato me amparou, sem parar de me foder nos dois pontos
sensíveis. Meu coração golpeou tão forte no peito que eu sufoquei,
choramingando quando a ameaça de um novo orgasmo chegou tão rápido,
que só tive tempo de virar o rosto, buscando pelos seus lábios antes de ser
nocauteada mais uma vez.
Minhas bochechas estavam úmidas pelas lágrimas — que eu não
sabia mais se eram de prazer ou de tristeza. Minhas pernas fracas, tremiam
e eram incapazes de me manter em pé, e quando ele se afastou de mim;
consegui sentir sua porra escorrendo entre minhas coxas.
— Olhe para mim, diabinha — ordenou, baixo e rouco, obrigando-me
a me desfazer da letargia que os tremores me causavam e virar o rosto em
sua direção.
E eu sabia que iria para o inferno apenas por olhar para ele naquele
momento, porque havia algo parecido com um brilho diabólico em suas íris,
quando seus dedos se fecharam em meu rosto, apertando meu queixo e me
mantendo sua refém, antes de dizer:
— Nunca mais, ouse tentar me deixar. Por qualquer que seja o motivo
— disse, tão baixo e devagar, que era como se quisesse que eu marcasse
suas palavras e nunca mais as esquecesse.
Balancei a cabeça, sentindo-me entorpecida demais para dizer
qualquer coisa contrária, e sem forças para me autoflagelar pelos eventos
daquele dia.
Uma batida na porta me arrastou de volta para a realidade e engoli em
seco, vendo Renato se arrumar e se afastar de mim. Eu só tive tempo de
impulsionar meu corpo para cima, arrumar meu vestido e me sentar na
cama.
Seu olhar veio em minha direção, checando se eu estava pronta e
meneei a cabeça, o vendo abrir a porta e o homem loiro surgiu, seus
músculos ocupavam quase todo o espaço e ele não tinha as melhores das
expressões no rosto. O que era um evento inusitado, Marc sempre estava
com um sorriso tranquilo.
— Preciso que vocês se arrumem e venham comigo para o escritório
— disse, sem qualquer cumprimento antes de soltar aquela informação em
cima de nós.
Ananda, que estava atrás dele, aproveitou a nossa falta de
compreensão para contornar o advogado e entrar no quarto com meia dúzia
de sacolas. Seus olhos foram para o ferimento do Renato, em seguida, para
o meu vestido ensanguentado e ela arregalou os olhos, empalidecendo.
— Trouxemos uma troca de roupa — disse, parecendo um pouco
atordoada ao se dar conta de que a situação era pior do que havia
imaginado.
Aquiesci, forçando meu cérebro a impulsionar o restante do meu
corpo para fora da cama e senti o calor subir pelo meu rosto, quando me
lembrei do que havia acabado de acontecer no quarto.
— O Conselho não aceitou adiar a reunião? — perguntei, lembrandome de ter escutado Sérgio gritando com alguém para que desse um jeito de
adiar a reunião, porque não tinha a menor chance de Renato e eu voltarmos
no complexo naquele dia.
Eu conseguia imaginar o que aconteceria com Pietro Belchior quando
tudo isso acabasse. O estacionamento deveria ser uma área segura e
monitorada, a RCI desembolsava uma pequena fortuna para que um dos
subsolos fossem para uso exclusivo da equipe e clientes que eram
previamente liberados. Aquela era uma falha tão absurda de segurança, que
nem mesmo eu conseguia pensar em um discurso para conter a fúria do
Renato.
— Não. E agora que sabem que você foi baleado, Guilherme
convocou uma votação para se autonomear CEO interino da gestora —
explicou Marc, alternando seu olhar entre o meu rosto e o do seu amigo. —
O Conselho precisa vê-lo inteiro ou acabará acatando a nomeação.
Nos minutos que se decorreram, tudo o que eu fiz foi no piloto
automático. Usei o banheiro do quarto do hospital para me lavar e descartar
o vestido que antes era branco, mas que agora era uma mistura assustadora
dos últimos eventos, e troquei pelo conjunto que Ananda havia trazido.
Um agasalho de tricô que cobria meus braços marcados por arranhões
autoinfligidos durante meu ataque de pânico anterior, e uma calça de linho
bege que escondia meus joelhos machucados.
Enquanto Renato terminava de se vestir e ouvia as objeções de Sérgio
sobre irmos para o escritório, devido ao ataque no estacionamento, Ananda
secava meu cabelo e eu tentava deixar meu rosto mais apresentável.
Tudo naquele mundo se resumia a isso.
Uma fachada que era perfeitamente projetada para que acreditassem
que éramos inabaláveis.
— É melhor que a Nathalia não entre — argumentou Marc,
despertando-me da letargia e virei o rosto na direção, abandonando a
embalagem do blush em cima da mesa de cabeceira.
— Por quê? — perguntei, vendo os olhos escuros de Renato me
fitarem com inquietação, ele estava preocupado comigo, mesmo que tivesse
sido ele quem tomou um tiro por minha causa. — Não vamos ser ingênuos,
todo mundo sabe o que vai acontecer quando nós chegarmos naquele
escritório. — Busquei pelo sobretudo, ignorando a dor do meu corpo.
Eu ainda conseguia sentir o impacto de quando fui levada ao chão e o
corpo de Renato se manteve sobre mim. Bastou que ele me tirasse da
letargia, para que eu tomasse consciência do quando estava dolorida.
— Você não precisa estar presente, anjo — Renato disse, em uma
tentativa de me proteger, mas não soube se havia sido por conta de tudo o
que presenciei ou se era porque realmente não me importava mais com
nada.
— Eu quero — falei, jogando o sobretudo sobre os meus ombros e
me equilibrando nas sandálias de saltos, ainda que não sentisse que tinha
forças para isso. — Eu faço questão — esclareci, antes que ele tentasse se
opor. — Já estamos aqui, é melhor acabar com ela de uma vez por todas.
Meu namorado, que também era o meu chefe e o único homem que
conseguiu me fazer abandonar todas as minhas crenças — porque a ideia de
ficar sem ele era muito pior do que a de enfrentar os julgamentos que
viriam quando descobrissem sobre nós —, manteve seus olhos sobre mim
como se eu fosse um enigma que ele estava tentando desvendar.
Queria poder culpar a apatia ou o choque por conta daquela decisão,
mas ela não mudaria.
Chegamos a esse momento e nos protegemos o máximo possível das
opiniões e críticas que viriam, mas nunca fomos ingênuos ao pensar que
isso nunca seria revelado em algum momento. Vivemos até agora tentando
nos preservar o máximo que pudemos.
— Saiam do quarto — mandou Renato, sem tirar os olhos dos meus e
uma pequena ruga surgiu no rosto de Marc.
— Renato…
— Não vou demorar — assegurou, lançando um olhar significativo
para ele e o loiro meneou a cabeça, indicando que Ananda o acompanhasse
e eu caminhei para sair também.
Quando a porta foi fechada e ele impediu que eu tentasse alcançá-la,
meus olhos subiram para os seus e encontrei aquela inquietação que sempre
o atormentava quando ele não reconhecia os meus comportamentos. Em sua
cabeça, ele estava movendo as peças do tabuleiro, tentando encontrar uma
forma de descobrir que merda estava acontecendo em minha cabeça.
— Você não precisa se submeter a isso. — Foi categórico e soltei um
suspiro, concordando com ele.
Eu sabia disso. Ele era capaz de se colocar na minha frente como um
colete à prova de balas, disposto a levar todos os tiros que viessem em
minha direção. Mas eu não queria mais isso. Estava cansada de todos se
sacrificando por mim e sofrendo consequências no processo. Envolver-me
com Renato tinha sido minha escolha e permanecer no nosso
relacionamento era uma decisão minha. Eu estava ciente de todos os riscos
que isso trazia para nós dois e aproveitei cada momento da melhor maneira
possível.
Por que agora iria permitir que ele fosse o único a enfrentar as
consequências por termos escondido isso dos sócios?
— Eu sei — falei, o vendo caminhar em minha direção, sua cabeça
ligeiramente inclinada, como se eu fosse a única coisa que ele enxergava.
— E ainda assim, eu não vou mudar de opinião.
— Se ele for usar nosso relacionamento, é só uma suposição. Ele não
tem provas, podemos contornar — argumentou, parando a menos de um
passo de mim.
Balancei a cabeça, negando.
— Ele não faria isso se só tivesse suposições, Renato. — Ergui o
rosto para buscar pelos seus olhos. — Mesmo que ele não tenha provas, a
Roberta não vai hesitar em confirmar que sabe do nosso relacionamento.
Foi por causa dele que você ameaçou a permanência dela no escritório não
só uma, mas duas vezes!
— É a palavra deles contra a minha.
— Chega de mentiras! — Esganicei, o olhando firme. — Eu não
aguento ter que contar mais uma mentira. Nós estamos juntos. Isso já está
estabelecido há muito tempo e nada vai mudar isso. — Apontei o dedo em
sua direção, sentindo aquele turbilhão de emoções me atingir e minha voz
ameaçar falhar.
Não dessa vez!
— O tempo todo você deixou claro que era capaz de fazer qualquer
coisa por mim — prossegui, inspirando profundamente para me acalmar, e
quando senti a tensão nos meus músculos ceder um pouco, busquei
novamente pelos seus olhos. — Não me importo se vão passar a me ver
apenas como a sua mulher a partir de agora. Se for assim, que seja! — Meu
pulso acelerou e meus olhos se fixaram nos seus com intensidade. — Você
vai entrar naquele escritório, vai permanecer em silêncio e vai me ver te
escolher. E não importa o quão cruéis eles sejam ou o quanto você queira
me defender, você vai ficar em silêncio e me deixar continuar te
escolhendo, porque isso não vai mudar.
Meu coração golpeou com violência e senti que seus dedos estavam
em volta do meu pulso. Uma veia saltava em seu pescoço tão rápido, que
denunciava que seu estado não estava tão diferente.
Renato parecia ter parado de respirar e eu me desvencilhei do seu
aperto, dando a volta e abrindo a porta atrás dele. Seu olhar me
acompanhou, hipnotizado e o olhei incisiva.
Marc estava do lado de fora do quarto, esperando por nós e virei o
rosto para encará-lo, sentindo meu coração acalmar o ritmo desenfreado das
batidas.
— Na minha bolsa há um envelope pardo. Um investigador
conseguiu reunir um dossiê com todas as informações comprometedoras
sobre Guilherme, e garantiu que é mais do que suficiente para removê-lo do
escritório — avisei, sentindo a intensidade de Renato aquecer cada célula
do meu corpo. — Veja o que podemos usar para contra-atacar.
O loiro espreitou os olhos.
— Minha equipe precisaria ter tempo hábil de validar se aquilo é
verdade.
Neguei.
— Não é necessário. Ethan não teria me dado aquilo se não tivesse
verificado — assegurei, e notei que o nome não parecia estranho para ele,
assim como Pedro parecia conhecer o investigador também.
Eu sabia que Ethan havia prestado serviços para alguns dos sócios da
Niké, pois ele era próximo de Aaron, mas não tinha imaginado que algum
deles estaria na lista.
Marc meneou a cabeça, sinalizando para alguém que não estava tão
longe e ouvi os passos acelerados, provavelmente, a pessoa havia ido buscar
pela minha bolsa na sala de espera.
— Vou precisar de um tempo — disse ele e acenei, esboçando um
meio sorriso e virei-me para Renato que ainda estava calado.
— Darei o meu melhor.
A quantidade de vezes que respirei profundamente em algumas
poucas horas era tão grande que eu tinha certeza de que havia conquistado
um título honorário de monge budista, e seria mundialmente reconhecido
por minha calma.
Paciência era uma arte que eu não estava familiarizado, tampouco
tinha a intenção de aprender a dominá-la nesse ponto da minha vida.
Ao encontrar o olhar de Guilherme, sentado do outro lado da mesa
enquanto os sócios discutiam sem parar sobre as medidas a serem tomadas
diante da situação de Renato, eu percebi que a paciência tinha seus limites e
que algumas pessoas eram incrivelmente burras por acreditarem que a
diplomacia resolveria tudo.
Foda-se a porra da paciência e diplomacia!
Algumas pessoas só aprendiam quando recebiam um punho colidindo
repetidamente bem no meio da sua fuça egocêntrica.
— Leandro, não temos o domingo inteiro para ficar esperando! —
Vicente, um pau no cu do caralho, falou.
Meus olhos se voltaram para ele e respirei fundo pela milésima vez.
Babi havia dito que eu deveria respirar repetidamente sempre que
sentisse que estava agindo por impulso, assim eu me acalmaria e colocaria
as coisas em perspectiva e seria mais centrado. Bem, ela era uma psiquiatra
de merda, porque seu conselho era um lixo e a única coisa que eu sentia a
cada tragada de ar, era a minha paciência inexistente, se tornar ainda mais
nula.
— Olha bem para a minha cara, Vicente — rosnei, virando o rosto
para encará-lo. — Parece que eu estou interessado em saber se você tinha
planos de ficar na porra do sofá vendo o programa do Faustão ou qualquer
outra merda?
— Leandro, você não pode adiar a votação para sempre. — O
desgraçado falou do outro lado da mesa e meus punhos cerraram com tanta
força que pude sentir os metacarpos se deslocarem.
— Continue sentado e veja se não — falei, entredentes.
Virei o rosto para Frederico e acenei para que ele fosse adiante com o
que havíamos concordado mais cedo. Ele se levantou, apresentando uma
queixa que seria longa o bastante para me dar tempo de descobrir se a porra
do eremita havia morrido mesmo ou se estava vivo.
Afastei-me da sala, buscando pelo meu celular, sem deixar de escutar
a voz de Frederico ecoando em um monólogo que foi longo o bastante para
me deixar com sono na primeira vez que eu escutei, então iria entreter o
circo que Guilherme armou por um tempo.
— Querido, você precisa se acalmar — Cora, minha secretária, falou,
olhando-me por baixo dos óculos quadrados e meneei a cabeça.
— Corinha, eu te amo, mas se você me mandar ficar calmo de novo,
eu vou acabar surtando e enfiando um soco na cara daquele filho da puta —
assegurei, a fitando com sinceridade. Se ela queria que eu me acalmasse,
aquela era a única alternativa viável.
Busquei pelo número de Marc, mas meu amigo e advogado pareceu
esquecer o caso urgente que estávamos lidando e a chamada caiu direto na
caixa-postal.
Respirei fundo, arrastando as mãos pela nuca para tentar aliviar o
meu estresse de alguma maneira, mas eu só conseguia pensar no tamanho
do desastre que encontraríamos no escritório na manhã seguinte, caso eu
não tivesse saído da ilha dos avós da Nathalia na noite passada.
Quem disse que não valia a pena ser impulsivo, Babi?
Cora se afastou para voltar a cobrar Júlio, nosso investigador, por
uma resposta sobre a informação que havia dito no início da semana que
havia encontrado. Renato sempre manteve um contato por fora do
escritório, e quando o rapaz disse que acreditava ter encontrado algo, nós
pensamos que ele traria respostas a tempo da reunião do Conselho que
havia sido marcada para o início da próxima semana.
O problema de agir pelas quatro linhas, era que corríamos o risco de
ser pegos desprevenidos e se Renato não estivesse tentando ser o bom moço
para não assustar Nathalia, não estaríamos nessa situação de merda.
Encarei a Avenida Paulista lá embaixo, parcialmente tranquila, já que
o tráfego era mais tranquilo no fim de domingo e esperei qualquer sinal de
um dos carros que me eram mais familiares, mas não encontrei nada.
Sérgio não seria tão burro de levar Renato em um hospital tão longe
do escritório, e aquela demora começava a me fazer começar a considerar
que algo havia realmente acontecido com o meu amigo. Guilherme tinha
dito aquilo com muita confiança e presumiu que Renato tivesse sido
atingido, quando tudo o que nos contaram foi que havia acontecido um
atentado no estacionamento e que a polícia estava a caminho.
Eu só soube que Renato e Nathalia estavam envolvidos quando
reconheci um dos SUVs que faziam parte da sua equipe de segurança. O
carro havia sido abandonado no estacionamento e as marcas de pneus
denunciavam que saíram às pressas. E tinha tanto sangue no chão que…
Balancei a cabeça, expulsando aquela ideia insana da minha cabeça.
Renato e Nathalia estavam bem. Eles não seriam tão burros de
morrerem sabendo que esse escritório não duraria vinte e quatro horas sem
os dois aqui!
Eu me agarrei nesse pensamento, porque era melhor acreditar que os
dois eram tão obsessivos por causa do trabalho que isso seria uma
motivação para se manterem vivos, do que considerar a possibilidade de um
dos dois estivesse realmente machucado.
Compartimentalização era uma prática que eu estava familiarizado há
anos, e era um especialista em aplicá-la em todas as situações da minha
vida.
Quando passos se arrastaram no piso, atraindo a minha atenção, não
precisei me virar na direção para saber quem era, Roberta tinha um cheiro
marcante de canela, tanto por conta de seu perfume quanto por conta dos
cigarros que fumava obsessivamente.
— Sei que está preocupado com o Renato, mas você realmente não
pode adiar a reunião o dia inteiro — disse ela, parando a alguns passos de
distância e mantendo sua atenção no seu reflexo no vidro, sem me olhar
diretamente. — Isso só vai prejudicar ainda mais ele e a Nathalia.
Uma risada escapou do fundo do meu peito e me virei, dividido entre
me surpreender com ela pensar em algo além do próprio umbigo, e me
chocar com o seu cinismo de agir como se realmente se importasse com
qualquer um dos dois.
— Bem, você deveria ter pensado nisso antes de agir pelas costas
deles — falei, virando-me para olhá-la nos olhos.
Diferente dela, eu não tinha problema algum em confrontar as
pessoas diretamente. Mas o lance sobre a Roberta era que ela nunca
confrontava quem acreditava que podia bater de frente e acabar com os seus
argumentos. Não, ela preferia ir atrás de pessoas que sabia que podia
manipular suas inseguranças, era assim que garantia alguma vantagem.
Ela ergueu o queixo, empinando o nariz e me olhando com raiva
incontida.
— Não estou fazendo nada às escondidas, Leandro. Qualquer sócio
poderia ter convocado uma reunião; eu apenas tomei a iniciativa que vocês
não tiveram coragem de tomar! — disse, avançando em minha direção. —
Você acha que eu não sei que evitaram ir além dos limites esse tempo todo
para proteger a Nathalia?
Cerrei minha mandíbula, guardando as mãos nos meus bolsos como
se isso fosse me manter calmo, conforme eu me aproximava da mulher, sem
tirar os olhos dos seus, a mantendo no meu foco; enquanto um sorrisinho
sádico se desenhava em meus lábios.
— Você não faz ideia da porta que abriu, não é mesmo? — Inclinei
um pouco a cabeça, balançando levemente a cabeça. — O único motivo
para o Renato não ter te denunciado quando soube que você adulterou um
documento legal, foi por conta do que você fez por ele naquele problema do
García. — Aproximei-me um pouco mais, sem desviar o olhar do seu. — E
porque era um problema que ele conseguia resolver e não fazia questão de
mais ou menos cotas, então… você tinha conseguido se livrar da rasteira que
deu na Nathalia. Mas isso…? — Indiquei com a cabeça para a porta fechada
atrás de nós. — Ajudar o Guilherme a convocar uma reunião, sabendo o
que ele fez com a Nathalia todas às vezes em que interagiu com ela?
Arqueei a sobrancelha, a vendo engolir em seco.
E eu sabia que ela tinha completa noção do que eu queria dizer com
aquilo.
Renato, ao contrário de mim, era um homem extremamente paciente
e benevolente. Ele sempre buscava alternativas menos destrutivas para
todos os envolvidos, pois valorizava a diplomacia e acreditava que até
mesmo com pessoas traiçoeiras, era importante manter algum tipo de
proximidade para utilizar no futuro. No entanto, quando abandonava essa
abordagem política, ele conseguia ser ainda mais insano do que eu, e isso
certamente não era vantajoso para aqueles que se tornavam alvo dele.
— É melhor evitar cruzar o caminho dele depois de hoje e torcer para
que a Nathalia consiga o manter sob controle. Caso contrário, sua
preocupação não será por quanto tempo ainda ficará aqui na empresa…, mas
qual será sua próxima opção de carreira?!
Meus olhos desviaram dela para a silhueta de Ananda subindo as
escadas, e meus ombros relaxaram ao ver meu amigo logo atrás dela.
Renato parecia vivo e inteiro para caralho, e ao seu lado, segurando
firmemente em sua mão, estava a Nathalia com uma expressão impassível.
Um vinco surgiu em minha testa e me afastei de Roberta para ir ao encontro
dos dois, mas eles não me deram atenção e simplesmente entraram na sala
de mãos dadas, expondo o relacionamento para qualquer um que estivesse
presente na sala soubesse que estavam juntos.
Enquanto seguia logo atrás dos dois, permiti que meus olhos
percorressem a mesa para ter uma ideia de como os outros sócios estavam
reagindo àquela informação. Renato afastou sua cadeira, aquela mesma que
Guilherme estava tentando ocupar desde que entrou na sala de reuniões. No
entanto, em vez de se sentar e assumir o controle da reunião, foi Nathalia
quem ocupou o assento, entrelaçando as mãos sobre a mesa.
Observei atentamente os olhares dos outros sócios, vendo-os
replicarem o gesto e corrigirem suas posturas, captando a mensagem
subentendida que estava sendo transmitida. Aquela abordagem era
inusitada, até mesmo para mim, pois estava preparado para rebater qualquer
acusação com uma mentira na ponta da língua.
A sala estava especialmente cheia, com todos os assentos ocupados.
Era um mistério para mim como Roberta conseguiu fazer com que todos se
deslocassem de onde estavam em pleno domingo de manhã. Após oito
horas seguidas contendo a pequena rebelião que Guilherme estava tentando
instigar, finalmente me joguei na poltrona ao lado da Miss Google,
verdadeiramente aliviado por ser liberado daquele fardo.
— Bom… então, vocês decidiram nos agraciar com suas presenças —
Guilherme disse, ligeiramente atordoado por vê-los lado a lado, estava claro
que ele não esperava aquilo.
O que reforçava a minha teoria de que ele pretendia expor a quebra
da cláusula de relacionamentos numa tentativa de prejudicar o comando de
Renato, já que desde o casamento, estava afastado da firma e teve todos os
seus acessos cortados.
Renato levou o olhar para ele com tamanho ódio, que se não fosse
Nathalia colocando sua mão sobre a dele em seu ombro e segurando as
rédeas da coleira do cão dela, meu amigo teria atravessado a mesa e
terminado o que começou no casamento.
Guilherme havia se recuperado dos ferimentos e os únicos sinais da
surra que havia levado eram uma cicatriz na pálpebra esquerda e o nariz
quebrado. Era claramente uma estupidez se envolver em uma briga com
Renato, e se até mesmo eu sabia que não valia a pena arriscar levar um soco
dele, seria sensato que os outros também tivessem mais cuidado. No
entanto, Guilherme não parecia ser o tipo de pessoa que valorizava sua
própria vida, pois se o fizesse, não estaria tão compenetrado na garota ao
meu lado.
Nathalia não se deixou abalar pela intimidação explícita que ele
estava fazendo e o cão dela parecia estar dando tudo de si para se manter
quieto. Espreitei os olhos, estranhando aquilo.
— Teríamos chegado no horário marcado, se tivéssemos sido
informados da existência da reunião.
A Miss Google desviou o olhar para os demais sócios, que tinham
suas atenções concentradas na mão do eremita que estava em seu ombro.
Nathalia parecia decidida no que estava fazendo e era surpreendente como
ela tinha um talento natural para liderar, ela não precisou impor o seu
controle sobre a reunião para que todos os olhos estivessem sobre ela e
todos soubessem que era ela quem iria conduzi-la.
— Como todos sabem, nós havíamos agendado previamente uma
reunião com todos os sócios para a próxima semana e…
— Essa não é a sua reunião — Guilherme a interrompeu, atraindo os
olhares para si e vi de canto de olho a pálpebra esquerda de Renato tremer e
uma veia grossa saltar em sua testa, denunciando que ele estava dando tudo
de si para permanecer em silêncio, mas de nada adiantou.
— Tente interrompê-la mais uma vez, e você não irá ver o fim da
reunião — ameaçou, baixo e grave, sua voz repercutindo por toda a sala
com uma mensagem que repercutiu em todos os outros sócios.
Nathalia soltou um suspiro, balançando a cabeça e o olhando em
repreensão.
Se o clima na sala não estivesse tão merda, eu poderia me atentar em
como o eremita havia sido domesticado por uma garota de pouco mais de
um metro e meio, ao ponto de deixá-la assumir o controle na frente de todos
os outros sócios. Aparências era uma coisa importante naquele meio e
Renato sequer se deu ao trabalho de esconder que a pirralha o dominava.
Nathalia pigarreou, atraindo os olhares novamente e sorriu para os
sócios de um jeito adorável, nada condizente com a sua verdadeira
personalidade.
— Bem, como eu pretendia concluir — ela murmurou, olhando
diretamente para a Roberta com algo parecido com raiva queimando em
suas íris —, podemos aproveitar a disposição de todos para resolvermos
todos os assuntos que haviam sido deixados para a próxima semana. Assim,
poupamos o tempo de todos.
Algumas cabeças se moveram, concordando com ela.
Guilherme fez um movimento para responder, mas um dos sócios que
tinha uma relação mais próxima com ele o interrompeu e indicou que
deixasse a fala com Nathalia. Naquela sala de reuniões, existia uma espécie
de hierarquia que precisava ser respeitada, e o lugar em que estava sentada
conferia a ela o poder de determinar como aquela reunião se desenrolaria.
— Vou dar a palavra ao Sr. Bastos para que ele possa se pronunciar
sobre o motivo que o levou a tirar todos vocês do conforto de suas
respectivas casas em um dos poucos dias em que poderiam se dedicar às
suas famílias em meio às suas rotinas agitadas… — Engoli uma risada, pois
aquela garota era uma verdadeira peste.
Eu não precisava olhar em volta para perceber que todos estavam
descontentes com a situação. Esse era um dos motivos pelos quais evitamos
convocar aquela reunião de forma emergencial. A possibilidade de
despertar a raiva dos sócios apenas para remover um deles e,
posteriormente, apresentar um novo conflito para ser deliberado, reduziria
significativamente nossas chances de obter um voto favorável para lidar
com o conflito de interesses no relacionamento entre Nathalia e Renato.
— Mas antes de tudo, gostaria de conversar com os senhores e
senhoras… — seu olhar se voltou para as outras quatro sócias sêniores,
ignorando Roberta no meio do caminho. — Porque é imprescindível que
saibam através de mim que, nas últimas semanas, Renato e eu acabamos
nos aproximando fora do escritório e, atualmente, estamos em um
relacionamento afetivo.
Um burburinho preencheu o silêncio da sala e virei o rosto para os
outros, revirando os olhos ao ver suas expressões de julgamento. Como se
qualquer um ali tivesse moral para julgar os dois por terem se apaixonado.
— Há quanto tempo isso está acontecendo? — Eliane, a noiva do
casamento falso, investigou.
Duas semanas. Um mês no máximo.
Essa era a resposta que poderia funcionar melhor, tiraria do holofote
que eles começaram a se envolver pouco tempo após a promoção dela, e
amorteceria as suspeitas de que ela havia sido beneficiada de alguma forma
por conta do relacionamento dos dois.
Era uma matemática simples, uma mentira que eu, Fred e Celine
estávamos mais do que preparados para corroborar. Eu tinha a história na
ponta da língua, eles se aproximaram fora do escritório e, em uma festa que
aconteceu há quatro semanas na casa de Frederico, para comemorar o seu
noivado com a Cinthia; eles acabaram se envolvendo amorosamente. Nós
tínhamos material probatório para usar também, fotos, vídeos, e eu podia
pagar cinquenta atores para fingirem que estavam na festa e que viram os
dois se aproximarem apenas ali.
Podíamos culpar o álcool, o clima romântico ou qualquer merda que
Nathalia estivesse disposta a usar. E apesar de não ser um profissional no
ramo, eu era um ótimo ator que estava apenas aguardando pelo papel da sua
vida.
No entanto, quando o olhar dos dois boiolas que eram meus amigos
se cruzaram, eu soube que eles não iriam seguir o roteiro que ensaiei com
os dois, semanas atrás, quando consideramos essa situação de maneira
hipotética.
— O relacionamento começou no início de março, alguns dias antes
do seu casamento — disse Nathalia, olhando diretamente para a loira do
outro lado da mesa. — Sei que podem estar considerando que, por conta do
nosso relacionamento, eu fui promovida para o cargo de diretora de
operações…, mas preciso esclarecer que isso nunca aconteceu. — Seu olhar
impassível atravessou a sala. — Nos últimos meses, eu não recebi qualquer
favorecimento por estar em um relacionamento com o Sr. Trevisan, e a
minha promoção foi pautada em minhas conquistas que, todos estão mais
do que familiarizados.
A arrogância ressoava em sua voz, e mesmo sabendo que era uma
camuflagem que ela usava quando se sentia acuada, era visível o impacto
que sua atitude causava nas pessoas ao seu redor. A pirralha podia não
gostar dessa parte de si mesma, mas quando assumia aquela máscara de
soberba e prepotência, parecia uma vilã dos filmes adolescentes que
Gabriela e Bianca tanto assistiam.
— E por que esperaram três meses para nos informar do
relacionamento? — Leonor questionou, atraindo a minha atenção. Abri a
boca para respondê-la, mas Nathalia colocou a sua mão sobre a minha,
refreando o meu impulso.
Bufei, cruzando os braços em frente ao peito.
— Porque ainda era um início de relacionamento e não tínhamos
ideia se iria adiante — mentiu descaradamente, e se eu não soubesse que
não havia a menor chance de Renato deixá-la ir embora de sua vida, teria
acreditado. — Mas é importante ressaltar que não houve qualquer interação
entre nós aqui dentro do escritório, que não tenha sido estritamente
profissional. Tanto eu, quanto o Sr. Trevisan sempre respeitamos a imagem
da empresa que representamos e, se for da vontade de todos, podemos
disponibilizar os nossos meios de comunicação para que sejam submetidos
a uma auditoria.
Quis rir da careta que ameaçava esculpir o rosto de Renato a cada vez
que Nathalia o chamava pelo seu sobrenome daquele jeito tão polido e
profissional.
— O motivo para termos convocado uma reunião na próxima
semana, era justamente para informá-los de que estamos em um
relacionamento e…
— Pedir que abandonemos a cláusula de conflito de interesses? —
Leonor a interrompeu, e a maneira como o olhar de Nathalia colidiu com o
dela poderia ter feito com que sua cabeça fosse decepada do pescoço.
— Esse é um dos motivos, mas, não o principal — esclareceu
Nathalia.
— Para considerarmos abrir mão do conflito, você não acha que seria
mais respeitoso da parte de vocês terem nos informado previamente? — A
mulher insistiu em ser uma grande pé no saco, fazendo com que até o
eremita considerasse se desfazer de qualquer que tenha sido o voto de
silêncio que a sua dona o fez juramentar. — Poderíamos ter usado esses três
meses em que ficaram escondidos, analisando se realmente não houve
qualquer troca de benefícios.
Bufei, perdendo a calma.
— E nós poderíamos ter sido informados com antecedência que você
está negociando a sua entrada na gestora do Bruno Palheiros — falei,
olhando para a mulher do outro lado da mesa, vendo seus olhos se
arregalarem. — Ou que você está em um relacionamento afetivo com o
mesmo e que, nos últimos três meses, tem passado parte do patrimônio dos
seus clientes para fundos da Green Asset, ao mesmo tempo que os instrui a
abrirem conta na corretora.
Olhei de relance para Vicente, o sócio ao seu lado que parecia muito
a favor dos argumentos que ela estava usando para questionar a Nathalia.
— Ou o Sr. Vicente poderia ter nos informado previamente que
recebeu uma notificação da regulamentadora por ter feito uma transação
acima do limite, e na ausência de uma justificativa para a movimentação,
todo o escritório teria entrado em uma investigação — prossegui, olhando
para todos os outros em sobreaviso. — Mais alguém quer entrar nessa
brincadeira de “poderia ter avisado antes”? Eu posso fazer isso a noite toda!
O silêncio predominou na sala e eu recebi um olhar furioso de
Nathalia.
Foda-se!
Quem aqueles filhos da puta pensavam que eram para olharem para
ela como se fosse uma criminosa por ter se apaixonado pelo meu melhor
amigo?
Minha paciência já não existia normalmente, piorava quando eu tinha
que lidar com a hipocrisia das pessoas.
Renato sabia de coisas muito piores de todos eles, era um babaca por
não as usar. No entanto, eu não me importava se eles gostassem ou não de
mim. Liderança nunca foi o meu ponto forte, pois não suportava a ideia de
ter que engolir esse tipo de besteira para evitar conflitos.
A porra da diplomacia que fosse enfiada no rabo de quem me pedisse
para agir com ela!
Renato cruzou os braços em frente ao corpo, diferente da sua mulher
que estava me repreendendo, ele me lançou um olhar de agradecimento.
Você poderia ter feito o mesmo se não fosse tão pau mandado!
Nathalia pigarreou, mas antes que ela pudesse continuar, um batida
na porta chamou nossa atenção. Virei o rosto e vi Marc entrando na sala
acompanhado de seus dois associados, que carregavam uma pilha de cópias
de arquivos. Sem qualquer explicação, eles começaram a distribuí-las para
cada um dos sócios sentados à mesa.
Encarei o envelope pardo em minha frente, olhando para Nathalia em
questionamento, mas ela também parecia um pouco perdida. Marc se
aproximou de Renato e o chamou para um ponto um pouco mais afastado,
conversando rapidamente com ele sobre o conteúdo daquela pilha de
documentos.
Quando os ombros de Renato ficaram tensos e seus punhos se
cerraram com força, fazendo as veias em seu braço se destacarem com
brutalidade, meus olhos se voltaram para o envelope em minha frente e,
sem esperar por uma ordem, comecei a retirar as páginas, sendo
acompanhado por outros curiosos.
A quantidade de extratos bancários com registros de transações
realizadas para contas em paraísos fiscais era absurda. Os números
ultrapassavam a casa dos bilhões, e tudo aquilo havia passado através do
nosso escritório, não da RCI, mas do escritório que tínhamos antes da fusão,
quando Guilherme era o diretor de operações e o responsável por aprovar
todas as transações.
Malta. Seychelles. Vanuatu. Belize. Luxemburgo e Panamá.
Mais de quinze contas em nomes de laranjas que recebiam o dinheiro
enviado do Brasil e o guardavam nesses países, usufruindo do benefício
fiscal que eles ofereciam.
Eu não me importava com o quanto cada sócio lucrava anualmente,
mas tinha o conhecimento sobre alguns números, e sabia que era impossível
que Guilherme tivesse acesso àquela quantia.
Todas as contas, apontavam para os dois maiores clientes do Bastos.
Sua lista de clientes nunca foi do nosso interesse, porque era enxuta, apenas
com três clientes grandes que, segundo o próprio, exigiam o suficiente para
que ele não precisasse lidar com outros.
Uma empresa era o CNPJ de uma… agência de modelos?
A segunda empresa possuía um nome de fachada para a indústria do
entretenimento.
Em todas as empresas, havia uma pessoa nomeada como o
proprietário:
André Braga.
Não muito longe, pude ouvir Marc mencionar o nome para Nathalia e
Renato, mas antes que nosso advogado pudesse dizer qualquer coisa, em
um piscar de olhos maldito, Renato atravessou a sala e alcançou o outro
lado com tanta intensidade que o sangue pulsava violentamente em suas
veias, fazendo seu rosto ficar vermelho e as veias saltarem.
Guilherme não teve tempo para reagir. Seus olhos, que estavam
fixados na pilha de documentos expostos, apenas tiveram tempo de registrar
o momento em que o punho de Renato colidiu com seu rosto, derrubando-o
da cadeira com o impacto.
Por meio segundo, a única coisa que eu conseguia escutar era o
lamento dolorido que escapou dos lábios de Guilherme, mas não durou
muito, porque Renato o apanhou pela gola da camisa e o ergueu, como se
pesasse pouco menos que merda, e então esmurrou seu rosto repetidamente.
Eu não fazia ideia do motivo para a reação de Renato ter se tornado
tão violenta, mas não pude deixar que um sorriso de satisfação se
desenhasse em meus lábios quando meu amigo arremessou Guilherme
contra a parede de vidro escuro que fechava aquela sala. O impacto foi tão
brutal, que gritos femininos preencheram a sala quando o corpo de
Guilherme atravessou a parede que foi estraçalhada.
— Leandro, faça alguma coisa! — Roberta ordenou, mas olhei para
ela, dividido entre rir e revirar os olhos.
— Para levar outro soco? Dispenso. — Virei minha cadeira na
direção, buscando pelo meu copo de uísque e bebendo um gole longo,
enquanto assistia cerca de seis sócios tentarem tirar Renato de cima de
Guilherme.
Uma movimentação diferente se fez presente e virei o rosto para a
porta semiaberta, vendo meia dúzia de policiais federais correrem na
direção da confusão e me levantei, intrigado com aquilo.
Renato esmurrou um policial no meio do caminho e Nathalia fez
menção de correr em sua direção para tentar acalmá-lo, mas temendo que
eu acabasse sofrendo a ira do eremita, segurei seu pulso com um pouco
mais de força.
— Ficou maluca? Acha que vai entrar ali no meio e ele vai
magicamente se acalmar? Perdeu o amor à própria vida?!
Nathalia me encarou com os olhos arregalados, mas seu rosto
empalidecido me fez perceber que, ao ouvir o nome de André Braga, eles
não estavam completamente alheios ao assunto.
Eles sabiam do que se tratava.
Antes que eu pudesse questioná-la, os policiais arrastaram Renato
para longe de Guilherme, imobilizando-o com um mata-leão. Um corte em
seu supercílio manchava o lado esquerdo de seu rosto, e uma mancha de
sangue marcava seu bíceps, lembrando-me que ele havia sido baleado.
— Leandro, tire ela daqui — ordenou Marc, antes de correr em
direção aos policiais que estavam prestes a dar voz de prisão a Renato.
Temendo que a namorada do meu amigo acabasse desmaiando, eu a
arrastei para fora da sala, enquanto ela protestava e fazia ameaças de que
me mataria se eu não a soltasse.
A porta da sala foi aberta e o delegado indicou que eu poderia sair,
enquanto um policial se aproximava e retirava as algemas do meu pulso.
O sangue em meu braço, havia sido estancado com uma gaze e as
juntas dos meus dedos foram destruídas, mas eu sequer me importava com
isso. A única coisa que eu tinha em mente era a constatação que Guilherme
e André não só eram da mesma laia, como eu apostaria o que fosse, na
certeza de que ele havia ajudado a orquestrar o atentado de mais cedo, que
tinha a Nathalia como alvo.
Nas horas em que fiquei na sala de depoimento da delegacia, meu
cérebro trabalhou incessantemente, unindo as informações que estavam no
dossiê que Nathalia conseguiu com Ethan Duncan a tudo o que havia
acontecido.
Toda a perseguição de Guilherme com Nathalia existia porque ela era
tão teimosa e perfeccionista que conseguiu descobrir de cara que havia algo
de errado com ele e, consequentemente, prejudicou sua posição na fusão e
impediu que ele pudesse continuar cometendo os crimes que cometia,
debaixo do meu nariz.
Os documentos que Marc deixou na sala, enquanto lidava com o
delegado que estava furioso porque eu nocauteei dois dos seus homens,
denunciavam que aquilo acontecia há anos. Não apenas na LWM — minha
antiga gestora com o Leandro —, mas em todos os lugares em que pisou
desde que entrou no mercado e passou a gerir a carteira de patrimônio das
empresas de André.
Braga deveria ser apenas mais um dos inúmeros sobrenomes falsos
que André usava. O arquivo que Rodolfo, substituto do meu pai,
disponibilizou tinha mais de trinta sobrenomes que já haviam sido usados
pelo criminoso. Sempre que um era descoberto pela PF, ele substituía por
outro.
Guilherme trabalhava lavando dinheiro para ele há mais de dez anos,
e eu não seria estúpido de considerar que o desgraçado não fazia ideia do
tipo de negócio criminoso que André administrava.
E eu só conseguia me perguntar sobre como toda aquela merda ficou
escondida da investigação que todos os sócios passavam antes de entrar na
firma?!
— Vamos para casa — disse Marc, olhando-me com uma expressão
um pouco mais suave do que mais cedo e me levantei, vendo o policial
levar o dossiê embora.
— Onde ele está? — questionei, aceitando o moletom esportivo que
ele deve ter encontrado no seu carro, e o vestindo para me livrar daquela
camisa ensanguentada, suja e com vários botões faltando.
— Está no hospital, mas o Rodolfo entrou no caso, então a denúncia
vai mudar para a divisão que ele administra — explicou, enquanto eu o
seguia pela delegacia que ficava a menos de um quarteirão do prédio da
RCI. — Eles vão indiciá-lo por associação à organização criminosa e
lavagem de dinheiro. Caso tenha qualquer outro tipo de envolvimento com
o esquema do André, Rodolfo vai anexar no processo.
Meneei a cabeça, atravessando a entrada da delegacia e vendo que
Sérgio estava do outro lado do estacionamento, aguardando-me do lado de
fora do carro.
— Alguma chance dele sair na rua de novo? — investiguei, parando
em frente a porta da delegacia e olhando para o meu amigo.
— Não. Rodolfo já providenciou a ordem preventiva — assegurou e
meus ombros relaxaram um pouco, nem perto do suficiente para que a
minha raiva amenizasse. — Houve também uma votação unânime no
escritório e os sócios aceitaram assinar um comunicado para denunciá-lo
pelos crimes financeiros.
— Todos assinaram?
— Sim, Leandro foi convincente quando alegou que quem não
assinasse, seria denunciado como cúmplice.
O advogado levou seu olhar para algo mais para frente e vi a porta do
passageiro ser aberta, Sérgio tentou impedi-la de sair de dentro do carro,
mas a minha pequena diaba o olhou com tanta determinação que o
segurança com o dobro da sua altura e largura, apenas deu um passo para o
lado e deixou que o motivo do meu tormento particular marchasse em
minha direção.
Um sorriso se abriu em meus lábios e me dirigi ao Marc, sem tirar os
olhos dela.
— O que vão decidir em relação ao nosso relacionamento?
Marc levou o olhar para a Nathalia e apenas deu de ombros.
— Eles aceitaram analisar o pedido de renúncia. Nos próximos
meses, vocês vão estar sob o olhar atento de todo o Conselho… então, tente
não ficar rosnando para todo mundo que olhar torto para ela, e até o fim do
ano, teremos derrubado o conflito de interesses — aconselhou, batendo
levemente a mão em meu ombro, me fazendo revirar os olhos.
Meu advogado até ameaçou dizer mais alguma coisa, mas o meu
cérebro só conseguiu se concentrar em Nathalia correndo em minha direção
quando a distância ficou menor. Meus braços se abriram e, em um piscar de
olhos, ela estava com o seu corpo pequeno pressionado contra o meu peito e
suas pernas se enlaçaram ao meu redor.
A tensão que esmagava meus músculos, fazendo com que eu
enxergasse vermelho e sentisse o sangue quente em minhas veias, recebeu
sua dose diária de calmaria e conforto, quando seu perfume doce me
invadiu.
Apertei meus braços ao seu redor, sentindo suas lágrimas silenciosas
molharem meu pescoço e afundei meus dedos em seu cabelo macio,
tentando tranquilizá-la.
As últimas vinte e quatro horas pareciam ter sido uma eternidade, e
conforme eu seguia para perto do carro, mantive Nathalia contra mim,
deixando que ela descarregasse todo o turbilhão de emoções que havia a
atingido.
Meu pequeno anjo era tão forte. Com tudo o que aconteceu desde que
pisamos no Brasil, ela mostrou que não apenas persistia, ela também lutava.
— Shh, está tudo bem, anjo — falei, ouvindo seu soluço baixinho e
ela ameaçou sair de perto de mim, mas a apertei mais, deixando que
descarregasse tudo o que estava sentindo.
Nathalia era uma força da natureza. Inconstante e deslumbrante. Ela
conseguia me tirar dos trilhos com tão pouco e eu me tornava refém de seus
olhares doces e sorrisos travessos, porque ela sempre sabia exatamente o
que dizer para me desestabilizar e me tornar seu prisioneiro.
A garota que conheci meses atrás jamais teria colocado qualquer
coisa à frente de sua carreira e reputação. Ela quase me deixou por medo
dos julgamentos que enfrentaria ao revelar nosso relacionamento. E agora,
ela se mantinha firme e me obrigava a ficar calado, escolhendo-me acima
de tudo o que considerava importante.
O único motivo para eu não ter acabado com Guilherme no momento
em que ele colocou os olhos nela foi porque eu estava hipnotizado demais
admirando a confiança e determinação que ela exalava ao sentar em meu
lugar e revelar a todos os sócios que ela era minha mulher.
O trajeto para casa foi embalado pelos seus soluços baixinhos, a
adrenalina havia ido embora e ela estava se dando conta de tudo o que tinha
acontecido em um período de tempo tão curto, e eu não a julgava por estar
emocionalmente exausta.
Eu estaria preocupado se não estivesse.
No estacionamento do meu prédio, despedi-me da minha equipe e
agradeci pelo serviço prestado naquele dia, todos pareciam exaustos e não
era para menos. Sérgio assegurou que me daria mais informações sobre
Mauro, um dos meus seguranças que estava na UTI por conta da bala que
perfurou seu peito.
Ele estava na linha de frente entre Nathalia e o atirador, e havia sido
atingido para protegê-la. Eu devia àquele homem a minha vida, porque não
sabia o que seria capaz de fazer se ela tivesse sido atingida. A verdade era
que eu estaria destruído de todas as formas possíveis. Não existia a menor
possibilidade de que eu pudesse viver em um mundo, em que tive Nathalia
e a perdi.
Após recebermos a liberação da vistoria que Victor havia feito no
meu apartamento, amparei Nathalia e a guiei para o elevador, vendo seu
rosto ficar tão pálido quanto mais cedo. Seus olhos grandes e castanhos, que
abrigavam o brilho de um bilhão de estrelas, estavam desfocados e
apagados.
Busquei pelo meu celular, enviando uma mensagem para que
Jonathan viesse ao meu apartamento para examiná-la e não demorou para
que chegássemos na cobertura que estava ocupada por Leandro Salazar e
Pedro Zimmermann.
— Agora não — falei, antes que Leandro fizesse a pergunta que
estava explícita em seus olhos.
Um vinco surgiu na testa de Pedro e ele foi o primeiro a se levantar,
sumindo pelo corredor paralelo e voltou poucos minutos depois, quando
coloquei a Nathalia sentada no sofá, a vendo piscar para tentar espantar a
letargia que a atingia.
Seus olhos lindos buscaram os meus e, naquele instante, senti como
se ela estivesse mergulhando profundamente dentro de mim, segurando
minha alma entre suas mãos delicadas. Entreguei a garrafa de água para que
bebesse um pouco, incentivando-a com pequenos comandos para que não se
perdesse. Aos poucos, o brilho familiar retornou aos seus olhos,
misturando-se às lágrimas que ainda não haviam caído.
Virei-me para os outros dois, confuso.
— O que estão fazendo aqui? — perguntei, genuinamente sem
entender o motivo da presença deles.
Meus filhos haviam sido trazidos no início da noite para casa e
estavam dormindo. Caique tinha ficado encarregado de fazer companhia
para a Mara, mas aparentemente, enquanto eu estava na delegacia, meus
amigos decidiram se juntar na espera.
— Eu vim porque soube do tiro — disse Pedro, sentando-se no sofá
em frente ao que Nathalia estava —, Bianca e eu havíamos acabado de
pousar no aeroporto, ela ia vir também…, mas depois que recebeu uma
ligação, disse que precisava ir encontrar uma amiga.
Meneei a cabeça, sabendo que aquela era a desculpa que a Castro
usava quando precisava correr para o hospital, por conta do estado de saúde
de sua mãe. A careta que tomou o rosto de Leandro não me passou
despercebida, mas eu realmente não tinha cabeça naquele momento para
lidar com o drama da sua relação disfuncional com a melhor amiga da
Nathalia.
— Agradeço a preocupação, mas, eu realmente preferia que vocês
não estivessem aqui — falei, sem me importar com a indelicadeza.
A última coisa que eu precisava era chegar em casa e ter que lidar
com um interrogatório ao qual eu não poderia responder, porque seria o
mesmo que arrastar todos eles para àquela confusão. Além disso, minha
cabeça estava uma bagunça e eu estava cansado. Não apenas de todo aquele
caos, mas de ver Nathalia sendo arrastada de volta para ele toda vez que
conseguia deixar uma parte da bagunça de lado.
— Eu já estou de saída, vou deixar as minhas perguntas para outro
dia, porque se eu que nem fui baleado estou cansado, não imagino como
você está — murmurou Leandro, abandonando o sofá e se levantando,
lançando um olhar preocupado para Nathalia. — Só queria checar se ela
tinha chegado bem.
Balancei a cabeça, agradecido.
Leandro era uma praga em minha vida, mas tinha os seus momentos
de sensatez e sabia ler nas entrelinhas quando era um bom momento de me
pressionar, e quando era melhor me deixar quieto.
Pedro, no entanto, era mais teimoso e determinado. Mesmo depois
que me despedi de Salazar no elevador, ele permaneceu sentado e com os
braços cruzados em frente ao peito, olhando-me de maneira incisiva e
deixando claro que não sairia sem uma explicação aceitável.
Nathalia terminou de beber a água e olhou entre nós dois, ela havia
saído do transe que estava ameaçando entrar e a culpa voltou a queimar em
suas íris. Era visível que ela se sentia responsável por me colocar na
posição de ter que esconder algo dos meus amigos, mas o problema aqui era
que, eu nunca fui o tipo de pessoa que compartilhava cada detalhe da minha
vida com as pessoas.
Eu respeitava a privacidade deles, porque esperava que fizesse o
mesmo por mim. Então, não era como se ela estivesse me submetendo a
qualquer coisa.
— E então? — Pedro relaxou os ombros e a encarou, como se ela
fosse a responsável por toda aquela bagunça. — Como vamos fazer,
Nathalia?
— Pedro, acho melhor você ir embora — falei, sério, e ele trouxe
seus olhos para mim com inquietação. — Conversaremos em um outro
momento, mas não será agora.
Ele meneou a cabeça, esboçando um meio sorriso.
— Não é irônico que você tenha dito um tempo atrás que, se eu
precisasse de ajuda em qualquer coisa, deveria me lembrar de que tenho
amigos e que não deveria guardar tudo apenas para mim, mas sim falar com
vocês… — relembrou uma conversa que tivemos meses atrás, quando todos
os seus problemas com Hugo, Henrique e a noiva indesejada começaram.
— E agora você está fazendo exatamente o que me disse para não fazer?
Nathalia soltou um suspiro, esfregando as mãos nervosamente e isso
atraiu a atenção do engenheiro.
— Não somos amigos, Nathalia? — ele perguntou, fazendo-a virar o
rosto para ele, com uma pequena ruga na testa. — Ou somos amigos apenas
quando você precisa saber de algo?
— Pedro.
Meu tom deixava claro que ele estava atravessando um limite rígido.
A garota balançou a cabeça, engolindo em seco e endireitou a
postura, concordando com ele.
— Você está certo, Pedro — ela respondeu com voz suave —, amigos
compartilham coisas com os outros, mas também protegem uns aos outros.
Se não queremos falar sobre o que está acontecendo, é por um motivo.
— Isso poderia ser válido antes, mas agora ele… — apontou para
mim, irredutível —, foi baleado em um estacionamento fechado e passou as
últimas horas em uma delegacia por quase ter matado um dos sócios da
empresa. E antes disso, teve o seu incidente na faculdade, e eu não sou
ingênuo o suficiente para acreditar na história de assalto que contaram —
prosseguiu, sem desviar os olhos dela. — Bianca também me contou sobre
a invasão no seu apartamento. Então, a não ser que vocês queiram que eu
acredite que tudo isso seja só uma grande coincidência, é melhor
começarem a me explicar que merda está acontecendo e o que eu posso
fazer pra ajudar.
Uma veia pulsou fortemente em sua garganta. Meu amigo não era
uma pessoa que se metia nos assuntos dos outros. Na verdade, Pedro era tão
alheio aos problemas das pessoas ao seu redor que, mesmo que ele soubesse
da cura para o câncer, ele a guardaria para si, apenas para não se intrometer
no que não havia sido questionado. Então, sua determinação em saber o que
estava acontecendo, era um desvio incomum no seu comportamento.
— Tudo bem — disse Nathalia, soltando um suspiro derrotado e
desviei meu olhar para ela, vendo seu semblante se contorcer de remorso.
— Você não precisa explicar nada para ele, anjo — falei,
aproximando-me dela e a garota balançou a cabeça, desistindo de continuar
mentindo.
— Ele está certo, Renato… — suspirou, buscando pela minha mão e
me lançando um olhar suplicante para que eu me acalmasse.
Nathalia virou o rosto para meu amigo como se estivesse com uma
faca pressionada contra sua garganta. Ela odiava mentir para as pessoas de
quem gostava, e era uma tortura quando era questionada sobre a verdade.
Seu rosto era um retrato explícito da culpa que a assombrava, bem como o
peso de ter nos envolvido nessa situação.
— Estou tendo problemas com uma operação do García — falei
simplesmente, antes que ela soltasse toda a história em cima de Pedro.
Eu sabia o que aconteceria em seguida.
Nathalia contaria tudo e meu amigo se envolveria ainda mais na
situação, e ela se sentiria responsável por tê-lo arrastado para isso. Era um
ciclo que eu não permitiria que ela se perdesse, pois estava no limite de vêla se castigar por fazer algo que qualquer pessoa decente faria.
Qualquer um com um mínimo de ética e humanidade teria parado o
carro e ajudado uma garota que claramente havia sido abusada. Ela não
deveria se punir como se fosse um monstro por não ter previsto todas as
consequências que viriam depois disso.
Zimmermann se virou para mim com o cenho franzido.
— Você ainda tem contato com Theo García? — Seus ombros
enrijeceram ao mencionar o nome do nosso antigo colega da faculdade.
— Sim, ele é meu cliente.
Pedro olhou para a Nathalia e a culpa que estava direcionando para
ela, imediatamente foi transferida para mim, aliviando-a do peso que estava
a sufocando.
— Que merda você tinha na cabeça em manter relação com ele,
depois do que aconteceu com a Alba? — Pedro se levantou, incrédulo. —
Ele está te chantageando, é isso?
Dei risada, balançando a cabeça.
— Não, Pedro. Theo é um amigo.
— Amigo? — A incredulidade em sua voz era tão palpável que
parecia que eu havia acabado de dizer que tinha cometido um crime. —
Você tem ideia de que ele é completamente insano?
Dei de ombros, estendo a mão para ajudar Nathalia a se levantar,
indicando que ela me deixasse lidar com Pedro sozinho e a acompanhei
subir as escadas rapidamente, após murmurar uma despedida para o meu
amigo.
— Como você acha que Miguel Gama vai reagir quando descobrir
que você colocou a filha dele no meio da linha de fogo entre você e o Theo?
— perguntou, com os olhos ligeiramente arregalados.
— Ele está ciente de tudo isso. E para uma pessoa que trabalha com
Ethan Duncan, não é como se ele pudesse me dizer o que é certo ou errado,
Pedro — falei, mantendo o tom de voz ameno. — Você tem mais alguma
pergunta, ou eu posso subir e colocar um ponto final nesse dia infernal?
Pedro estreitou os olhos nos meus, buscando por qualquer sinal de
omissão, mas acabou desistindo e balançando a cabeça com um sentimento
que muito se parecia com decepção.
— Boa noite, Renato — disse, simplesmente, apanhando seu casaco e
passando por mim para ir ao elevador.
Quando o barulho das portas se fechando ecoou, Nathalia surgiu na
escada e me olhou com uma pitada de culpa mesclada a curiosidade.
— Sinto muito por isso — sussurrou e dispensei suas palavras,
aproximando-me do sistema de segurança para proibir a entrada de
qualquer outra pessoa pelas próximas horas.
Eu já tinha atingido o meu limite e acabaria descontando em um deles.
As últimas duas semanas foram estranhamente pacíficas.
Após o desastre que foi a reunião emergencial no início do mês, os
dias seguintes foram marcados por olhares desconfiados de funcionários
que descobriram sobre meu relacionamento com Renato, uma vigilância
constante em cada interação que tínhamos dentro do escritório e reuniões
semanais com o departamento de conformidade, apenas para garantir que eu
não estava sendo favorecida em nenhuma operação.
Os últimos dias de férias dos meninos chegaram, o que nos levou a
visitar a fazenda dos meus avós mais duas vezes. Matheus queria
acompanhar o crescimento de Teddy — seu pônei — pessoalmente, e Igor
estava determinado a transformar a casa na árvore em um projeto
arquitetônico que deixaria seu padrinho orgulhoso.
No último fim de semana, Renato se juntou a ele e ao meu pai
enquanto construíam um deck próximo ao lago, para servir como apoio para
a casa.
E eu, bem, vinha me dividindo em lidar com tudo o que havia
acontecido no último mês, atender todas as demandas com o dobro do
esforço para que não questionassem nada e estar presente na vida de
Bianca, já que o estado de Adelaide havia se agravado.
No fim do dia, eu me distraía com os meninos me contando tudo o
que aconteceu com eles, enquanto Renato preparava o jantar. Por mais que
eu insistisse em ajudá-lo, ele alegava que eu já fazia muito e que precisava
descansar. Normalmente, os meninos se juntavam a ele no discurso e até
mesmo Zimmermann, na última vez que jantamos juntos, decidiu aderir ao
argumento.
Eu não era ingênua de não saber que era uma péssima cozinheira.
Diferente dos quatro que se dedicavam a proteger os meus
sentimentos em relação àquilo, Bianca, Leandro e Antônio não me
poupavam de suas piadas sobre como a única receita que eu não conseguia
estragar, era a de Waffles porque a massa consistia em basicamente quatro
ingredientes.
No geral, tudo estava tão calmo ao meu redor que chegava a ser
assustador.
Talvez eu estivesse tão familiarizada com uma coisa acontecendo
atrás da outra, que a calmaria me soava estranha.
No entanto, aquela calmaria estava fazendo bem para Renato, pois ele
finalmente conseguia voltar a dormir uma noite inteira. Desde a noite em
que foi baleado, ele acordava constantemente para verificar se eu estava na
cama ou se o sistema de segurança estava ativado.
Em compensação, os treinos que eu precisava frequentar com ele
após perder nossa aposta aumentaram de duas vezes por semana para cinco.
Eu não podia reclamar, pois o esporte estava me ajudando a aliviar o peso
constante nos ombros. Nem mesmo Cristiano e Pedro estavam conseguindo
lidar com minha explosão de energia na quadra de tênis, mas Renato não se
importava em passar horas comigo no octógono, até que todo o turbilhão de
emoções se dissipasse e eu estivesse pronta para começar um novo dia.
Por conta da saúde da Adelaide, eu estava distante de tudo o que
envolvia a situação de Guilherme com a polícia federal, mas Renato sempre
me avisava quando havia uma informação nova. Na noite passada, antes de
me deixar entrar no avião com Victor, ele fez questão de me informar que
Bastos havia sido enviado para a penitenciária de Guarulhos, onde ficaria
detido até a audiência.
Eu ainda não conseguia processar como o mundo podia ser tão
pequeno, a ponto de André e Guilherme não apenas se conhecerem, mas
também terem negócios juntos. Eu sabia que Bastos não era uma pessoa
confiável, minha intuição nunca falhava, mas nem em meus piores
pesadelos eu imaginaria que ele estivesse envolvido com André.
Braga, ou qualquer que seja seu sobrenome, também havia sumido do
mapa. Nem mesmo Ethan ou o investigador de Renato encontraram
qualquer sinal dele, e assim como alguns anos atrás, ele me fez começar a
reunir esperanças de que me deixaria em paz. O problema era que, dessa
vez, eu sabia que não podia contar com o seu desaparecimento por muito
tempo.
A prisão de Guilherme proporcionou à Polícia Federal acesso a mais
de cinco contas comerciais ilícitas de André, revelando também a
quantidade de dinheiro que ele enviava para o exterior usando contas de
laranjas em paraísos fiscais. O governo emitiu uma ordem para congelar
todos os bens deles, assim como os de familiares de Bastos, até que a
origem de todo o dinheiro fosse validada, a fim de determinar o que era
lícito e o que não era.
No entanto, naquela semana, eu havia me dado alguns dias de folga
para voltar para Nova Iorque.
Minha formatura da especialização estava marcada para o dia
seguinte, e para poder lidar com tudo, decidi viajar um dia antes para ter
uma ideia do que minha mãe havia preparado. Tatiana aproveitou a
oportunidade para reservar o complexo do Niké em Manhattan e organizar
uma festa de formatura para mim. Nos últimos dias, Ellen, Amália e minha
mãe estavam me deixando louca com a lista de convidados e todos os
detalhes que eu precisava definir.
Quando finalmente consegui fugir do salão onde o jantar aconteceria,
senti os meus pulmões relaxarem pelo alívio de não escutar ninguém me
perguntando se eu preferia guardanapos off-white ou marfim.
Soltei um suspiro, caminhando pelo corredor principal, que ligava
todas as dependências internas do casarão no centro da propriedade. A cada
passo que dava, meus olhos reconheciam uma nova obra de arte, entre
esculturas e quadros antigos que pertenciam ao inventário particular dos
Ashford, sentia o reconhecimento me atingir e uma sensação de
familiaridade se instalar.
Eu costumava passar tanto tempo no clube quando morava em
Manhattan, que sentia que aquele lugar era a minha segunda casa.
Busquei pelo celular, esboçando um sorriso ao ver a foto que
Eduardo, pai do meu namorado, enviou no grupo em que estávamos.
Renato e ele trariam os meninos e a Bianca naquela noite, e deveriam
chegar na cidade no início da manhã, a tempo de irmos para a colação de
grau em Princeton.
Guardei meu celular de volta no bolso do meu moletom, escondendo
minhas mãos nos bolsos enquanto seguia pelo corredor largo e buscava pela
entrada para o restaurante externo. Aquele complexo tinha uma das vistas
mais incríveis da cidade, e entre as árvores altas que rodeavam a
propriedade e impediam a bisbilhotice de qualquer um que ousasse tentar
escalar os muros enormes, eu podia ver o Empire State Building.
Como era verão na cidade, estava particularmente mais quente do que
quando eu cheguei no dia anterior, mas estava tão adaptada às temperaturas
elevadas em São Paulo, que não conseguia evitar um tremor de frio
percorrer minha espinha quando vi duas garotas passarem por mim com
roupas de treino, sem qualquer agasalho.
Sentei-me em uma das cadeiras, sentindo a atenção constante de
Victor sobre mim. Renato havia o designado para acompanhar a minha
viagem já que, apesar de ter recontratado Caique para me agradar, ele não
deixava o rapaz ficar responsável por mim e o designou a ficar com Marcus
o tempo inteiro, auxiliando no cuidado com os meninos.
Pedi por um chocolate quente, aproveitando para buscar pelo meu
Kindle na bolsa e atualizar a minha leitura do segundo livro da duologia que
Amália estava escrevendo. Quando a garçonete colocou a xícara sobre a
mesa e se afastou, meus olhos recaíram no arquivo no aparelho, mas não
tive tempo de embarcar na leitura.
Um homem empurrou a cadeira na minha frente, sentando-se sem
perguntar se podia ou pedir por licença. Lentamente, meus olhos subiram
por seus braços expostos pela camiseta branca de algodão, expondo
algumas tatuagens com palavras escritas no alfabeto cirílico. Algumas
cicatrizes marcavam sua pele, mas haviam sido cobertas por tatuagens
brutais. Seus bíceps eram musculosos ao ponto de apertarem a camiseta, e
ele era muito bonito.
Não de um jeito comum, mas de uma forma que deixava claro que ele
era um risco para a minha segurança.
Virei meu rosto na direção em que Victor estava sentado me
observando à distância, mas ele não estava em lugar nenhum e isso me
deixou em alerta. Volvi meu olhar para o homem sentado na minha frente,
ignorando o arrepio que estremeceu meu corpo quando ele abriu um
sorrisinho doentio.
— É um prazer conhecê-la pessoalmente, Nathalia. — O
desconhecido acenou para a atendente para que ela trouxesse mais uma
xícara de chocolate quente para que ele me acompanhasse, mesmo que eu
não o tivesse convidado.
Alcei a sobrancelha, endireitando minha postura e soltando um
pequeno suspiro.
— Você é…? — perguntei, ignorando o medo que ele me despertava e
tentei assumir uma postura mais confiante.
Ashford era insuportável quanto a quem podia entrar no seu clube,
então eu sabia que aquele homem não seria tão estúpido em me apresentar
qualquer risco ali dentro do Niké, principalmente na frente de tantas
testemunhas.
O homem esboçou um sorriso que deveria ser gentil e simpático, mas
não havia nada de sincero nele.
— Roman Morozov — falou, como se eu soubesse o que aquilo
significava —, mas fique à vontade para me chamar de Rowan, todos os
meus amigos o fazem.
— Não somos amigos.
Roman ou Rowan, não se importou com a minha afirmação, ao
contrário, parecia esperá-la e até se divertir com ela.
— Não somos ainda, mas vamos nos tornar, moya malenkaya
boryets[52]— disse, colocando um envelope sobre a mesa e empurrando em
minha direção. Ergui a sobrancelha, confusa. — Gostaria de contratar os
seus serviços.
Apertei meus dedos em volta da xícara quente, mantendo meus olhos
mais do que atentos aos seus movimentos.
— Não aceito clientes que não conheço.
Ele sorriu, divertindo-se.
— Ora, mas eu não acabei de me apresentar? — retrucou, relaxando
os ombros na cadeira como se estivesse assistindo a uma apresentação da
Broadway.
Meus olhos recaíram no embrulho pardo e o empurrei de volta para o
homem, mantendo minha voz firme ao dizer:
— Não sei qual é o seu interesse nos meus serviços, mas eles não
estão disponíveis para você, Sr. Morozov — respondi, sem titubear. —
Agora, se me dá licença…
— Eu realmente acho que você deveria se sentar e me escutar.
Apesar do tom ameno e gentil que usou, havia um resquício de
intimidação presente em cada palavra.
— Isso é uma ameaça?
— Como eu disse, somos amigos. — Roman deu de ombros, sorrindo
com charme. — Não ameaço os meus amigos… tudo bem, às vezes isso
pode acontecer, mas apenas quando eles agem com irracionalidade. — Seus
olhos se estreitaram no meu rosto, analisando-me. — Mas, você não é
irracional, certo?
Respirei fundo, olhando em volta mais uma vez e percebendo que
todos pareciam alheios ao homem. Morozov deveria ser uma presença
recorrente no clube, já que alguns funcionários sorriam e acenavam para ele
enquanto passavam em nossa mesa.
Devolvi meu corpo para a cadeira, sem tirar os olhos dele nem
mesmo por um segundo, atenta aos seus movimentos mais sutis.
Renato era um professor extremamente exigente e após meses
treinando com ele, eu poderia dizer que conseguia acertar um bom soco no
Morozov, caso tentasse algo contra mim. Ao menos, o desestabilizaria por
tempo suficiente para que eu corresse para dentro da mansão e encontrasse
o segurança que deveria estar aqui.
Que grande ironia! Victor nunca saía de perto de mim, mas
justamente no momento em que eu precisava dele, o projeto de soldado
russo desaparecia.
Meus olhos recaíram no envelope e sob o incentivo silencioso de
Morozov, rompi o lacre e retirei o dossiê de dentro dele. Calmamente, li
cada linha e número presente na pilha de documentos, entre contratos de
compra e venda, licitações governamentais, trocas de e-mails entre o CEO
da empresa com o administrador de portfólio… todas aquelas informações
deveriam ser confidenciais e Roman não parecia ser o tipo de pessoa que
acessava aquilo pelos meios legais.
— O que você quer com a DMT
[53]? — perguntei, reconhecendo um
dos nomes presentes entre todos aqueles dos papéis.
Konstantin.
A primeira vez que escutei aquele nome, eu tinha por volta de quinze
anos e foi logo após a primeira viagem a negócios do meu pai para Moscou.
Enquanto Miguel estava na cidade, minha mãe e eu sofremos uma tentativa
de sequestro, e meu pai retornou para Nova Iorque muito mais paranoico do
que costumava ser, ao ponto de se tornar um ditador.
Havia sido por conta disso que nossas discussões começaram, porque
meu pai se tornou tão superprotetor ao ponto de me sufocar na redoma que
construiu ao redor da minha torre de marfim.
— Bem, nós somos muito parecidos, Nathalia — disse ele,
obrigando-me a erguer o rosto para encará-lo. — Os dois nasceram com as
chaves para um império que foi construído pelos nossos familiares, e uma
dúzia de pessoas que decidiram que nós não tínhamos direito de sentar no
trono que nos pertence. — Deu de ombros, sem tirar os olhos dos meus.
— A empresa é da sua família? — O ceticismo no meu tom de voz
era tão palpável que nem com muito esforço, consegui escondê-lo. — Os
fundadores da Delaire são franceses.
Ele riu.
— E o quê? Por que tenho um sobrenome russo, não posso ter ligação
com a empresa? — Arqueou a sobrancelha, cínico.
— Não, você não tem. Todos sabem que os únicos herdeiros da DMT
eram Leon Delaire e seus filhos — falei, lembrando-me de algumas
manchetes que li a respeito quando tudo aconteceu. — Madeline e Oliver só
tiveram um filho.
Morozov dispensou a minha informação com um aceno de mão.
— E por acaso um laço sanguíneo direto é a única coisa que define se
um grupo de pessoas é uma família? — questionou, estreitando os olhos nos
meus, mas aquele sorrisinho desdenhoso não saía dos seus lábios. — Veja
por você mesma, dorogaya[54]
… — incitou, com um brilho sádico
queimando em suas íris. — Está me dizendo que porque Igor e Matheus não
saíram de você, eles não são sua família? Ou que você não os considera
como seus filhos?
Meus ombros enrijeceram e meu sangue ferveu com tamanha
violência que bastou o nome dos garotos ser trazido para a conversa, para
que eu começasse a ver tudo vermelho.
— Não se preocupe, eu sou apenas um observador — disse ele,
sorrindo novamente. — Quando você é jogado para fora do que te pertence,
acaba aprendendo a ter olhos em todos os lugares e se mantém atento ao
que acontece com todas as peças do tabuleiro.
— Eu não sou uma peça no seu tabuleiro. — As palavras escaparam
entredentes e meus dedos apertaram o amontado de papéis com mais força.
Despreocupadamente, Roman levou a xícara de chocolate quente para
os lábios, sem tirar os olhos azuis de mim, e esboçando aquele sorriso
irritante.
Sem pressa, ele abandonou a xícara no pires e relaxou as costas,
balançando a cabeça levemente.
— Sim, você é — assegurou, escondendo suas mãos nos bolsos da
sua calça. — Na verdade, você é a peça mais importante do tabuleiro, moya
dorogaya. Nenhuma outra tem a mesma importância que você, porque todo
o meu jogo gira em torno da sua participação.
Uma ruga surgiu em minha testa e o olhei ainda mais confusa.
— O que exatamente você quer, Roman?
Ele balançou os ombros, despreocupado.
— Como eu disse… somos amigos, e meus amigos me chamam de
Rowan. — Sorriu brevemente. — E apenas preciso que me ajude a
recuperar o controle da empresa da minha família.
— Se você realmente é parte da família, por que não foi indicado no
inventário? — questionei, sem entender onde ele estava querendo me levar.
— Isso é simples, um advogado conseguiria lidar…
— Madeline era minha tia-avó — interrompeu, olhando-me com
tranquilidade —, e um advogado de merda não conseguiria me ajudar nisso,
porque a velha trocou de nome quando fugimos de Volgogrado — disse,
mantendo os olhos azuis compenetrados nos meus —, um velho amigo do
seu pai, Ethan Duncan a ajudou a conseguir uma nova identidade, mas o
verdadeiro nome dela era Madi Morozova.
O vinco em minha testa ficou ainda maior.
— Quando Leon e Charlotte morreram, Konstantin aproveitou para
tomar a empresa da família e usou o seu pai para isso — explicou, vendo
que a minha confusão não passava.
— Meu pai não…
— Não ajudaria o Konstantin? — Ri e balancei a cabeça. — Digamos
que meu pai foi bastante persuasivo ao convencer Miguel a mexer alguns
pauzinhos para transferir todas as operações da DMT para Moscou,
permitindo que ele tivesse controle sobre o que acontecia com a empresa.
— Isso… — minha voz morreu, conforme as memórias daquela época
me atingiam com violência, deixando-me um pouco letárgica. — Por que…
Meu cérebro simplesmente parou de funcionar por alguns minutos e
eu considerei seriamente que estivesse tendo uma morte cerebral.
— Somos mais parecidos do que você imagina — disse, estreitando
os olhos ao me observar. — A diferença é que eu sou um bastardo lutando
para recuperar o trono que me foi roubado… e você está aí, sentada,
esperando que as pessoas te concedam acesso ao que sempre foi seu —
continuou, passando a mão pela barba por fazer e sorriu para alguém que
passava perto. — Mas o que você esqueceu é que uma rainha não precisa da
aprovação de seus súditos. O trono é dela, e maldito seja aquele que tentar
roubá-lo.
Uma risada sombria escapou dos meus lábios e balancei a cabeça.
— Esse discurso de reis e rainhas costuma funcionar? — Arqueei a
sobrancelha, erguendo as minhas barreiras ao perceber que ele estava
tentando entrar em minha cabeça para me manipular para que eu comprasse
sua briga com o seu pai.
Eu poderia fazer aquilo se ele fosse uma pessoa qualquer. Já tinha
feito isso dezenas de vezes para clientes e amigos. A diferença era que eu
sabia exatamente quem cada um deles era de verdade, e o homem sentado
na minha frente, pedindo para que eu fosse contra uma decisão do meu
próprio pai? Ele não inspirava confiança alguma.
— E por que você supõe que eu te ajudaria nisso? — inquiri,
empurrando os documentos de volta para ele, preparando-me para encerrar
aquela conversa maluca.
Roman deu de ombros.
— Porque, no fundo, você sabe que pode fazer muito mais do que
resolver o problema das pessoas — respondeu, guardando o dossiê no
envelope e o empurrando novamente para mim, deixando claro que eu
deveria levá-lo comigo. — E eu não estou te pedindo nada que não tenha
feito antes, a única diferença é que dessa vez, a pessoa do outro lado é o seu
pai…, mas para quem está tentando mostrar ao mundo que é mais do que a
filha de Miguel Gama, tenho certeza de que não será um problema, certo?
Sorri, cruzando os braços em frente ao corpo e erguendo o rosto para
encará-lo quando se levantou.
— Se você soubesse um pouco mais sobre mim, saberia que eu não
reajo bem a chantagens e manipulações.
Morozov deu de ombros, colocando o envelope na minha frente e
apoiou a mão sobre os documentos, inclinando o corpo em minha direção e
mantendo seus olhos fixos nos meus.
— Como eu disse, moya dorogaya, nós somos amigos. E estou
apenas te pedindo um favor como minha nova amiga, será benéfico para os
dois, acredite em mim — assegurou, olhando para algo sobre minha cabeça
e retornou para mim. — Vou te dar um tempo para pensar na resposta.
— Eu já te dei a minha resposta.
Ele sorriu, mas não havia humor, era um sorriso intimidante.
— Sabe, da última vez que alguém decidiu recusar minha proposta de
amizade, ele sofreu por semanas e perdeu alguns bilhões — disse, fixando
seu olhar em mim como se eu fosse um alvo que ele estava marcando. — A
coisa mais importante para ele era o dinheiro. E bastaram meus amigos
sauditas darem um leve toque no mercado para ele descobrir que, apesar de
vocês serem peças importantes no meu tabuleiro, eu sou o rei.
Engoli em seco.
— Mas eu sei que o dinheiro não importa para você, não é mesmo?
— Seu olhar vasculhou meu rosto em busca de um sinal de medo. — Pense
bem na resposta, porque se você não está do meu lado, está contra mim… e
não há nada mais implacável do que a ambição de um bastardo pelo trono.
Seus dedos subiram para o meu rosto, retirando uma mecha do meu
cabelo e a jogando para trás.
— Amanhã conversamos novamente… até lá, diga a Renato para
enviar minhas lembranças ao filho da mãe do García. — Ele sorriu
divertido, devolvendo o charme ao seu rosto bonito e deixando de lado o
olhar intimidante. — Aproveite a sua festa de formatura, malenkaya
boryets.
Eu mal conseguia sentir os meus pés se movendo pelo piso lustroso,
quando quase atropelei a secretária do meu pai e invadi a sua sala no
escritório da Alpha em Nova Iorque.
— Nathalia… — a menina tentou falar, mas fechei a porta de vidro,
silenciando-a e meu pai franziu o cenho, desfazendo-se dos documentos que
estava analisando.
— O que foi isso, fadinha?
— Qual é a sua ligação com Konstantin Morozov, e por que o filho
dele me emboscou no clube para que eu o ajude a reaver o controle da
empresa?
A pergunta fluiu sem que eu precisasse pensar direito, a ideia de que
meu pai estivesse ajudando alguém como o Konstantin me soava absurda
demais, até para Miguel.
— O que você disse?
— Roman Morozov me encontrou no Niké e me contou uma história
sobre como você ajudou o pai dele a tomar a empresa dos Delaire —
esclareci, observando seu olhar permanecer impassível, atento ao que eu
dizia —, mas isso não faz sentido, certo? Nós conhecíamos Madeline e
Oliver, eles frequentavam nossa casa, e você era próximo de Leon… e eu sei
que não havia nenhuma gota de sangue russo neles. Então, por que esse cara
insiste que você ajudou Konstantin a assumir a empresa após a morte de
Leon e Charlotte?
Meu pai repousou seu corpo na mesa e cruzou os braços em frente ao
peito.
— Ele te ameaçou?
— Essa não é a questão aqui, pai — falei, o olhando irritada. — Por
acaso, você ajudar Konstantin tem alguma coisa a ver com a tentativa de
sequestro que minha mãe e eu sofremos em Boston? Ou com o atentado que
você sofreu há cinco anos e que fez com que me jogassem dentro de um
avião só para me tirar da Europa? — indaguei, aproximando-me dele. —
Esse Konstantin me usou como forma de chantagear você?
Os ombros do meu pai enrijeceram e ele me fitou, imperturbável.
— Onde Victor estava e por que deixou que Roman falasse com
você? — inquiriu, recusando-se a responder a minha pergunta.
A coisa sobre o meu pai era que ele nunca mentia para mim, mas
omitia algumas coisas que julgava serem importantes para a minha
segurança. Então, quando ele permaneceu mudando o rumo da conversa, eu
soube que Roman Morozov não havia mentido em nada.
— Você fez mais alguma coisa para o Konstantin…
— Nathalia, isso não é assunto seu — interrompeu, categórico,
assumindo aquela pose de ditador que usava sempre que minha segurança
estava sendo negligenciada. — Esqueça o que Roman te disse e…
— Ele quer que eu o aceite como cliente.
— Então, recuse.
Aquilo não era um pedido, mas uma ordem do meu ditador pessoal. E
me recusar a obedecer significava correr o risco dele simplesmente fazer
um gesto e seus seguranças invadirem o escritório, me arrastando para um
avião sem meios de comunicação e me forçando a abandonar minha vida
atual.
— Roman Morozov é um garoto perturbado com delírios de grandeza
— assegurou, sem tirar os olhos dos meus. — Ele acredita que tem direito a
alguma coisa, apenas porque acredita que o merece, mas não é assim que o
mundo funciona e não vou permitir que ele te use nessa briga com
Konstantin!
O problema de ser uma pessoa que conhecia tão bem as pessoas ao
meu redor, era que eu sabia reconhecer quando algo não estava certo. E
quando as íris esverdeadas do meu pai foram tomadas por um lampejo de
algo que parecia ser medo, eu soube que nada do que ele estava falando era
verdade.
Miguel havia sido chantageado pelo pai de Roman e eu fui a arma
que usaram para convencê-lo. Eu era a única coisa que faria com que meu
pai abandonasse seus princípios sem pensar duas vezes.
— Você nunca mais vai falar com esse garoto, está me entendendo?
Meneei a cabeça, engolindo em seco, sentindo algo incomum se
instalar no meu peito. Sem pensar direito, pela primeira vez em toda minha
vida, eu escolhi mentir para o meu pai.
— Não se preocupe, eu já havia o recusado como cliente — falei.
Os ombros de Miguel relaxaram e eu me surpreendi com o quão
firme minha voz soou. Meu pai se aproximou, mergulhando seus dedos em
meu cabelo e me levou para perto, deixando um beijo demorado em minha
testa.
— Boa menina, fadinha. — Eu conseguia sentir seu coração
martelando contra a caixa torácica, e busquei pelo remorso por mentir para
o meu pai, mas não o encontrei em lugar algum.
A bola atravessou a quadra com força, fazendo uma curva alta que
Antônio rebateu prontamente, mas a minha atenção foi roubada pelo
homem mais lindo do mundo todo, entrando na quadra para assistir a
partida.
Um sorriso enorme se desenhou em meus lábios quando seus olhos
encontraram os meus e, sem nem precisar pensar, abandonei a partida sob
os protestos de Antônio e corri em sua direção, sentindo o peito doer de
saudades.
Renato me segurou e minhas pernas envolveram seu quadril,
enquanto minhas mãos buscavam pelo seu cabelo curto, agarrando os fios e
deixando que seus lábios se chocassem com os meus.
Haviam sido apenas três dias longe, mas parecia uma eternidade.
— Senti sua falta — confidenciei contra seus lábios, sentindo-os se
moldarem em um sorriso e seus braços ao meu redor me apertaram ainda
mais.
— Também senti sua falta, diabinha — sussurrou, tão rouco e grave
que espalhou uma série de arrepios no meu corpo, aos quais eu culparia o
período fértil por bagunçarem tanto meu discernimento.
— E de mim? Ninguém sentiu falta? — questionou Leandro atrás
dele, obrigando-me a virar o rosto em sua direção, sentindo Renato respirar
profundamente, clamando por paciência aos céus.
Soltei minhas pernas ao redor do meu namorado, dando um passo
para o lado para que eu pudesse dar um abraço no Salazar, mas Renato se
recusou a me soltar e isso foi o suficiente para que o seu amigo começasse a
perturbá-lo sobre como era um pau-mandado.
— Sabe, Renatinho… — murmurou atrás de nós, conforme
seguíamos Antônio para dentro do prédio —, eu sempre soube que você iria
me substituir na sua vida, mas ao menos pensei que seria uma boa pessoa e
faria isso nas minhas costas — reclamou, me arrancando uma risada. —
Onde está a responsabilidade afetiva?
— Você vai encontrá-la quando eu te esmurrar — Renato garantiu, o
mirando com os olhos estreitos.
— Nathalia, segure o seu cão! Ele está rosnando para mim e eu sou
apenas um neném — lamentou, levando a mão ao peito e fazendo com que
seu amigo revirasse os olhos. — Nem o Stuz babaca consegue ser tão chato
quanto você quando está perto da capetinha, eremita.
Franzi o cenho, confusa pelo apelido.
— Capetinha?
Leandro sorriu radiante, e pela maneira que Renato apertou os meus
dedos, soube que essa era uma de suas milhares de tentativas de fazê-lo
ficar com raiva. Eu nunca entenderia como alguém podia gostar tanto de
perturbar os amigos, mas Leandro me provava que não havia limites que ele
não ultrapassaria.
— Sim, é uma opção que eu encontrei, já que não posso mais te
chamar pelo outro apelido, sabe? — resmungou, falsamente ressentido. —
O que eu ainda acho injusto pra caralho, porque fui eu quem usou primeiro
e…
— Leandro — Renato o chamou, lançando um olhar atravessado. —
Cale a maldita boca, pelo amor de Deus.
Salazar riu, nenhum pouco preocupado com o risco de apanhar do
amigo.
— Certo, certo… vou te dar uma folga, porque não quero precisar ir
visitar um cirurgião plástico. — Ele soltou um suspiro melodramático. —
Gosto de saber que sou todo bonito naturalmente.
A gargalhada irrompeu do meu peito e o olhei, incrédula.
— Você é inacreditável, Leo…
Ele sorriu como se fosse um grande elogio e se afastou, correndo em
direção ao meu melhor amigo, que, embora não fosse o mais paciente, ao
menos simpatizava um pouco mais com ele do que com o meu namorado.
Renato e Antônio concordaram em manter a diplomacia, pois não
queriam me magoar por ter que lidar com a constatação de que os dois
homens mais importantes da minha vida, depois do meu pai e meu avô, se
odiavam.
— Como estão as coisas por aqui? — questionou Renato, assim que
assumimos uma das mesas do restaurante externo.
Ele não se atreveu a me deixar sentar longe dele e puxou a minha
cadeira para perto, virando-se para mim e me dedicando toda a sua atenção.
Seus olhos escuros denunciavam que ele tinha sentido a minha falta na
mesma proporção que eu havia sentido a sua.
Essa era uma das coisas que eu mais gostava no nosso
relacionamento.
Eu não precisava esconder o quão possessiva eu era quando se tratava
dele, porque Renato era ainda pior. Ele não me julgava por sentir sua falta,
mesmo que estivéssemos separados apenas por alguns dias, pois ele
também não conseguia conter sua necessidade primitiva de me tocar o
tempo todo. Ele havia me transformado em uma dependente disso, o que
tornava as manhãs em que eu acordava sozinha menos divertidas.
— Hm… eu recebi uma proposta de um cliente — falei, sorrindo em
agradecimento para a moça que trouxe nossas bebidas e virei o rosto,
sentindo o seu olhar sobre mim. — Mas ainda não sei o que vou fazer sobre
isso.
Ele franziu o cenho, confuso.
— Por quê?
Dei de ombros.
— É um caso de retomada de empresa familiar, mas acho que isso vai
me trazer mais dor de cabeça e… ultimamente, eu só quero um pouco de
paz, sabe? — Soltei um suspiro, sentindo seu polegar circular em minha
perna, enquanto seus olhos vasculhavam meu rosto, buscando por algo que
eu não consegui identificar.
— Bem, você está me dizendo uma coisa, mas seus olhos estão
dizendo outra coisa — falou, subindo sua mão para o meu rosto e enrolando
seus dedos em meu queixo, impedindo-me de desviar o olhar. — Qual é
realmente o problema?
Prendi meu lábio inferior entre os dentes, incerta sobre o que dizer.
Eu queria uma opinião imparcial, mas sabia que, se mencionasse que o
Roman havia se sentado ali e me intimidado, Renato não ouviria mais nada
do que eu dissesse em seguida. Ele veria apenas um risco iminente do qual
precisava me proteger, assim como Miguel havia feito quando o confrontei
na tarde passada.
— Meu pai representa a parte contrária na negociação — expliquei,
observando-o concordar com a cabeça. — Aparentemente, a empresa
pertencia a uma tia-avó do meu potencial cliente. Mas, em vez de ser
repassada para um membro da família designado, como o sobrinho-neto ou
a neta que está viva, Miguel ajudou o pai do meu cliente a assumir a
presidência. E segundo meu suposto cliente, o homem não tinha nenhum
direito legítimo sobre a posição.
Renato meneou a cabeça, desenhando círculos em minha nuca,
espalhando arrepios em minha coluna.
— E o cliente tem como provar que a tia-avó não queria que a
empresa fosse comandada pelo genitor dele? — questionou, interessado.
Apesar do que havia dito ao meu pai, eu passei a última madrugada
inteira estudando todos os documentos que estavam no dossiê que Roman
me entregou. Havia fragmentos de tantas conversas de Roman com o Leon,
filho de Madeline e Leon, que parecia ser certo supor que ele estava falando
a verdade.
Junto com todo o documento impresso, havia também um pendrive
com várias gravações de ligações e conferências entre Leon, Charlotte e
Roman, e em todas eles eram categóricos sobre impedir que Konstantin
soubesse que aquela empresa pertencia a Madeline — ou como chamaram
durante toda a ligação, Madi.
Depois de testemunhar com meus próprios olhos o tremor no
semblante do meu pai, o homem que sempre se considerou intocável, ao
ouvir o nome do pai de Roman, eu estava realmente tentada a aceitar a
oferta. Charlotte Blanche era uma das amigas da minha mãe na faculdade,
ambas estudaram medicina na WHU e, mesmo com ambas morando em
continentes diferentes, permaneceram amigas até o fim e minha mãe chegou
a ser madrinha do filho mais velho da Blanche — que teria a idade do
Renato, se não tivesse morrido no incêndio também.
Se existia a possibilidade da empresa ter chegado às mãos de
Konstantin apenas porque ele chantageou meu pai, eu sentia que precisava
fazer algo a respeito. Principalmente, se o motivo que o fez ceder, foi a
minha segurança.
— Sim, tenho gravações em que o filho de Madeline explicitava que
a mãe não queria que a empresa fosse para qualquer outro parente, que não
fosse o filho ou o sobrinho-neto.
— E onde está o filho?
— Morreu em um incêndio há alguns anos.
— E ele não tem herdeiros? — perguntou, interessado. — Além
desse sobrinho-neto?
Franzi o cenho, buscando em minhas memórias as conversas que
escutei minha mãe ter com suas outras amigas, que ainda moravam na
mesma cidade e que a informavam de tudo o que acontecia no círculo de
amigas.
— Uma garota, ela foi a única que sobreviveu ao incêndio — falei,
voltando meus olhos para ele. — Acho que ela deve ter catorze anos agora.
Renato meneou a cabeça.
— Não é um caso tão complicado, o seu cliente pode entrar em
defesa dos direitos dele e da menina. Se existir um conselho na empresa,
eles podem ser forçados a intervir ao favor do que precisa… — seus olhos
espreitaram meu rosto. — Você quer entrar em uma briga com o seu pai?
Engoli em seco, bebendo um pouco do meu matcha[55]e dando de
ombros, incerta.
— Agora, eu só quero ir para Princeton e me formar de uma vez por
todas — confessei, vendo o homem que, até ontem, era um completo
desconhecido, passar pela passarela sobre o lago, rindo de algo juntamente
com Aaron Ashford.
Pisquei, voltando meu olhar para o meu namorado e minha mão
escorregou pelo seu pescoço, trazendo-o para perto e deixando um beijo
suave em seus lábios.
O salão principal do Niké estava tomado por vários amigos meus,
assim como conhecidos e pessoas que eram convidadas apenas pela
diplomacia na alta sociedade de Nova Iorque.
Após receber as parabenizações pela minha formatura e pelo meu
discurso como oradora da turma, meus olhos se voltaram pelo salão e um
sorriso se desenhou em meus lábios ao ver que, naquele ponto da noite,
apenas as pessoas que realmente importavam para mim estavam presentes,
celebrando mais uma conquista minha.
Matheus e Igor estavam na área de jogos, disputando quem fazia mais
cestas com Luke e os trigêmeos que Carol e Fabio haviam adotado
recentemente. Afastei-me um pouco do salão, sentindo o coração batendo
acelerado quando uma mensagem de um número desconhecido surgiu na
minha tela.
Olhei por cima dos ombros, checando se ninguém havia notado a
minha saída, mas eu sabia que não demoraria mais que alguns minutos até
que, ao olhar para o lado e não me encontrar, Renato viesse atrás de mim
para checar se algo estava errado.
O sumiço de André e a prisão de Guilherme não o deixou menos
paranoico.
O jardim do Niké era pouco iluminado durante a madrugada, e com
exceção dos holofotes de luz que realçavam a beleza das esculturas gregas
espalhadas pelo lugar, como estava com sandálias de salto, precisava tomar
um pouco mais de cuidado para não acabar afundando meu pé na grama
molhada devido à chuva de mais cedo.
Atravessei o espaço, encontrando a silhueta de Roman Morozov
parada em frente ao enorme lago da propriedade, que naquela noite escura
parecia apenas com um enorme buraco obscuro. Não precisei me aproximar
muito para atrair a sua atenção e quando ele girou nos calcanhares, aquele
sorriso falsamente charmoso se desenhou em seus lábios.
— Foi um belo discurso — comentou, escondendo as mãos nos
bolsos da sua calça escura e me olhando compenetrado.
— Você assistiu a minha formatura?
Ele deu de ombros.
— Como eu disse, somos amigos — falou simplesmente. — Que tipo
de amigo eu seria se não estivesse presente?
Soltei um suspiro, balançando a cabeça, desistindo de argumentar
sobre aquela maluquice da sua cabeça.
— Eu vou aceitar o seu caso — disse, vendo sua sobrancelha se
arquear em surpresa —, mas, existem condições para isso.
Roman meneou a cabeça, suavemente.
— Que seriam?
— A primeira é que você vai parar de me perseguir. — Aquela era
uma parte inegociável, eu não queria viver mais nenhum dia da minha vida
olhando por cima dos ombros. — E isso se estende para as pessoas que
estão ao meu redor. Quer ser meu amigo? Então, comece sabendo que
amigos não vigiam cada passo do outro.
Ele ponderou por um minuto e estalou a língua, concordando.
— E a outra?
Soltei um suspiro.
— Você não vai encostar um dedo no meu pai, muito menos deixar
que o seu pai faça isso. — Apontei o dedo em sua direção, o vendo apertar
os olhos em meu rosto.
Roman deu um passo para frente, pensativo. Ele desviou o seu olhar
para a escuridão do lado e um brilho parecido com nostalgia perpassou em
suas íris, me permitindo ver o seu pomo de Adão se mover conforme
engolia a saliva. Quando tornou a me olhar, Morozov balançou a cabeça em
concordância.
— Tudo bem. São condições aceitáveis — disse com tranquilidade.
— Entro em contato com você…
Precisei interrompê-lo para estabelecer limites.
— Não. Eu vou entrar em contato com você quando estiver pronta
para me movimentar, tenho outras questões na minha vida que são mais
urgentes — falei, sincera. — Até lá, que tal você procurar pela filha de
Leon que sobreviveu ao incêndio?
Morozov pareceu surpreso com aquela sugestão.
— Ninguém sobreviveu ao incêndio.
— Você está mal-informado — disse, tranquila. — Cassidy Delaire
deu entrada no hospital e saiu algumas horas depois, viva.
— Eu saberia se alguém tivesse sobrevivido.
— Bem, parece que você não está por dentro de tudo — resmunguei,
enquanto procurava meu celular para encontrar o endereço que meu
investigador havia me passado mais cedo. Em seguida, enviei para o
telefone de Roman. — Ela está morando com uma amiga da Charlotte, em
Greenly Creek.
Uma faísca de perturbação queimou nos olhos azuis de Roman, mas
ele não me deu tempo antes de murmurar.
— Me chame de Rowan, a partir de agora. — Não era uma sugestão.
Encarei-o, procurando qualquer sinal de arrependimento ou indecisão
por ajudar aquele desconhecido, mas não encontrei nenhum. Talvez os
eventos recentes tenham mexido tanto com minha cabeça que eu já não
conseguia mais distinguir o que era ético ou não.
No entanto, eu sabia que Rowan poderia me ajudar a livrar meu pai
de qualquer acordo que o obrigasse a ir para Moscou sempre que
Konstantin o convocasse. E se era necessário me tornar sua “amiga” para
alcançar esse objetivo, assim seria.
Naquela manhã de segunda-feira, após deixarmos o Igor e Matheus
no colégio, entrei no escritório com uma sensação esquisita massacrando
meu peito.
Talvez eu estivesse ficando paranoica, assim como meu pai e meu
namorado. No entanto, nada tirava da minha cabeça que eu havia visto o
mesmo carro preto pelo retrovisor nos últimos quatro dias.
Depois do atentado no estacionamento, Sérgio e Renato aumentaram
a equipe de segurança. Como o chefe de segurança também era dono de um
centro de formação para seguranças particulares, não foi difícil de encontrar
uma equipe preparada e treinada dentro dos parâmetros que o ex-militar
acreditava ser aceitável.
Além disso, todo o esquema ao nosso redor havia sido alterado,
sempre que saíamos de casa, outros quatro carros idênticos saíam ao mesmo
tempo, e na entrada para a Av. Paulista se separavam e seguiam caminhos
mais longos, cheios de desvios, para garantir que não estávamos sendo
seguidos.
Um trajeto que levávamos menos de dez minutos para chegar ao
escritório, agora era feito em quase uma hora e, em algum ponto dele, eu
simplesmente me esqueci de qual era o trajeto que costumava fazer quando
dirigia sozinha pela cidade. Todos os dias, Sérgio traçava uma rota diferente
que a equipe que nos acompanhava só recebia no momento em que saíamos
de onde estávamos. As equipes também se alternavam com frequência, para
que ninguém se acostumasse muito com a nossa rotina, e a quantidade de
mudanças ao meu redor, era grande o suficiente para que eu me sentisse
aliviada quando descia para o estacionamento e via Victor, Sérgio, Marcus
ou Caique entre os rostos desconhecidos.
Talvez toda a paranoia dos dois estivesse passando para mim e eu
estivesse imaginando coisas, já que quando conversei com o segurança que
havia ido me buscar no Niké naquela manhã, ele assegurou que não viram
nada de diferente.
Acho que o que mais estava nos deixando preocupados não era o
desaparecimento de André, mas o fato de que, sabíamos que uma boa parte
dos seus recursos no país haviam sido congelados e que, uma hora ou outra,
isso poderia explodir na nossa frente e nos levar de volta para o caos.
Mas Renato estava atendendo ao meu pedido e me dando exatamente
a paz que eu havia dito que queria, e qualquer um que ousasse colocar seus
problemas em cima de mim era, gentilmente, convidado pelo Renato a se
retirar. Isso acontecia o tempo todo, não apenas no escritório, mas também
com os nossos amigos.
O relacionamento da Bianca e do Leandro estava mais conturbado do
que nunca, e não estavam dispostos a explicar o que estava acontecendo.
Pedro estava fazendo viagens frequentes para Sydney para cuidar de alguns
assuntos relacionados ao início das obras da Alpha na Austrália. Marc e
Maya haviam acabado de ficar noivos. Olívia aceitou a oferta de trabalho
que meu pai ofereceu em Nova Iorque e se mudou na semana passada.
Meus sogros viajaram para o Leste Asiático para comemorar seu trigésimo
aniversário de casamento. E Carol e Fabio estavam se mudando
definitivamente para Londres, onde cuidariam da fábrica da Haddock
Motors na Inglaterra.
No panorama geral, a maior parte dos nossos amigos estavam bem, a
outra parcela estava sobrevivendo, mas eu tinha certeza de que se
acertariam em algum momento.
Além disso, eu não precisava mais me preocupar com um comitê
problemático na empresa de Maitê. Os três membros mais complicados
foram convidados a se retirar para preservarem suas reputações intactas,
correndo o risco de eu revelar para a imprensa o que escondiam. Eles
concordaram em vender suas ações para ela, o que resultou em Maitê
detendo agora 45% das ações totais. Isso seria preocupante, mas Renato
conseguiu convencer Kerem Karadağlı a desistir da aquisição hostil que ele
pretendia iniciar.
Talvez as coisas estivessem tão calmas depois de tanto caos que eu
estivesse procurando por problemas, pois tinha medo de me acostumar com
a calmaria apenas para ser arrancado dela novamente. Eu não tinha certeza
se conseguiria me reerguer caso sofresse um novo golpe.
Após deixar a sala de reuniões com a equipe de riscos e entrar na
minha sala, um sorriso largo se desenhou em meus lábios ao ver um enorme
buquê de peônias vermelhas em cima da minha mesa, ao lado dele havia
uma caixa com o que eu sabia que eram os doces da minha doceria francesa
preferida.
Fechei a porta, caminhando para perto da mesa e abrindo o embrulho
dos doces, roubando um macaron de pistache da caixa. Suavemente, deixei
que meus dedos se arrastassem entre as flores, sentindo a sua maciez
acariciar minha pele e amortecer aquela sensação ruim que estava me
acompanhando a manhã inteira.
No post-it rosa preso aos documentos que eu precisava analisar até o
fim do dia, estavam as três palavras que eu não me acostumava de escutá-lo
falando, tampouco escrevendo.
“Amo você, pequena D”
O “D” era uma forma de impedir que continuasse sendo censurado
pela equipe de compliance que mantinha seus olhos sobre nós em cada
mínima interação, e bastava que Renato encostasse o braço no meu para que
alguém designado a nos monitorar naquele dia tossisse enquanto falava
“inapropriado”.
Eu queria poder defender a garota, pois ela estava apenas cumprindo
o seu trabalho, mas até eu estava começando a ficar irritada com a sua
presença constante. Parecia quase como se ela soubesse que estávamos nos
aproximando um do outro, pois ela se materializava na nossa frente e
repetia o discurso de que “não era ético nos envolvermos enquanto
estávamos no escritório”.
Uma hora, Renato perderia a paciência com ela — e eu o apoiaria.
Antes que eu girasse nos calcanhares para ir até a sua sala para
agradecer pelos presentes, meu celular tocou em cima da mesa e acabei
pegando-o, reconhecendo o número de uma cliente de Roberta chamada
Celia.
Eu não atendia clientes há tanto tempo que a ideia dela estar me
ligando só podia significar que algo não estava certo. Especialmente porque
eu havia trocado de número três vezes nos últimos meses e a única maneira
dela tê-lo era ligando para um dos meus clientes que ela conhecia, já que
Renato proibiu Ananda de passar meu número para qualquer pessoa que
não fosse meu cliente.
Carla Giordano era uma senhora viúva, o marido dela era presidente
de uma rede de hotéis no país e quando ele faleceu, tanto Carla quanto os
filhos não tinham a menor intenção de trabalhar com isso, então acabaram
vendendo suas ações de herança com o plano de viver dos rendimentos dos
seus investimentos.
No entanto, o filho de Carla era um filho da puta e, nos últimos anos,
eu a assisti se desfazer de cada centavo que era para o seu próprio usufruto,
para poder bancar os luxos do filho que tinha conseguido a proeza de torrar
toda a sua parte da herança em menos de cinco anos.
Antes de tudo acontecer e eu ser oficialmente afastada de tudo o que
envolvia Roberta e seus clientes, tinha feito uma reunião com a Carla para
aconselhá-la sobre entrar com uma liminar contra o filho, afinal, ela era
uma mulher de idade avançada que estava sendo extorquida por um
vagabundo que, se dependesse dele, teria matado a própria mãe para se
desfazer dela e ficado com o seu dinheiro de uma vez.
E isso não era apenas uma suposição minha, o filho de Carla
realmente teve coragem de perguntar a Roberta se ela conhecia alguém que
pudesse “dar um fim” em Carla. A situação era tão absurda que, mesmo
com Roberta insistindo que não deveríamos nos intrometer, senti a
necessidade de intervir e tentar abrir os olhos daquela mulher.
Não adiantou de muita coisa, porque ainda assim, a Sra. Giordana foi
em frente e vendeu uma mansão que a família tinha em Campos do Jordão,
apenas para dar o dinheiro que o filho queria. Isso foi há oito meses e dado
ao histórico do rapaz, a ligação de Carla só podia significar que ele já tinha
gastado o dinheiro e estava exigindo mais.
— Sra. Giordano.
Minha voz soou receosa, eu sempre tinha medo do que aquela mulher
poderia me dizer porque ela podia não ser das mais simpáticas, mas não
merecia passar por metade dos abusos que passava com o filho mais velho.
— Ah, olá Nathalia! — Sua voz foi tomada por uma onda de alívio
incomum. — Eu estou tão feliz por ter conseguido falar com você! Estou
tentando conseguir o seu número há dias e só ontem consegui que Gregory
me passasse.
Franzi o cenho, ainda mais confusa.
— Hm, aconteceu alguma coisa?
Carla soltou um suspiro demorado.
— Então, eu estou tentando falar com a Roberta há alguns dias,
porque preciso de um extrato atualizado dos meus investimentos naquele
fundo internacional, sabe? — perguntou, fazendo com que um vinco
surgisse em minha testa. — Um minutinho que eu já te passo o nome… só
deixa eu achar aqui… — ela balbuciou enquanto vasculhava alguma coisa.
Eu não deveria me envolver nos assuntos dos clientes da Roberta. No
entanto, a mulher na linha parecia desesperada por aquela informação e,
considerando que Roberta estava em uma reunião externa naquela manhã,
eu poderia resolver o problema em apenas dois minutos. Como diretora de
operações, eu tinha acesso a todas as contas de clientes do escritório.
— Achei! — Seu alívio ressoou. — É Prudence Sectori Investiments
Fund 500.
Se antes eu estava confusa, naquele momento me senti ainda mais
perdida. Não queria ser arrogante por pensar que conhecia todos os fundos
internacionais com que trabalhávamos, mas eu sabia todos os que a Roberta
trabalhava e tinha certeza de que nunca tinha escutado aquela nomenclatura.
Ainda assim, digitei o nome do fundo no sistema depois de fazê-la
repetir três vezes para confirmar que ela estava lendo o nome corretamente.
Não havia nada.
Engoli em seco, com um pressentimento ruim massacrando meu
peito.
— Hm… o sistema está oscilando um pouco, Sra. Giordano —
balbuciei, tentando buscar por uma alternativa rápida. — A senhora se
importa de me enviar uma cópia dos últimos extratos que a Roberta te
encaminhou? Assim posso tentar pedir diretamente para a administradora
do fundo.
Eu merecia um prêmio por pensar em uma resposta tão rápida, mas
sequer consegui me dar ao mérito por isso.
— Vou ver o que consigo aqui, mas a senhora precisa de alguma
coisa? — perguntei com receio, vendo mais de dez arquivos mensais com
extratos lucros exorbitantes de um fundo que eu nunca ouvi falar.
— Então, o meu filho precisa de um dinheiro, sabe? Por isso eu
queria ver quanto tinha lá, porque… sei que a Roberta disse que tínhamos
que deixar lá mais um tempo para maximizar os lucros, mas o meu dinheiro
no Brasil está acabando, sabe? — Ela soltou um suspiro longo. — Estava
até pensando em vender a minha casa na serra do Rio, ainda não sei bem o
que vou fazer… precisaria do extrato atualizado para decidir.
Meus olhos recaíram a página do Google, vendo que ao pesquisar o
nome do fundo, a única coisa que aparecia eram inúmeras notícias falando
sobre fraudes financeiras. Nenhuma citava o fundo diretamente, porque os
seus responsáveis mudavam o nome da gestora sempre que um cliente ia
buscar pelo dinheiro.
Eu vou matar a Roberta.
— Hã… tudo bem, até quando você precisa definir isso? —
questionei, entrando na conta da Célia para verificar como andavam os seus
ativos de liquidez e quanto dinheiro eu poderia desembolsar dos seus
investimentos com urgência.
O problema era que a conta da mulher havia secado desde a última
vez em que eu cuidei dela. O cursor na tela se movia, procurando pelo
extrato de retiradas e a mulher havia sacado milhões nos últimos meses,
enviando tanto para o filho que a extorquia, quanto para o fundo fantasma.
— Ao menos até sexta-feira. Na verdade, estou inclusive com uma
ordem de despejo, acho que o Fê não pagou meu condomínio nos últimos
meses e…
— Tudo bem, eu vou ver o que consigo fazer com os extratos e te
aviso, certo? — Ofereci, atordoada demais para conseguir escutar todas as
coisas que seu filho não havia feito para ela.
Meus dedos se moviam pela tela, arrastando uma janela para um lado
e rolando outra para conseguir ler todo o texto da notícia. Quando terminei,
estava me sentindo enjoada.
Levantei-me, bloqueando a tela do meu computador, e caminhei em
passos apressados para fora da minha sala, ignorando a presença de Victor
na porta, cujo papel era impedir a entrada de qualquer pessoa sem passar
pela sua checagem. Ele fez menção de me acompanhar, mas ao perceber
que eu estava indo em direção à sala de Renato, ele apenas se posicionou
entre as duas portas.
Eu não bati quando entrei na porta, e seu olhar veio em minha direção
quase instantaneamente.
Meu coração golpeava com força no meu peito e um sentimento de
profunda incompetência me atingiu, porque eu era a porra da diretora de
operações e deveria ter visto aquela palhaçada acontecendo bem debaixo do
meu nariz.
Renato desligou o telefone, despedindo-se da pessoa do outro lado da
linha e me deu um sorriso de canto, contente por estar me vendo em sua
sala sem a garota do compliance na minha cola. Os meus anos de aulas de
teatro pareceram valer a pena, já que consegui esboçar um sorriso que
correspondeu ao que Renato normalmente esperava de mim.
Qualquer coisa diferente disso, faria com que soubesse que havia algo
errado e se as minhas suspeitas estivessem certas, ele a mataria.
Desde a fusão, Roberta vinha fazendo o possível para evitar o nosso
contato. Ela entrava no corredor paralelo sempre que nos via seguindo pelo
mesmo caminho que o dela, ficava doente em semanas de reuniões com os
sócios e enviava todas as comunicações por meio da sua secretária, usando
toda a educação que não era habitual para ela.
Eu pensei que ela só estivesse ouvindo o conselho que Leandro deu à
ela no dia da reunião emergencial e estava se mantendo fora do nosso
caminho.
— Oi anjo — falou, escovando os seus dedos em meu rosto e sua
outra mão alcançou a minha cintura, levando-me para perto e um suspiro
trêmulo escapou quando senti seus lábios se arrastarem na curva do meu
pescoço.
No entanto, eu estava tão embebida de choque pela situação com
Roberta, que não consegui permitir que minha mente se apagasse e fosse
envolvida pelo feitiço que ele usava para me aprisionar em sua aura.
Espalmei as mãos no seu peito, esboçando outro sorrisinho fraco.
— Estou aqui a trabalho — falei, firme.
Renato espreitou os olhos nos meus, como se buscasse por algo
errado e quando chegou em uma conclusão, ele deu um passo para o lado e
abriu espaço para que eu caminhasse pela sua sala.
Irritada e horrorizada, eu marchei diretamente para o minibar e servi
uma dose de vodca, a virando de uma única vez e a enchi novamente. Isso
atraiu atenção de Renato que me alcançou e roubou o copo da minha mão
antes que eu conseguisse virar o terceiro shot.
— Tudo bem, você me deixou preocupado. O que aconteceu?
Balancei a cabeça, esfregando as mãos nervosamente.
— O que você sabe sobre um fundo chamado Prudence Sectori? —
questionei, vendo uma ruga surgir em sua testa e ele me olhou como se eu
fosse maluca.
— O que o fundo tem a ver com isso? — Indicou, mostrando-me o
copo intacto da terceira dose. — Algum cliente seu está envolvido nisso?
O problema com Renato era que era impossível fornecer qualquer
informação, por menor que fosse, pois, a mente dele parecia uma máquina
constantemente procurando por pistas soltas para montar um quebra-cabeça
muito maior.
— Não.
— Então, por que a pergunta? — questionou, desconfiado.
Soltei um suspiro, odiando que mesmo depois de tudo o que Roberta
havia feito contra mim nos últimos meses, o meu primeiro instinto ainda era
protegê-la, mesmo quando estava absurdamente errada.
— Eu estava lendo uma matéria e só fiquei confusa… como o fundo
funcionava? — perguntei, tentando soar o mais convincente possível.
Renato vasculhou meu rosto em busca de qualquer sinal de mentira,
mas eventualmente desistiu e bebeu a bebida que era minha, indicando que
eu me sentasse enquanto ele ia até o cofre em sua sala. Ele não se
preocupou em esconder o código de mim, já que eu o conhecia há meses,
embora nunca tivesse sentido vontade de explorar o conteúdo guardado ali.
No entanto, fiquei curiosa quando ele retirou um envelope grosso e o
trouxe até mim.
— É um esquema bem elaborado para enganar os desavisados —
disse ele, sentando-se ao meu lado no sofá e observando enquanto eu abria
o embrulho para ver o que havia dentro. — Eles não deixam nenhum
registro, então, quando a fraude é descoberta, simplesmente trocam o nome
fantasia por algo que pareça confiável e recomeçam a buscar novas vítimas.
— Renato jogou o braço sobre o encosto do sofá, mantendo os olhos fixos
em mim enquanto eu lia as páginas. — A única pista que Luiz descobriu foi
um padrão no número da conta para onde o dinheiro era enviado, já que
todas as contas eram do mesmo banco em Luxemburgo.
Renato continuou falando, explicando tudo o que sabia sobre aquele
esquema de fraude. Um dos seus clientes havia quase caído nele anos antes,
e foi assim que Renato passou a atendê-lo. Por conta disso, meu namorado
conhecia todo o modus operandi para descobrir como um cliente estava
sendo vítima dos golpistas, e forçando meu melhor olhar curioso, sorri para
ele.
— Você me ensina? — pedi, dando o meu melhor para fazer a melhor
expressão de pidona.
Ele fez uma careta, enroscando seus dedos em meu cabelo e me
levando para perto, roubando um beijo suave.
— Claro, é importante saber disso — assegurou, ainda vasculhando
meu rosto. — Mas isso realmente é só curiosidade?
Aquiesci, porque era preferível não contar para ele agora, eu
precisava ter uma dimensão da situação para saber se a única cliente
atingida era a Sra. Giordano, ou se existiam mais vítimas.
— Sim, me sinto negligenciada quando não sei de alguma coisa —
falei, dramática e ele sorriu, dando tudo de si para não buscar pelos meus
lábios mais uma vez e meneou a cabeça, levantando-se e buscando pela
minha mão.
E pelas duas horas que seguiram, Renato passou cada minuto me
mostrando a melhor forma de identificar um potencial cliente da fraude.
Quando Ananda entrou na sua sala e nos encontrou sentados no chão, com
vários papéis espalhados pelo chão e porções de yakissoba em mãos, ela
balançou a cabeça em negativa.
— Se vocês não tomarem cuidado, eu vou precisar enfiar a minha
mão na cara da menina do compliance — falou, nos encarando com
seriedade. — Vocês vão pagar o processo por mim? Se não, eu deixo vocês
ficarem horas em piquenique aqui na sala.
Rolei os olhos, abandonando os hashis na embalagem de papel e a
colocando sobre a mesa de centro.
— Tudo bem, sargento… estou saindo! — falei, lançando um olhar de
agradecimento ao meu namorado antes de sair da sua sala, ouvindo ele ser
relembrado por Ananda que estava bastante atrasado para uma reunião que
teria na Faria Lima.
Abandonei a embalagem de comida chinesa para longe, sentindo-me
enjoada depois de comer demais.
Meus olhos percorreram a quantidade de papéis espalhados pelo chão
da minha sala enquanto eu tentava descobrir exatamente onde tudo aquilo
havia começado e como não havia percebido antes. Não sabia se era por
estar exausta depois de passar os últimos dois dias tentando confirmar o que
já era um fato, ou se era porque a minha sala estava em completa desordem,
mas eu simplesmente não conseguia entender como nunca tinha percebido
aquilo acontecer.
Ergui os olhos para a porta que foi aberta e Gabriel passou por ela,
carregando as duas caixas que eu havia pedido que fosse buscar na sala de
arquivos para mim.
— O Júlio disse que isso aqui é tudo que ela operou nos últimos dois
meses — explicou, abandonando a caixa em cima da mesa de centro e
abandonei o copo de suco, aceitando a caixa que ele colocou perto de mim.
— O que você está procurando?
Balancei a cabeça, forçando um sorriso.
— Só um documento que eu perdi — menti, descaradamente. —
Você sabe se a Roberta já chegou no escritório?
Gabriel acenou, confirmando.
— Ela acabou de subir, quer que eu peça para ela vir aqui? —
perguntou e neguei, dispensando-o para que voltasse às sua atividades
tradicionais.
Nos últimos dois dias, usei todas as informações que Renato me deu
sobre o modus operandi do fundo para rastrear os clientes da Roberta que
foram afetados por ele. Carla não era a única vítima; havia cerca de dez
clientes no total, resultando em um prejuízo de mais de cem milhões de
reais. O mais preocupante era que as movimentações começaram durante a
fusão, o que tornava a situação ainda pior, uma vez que a primeira
transferência ocorreu apenas alguns dias antes de eu assumir o cargo de
diretora de operações.
Eu deveria ter visto aquilo.
Como eu não vi isso acontecendo?
Vasculhei a caixa seguinte, batendo todos os documentos que eu
havia assinado para que o setor de risco liberasse as operações dela. As
maiores quantias haviam sido enviadas justamente quando o mercado
estava colapsando e eu estava ocupada checando cada operação.
Minha memória era excelente, eu lembrava de cada operação com um
valor alto que liberei e assinei sua aprovação. E ainda que uma voz em
minha cabeça dissesse que eu já sabia o que havia acontecido, eu me
recusei a acreditar que Roberta teria descido o nível dessa maneira.
Era demais, até para ela.
A única opção plausível, era que eu havia me confundido e acabei
assinando uma operação de cinquenta milhões, acreditando que eram cinco.
Mas o problema de ser perfeccionista era que, por mais que eu
estivesse me esforçando para acreditar naquela mentira, lá no fundo eu
sabia que não tinha feito aquilo. A maior transação que eu liberei no dia
daquela transferência de valor mais alto foi para Leandro, no valor exato de
quarenta e cinco milhões para a Haddock Motors.
Como se o universo soubesse que eu estava em busca de uma prova
concreta para sustentar minhas suspeitas, meus olhos se fixaram em um dos
documentos que estava inserido entre a papelada relacionada ao aumento
salarial da secretária de Roberta. No termo de responsabilidade, onde a
pessoa se comprometia a arcar com quaisquer prejuízos decorrentes daquela
operação e alegava ter verificado cada detalhe, lá estava a maldita
assinatura: a minha assinatura.
Em um documento que eu nunca assinei.
Eu tinha certeza de que nunca tinha visto aquele documento antes em
minha vida, mas a minha assinatura ali dizia o contrário, e por um
momento, ao analisá-la minuciosamente e perceber que não havia uma
simples falha no traço, eu comecei a considerar seriamente a possibilidade
de realmente ter assinado aquele documento.
Meu corpo enfraquecido caiu sentado no chão, a folha ainda estava
em minha mão parecia pesar uma tonelada. Meus olhos percorreram a
quantidade de papéis que eu espalhei na minha busca por aquele
documento, e me odiei por tê-lo encontrado.
Por que eu não desisti de procurá-lo?
O sentimento de ter sido apunhalada pelas costas mais uma vez me
derrubou como uma avalanche.
Quando conheci Roberta, eu sabia que ela tinha uma lista restrita de
clientes que a autorizavam previamente a assinar documentos em seus
nomes. A maioria eram da sua família, que depositavam uma confiança
cega nela a tal ponto.
Meus olhos recaíram novamente sobre o documento em minhas
mãos, vendo minha assinatura ali, e a sensação de uma faca sendo torcida
nas minhas costas me cegou. Não havia nada que me deixasse mais furiosa
do que a sensação de impotência que surgia quando percebia que fui usada
por alguém para obter alguma coisa.
Eu aguentava o peso dessa raiva quando era a única prejudicada,
como aconteceu quando descobri sobre a fusão e as ações que ela garantiu
para si. Mas não havia nada que pudesse neutralizar o ódio que fervia em
minhas veias quando a constatação me atingiu como um tapa certeiro.
O sangue aqueceu minhas veias de uma maneira tão violenta que eu
mal registrei quando me levantei do chão e sai da minha sala. Meus pés
marcharam para o corredor oposto, com um alvo muito específico em
minha mente. Os meus sentimentos por ela, naquele momento, haviam sido
resumidos ao ódio.
Ódio era um sentimento tão selvagem que nos levava a agir como
animais em constante modo de ataque.
E nesse ponto, qualquer um que cruzasse meu caminho poderia lidar
com o ódio que queimava meu sangue com tanta veemência, que me fazia
enxergar vermelho.
As pessoas e as coisas se moviam ao meu redor como borrões que eu
não conseguia focar, porque a única coisa que meu cérebro se concentrava
era na busca pela porta em que o motivo da minha raiva se encontrava.
Quando alcancei a porta em frente a sala de Frederico Bellegard, não
me dei ao trabalho de bater porque aquela não era uma visita casual. Para a
minha sorte, Roberta estava de saída e, exatamente como acontecia nos
filmes, tudo se passou em câmera lenta na minha cabeça.
No instante em que Roberta virou o rosto para ver quem havia
invadido sua sala no fim do expediente, a minha mão aberta colidiu com o
seu rosto em um tapa que ecoou estridente na sala.
Meu coração batia fora de ritmo e a mão de Roberta foi em seu rosto,
olhando-me completamente em choque.
— Você enlouqueceu…
Ela não teve tempo de concluir porque minha mão acertou o outro
lado do seu rosto, com força, a fazendo cambalear para trás devido ao
impacto.
— Você falsificou a minha assinatura em uma transação ilegal? — A
pergunta soou como um rosnado selvagem dos meus lábios.
Roberta me olhou de relance, mas quando ela abriu a boca para
mentir, minha mão acertou o lado direito do seu rosto mais uma vez.
Naquela altura do campeonato, eu não me importava com porra
nenhuma, apenas com a noção de que aquela filha da puta havia cometido
um crime e me colocou como sua cúmplice.
— Você falsificou mais de trinta relatórios que apresentam lucro para
um fundo que nem existe?! — indaguei, entredentes.
Roberta tentou responder de novo, mas eu sabia que seria mentira e,
sem qualquer sobreaviso, minha mão colidiu com o outro lado do seu rosto.
Ela repetiu o movimento, tentando me enganar mais uma vez, e
minha mão a atingiu, fazendo-a cambalear para trás. A única coisa que me
impediu de matá-la naquele momento foram dois braços que me
envolveram pela cintura, me puxando para longe de Roberta. Eles me
arrastaram para longe dela antes que meus dedos pudessem agarrar seu
cabelo e antes que eu a golpeasse contra a maldita parede até que ela se
tornasse algo menos do que uma completa traidora.
Tentei me libertar da pessoa que me segurava e me arrastava para fora
da sala, mas eu não conseguia ver nada além do rosto cheio de cinismo de
Roberta. Quando minhas costas colidiram violentamente com a parede, na
tentativa de me conter, acabei acertando o rosto de Leandro com minha
mão. Isso causou uma confusão generalizada no andar, pois todos os sócios
começaram a sair de suas salas para ver o que estava acontecendo.
Eu consegui escapar do aperto de Leandro e corri para dentro da sala,
disposta a acabar com Roberta naquele exato momento, na frente de todos.
Dane-se que vão existir dezenas de testemunhas do meu descontrole!
O meu problema com a raiva era que eu fazia de tudo para conter o
monstro que havia dentro da minha cabeça, mas quando ele se
desvencilhava das algemas que o mantinham preso, eu não conseguia
enxergar mais nada.
Naquele momento, eu só conseguia me concentrar que eu tinha dado
dois anos de tudo o que eu tinha de bom para aquela desgraçada, e ela só
me usava como um token para protegê-la de responder futuramente pelos
crimes que cometia nas minhas costas.
Todos os seus discursos começaram a fazer sentido na minha cabeça.
Ela nunca me quis por quem eu era, mas porque eu era um meio para um
fim. E ela nunca escondeu. Eu sempre fui sua defesa. Sua retaguarda. A
pessoa que ela mantinha por perto porque sabia que Miguel Gama nunca
permitiria que eu afundasse e a protegeria por consequência.
Eu acreditei em Roberta. Eu dediquei cada maldito dia da minha vida
nos últimos dois anos para ajudá-la a se reerguer, mas tudo o que eu sempre
fui para ela; era uma garotinha estúpida que ela estava usando para se
proteger.
Estapeá-la não era mais suficiente.
Eu precisava que ela sangrasse tanto quanto eu havia sangrado nos
últimos anos em que dei tudo de mim e só recebi facadas nas costas.
Quando meus punhos se cerraram e eu estava pronta para golpeá-la
até que todo aquele ódio se dissipasse, um braço forte envolveu minha
cintura e me levantou do chão. Ao mesmo tempo, sua outra mão segurou
meus pulsos com facilidade, imobilizando-me antes que eu pudesse girar e
me pressionando contra a parede. Suas pernas foram usadas para evitar que
eu o chutasse como havia feito com o seu amigo.
— Nathalia, se acalma! — Sua ordem não tinha qualquer gentileza ou
cuidado.
Eu estava sendo autoritária, não para mim mesma, mas para o
monstro que havia sido libertado da gaiola. Com ele, gentileza não era
necessária, pois ele não responderia a isso.
Alguém avisou que chamaria a polícia e Renato falou com alguém,
provavelmente, Leandro que tirou o telefone da mão do sócio e o jogou no
chão, gritando para que todos voltassem para suas respectivas salas.
Os olhos de Renato se agarraram aos meus com tamanha violência
que eu quis bater nele também por me impedir de esmurrar Roberta.
Alguém precisaria fazer isso até que ela voltasse a ser um ser humano
minimamente decente, não aquele pedaço de merda ganancioso que estava
disposto a foder com quem sempre estendeu a mão para ela.
— Respire agora, porra! — Renato mandou, segurando meu rosto
com mais força e meu peito chiou, fazendo com que eu me desse conta de
que estava segurando o fôlego por todo aquele tempo.
Meu coração batia tão fora de ritmo, que eu levei alguns minutos para
conseguir controlar o ritmo da minha respiração e, consequentemente,
acalmá-lo para que não explodisse no meu peito.
Meu corpo inteiro estava formigando, meus punhos ainda estavam
apertados e se não fosse o aperto de Renato em meu pulso, eu teria
descarregado todo aquele ódio em cima de Roberta, de Leandro ou de
qualquer outro que entrasse em meu caminho.
— Ela não vai embora! — ordenei, ao ver Salazar tentar tirar a
Roberta do meu campo de visão, como se isso pudesse me ajudar a sentir
menos ódio.
Eu não precisava vê-la na minha frente para que a minha mente
pintasse um quadro sanguinário do que eu pretendia fazer com o seu rosto.
— Nathalia! — Renato chamou novamente e virei o rosto para ele.
No entanto, ele me soltou bruscamente e por puro instinto, tudo o que
eu fiz foi esmurrar o seu peito, o odiando por ter me segurado e impedido
que eu descontasse a minha raiva em cima dela. Socando-o por ter decidido
que queria fazer uma fusão justamente com ela. Batendo nele com todo o
ódio que estava me cegando por ter sido tão estúpida e ter confiado nela.
Eu coloquei a minha mão no fogo por causa de Roberta, e tinha
acabado de me queimar de um jeito que não haveria reparo.
Renato não moveu um único músculo.
Ele não tentou se defender dos meus golpes, tampouco impedir que
eu continuasse o esmurrando.
Ele aceitou cada maldito soco como se fosse ele a pessoa que os
merecia.
E as lágrimas de ódio, decepção, mágoa e tristeza começaram a
embaçar a minha visão, trazendo um turbilhão de sentimentos que eu
precisava descarregar antes que eles me engolissem por inteiro.
Eu sentia que se não os colocasse para fora, iria explodir.
E Renato se voluntariou como o meu alvo para que eu jogasse tudo
aquilo em cima dele, até que não tivesse mais forças para continuar batendo
nele e meu corpo fosse ao chão, fraco e trêmulo devido aos soluços.
Meus olhos se fixaram na garota que estava sentada na minha
poltrona, encarando a tela congelada em um relatório que eu estudava antes
de ouvir a confusão que tomou aquele andar.
Leandro tinha levado Roberta para casa e eu estava tentando
processar como lidaria com a informação que havia acabado de cair em
meu colo, ao mesmo tempo que lidava com o caos em forma humana que
Nathalia havia se transformado. Por sorte, ela deixou para confrontar
Roberta no fim do expediente, o que impediu que mais pessoas a vissem
perdendo o controle e lidando com o seu acesso de fúria.
Eu sabia que ele viria em algum momento, era humanamente
impossível que ela conseguisse lidar com tudo o que vinha acontecendo
sem desmoronar uma única vez, e apenas o choro não era mais um escape
viável para que ela expurgasse as emoções.
Havia sido por conta disso que a coloquei para treinar comigo com
mais frequência.
O problema era que ninguém esperava que, depois de descobrirmos
que Guilherme estava envolvido em lavagem de dinheiro para André por
meio do nosso escritório, também acabaríamos descobrindo que Roberta
não apenas defraudou seus clientes mais antigos, mas também falsificou
relatórios de desempenho, apresentando lucros inexistentes. Além disso, ela
usou o nome de Nathalia nesse esquema, colocando-a como sua cúmplice,
sem que ela sequer tivesse conhecimento do que estava acontecendo.
— Isso é preocupante, Renato. — Marc ponderou, desviando sua
atenção dos papéis que havíamos recolhido na sala de Nathalia. — Não se
trata apenas da questão financeira, pois vocês têm recursos suficientes para
cobrir as perdas dos clientes e oferecer acordos para evitar uma denúncia
formal…, mas, isso não impede que esse documento seja utilizado contra
Nathalia no futuro.
— Podemos contratar um especialista em caligrafia para provar que
foi falsificado — sugeri, entrelaçando as mãos em frente corpo, tentando
encontrar uma solução racional.
— Não vai adiantar de nada. — A voz de Nathalia soou baixa e
rouca. Ela estendeu a mão e arrastou os dedos pela tela, seguindo o desenho
de Matheus que estava projetado ali, distraída. — Ela fez isso tão bem que
até mesmo eu duvidei se poderia ter assinado aquele documento ou não.
Meus olhos se fixaram na autorização que havia sido falsificada, e eu
respirei fundo, tentando manter meus pensamentos em ordem. No
momento, minha maior preocupação não era o dinheiro que teríamos que
queimar com acordos, pois isso poderíamos resolver tranquilamente. Como
Marc mencionou, acordos de não divulgação garantiriam que toda essa
sujeira fosse enterrada profundamente.
O problema era que, se Roberta havia falsificado a assinatura de
Nathalia naquela transação, o que mais ela poderia ter feito? E se
resolvêssemos apenas aquela questão, para descobrir no futuro que havia
algo muito pior acontecendo?
Leandro, que tinha saído há algum tempo para levar Faroni até sua
casa, entrou em minha sala e olhou ao redor, buscando por minha mulher.
Quando ele a encontrou, seus ombros relaxaram e uma expressão de alívio
preencheu seu rosto.
Quando ele saiu daqui, Nathalia ainda estava fora de si,
descarregando toda a sua raiva em qualquer coisa que estivesse à sua frente,
e eu me assegurei de ser a única coisa que ela conseguia ver. Nunca a
julgaria por perder o controle, porque somente Nathalia poderia me dizer há
quanto tempo ela vinha sofrendo em silêncio com os abusos de Roberta.
Leandro soltou o ar dos seus pulmões e caminhou até o outro lado da
sala, servindo um pouco de uísque no copo e o virando de uma única vez.
Ele repetiu o gesto e buscou por mais três copos, colocando dois na mesa de
centro em que Marc e eu estávamos e os servindo, antes de caminhar para a
minha mesa onde Nathalia estava sentada e servi-la também.
Ela espreitou os olhos nele e, normalmente, eu veria a culpa brilhar
em suas íris por conta da culpa de ter descarregado sua raiva nele, mas
Nathalia ainda estava apática demais para se importar com isso.
— Lição número um — falou meu amigo, parando no meio da sala e
olhando de um para o outro —, nunca mais eu separo briga de vocês com
ninguém. Já deu, porra! — reclamou, levando a mão para onde Nathalia
tinha o acertado. — A gente tenta ajudar e só toma porrada.
Marc riu, o que indicava que a tentativa de Leandro de amenizar um
pouco o clima pesado havia surtido algum efeito, porém, eu estava
genuinamente preocupado com a garota sentada em minha mesa e a forma
como ela encarava a bebida em seu copo, como se estivesse prestes a sair
uma pessoa armada de dentro dele, pronta para atacá-la.
Nathalia sentiu meu olhar preocupado sobre ela e virou o rosto em
minha direção, bastou um aceno de cabeça para que se levantasse e viesse
para perto. Seus ombros tremiam e as juntas dos seus dedos estavam
vermelhas, já que eu precisei segurá-la e impedir que continuasse me
socando ou acabaria se machucando.
Meus dedos escorregaram em seu cabelo e deixei um beijo demorado
em sua testa, ouvindo seu suspiro ressoar e seus ombros relaxarem aos
poucos, conforme eu afagava sua cabeça.
— O que vocês vão fazer? — perguntou Marc, deixando seu copo
vazio de lado, enquanto Leandro prontamente o encheu novamente e
caminhou ao redor do sofá para se jogar do outro lado, colocando os pés
sobre a mesa de centro. — Vocês precisam decidir se vão denunciar a
Roberta ou…
— Tem um “ou” nessa equação? — Leandro o interrompeu, trazendo
seus olhos para mim como se conhecesse exatamente o que se passava em
minha mente.
E ele provavelmente sabia.
Leandro e eu trabalhamos juntos por quase dez anos, passamos
literalmente por batalhas juntos para construir nossas reputações e sabíamos
muito bem como o outro funcionava. Ele tinha total consciência de que eu
era capaz de perdoar muitas coisas, mas para aquelas que eu não perdoava,
não existia qualquer possibilidade de eu fazer algo diferente do que arrancar
o problema pela raiz de uma vez por todas.
Nathalia se afastou, virando a bebida do seu copo e balançou a cabeça
devagar, como se estivesse alinhando os pensamentos em sua cabeça.
— Se você for bater em mais alguém, me avisa com antecedência —
pediu Leandro, provocando-a. — Assim eu posso colocar o Marc na minha
frente.
Ela engoliu em seco, olhando para mim como se buscasse por uma
autorização para alguma coisa.
— Do que você precisa?
Seus ombros enrijeceram e ela meneou a cabeça, abandonando o
copo vazio em cima da mesa.
— Você vai ter que deixar ela sair impune. — Aquilo soava tão
absurdo que eu precisei piscar algumas vezes para ter certeza de que havia
escutado aquelas palavras saindo dos seus lábios.
— Isso não vai acontecer.
Nathalia fixou seus olhos nos meus e ergueu o queixo.
— Sim, isso vai acontecer — afirmou, irredutível. — Algumas
semanas atrás, emitimos um comunicado ao mercado afirmando que
havíamos descoberto o envolvimento de Guilherme em operações ilegais…
dissemos que tínhamos limpado a sujeira da nossa casa e que isso não se
repetiria. E agora, o que faremos? Vamos nos pronunciar de novo porque
outro sócio foi pego cometendo crimes? — Ela virou o rosto para Leandro,
como se qualquer coisa que ele pudesse dizer mudasse minha decisão. —
Uma vez é um deslize, Renato. Duas vezes é um padrão.
Leandro bebeu o líquido em seu copo, o enchendo novamente e
pareceu refletir sobre o argumento dela.
— Pior que ela está certa, Renato — disse, entrando em defesa do
discurso insano de Nathalia. — Os acordos impedem que os clientes
processem o escritório, mas não significa que quando isso explodir, não
acabemos sofrendo uma baixa de clientes e sócios.
Balancei a cabeça, olhando de um para o outro.
— Vocês têm ideia do que estão pedindo? Querem que eu
simplesmente deixe que ela saia daqui como uma vítima? — perguntei,
sentindo a incredulidade me atingir diante dessa insanidade vinda deles. —
E que, ao sair daqui com a ficha limpa, ela possa fazer isso novamente em
outro lugar, e nós seremos os responsáveis?
Nathalia engoliu em seco, porque estava claro que ela não tinha
pensado nessa parte da situação.
— Eles estão certos, Renato — disse Marc, chamando minha atenção.
— Vocês conseguiram conter os danos com Guilherme, mas desta vez não
será tão simples. A CVM será pressionada a investigar o escritório, e suas
operações podem ser congeladas por meses. É uma perturbação que não
vale a pena enfrentar agora — explicou, levantando-se para buscar seu
telefone que estava carregando em minha mesa.
Meus ombros retesaram e busquei pelo rosto da garota que, minutos
atrás, estava tomada pelo ódio.
— Você teria a mesma opinião se fosse qualquer outra pessoa do
outro lado da mesa, Renato — Leandro falou, alçando a sobrancelha e me
encarando com seriedade. — O único motivo para estar tão determinado a
jogar toda a merda no ventilador, é porque a Nathalia está do outro lado.
— Isso não tem nada a ver com a Nathalia — murmurei, entredentes.
— Vocês não conseguem se dar conta de que ela pode ter feito mais coisas,
e só não sabemos ainda? O que vai acontecer se daqui a uns meses,
descobrirmos que ela falsificou a sua assinatura de novo?
Minha mulher deu um passo para trás, engolindo em seco ao ser
lembrada daquela possibilidade.
— Vamos passar por uma auditoria interna — sugeriu Leandro,
colocando o braço sobre o encosto do sofá. — Podemos trazer uma equipe
especializada para investigar e encontrar os ratos escondidos nas paredes.
Dessa forma, podemos lidar com os danos internamente. É melhor que a
justiça seja feita por nós, em vez de permitir que a CVM tome medidas
contra todos nós.
Meus olhos permaneceram fixos em Nathalia, como se isso pudesse
me fazer entender o que estava passando em sua cabeça.
— Faremos dessa forma — disse ela, aceitando a sugestão do Salazar.
— Não, não faremos.
Ela cerrou a mandíbula, olhando-me irritada.
— Me deixem falar a sós com a Nathalia — pedi, vendo os dois
murmurarem em resposta e saírem da minha sala, fechando a porta atrás de
si.
— Eu não vou mudar de opinião — assegurou, imperturbável.
— Cinco minutos atrás, você estava pronta para acabar com ela.
— Sim, mas eu mudei de ideia — ela disse, cruzando os braços
diante do corpo em um sinal claro para que eu não me aproximasse. No
entanto, isso não me impediu de caminhar em sua direção. — Leandro está
certo, você só quer vingança porque aconteceu comigo. Se fosse qualquer
outro sócio, estaria pensando de forma racional e concordaria conosco.
Conforme eu me aproximava dela, Nathalia dava alguns passos
curtos para trás para tentar estabelecer distância entre nós, mas não
demorou até que seu quadril colidisse com a minha mesa, deixando-a sem
alternativa para fuga.
Minhas mãos descansaram na mesa, uma de cada lado do seu corpo,
restringindo a sua movimentação. Meus olhos vasculharam seu rosto,
buscando pelas respostas para as perguntas que eu sequer sabia quais eram.
— Quando falamos sobre minha promoção — ela disse em um tom
suave, olhando para mim por baixo dos cílios —, eu te disse que um dia te
pediria algo. E independentemente de odiar isso, você me daria. — Sua mão
alcançou meu peito, abrindo alguns botões da minha camisa, e ela suspirou.
— Você disse que me daria qualquer coisa que eu precisasse.
As memórias do nosso jantar meses atrás, quando precisei contar para
ela o que Roberta havia feito, retornaram para a minha cabeça. Aquilo
parecia ter acontecido há uma vida, mas eu ainda me lembrava de cada
palavra que dissemos um ao outro. Na verdade, não existia nada que ela me
dissesse que não estivesse profundamente gravado em minha memória.
No entanto, odiei profundamente que ela quisesse usar minha
promessa justamente naquele momento.
— Você me deu a sua palavra — insistiu, abrindo o último botão da
minha camisa e arrastou as unhas em minha pele, espalhando arrepios pelo
meu corpo que sempre correspondia aos seus toques.
— Essa é a sua maneira de conseguir me fazer cumprir com a minha
palavra? — questionei, aproximando o rosto do seu e ela esboçou um
sorrisinho travesso e balançou a cabeça.
Nathalia espalmou as mãos em minha mesa e impulsionou o corpo
para cima, sentando-se em cima dela e seus dedos envolveram a gola da
minha camisa, puxando-me para que eu me encaixasse entre suas pernas.
— Não, você vai cumprir com ela, porque você nunca mente para
mim — afirmou, muito segura daquilo e sua mão escorregou em minha
nuca.
Meus dedos encontraram seu próprio caminho para a sua nuca, e
enrolei os fios em meu punho, forçando-a inclinar a cabeça para trás,
nivelando seu rosto, o que fez com que seus lábios roçassem aos meus.
— Então, o que você está tentando fazer aqui, diabinha?
Ela sorriu, tentando conter o tremor que percorreu seu corpo quando
minha mão livre invadiu o seu vestido, arrastando os dedos em sua pele
macia, sentindo-a abrir ainda mais as pernas para me receber e enlaçar meu
corpo com elas.
Nathalia era uma droga tão viciante, que bastava que me tocasse e ela
me deixava alucinado ao ponto de esquecer o que existia ao meu redor.
Quando meus dedos alcançaram a calcinha delicada, sentindo o seu
calor e umidade, eu não me importava mais com qual era o assunto que
discutíamos anteriormente, porque tudo o que meu cérebro se concentrava
era na necessidade de estar dentro dela.
— Agora? — Soprou contra os meus lábios, rouca e ofegante, quando
afastei o tecido, abrindo caminho para a exploração dos meus dedos. — Eu
só preciso que você me coma.
Seu pedido enviou uma ordem direta para o meu pau que já estava
mais do que desperto e implorava pela pressão da sua boceta apertada em
torno dele. Era um vício que nunca passava e que me deixava em constante
abstinência, porque nunca sentia que tinha o suficiente dela.
Comer a Nathalia na minha mesa era uma fantasia que vinha
rondando minha mente há muito tempo, mesmo antes dela ser minha pela
primeira vez. O autocontrole que eu precisava exercer diariamente ao vê-la
andar o escritório com aqueles vestidos e saias que realçavam suas curvas,
quase como uma segunda pele, era uma prova de que eu era o homem mais
controlado do mundo.
Um gemido delicioso escapou dos seus lábios quando meus dedos
escorregaram pela fenda melada, lentamente, testando para saber o quanto
estava pronta para mim. O problema era que Nathalia sempre estava mais
do que preparada para me receber, a sua boceta havia sido moldada para me
encaixar perfeitamente em seu interior.
— Hm… — meus lábios correram pelo seu pescoço, dividido entre
beijar a sua pele macia e sentir seu gosto doce, mordiscar a pele sensível e
senti-la estremecer em meu domínio e apreciar os arquejos que escapavam
do fundo da sua garganta. — E como você precisa que eu te coma,
diabinha?
Um gemido sofrido escapou dos seus lábios quando meus dedos
ameaçaram escorregar para dentro dela, mas não concluíram o caminho.
Seu quadril se moveu em minha direção e seus olhos queimaram nos meus
com ímpeto.
Todo aquele ódio que estava sentindo antes, havia se transformado
em um desejo voraz que poderia nos engolir vivos, caso ela não encontrasse
o alívio que precisava.
— Com força. — Ela ofegou, afundando as unhas em minha nuca
quando ameacei invadi-la novamente.
— Com força, é? — provoquei, mordiscando o lóbulo da sua orelha e
a ouvindo arquejar, massacrando minha pele em resposta.
Meus dedos escorregaram em sua boceta, a sentindo esmagá-los em
resposta.
Ela era tão quente que era insuportável não estar ali dentro, eu
poderia morar entre suas pernas, sem qualquer problema.
Nathalia balançou a cabeça, embriagada, e ela puxou meu rosto para
perto do seu, colidindo nossas bocas e gemendo contra os meus lábios.
Meus dedos se moviam em seu interior, batendo forte nela e a sentindo se
apertar ainda mais a cada investida que eles faziam.
Ela aumentou o aperto das suas pernas ao meu redor, impedindo-me
de me afastar enquanto seus lábios duelavam com os meus, buscando pelo
alívio que tanto queria para aplacar a combustão que estava ameaçando a
destruir.
Afastei meus lábios dos seus, descendo pelo seu pescoço, afundando
o rosto na curva delicada e sugando a veia sensível que pulsava naquele
ponto. Ela estremeceu, aumentando o aperto dos seus dedos em meu cabelo
e minha mão em seu cabelo, desceu por suas costas, buscando pelo zíper do
vestido que ela usava e o arrastando para baixo, livrando-a da peça
desnecessária.
Seu colo ficou exposto e os seios médios preencheram minha visão
quando o tecido se acumulou em sua cintura, denunciando a ausência de
sutiã. Minha boca não demorou a abocanhar um, deixando que minha
língua brincasse com o mamilo intumescido, prendendo-o entre meus
dentes levemente e fazendo pressão, arrancando um gemido arfante dela e
sentindo suas paredes me apertarem ainda mais.
Pude ver todo o seu corpo se arrepiar e estremecer sob os meus
avanços, tão sensível e minha, que eu seria capaz de matar o filho da puta
que entrasse na sala sem minha permissão para interromper aquele
espetáculo que eu estava assistindo.
Era isso o que Nathalia era para mim.
Uma peça de arte tão rara e preciosa, que eu precisava olhar para ela
constantemente para que pudesse apreciar toda a sua glória.
Eu não era adepto a vícios até conhecê-la.
Nunca fui um homem crédulo, mas me tornei um devoto da sua aura
divina.
Ela era o meu começo, meio e fim, e cada célula do meu corpo havia
sido projetada para adorá-la no momento em que ela fosse minha. Não
importava quanto tempo demorou para que eu pudesse tê-la em meu
domínio, no momento em que entrou no meu caminho, eu soube que
Nathalia era a mulher que teria tudo de mim.
Nada do que eu fizesse por ela seria demais. Ela poderia me pedir
qualquer coisa e eu concederia sem hesitar, desde que nunca saísse de perto
de mim, porque ela era a explosão estelar que iluminava a minha vida.
Toda estrela estava destinada a nascer e morrer, mas apenas algumas
conseguiam transformar a sua queda em um evento tão raro e
extraordinário, que se tornava um espetáculo diante dos olhos. Nathalia era
a minha supernova. Eu a assistia nascer e explodir como um bilhão de
estrelas a cada dia, transformando cada minuto ao seu lado em uma
experiência única e transcendental.
Não haveria uma existência em que eu estivesse, em que não fosse
destinado a tê-la em minha vida. Eu não a aceitava. Nathalia estava
enraizada em mim como nada nunca seria capaz de ser marcado, e ela não
sairia mesmo que tentassem arrancá-la de minha pele, porque seu efeito já
tinha se espalhado por todo o meu organismo.
Minhas mãos alcançaram suas pernas, incentivando-a aliviar o aperto
em que me mantinha e antes que ela pudesse se queixar pela ausência dos
meus dedos em sua boceta, meu rosto mergulhou entre suas coxas,
permitindo que minha língua substituísse a invasão que meus dedos faziam
anteriormente.
Seu gosto doce me cegou e afundei meus dedos em suas coxas,
impedindo-a de se mexer enquanto a devorava com toda a fome que ela
despertava em mim.
Com força.
Porra, ela queria que eu a comesse com força.
Como se eu fosse capaz de fazer diferente, quando era viciado em
ouvir seus gemidos altos, entrecortados e mesclados a súplicas para que eu
não parasse de foder com ela.
Chupei-a como se minha vida dependesse disso, alternando com
lambidas e mordidas leves, fazendo com que suas pernas sobre os meus
ombros tremessem quando o orgasmo a invadiu e ela se desmanchou em
meus lábios, permitindo que eu tomasse cada gota do seu ápice.
Seus dedos apertaram meu cabelo, buscando pela minha boca para
que pudesse provar do próprio gosto em meus lábios, e eu não me demorei
em conceder exatamente o que ela queria, deixando que soubesse o quanto
era doce.
Meu pau pulsou dolorido em minha calça, clamando pela libertação e
minha mão livre tateou a minha mesa, buscando pela primeira gaveta;
enquanto sua língua disputava com a minha pelo controle. Alcancei o
invólucro que estava guardado ali e o abandonei na mesa, próximo do meu
alcance, enquanto os dedos dela brigavam com o meu cinto e os botões da
minha calça, tentando livrar-se deles com pressa.
Sua mão invadiu minha boxer e senti seus dedos delicados traçarem o
contorno das veias que marcavam meu pau, antes de envolvê-lo em sua mão
pequena.
Nathalia libertou a minha ereção e aprisionou meu lábio inferior entre
seus dentes com força. Em compensação, meu aperto em seu cabelo se
tornou mais grosseiro e forte, arrancando um gemido dos seus lábios ao
afastar nossas bocas.
Minha putinha diabólica era tão perfeita para mim, que seus lábios se
moldaram em um sorriso safado em resposta. Ela adorava quando eu perdia
qualquer controle e a tratava daquele jeito mais áspero, e eu era refém de
arrancar aquele brilho das suas íris castanhas.
— Eu vou te comer aqui — avisei, minha voz não passando de um
sopro áspero. — Mas quando estivermos em casa, você ainda vai precisar
esfregar essa boceta gostosa na minha cara — sentenciei, vendo sua cabeça
balançar repetidamente em resposta. — E eu vou te comer a noite inteira,
como compensação por atender aos seus caprichos — rosnei contra seus
lábios e ela suspirou.
— É o meu castigo? — perguntou, falsamente inocente. — Eu o
aceito.
— Claro que aceita… — minha mão se enroscou em sua garganta,
sentindo a sua pulsação acelerada entre meus dedos —, você é a minha puta
favorita.
Nathalia ameaçou dizer algo, mas ela não teve tempo hábil para isso.
Sem qualquer aviso, meu pau a invadiu exatamente da maneira que havia
me pedido, com força, duro e sem ter piedade dela.
Sua sorte era que as paredes eram protegidas acusticamente, caso
contrário, o prédio inteiro teria escutado o grito que irrompeu do fundo da
sua garganta quando meu pau avançou em seu interior, sentindo sua boceta
apertada estrangular o meu comprimento, apertando com tanta força que me
cegava.
Ela jogou a cabeça para trás, permitindo-me explorar o seu pescoço e
a cada investida que meu pau fazia em seu interior, seus gemidos ficavam
mais altos e soluçantes. Nathalia arranhou meu peito, apertou meus ombros
e me mordeu numa tentativa de abafar os gritos deliciosos que escapavam
dos seus lábios a cada estocada, mas a cada vez que tentava silenciar o
próprio prazer, eu metia mais fundo e forte, arrancando tudo dela.
Seu orgasmo veio tão rápido quanto o primeiro e antes que ela
amolecesse sobre a mesa, a tirei de cima do móvel e a coloquei de costas
para mim, buscando pelo invólucro e o rompendo, vestindo a camisinha.
Odiava sentir que existia qualquer coisa entre nós, porque era viciado na
sensação de comê-la com a suas paredes me aquecendo, mas ainda assim,
coloquei a proteção e me aproximei dela.
— Segure-se na mesa, amor — mandei, rouco e grave, vendo suas
mãos espalmarem a madeira escura, segurando-se nela como uma boa
garota.
Enrolei seu cabelo em meu pulso, apertando-o firmemente e
permitindo que meu pau invadisse novamente sua boceta, espalhando sua
lubrificação por toda a extensão. A boceta de Nathalia me estrangulou e
suas unhas buscaram pelo meu braço, buscando por uma superfície em que
poderia descontar toda a onda de prazer que a atravessava.
Quando suas paredes se apertaram ao meu redor, anunciando um
novo orgasmo se aproximando, eu me retirei de dentro dela sob seus
protestos, mas meu pau encontrou caminho entre a sua bunda redonda,
enfiando-se entre as nádegas e arrancando um tremor violento dela.
— Shh, você me pediu para te comer com força, diabinha —
tranquilizei-a, fazendo carinho em suas costas para que ela relaxasse um
pouco. — Você vai me deixar te comer do jeito que merece?
Ela soluçou ao sentir a pressão do meu pau em seu buraco apertado e
balançou a cabeça em resposta.
— Sim? — incentivei, grudando suas costas em meu peito e
permitindo que meus dedos envolvessem sua garganta, apertando-a. —
Você quer que eu coma a sua bunda também?
A pergunta era retórica, porque cada músculo do seu corpo ficou
amolecido quando forcei mais um pouco a minha entrada. Eu vinha a
preparando há semanas para isso e não via a hora de ter cada pedaço dela
para mim. Suas unhas apertaram ao meu redor e um soluço alto escapou dos
seus lábios quando ela balançou a cabeça, embriagada.
— Preciso escutar da sua boca, diabinha.
Ela choramingou, deixando que seus dedinhos delicados
escorregassem por entre suas pernas e seu quadril ondulou diante do
estímulo em seu clitóris.
— Sim… meu Deus… sim! — Gritou quando soltei seu cabelo para
impedir que ela se desse prazer.
Em relação a ela, eu era possessivo o suficiente para sentir ciúmes até
mesmo dos seus dedos. Nada nesse mundo tinha autorização para arrancar
aqueles gemidos e espasmos do seu corpo, apenas eu. Ela poderia fazer de
mim o que quisesse, eu estava mais do que disposto a ser seu brinquedo
sexual, contanto que fosse o único que tocaria em seu corpo.
Meus dedos invadiram a sua boceta, ao mesmo tempo que meu pau
forçou a entrada em seu cu, sendo sufocado pelo seu aperto. A onda de
prazer que me atingiu me cegou, ao ponto de precisar me controlar para não
entrar de uma única vez, machucando-a.
Nathalia cambaleou para frente e suas pernas enfraqueceram. Seu cu
virgem era ainda mais apertado do que a sua boceta, e conseguiria me
deixar tão viciado quanto. Sua boceta moeu em torno dos meus dedos e o
soluço delirante que escapou dos seus lábios, me deu o incentivo que
precisava para forçar um pouco mais a entrada, para que entrasse até a
metade.
Ela choramingou, jogando suas costas contra o meu peito e rebolando
contra os estímulos que meus dedos aplicavam em sua boceta e clitóris,
fazendo com que seus músculos relaxassem e ela não sentisse tanta dor pela
primeira vez.
Meu nome escapou dos seus lábios em meio a um arquejo e uma
súplica para que eu a comesse com força e mais rápido, e isso foi o
suficiente para me libertar do autocontrole ao qual estava me agarrando.
Meti fundo em sua bunda, fodendo com ela da mesma forma que
aquela pequena diaba estava fodendo com a minha cabeça desde que entrou
em meu caminho. Descontei em sua bunda por cada vez que tentou fugir de
mim e renunciar ao quanto era minha.
Nathalia gritava em meio aos gemidos, e meus dedos em sua boceta
não paravam de foder com ela também, acompanhando o ritmo de cada
golpe que meu quadril aplicava em seu rabo.
Pude sentir cada pedaço do seu corpo enrijecer quando o orgasmo
começou a se aproximar, e o meu não estava tão longe assim. Seu cu
apertava meu pau com tamanha violência que eu conseguia sentir que iria
gozar o quanto antes.
Minha mão livre buscou pelo seu cabelo, mantendo-a colada em meu
corpo porque odiava a ideia de qualquer distância sendo estabelecida entre
nós, e quando suas pernas enfraqueceram, aprisionei o lóbulo da sua orelha
entre meus dentes.
— Firme e forte, diabinha. — As palavras soaram tão roucas de
prazer que eu mal podia reconhecer minha própria voz. — Sem corpo mole
agora.
Ela soluçou de prazer, afundando suas unhas em minha pele.
— Você vai acabar comigo — choramingou, entorpecida, e memórias
da primeira vez em que foi minha voltaram para a minha mente.
Meti mais forte nela, ouvindo a minha sala ser tomada pelo barulho
dos nossos corpos colidindo; dos seus gemidos arfantes e da minha própria
respiração acelerada.
Nathalia podia ter duvidado de mim naquela noite, mas eu sabia que
ela seria minha até o último dia da minha vida.
E ali estava ela, desmanchando-se em um orgasmo tão violento que
sua boceta jorrava em meus dedos, em um squirt delicioso de se
contemplar.
Meu próprio gozo chegou mais rápido do que eu esperava ao senti-la
se desmanchar ao meu redor, apertando meu pau em sua bunda.
Seu corpo cambaleou para frente, jogando-se por cima da mesa, sem
forças, enquanto eu me retirava de dentro dela, livrando-me da camisinha
cheia de porra.
Suas pernas ainda tremiam quando eu me aproximei dela novamente,
tomando cuidado para não a machucar e a levei para o banheiro privativo
que eu tinha na minha sala, entrando no chuveiro quente com ela para que
nos limpássemos, mas aquilo foi o suficiente para que eu mergulhasse
dentro dela de novo. Porque era isso o que Nathalia era em minha vida.
O meu vício irrefreável. Meu começo, meio e fim.
Assim que tive certeza de que Nathalia tinha pegado no sono, deixei
um beijo em suas costas, ouvindo-a suspirar e se aninhar mais ao
travesseiro, exausta.
Deixá-la nua na minha cama era um teste de resistência, mas forcei
meus pés a se moverem para fora do quarto depois de tomar uma ducha.
Passei rapidamente no quarto de Igor e de Matheus, checando se
estavam dormindo, mesmo sabendo que não acordariam tão cedo.
Enviei uma mensagem para Marc, avisando que estava descendo e
como ele morava em um dos prédios do condomínio, não demorou para que
ele confirmasse que me encontraria no estacionamento. Notifiquei a equipe
de segurança que estava de saída, e Sérgio me encontrou junto com meu
advogado.
— Está tudo aqui? — questionei, apanhando o envelope que Marc me
entregou e ele meneou a cabeça.
— Sim, mas você não prefere que eu te acompanhe? — Seu olhar não
escondia a sua preocupação, mas apenas balancei a cabeça em negativa.
— Não se preocupe. Sérgio vai como minha testemunha — falei
simplesmente, o olhando em agradecimento. — Como andam as compras
de cotas?
— Quatro sócios aceitaram o valor oferecido e vão me encontrar na
próxima semana para seguir com a venda — disse, dando de ombros e
olhou por cima dos meus ombros.
Eu segui seu olhar, encontrando outros dois seguranças se
aproximando para nos acompanhar em um outro carro. Voltei a encarar meu
advogado, com tranquilidade.
Leandro e eu tivemos uma conversa recente e chegamos à conclusão
de que seria melhor voltarmos ao que éramos antes, quando o escritório era
composto apenas por nós dois e as coisas eram mais simples. Manteríamos
as filiais e os sócios que estavam nelas, pois eles não faziam muita
diferença, eram mais flexíveis e suas participações na sociedade não eram
tão significativas.
Eu estava cansado da constante vigilância que me impedia de chegar
a menos de quinhentos metros da minha esposa dentro do escritório.
Por bem ou por mal, Leandro não queria lidar com outro conselho
parecido ao que testemunhamos no caso do Guilherme. Portanto,
concordamos em nos dividir para comprar as cotas dos sócios, de modo a
não ultrapassar qualquer limite estabelecido.
Quando chegamos em casa, Nathalia foi ajudar Matheus a emoldurar
um desenho que ele havia feito na escola, e aproveitei para conversar com
meu sócio e amigo. Ao propor minha solução para lidar com a saída de
Roberta, ele não hesitou nem por um momento. Até Leandro estava cansado
de lidar com a ambição dela.
Assim que me despedi de Marc, fui acompanhado por três seguranças
para fora do prédio e atravessamos até o outro lado da Av. Paulista, já que
Roberta morava em condomínio antigo que ficava na Pamplona, próximo
ao escritório.
Não precisei ser anunciado pelo porteiro, ele já me conhecia da época
que Leandro e eu vínhamos até a sua casa para negociar os termos da fusão,
então assim que o elevador começou a subir, preparei-me para manter a
calma com ela.
Uma mensagem surgiu em meu celular.
Leandro:
Resolveu o problema?
Deixei para respondê-lo depois que saísse daqui e meus olhos
acompanharam o marcador, enquanto Sérgio me explicava sobre a sua
busca por André.
— O problema é que ele desapareceu e não está indo atrás nem das
pessoas que o Rodolfo tinha, marcadas como parte do esquema — disse ele,
fazendo com que meus ombros tensionassem. Aquele problema com André
ainda era uma coisa que me tirava o sono todas as noites.
— Como está a investigação da morte daquela garota? Ramona?
Sérgio espreitou os olhos na tela, reflexivo.
— A polícia abandonou a investigação, como a encontraram dentro
de uma comunidade, deduziram que foi um assunto interno… e eles não se
envolvem nisso — explicou ele, e eu concordei com a cabeça.
À medida que as portas se abriram, não fiquei surpreso ao encontrar
Roberta parada em frente à porta, pois ela já sabia que eu estava a caminho.
Ela me olhou como se pudesse me dizer qualquer coisa que
justificaria o crime que cometeu, mas eu não me importava com suas
explicações. Nathalia estava certa em uma coisa: uma vez era um
inconveniente, duas era um padrão.
Primeiro, Roberta ocultou o verdadeiro problema entre Nathalia e
Guilherme, permitindo que ele continuasse no escritório mesmo após
assediar minha esposa.
Em seguida, ela manipulou seus próprios números utilizando os
clientes de Nathalia para isso, tentando nos convencer de que Nathalia
estava ciente e havia autorizado tais ações.
Além disso, ela tentou humilhar Nathalia em cada oportunidade que
teve e ameaçou expor nosso relacionamento ao conselho.
E como se tudo isso não bastasse, ela ainda teve a audácia de ajudar
Guilherme a convocar uma reunião com a intenção de expor nosso
relacionamento… e tudo isso por quê?
Ela achou que ao me tirar do cargo de diretor executivo e rebaixar
Nathalia de sua posição de COO, conseguiria garantir que não
descobríssemos o que estava fazendo debaixo de nossos narizes?
— Renato, eu… — tentou dizer, mas fiz sinal para que se calasse,
porque eu realmente não queria ouvir suas justificativas.
— Estou fazendo isso agora como sinal de cortesia, caso contrário,
teria feito amanhã no escritório, na frente de todos. — Caminhei em sua
direção, quebrando a curta distância entre nós. — Sérgio está aqui como
testemunha de que eu não te coagi ou te forcei a nada — prossegui,
entregando o documento que Marc havia preparado. — Nesse envelope,
existem três documentos que você precisa assinar.
Ela franziu o cenho, rompendo o lacre e retirando as folhas dele.
— Na primeira folha, é a sua carta de demissão. Nela, você deixa
claro que está saindo do escritório porque decidiu que, após tantos anos de
dedicação à carreira, é o momento de priorizar sua filha, Laura, a quem
você negligenciou nos últimos anos devido ao trabalho. — Recitei o
conteúdo do documento por cima, enquanto Sérgio me entregava uma
caneta. — Na segunda folha, você vai transferir suas cotas na empresa para
Nathalia…
Seus lábios se entreabriram para questionar, mas a interrompi.
— Isso não é negociável. Você obteve as cotas por causa dela. Eu irei
cobrir o seu desfalque, então, eu determino a forma como você irá me
reembolsar. E será desta maneira: você deixará o meu escritório, e nunca
mais me verá novamente… e em troca, eu não arruinarei a sua vida —
ofereci, sem mostrar emoção. — Na terceira folha, há uma carta de
confissão. Ela não será divulgada publicamente, mas se você tiver cometido
qualquer outro crime no escritório, mesmo que tenha sido antes da fusão, e
tiver usado Nathalia como escudo para se proteger… você assumirá toda e
qualquer responsabilidade por isso.
— Eu não vou…
— Sim, você vai. Como eu disse, não há margem para negociação —
falei, estendendo a caneta para ela. — Ou você aceita a minha clemência,
ou terá que lidar com a polícia federal e a CVM. Faça a sua escolha.
Roberta afastou o seu olhar do envelope e me encarou, com
ressentimento.
— Você não vai nem me dar o direito de me explicar? — questionou,
com a voz rouca e os olhos marejados.
Eu poderia considerar isso por causa dos bons momentos que tivemos
em nossa juventude. Naquela época, Roberta era uma boa amiga e estava
sempre presente para apoiar e ajudar no que fosse necessário. Isso tornava
ainda mais triste o que ela se tornou nos últimos anos.
— Você perdeu esse direito há muito tempo.
Ela engoliu em seco, ciente de que, diferente de Leandro que poderia
se compadecer e escutar todos os motivos que a levaram a se tornar essa
pessoa desprezível, eu não concederia a mesma brecha. Depois que
erravam, as pessoas só tinham mais uma chance para errar comigo. Eu
havia sido mais do que complacente com Roberta em todo esse tempo.
Contrariada, ela pegou a caneta da minha mão e, sem pressa, assinou
e rubricou todas as páginas. Quando terminou, Roberta encarou as páginas
como se elas pudessem pegar fogo com o seu olhar, em seguida, as entregou
para mim com uma máscara de rancor em seu rosto.
— Espero que valha a pena para você — rosnou, com raiva contida.
— Porque, eventualmente, você descobrirá que Nathalia não é o anjo que
você acredita que ela seja, e verá que não valeu a pena entrar em conflito
com meio mundo para defender uma cobra criada.
Respirei profundamente, mantendo a calma.
— Você deveria ter mais cuidado ao falar sobre ela — pontuei,
entregando o documento ao meu segurança para que ele assinasse onde
estava sinalizado, como testemunha.
A câmera de segurança que gravava nossa conversa à minha esquerda
poderia comprovar que não houve qualquer coerção de minha parte.
Roberta riu, amargurada.
— Eu deveria?
— Sim, porque é por causa dela que você tem a oportunidade de virar
as costas agora, entrar no seu apartamento e ficar com sua filha. Caso
contrário, você estaria saindo algemada deste prédio.
Ela teve sorte de eu ser um homem de palavra, e ter dado a Nathalia a
garantia de que, quando ela me pedisse algo, eu atenderia ao seu desejo.
Caso contrário, ela estaria agora atrás das grades, ao lado de seu amigo
Guilherme.
Naquele final de semana, Amália decidiu se aproveitar que eu não
conseguia recusar as coisas que a Nathalia me pedia, para convencê-la a me
arrastar para o interior de São Paulo.
A última vez que estive em Vale da Serra Verde[56]
foi quando eu
tinha cerca de dezesseis anos, e desde então nunca mais retornei à cidade
onde meus pais cresceram. Embora meus filhos costumassem visitar minha
família materna lá, com o tempo, eu aprendi que os laços sanguíneos não
podiam nos obrigar a abandonar nossos valores e aceitar tudo em nome da
“família”.
Desde criança, eu aprendi a compreender que Vicente Monteiro, meu
avô, era tudo o que eu não queria ser na vida, e, consequentemente, evitava
ao máximo qualquer interação dele com meus filhos. Enquanto o carro
ultrapassava os imponentes portões da propriedade, minha visão foi
preenchida pela vastidão verde das plantações de café.
A Fazenda Monteiro era uma das maiores da América Latina,
exportando seu café para todo o mundo e valendo bilhões, o que conferiu a
Vicente o título de Rei do Café. No entanto, o que deveria ser apenas um
reconhecimento pela magnitude de sua propriedade, acabou se tornando
uma desculpa para o constante uso de sua influência na pequena cidade,
transformando a vida daqueles com quem não tinha simpatia em um
verdadeiro inferno.
Apesar de Eduardo ter perdoado meu avô para fazer minha mãe feliz,
eu nunca esqueceria de como ele aproveitou cada oportunidade para
arruinar a vida do meu pai e de meus avós paternos.
Meus pais nunca precisaram me contar como foi quando se
conheceram e começaram a se envolver. A cidade era pequena e todos
testemunharam a batalha que travaram, enquanto Vicente não poupava
esforços para destruir tudo o que meu pai tinha, simplesmente por ter se
apaixonado pela minha mãe.
Para o meu avô, o fato de o filho de um comerciante local ter sido
responsável por fazer com que sua caçula desistisse de um relacionamento
arranjado, que nem mesmo havia começado, foi considerado um crime que
ele jamais aceitaria. Não porque ele queria que Amália se comprometesse
com o filho de um de seus amigos, mas sim porque meu pai não possuía a
linhagem que, aos olhos de Vicente, era de extrema importância.
Meu avô era um filho da puta elitista desprezível, disposto a submeter
sua própria filha a um casamento forçado apenas para evitar que ela se
envolvesse com um homem que não trazia qualquer benefício para ele. Para
Vicente, o sobrenome Monteiro carregava toda a pompa aristocrática que
ele considerava essencial para ser um membro valoroso na sociedade. O
fato de minha mãe ter se casado com meu pai era como trazer um câncer
maligno que arruinou a pureza de sua linhagem superficial e vazia.
Amália havia escolhido perdoar meu avô nos últimos anos e
acreditava firmemente que ele havia mudado e se transformado em uma
pessoa melhor do que era antes. Meu pai também o perdoou em nome do
amor que sentia por minha mãe, porque sabia o quanto era importante para
ela manter uma relação amigável com seu pai.
No entanto, eu não me permitia ter essa mesma concessão, pois, ao
contrário do que minha mãe acreditava, Vicente não havia mudado. Em
cada uma de nossas interações nos últimos anos, desde a minha última
visita à fazenda, ele mostrou repetidamente que ainda era o mesmo
desgraçado arrogante e preconceituoso.
Enquanto dirigia pela estrada principal da fazenda, uma sensação de
nostalgia e desconforto me invadiu, enquanto a mão suave de Nathalia
permanecia entrelaçada na minha, acariciando-me e me transmitindo
tranquilidade para evitar que eu desistisse da ideia.
Minha mãe ficou extremamente feliz quando confirmei minha
presença no nonagésimo aniversário de Vicente, chegando até a chorar, e eu
não queria arruinar aquele momento simplesmente por não conseguir
controlar meu desprezo em relação ao meu avô.
Meus olhos subiram para o retrovisor, vendo que Matheus e Igor
ainda estavam dormindo após quase quatro horas de viagem de carro. No
carro atrás do meu, estava o de Sérgio e Victor, como passaríamos o fim de
semana longe da cidade, não havia necessidade de trazer uma equipe maior
que os dois, e à minha frente estava o do meu pai, que não demorou a entrar
na curva que nos levava para a casa ao fim da propriedade.
A mansão havia passado por algumas reformas desde a última vez em
que estive aqui, ganhando alguns chalés adicionais para abrigar os netos e
suas respectivas famílias, e como eu já sabia que não pretendia ficar perto
da casa principal e dar margem para conviver com Vicente mais do que o
necessário, fiz o caminho oposto ao do meu pai e subi pela estrada estreita,
indo em direção a um dos primeiros chalés que foram construídos na
propriedade.
— Você tem certeza de que está bem com isso? — Nathalia
perguntou, receosa, assim que estacionei o carro em frente a pequena casa e
virei o rosto para olhá-la.
— Estou, anjo. Não se preocupe — assegurei, deixando que minha
mão escorregasse em sua nuca e a trouxe para perto, deixando um beijo
demorado em sua testa. — Por favor, lembre-se que você não deve escutar
qualquer coisa que ele diga.
Nathalia soltou um suspiro. Eu havia compartilhado com ela todos os
motivos para que eu não convivesse com o meu avô, e apesar de ter me
prometido que não daria ouvidos para qualquer coisa que Vicente pudesse
dizer; eu ainda tinha as minhas dúvidas, porque ele conseguia passar dos
limites e ser extremamente desrespeitoso.
Ela sorriu, transmitindo tranquilidade, e inclinou levemente a cabeça
para encontrar meus olhos. Seus dedos se moveram em direção ao meu
rosto, deslizando suavemente sobre minha pele, seguindo o contorno da
minha mandíbula com extrema delicadeza, causando um arrepio que
percorreu minha espinha.
— Não se preocupe com isso. Seu avô não é o primeiro homem idoso
e elitista preso nos anos cinquenta que eu conheço — disse ela, enrugando a
ponta do nariz de maneira adorável. — Além disso, eu me apaixonei por
você e sei que não é como ele.
Sobre seus ombros, vi os meus seguranças serem levados para dentro
da casa por uma funcionária da fazenda. Não me surpreendia que Vicente
soubesse que eu buscaria por esse chalé para ficar, daria até os créditos a ele
por saber reconhecer o quanto eu queria distância dele.
— Tudo bem, pequena diaba.
Dei um beijo suave em seus lábios cheios, antes de me afastar e notar
que meus filhos ainda estavam profundamente adormecidos. Isso sempre
acontecia durante longas viagens de carro, e se Matheus não tivesse tanto
medo de helicóptero, provavelmente teríamos encurtado aquela viagem.
No início da tarde, Eduardo entrou no chalé e um sorriso se abriu em
meus lábios ao vê-lo carregando algumas flores que havia colhido no meio
do caminho.
— Como ele está? — perguntou, preocupado, buscando pelo filho e
soltei um suspiro, caminhando em sua direção e aceitando as flores.
— Ele foi tomar uma ducha depois de deixar os meninos na cama —
murmurei, aproximando meu rosto das rosas e sentindo o cheiro doce delas.
— Vicente é tão ruim assim?
Eduardo fez uma careta, como se ponderasse todas as palavras que
queria usar para descrever o sogro e indiquei que ele me acompanhasse até
a pequena cozinha disponível ali, enquanto eu colocava as flores em um
vaso. Em seguida, busquei por dois copos e servi um pouco de uísque para
o homem que aceitou prontamente, erguendo em um brinde silencioso.
Era surpreendente o quanto Renato era parecido com o seu pai. Não
apenas fisicamente, mas na própria personalidade.
— Ele já foi pior. — Foi tudo o que ele se limitou a dizer,
provavelmente, em respeito a esposa. — Mas Renato não deveria sentir
tanta raiva dele por algo que foi feito comigo.
Ri baixinho.
Na verdade, isso era extremamente característico do Renato. Ele
geralmente mantinha uma postura pacífica na maioria das situações, até que
alguém que ele amava fosse prejudicado. Eu poderia listar inúmeros
exemplos de como meu namorado era capaz de assumir as brigas das
pessoas que ele amava e defendê-las ferrenhamente, como se o dano tivesse
sido infligido a ele mesmo.
Embora tenha conhecido Henrique antes de Pedro e tenha convivido
mais com o irmão mais velho dos Zimmermann, era ao engenheiro ranzinza
que meu namorado defendia, mesmo quando ele estava errado. Da mesma
forma, apesar de alegar não ter paciência para lidar com Leandro, ele era o
primeiro a proteger o amigo quando algo acontecia. Ele se colocou ao meu
lado na briga com Roberta, deixando de lado sua sensatez e diplomacia para
confrontar todos que me fizeram mal. Ele cuidava de Bianca, mantendo em
segredo o câncer da mãe da minha amiga, mesmo precisando mentir para o
próprio amigo…
Ele era assim.
Seria estranho se não comprasse a briga do próprio pai.
— E para você? — perguntei, arqueando a sobrancelha com
curiosidade.
Eu conhecia a história dos dois porque Amália amava me contar
sobre como foi viver sua própria versão de Romeu e Julieta, e sabia que a
maneira que ela contava a história era uma forma de deixar as lembranças
ruins, um pouco menos ruins.
Com certeza, eu me veria fazendo isso no futuro com os meus filhos.
Preferia que eles soubessem uma versão um pouco menos caótica sobre
como conheci o pai deles, do que uma que os assustasse com o quanto o
mundo ao nosso redor poderia ser um completo desastre.
— Sinceramente? — indagou e acenei em confirmação. — Acho que
eu passei a entender um pouco a maneira como ele agiu depois que me
tornei pai — defendeu, deixando que uma ruga marcasse sua testa e a sua
mão deslizou pela barba grisalha. — Não digo que concordo com o discurso
de merda dele, mas por todo o restante, sabe? Eu não mediria esforços para
manter Renato seguro e longe de pessoas que poderiam se aproveitar dele.
Aquiesci, porque eu conhecia aquele discurso de cor e salteado.
Era o que meu pai recitava para mim a minha vida inteira.
Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, viramos o rosto para o
corredor paralelo ao ouvir Renato se aproximar e não demorou para que ele
surgisse em meu campo de visão, arrancando-me um suspiro.
Nunca me acostumaria em como ele era lindo.
Um cretino, mas ele era meu… e eu era tão sortuda por isso.
— Bom… eu vim aqui para chamá-los para subir comigo para a
mansão. Seu avô está esperando vocês para comermos — disse Eduardo,
alternando seu olhar para mim e para o seu filho.
— Os meninos estão dormindo e…
— Mara pode ficar com eles — Eduardo o interrompeu, antes que
insistisse na sua desculpa para recusar se juntar ao seu avô. Como se
soubesse que seria solicitada, minha antiga babá saiu do seu quarto no outro
corredor do chalé e nos deu um sorriso amável. — Faça isso pela sua mãe.
Renato fez uma careta e meneou a cabeça, olhando-me mais uma vez
como se quisesse confirmar que eu estava bem com aquela situação. Seu
receio em me deixar conhecer o seu avô estava me deixando um pouco
nervosa, porque apesar de ter afirmado que estava pronta para lidar com o
que quer que viesse de Vicente Monteiro, não tinha tanta certeza assim.
— Tudo bem — disse ele, incerto. — Nós subimos em alguns
minutos.
Eduardo acenou, concordando em dar o tempo que o filho precisava e
avisou que iria nos esperar na mansão. Mara avisou que estaria na varanda e
meu olhar se voltou para Renato quando ele buscou por um envelope que
estava entre as suas coisas desde manhã.
Ele havia saído de casa no meio da madrugada, eu sabia disso porque
acordei e a cama estava vazia e a única coisa que me disse, foi que havia
ido resolver o problema com Roberta. Apesar de acreditar que ele iria
cumprir a sua palavra e atender ao meu pedido de deixar aquilo de lado,
ainda estava desconfiada porque sabia que estava pedindo muito.
Renato estava certo, deixar que Roberta saísse ilesa era permitir que
ela fizesse aquilo outra vez e essa seria uma culpa que precisaríamos lidar.
— Teremos uma alteração no contrato e preciso da sua assinatura —
disse ele, olhando-me com serenidade. Foi isso que Marc deixou em casa
mais cedo? — Com a saída da Roberta, Guilherme e outros dois sócios,
Leandro e eu decidimos recomprar as cotas dos sócios sêniores que
estiverem dispostos a vendê-las.
Franzi o cenho, aceitando o documento que me entregou e passei os
olhos pela primeira página, reconhecendo as cláusulas.
— Outros quatro irão assinar a venda na semana que vem e as cotas
serão recolhidas para a tesouraria, mas precisamos fazer os devidos ajustes
no quadro societário com a saída dos outros dois sócios majoritários — ele
prosseguiu, entregando-me uma caneta, e meio que automaticamente, fui
rubricando as páginas que estavam no meio do caminho.
Tanto ele quanto Leandro e os demais sócios sêniores já tinham feito
aquilo, inclusive a própria Roberta.
— Vocês vão eliminar o Conselho? — perguntei, ao notar a alteração
na cláusula que mencionava as reuniões de sócios.
Logo abaixo, estavam as novas regras para relacionamentos no
escritório, e eles se certificaram de evitar qualquer problema jurídico devido
ao nosso envolvimento.
— Não definitivamente, mas, vamos reduzir os direitos para não
corrermos o risco de uma nova tentativa de golpe — disse.
Sua mão estava em minhas costas e seus dedos se arrastavam em
minha pele, subindo e descendo, deixando desenhos invisíveis e me
causando arrepios.
Aquiesci, sem me dar ao trabalho de ler todas as páginas. Confiava
em Renato cegamente ao ponto de saber que não precisava passar por cada
uma das linhas, Leandro e ele nunca fariam qualquer coisa que nos
prejudicasse e Marc havia cuidado de cada detalha dessa vez.
Quando meus olhos pousaram na última página, onde todas as
proporções de sócios estavam alocadas, meu coração ameaçou sair da caixa
torácica.
Renato Monteiro Trevisan: 34.000.000 quotas
Leandro Barbieri Salazar: 34.000.000 quotas
Nathalia Maia de Bazán Gama: 30.000.000 quotas
Tesouraria: 2.000.000 quotas
— Você ficou maluco? — Minha voz soou tão incrédula e estridente,
que me virei para ele encontrando seu sorrisinho cretino estampado nos
lábios.
— Pensei que tivéssemos concordado que isso era um fato, não uma
dúvida — falou, sem parar de arrastar seus dedos em minhas costas. —
Leandro está de acordo, na verdade, foi ele quem fez questão de que as
cotas de Roberta fossem para você. Era o justo.
Pisquei, atônita.
— Mas eu… você… — balbuciei, completamente em choque.
Meus olhos recaíram novamente no papel e reli os números mais de
dez vezes para ter certeza de que aquilo estava certo.
— Isso não é negociável, anjo. As ações são suas, quer você as queira
ou não — ele disse, mantendo seu olhar fixo em meu rosto. — Eu sei que
em algum momento você precisará assumir a Alpha, mas até que esteja
pronta para cuidar da empresa da sua família, você tem a nossa empresa, e
ela continuará sendo sua, mesmo quando você estiver na Alpha, porque não
existe uma RCI sem Nathalia Gama.
Entreabri os lábios, voltando a encará-lo como se isso pudesse fazer
com que as coisas soassem um pouco menos insana para mim, mas era
difícil pensar racionalmente quando Renato estava me olhando daquela
maneira devotada.
— Você é louco!
Ele meneou a cabeça, aproximando-se e depositou um beijo em
minha têmpora.
— Sim. Mas prometo que é apenas por você, diabinha — soprou em
minha orelha, enviando espasmos por todo o meu corpo. Sua mão livre
buscou pela minha, apertando carinhosamente. — Seja uma boa menina e
não implique com o que você sabe que não vai mudar.
Ri, balançando a cabeça.
— Você é tão tóxico, Renato Trevisan! — resmunguei, virando-me
para encará-lo e vi seus lábios se moldarem em um sorriso enviesado. —
Seu cretino!
Ele piscou para mim, indicando que eu assinasse o contrato de uma
vez por todas e respirei fundo. A caneta pairava em cima da linha que eu
precisava assinar, mas meu coração parou quando um choro baixinho soou
vindo do corredor ao meu lado.
— Mamãeeee!
Em um salto, abandonei Renato na cozinha e atravessei a distância
até o quarto em que Matheus e Igor estavam dormindo, vendo que o
pequeno havia acordado e parecia assustado. Seu choro acordou o irmão,
que rapidamente se levantou para tranquilizá-lo.
— O que houve, meu bem? — perguntei, sentindo o coração saltar
pela boca quando vi as lágrimas grossas rolarem pelo rosto de Matheus.
Matheus não disse nada, apenas esticou os braços em minha direção e
não pensei duas vezes antes de me aproximar dele, o pegando no colo e
deixando que seus bracinhos me esmagassem. Olhei para o Renato,
confusa, porque Matheus nunca acordava assustado daquele jeito.
— Deve ter sido um pesadelo — Igor refletiu, coçando os olhos,
sonolento. Seu olhar percorreu o quarto desconhecido e não foi difícil
deduzir que acordar em um lugar diferente do que estava familiarizado, o
assustou.
— Shh, meu bem, está tudo bem — falei baixinho quando o pequeno
soluçou.
Seus dedinhos mergulharam em meu cabelo, segurando uma
quantidade generosa e o apertando e soltando, como se isso o ajudasse a se
acalmar. Renato estreitou os olhos em nós, compenetrado, e Igor se afastou
para ir escovar os dentes quando o pai dele avisou que iríamos subir para a
mansão.
Levaram cerca de dez minutos para que Matheus estivesse mais
calmo, e quando o choro passou, Renato o levou para o banheiro para tomar
uma ducha, já que ele estava todo suado pelo pesadelo.
Meus olhos se voltaram para o Igor e ele tinha uma expressão
estranha no rosto, o que me deixou preocupada.
— O que aconteceu, meu bem? — perguntei, aproximando-me dele e
o pequeno deu uns passos para trás, assustado.
Hesitei, tentando descobrir o que eu havia feito de errado para que ele
estivesse tão assombrado comigo. Agachei-me para ficar da sua altura e
senti um vinco ocupar a minha testa.
— Mat te chamou de mamãe — disse, tão baixinho que se eu não
estivesse tão concentrada nele, não teria escutado. — E você veio.
Minha respiração se tornou desordenada quando o pequeno me fez
perceber algo que eu não havia prestado atenção. Ao ouvir o choro de
Matheus e seu chamado, nem passou pela minha cabeça questionar a
maneira como ele me chamou. A palavra soava tão familiar que meu
primeiro impulso foi correr em sua direção e descobrir o que havia
acontecido.
No entanto, isso pareceu perturbar Igor de uma maneira que me
causou uma dor absurda, dificultando minha capacidade de respirar
normalmente.
O medo da rejeição me atingiu com tanta intensidade que tive que
colocar a mão no peito, como se isso pudesse aliviar a sensação dolorosa
que se instalou lá.
— Eu vim. — Foi tudo o que consegui dizer, sentindo minha visão se
embaçar enquanto as lágrimas começavam a escorrer pela sua bochecha.
— Você quer ser nossa mamãe? — A voz de Igor soou embargada e
percebi as lágrimas que também estavam rolando pelo meu rosto.
Meu coração começou a bater descompassado, e agradeci
silenciosamente por estar agachada, pois minhas pernas não teriam sido
capazes de suportar o impacto daquela pergunta. Havia uma mistura de
expectativa e receio em seus olhos que me atingiu com tamanha
intensidade, que precisei conter o desejo instintivo de envolvê-lo em meus
braços para que nunca duvidasse daquilo.
Arrastei meus dedos trêmulos em sua bochecha para enxugar as suas
lágrimas, odiando vê-lo chorar por minha causa.
— É tudo o que eu mais quero, meu amor.
Igor piscou, tentando se livrar das lágrimas, mas isso fez apenas com
que rolassem em maior quantidade.
— Por quê?
Sua pergunta me machucou de várias maneiras que eu não conseguia
expressar em palavras, porque eu sabia de onde ela vinha. Se sua mãe
biológica, que era responsável por tê-lo trazido ao mundo, não quis fazer
parte da sua vida, por que eu, uma estranha, iria querer?
O problema era que Igor e Matheus me mostravam a cada dia que,
não importava que não fossem meus filhos biológicos. Eles eram meus
filhos, e nenhum DNA mudaria isso.
Engoli o choro preso em minha garganta, ouvindo Renato sair do
banheiro com Matheus enrolado em uma toalha e o pequeno estava todo
sorridente, sequer parecia que havia acordado em prantos a alguns minutos.
— Mamãe! — O pequeno me chamou de novo, mostrando sua toalha
com o rosto do Hulk na touca, meus olhos se voltaram para ele e pude ver o
próprio Renato paralisar ao se dar conta do que Matheus tinha dito.
As lágrimas que eu estava tentando conter, se soltaram e começaram
a me transformar em uma bagunça de sentimentos. Meus olhos se voltaram
para Igor que ainda aguardava pela minha resposta e respirei fundo,
tentando me controlar porque eu era a adulta daquela situação.
— Eu amaria ser a sua mãe, meu bem — falei, com sinceridade,
sentindo os olhos do meu namorado fixados em mim. — Não existe nada
nesse mundo que eu gostaria mais, porque amo você e o seu irmão desde
que entraram na minha vida.
Os lábios de Igor tremularam com o choro que ele estava tentando
conter e ele desviou seu olhar para o pai, que nos observava com atenção.
Quando o pequeno se voltou para mim, aquela mesma intensidade que o pai
dele emanava estava queimando em seus olhos.
— Você promete que não vai embora? — Sua pergunta fez com que
meu coração vacilasse e, sem conseguir mais me controlar, o envolvi em
meus braços, prendendo-o em um abraço tão apertado; desejando que ele
pudesse sentir o quanto aquela possibilidade era nula.
— Eu prometo — assegurei, segurando seu rosto com minhas mãos,
tentando sorrir mesmo com as lágrimas. — Você tem minha palavra.
Igor balançou a cabeça e seus braços me envolveram, apertando-me
em um abraço no qual eu poderia morar até o último dia da minha vida, sem
precisar de mais nada.
Busquei pelo Renato, temendo que ele estivesse furioso porque
atravessei todos os limites possíveis ao ter aquela conversa com o pequeno,
antes mesmo de falar com ele, mas tudo o que encontrei em seus olhos foi a
mais pura e completa devoção e gratidão.
O jantar na noite passada havia sido mais tranquilo do que eu
imaginei.
Apesar de Renato e seu avô não terem trocado uma única palavra e
toda a conversa ter se concentrado nos planos de Amália para a
comemoração pelo aniversário de Vicente, tínhamos finalizado o dia sem
qualquer problema e Renato me deixou com a sua mãe por algumas horas,
para ir conversar com seu primo, Ramon.
Naquela manhã, eu não tinha visto Vicente durante o café da manhã,
o que para o meu namorado não fazia qualquer diferença e acabamos
descendo para uma outra parte da fazenda, onde havia um estábulo e um
campo para a prática de hipismo.
De onde estava, acompanhei enquanto Renato montava no cavalo e
levava Matheus com ele em uma volta pela fazenda, enquanto o pequeno
gargalhava com os avanços do animal. Igor havia aprendido sobre montaria
durante a estadia na fazenda dos meus avós e sozinho controlava as rédeas
de um cavalo menor, seguindo o Renato e Ramon pelo campo.
Soltei um suspiro, virando o rosto ao sentir a aproximação do homem
que parecia muito bem para quem já estava com uma idade muito avançada.
— Bem, não tivemos a oportunidade de conversar na última noite —
murmurou Vicente, olhando-me com um sorriso ligeiramente simpático. —
Mas, é um prazer conhecê-la, querida… Lia me falou muito sobre você.
Balancei a cabeça, aceitando a mão que ele me ofereceu e esbocei um
pequeno sorriso, voltando a minha atenção para os três cavalos que estavam
se afastando pelo campo.
— Suponho que Renato tenha te falado algumas coisas sobre mim —
disse ele, tentando puxar assunto comigo e virei o rosto para ele mais uma
vez.
Estranhando aquela simpatia, já que não condizia muito com o que
escutei sobre ele. Não era só Renato que não tinha coisas boas para falar
sobre o avô dele, qualquer pessoa que estava por dentro da podridão do que
acontecia nos bastidores da alta sociedade, sabia o tipo de homem que
Vicente Monteiro era e pelo que era conhecido.
Não era à toa que Renato evitava qualquer associação ao nome do
avô e utilizava apenas o sobrenome do seu pai.
No entanto, o homem não parecia de todo ruim. Na verdade, ele
parecia muito sincero enquanto me olhava.
— Sei que ele guarda ressentimento por conta do meu problema com
Eduardo — falou, sem esperar por qualquer resposta da minha parte e
apoiou os cotovelos na madeira da cerca, levando seu olhar para onde os
seus netos e bisnetos estavam. — Se ele soubesse como eu me arrependo de
tudo o que fiz…
Aquela última frase não havia sido direcionada para mim, era um
pensamento que estava soltando em voz alta, ainda assim, eu me dei ao
direito de questionar.
— Se você se arrepende de tudo o que fez com o Eduardo, por que
não conversa com o seu neto?
Afinal, Renato poderia perdoar o avô se acreditasse de verdade que
Vicente havia mudado. O problema era que ele acreditava piamente que seu
avô ainda era o mesmo homem de trinta e dois anos atrás, e o Sr. Monteiro
não parecia muito disposto a mudar essa percepção do neto sobre ele.
Vicente sorriu, como se já tivesse escutado essa pergunta
anteriormente.
Seus olhos castanhos miraram meu rosto, com uma sabedoria
profunda e ele soltou um suspiro.
— Seus pais já fizeram coisas que você julgava imperdoáveis para
tentar te proteger, Nathalia? — indagou, reflexivo.
Engoli em seco.
A resposta era óbvia, porque para os meus pais, especialmente,
Miguel, não havia limites para garantir que eu estava segura.
Não precisei responder para que Vicente prosseguisse com a sua
reflexão:
— Acredito que sim. Então… você sabe que há coisas que nem
mesmo um pedido de desculpas é suficiente. — O homem olhou para um
ponto distante onde os cavalos faziam uma curva para se aproximar de nós.
— Renato nunca vai me perdoar pelo que fiz Lia e Eduardo passarem,
então, prefiro que ele continue me odiando e que eu sirva como uma forma
de imunizá-lo do que ele irá enfrentar ao longo da vida, do que permitir que
minha existência não faça diferença alguma para ele.
Vicente entrelaçou as mãos sobre a cerca, pensativo.
— Ele é pai, Sr. Monteiro… talvez, ele entenda os seus motivos.
Se Eduardo me disse que conseguiu entendê-lo parcialmente, por que
Renato não conseguiria?
O avô de Renato me lançou um sorriso de sabedoria e deu de ombros.
Seu olhar se desviou para um ponto atrás de mim, e pude ouvir o som dos
cavalos se aproximando.
— Algumas pessoas só conseguem compreender certas situações
quando estão passando por elas, querida. — Deu de ombros. — Talvez,
daqui a alguns anos, quando ele for longe demais por causa dos filhos, ele
entenda que não há limites de certo e errado que nos impeçam de fazer
qualquer coisa para proteger nossas crianças.
Um cavalo com pelugem escura parou tão perto de nós que não
precisei erguer os olhos para encontrar as orbes escuras, mas sua atenção
estava compenetrada no seu avô.
— Qual parte de “eu não quero você perto da minha mulher” você
não entendeu? — As palavras saíram como um rosnado, e eu me preparei
para responder a Renato, pedindo para não ser tão duro com seu avô, mas
Vicente se adiantou.
— Relaxa, rapaz. Eu só estava deixando claro para ela que eu aprovo
completamente sua escolha de alguém decente para entrar na família —
disse o homem ao meu lado, com um tom tão arrogante que não se
assemelhava em nada à mesma pessoa que havia falado comigo alguns
minutos antes.
Pisquei, em choque.
Tentei dizer ao Renato que não havia sido nada disso, mas Vicente
me cortou e lançou um olhar explícito para que eu não dissesse uma palavra
sobre o que ele me falou.
— Não faça escândalo, Renato. Nathalia vem de uma família de
renome, tenho certeza de que os avós dela também aprovaram a sua relação
com ela por conta do meu sobrenome. Então, recomponha-se — ordenou,
duro.
Meus olhos correram para o rosto de Renato, vendo a sua mandíbula
tencionar e seus dedos apertarem as rédeas com tanta força que suas juntas
embranqueceram.
— Não. Diga. Uma. Palavra. Para. A Minha. Mulher. — Recitou a
ordem, pausadamente, e eu me vi entre a cruz e a espada, mas antes que
tentasse interferir, um funcionário chamou por Vicente e ele se afastou, o
que fez Renato me olhar em um pedido claro de desculpas.
O que existia em mim que fazia com que todas as pessoas jogassem
seus segredos e confissões em meus ombros, esperando que eu os levasse
ao túmulo?
Engoli em seco, meneando a cabeça e dispensando o pedido de
desculpas dele.
— Não se preocupe. Está tudo bem — assegurei, sentindo-me
péssima por ver Renato com raiva de uma coisa que não era totalmente
verdade.
O que Vicente tinha na cabeça para preferir o ódio do neto à contar
a verdade e ter um tempo de qualidade com ele antes de partir?
Eu nunca entenderia o que se passava na cabeça das pessoas e,
honestamente, estava cansada de tentar resolver todos os problemas do
mundo.
Amália e eu estávamos em frente ao lago, conversando sobre o
último capítulo do livro que ela havia acabado de escrever, quando Renato
se aproximou e me tirou da cadeira de balanço, apenas para se sentar nela e
me colocar em seu colo.
Sua mãe abriu um sorriso enorme, olhando para nós dois toda boba.
— Mãe, eu realmente agradeceria se você parasse de ficar
apresentando homens literários para a minha mulher. — Renato estreitou os
olhos, sem esconder o ciúmes depois de me ouvir falar a madrugada inteira
sobre o protagonista do livro de Amália.
A mulher revirou os olhos, balançando a cabeça negativamente, mas
o olhando cheia de admiração.
— Essa possessividade aí ele puxou do pai dele, não é coisa minha
não, viu, norinha? — Ela disse, virando seu rosto para mim com diversão.
— Eu sou a favor de homens possessivos apenas nos livros.
Renato arqueou a sobrancelha, encarando a sua mãe com cinismo.
— É mesmo? E se eu te disser que aquela amiga da tia Lúcia está
falando com o meu pai na cozinha, e se ofereceu para preparar um lanche
para ele? — provocou, e acompanhei o rosto de Amália perder toda a
suavidade e diversão, seus olhos escureceram exatamente da mesma forma
que Renato fazia quando estava com ciúmes.
Em um piscar de olhos, a mulher loira se colocou de pé, apontando
um dedo em riste para o meu namorado.
— Isso não prova nada!
Dito isso, a minha sogra marchou pelo jardim, indo em direção à casa
e sumindo do nosso campo de visão, arrancando uma risada nossa.
— Mamãe, me ajuda! — Matheus me chamou e eu me levantei, indo
em sua direção e vendo a bagunça que ele estava fazendo com as peças da
casa de Lego que estava construindo com o priminho, filho de Ramon.
Depois de ontem, não houve um único momento em que os pequenos,
Igor e seu irmão, não me chamaram daquela maneira, e meu coração
ameaçava parar de funcionar em todas as ocasiões. Talvez eu nunca me
acostumasse com o poder que uma única palavra tinha de iluminar todo o
meu dia.
Quando retornei para perto de Renato, ele me observava atentamente
e me acomodou novamente em seu colo. Igor estava próximo ao estábulo,
conversando com Ramon sobre a nova leva de cavalos que acabara de
nascer.
Meus braços envolveram seus ombros, aninhando-me em seu colo e
seus olhos vasculharam meu rosto, buscando por algo que não estava
explícito.
— Você em certeza disso, anjo? — questionou, genuinamente
preocupado. — Não quero que você se sinta pressionada a fazer nada.
Eu o encarei, refletindo sobre como minha vida havia mudado
drasticamente em sete meses. No início do ano, a única coisa que ocupava
minha mente era que, naquele fim de semana, estaria me mudando para
Nova Iorque para começar um estágio pelo qual eu havia sido obcecada por
anos. Eu acreditava firmemente que precisava daquilo para alcançar tudo o
que desejava na vida.
No entanto, ali estava o homem que havia sido capaz de bagunçar
todas as cartas do meu jogo, me fazendo recalcular minha rota e reavaliar
todos os meus caminhos.
E ele nunca me pediu por nada disso.
Desde o início, Renato não me pediu nada, mas me deu tudo.
E isso foi suficiente para eu perceber que não precisava de mais nada,
porque ao seu lado, eu tinha tudo o que precisava para ser feliz.
Soltei um suspiro, sorrindo levemente e meneei a cabeça.
— Não tem volta, amor — assegurei, arrastando as minhas unhas
suavemente em sua nuca, arrancando um arrepio dele. — Você e eles são
meus.
Ele arqueou a sobrancelha, apertando sua mão em minha cintura.
— Hm… é mesmo?
Suspirei, roçando nossos lábios e concordando.
— Sim, lembre-se que fui uma criança muito possessiva, e velhos
hábitos não se curam.
Renato riu e afundou os dedos em meu cabelo, puxando-me para um
beijo que quase me deixou sem fôlego, mas minha atenção foi novamente
capturada pelo chamado mais importante do mundo:
— Mamãe, ele me bateu! — choramingou Matheus, apontando para o
priminho que havia jogado uma peça de Lego nele.
Na segunda-feira, deixei o escritório mais cedo porque almoçaria
com a Olívia.
Cora havia se aposentado definitivamente, deixando Leandro sem
secretária. Além disso, Bianca e ele vinham se estranhando desde o término
do relacionamento que eles estavam tendo. Por isso, Leandro decidiu que a
melhor maneira de punir Bianca por evitá-lo era forçá-la a trabalhar como
sua secretária temporariamente, até que ele encontrasse alguém para
substituir Cora.
Como os dois foram para Barcelona a trabalho, Bianca não conseguiu
estar conosco no almoço e, mesmo que o encontro com Olívia fosse no
Niké, Renato não me hesitou em mandar a comitiva da futura Rainha da
Espanha para me acompanhar.
Assim que enviei uma mensagem para o meu pai para avisar que
tinha corrido tudo bem no fim de semana na fazenda dos Monteiro, a minha
porta foi aberta e Caique sorriu para mim, simpático.
Sérgio pigarreou, repreendendo o garoto e eu revirei os olhos.
— Pare de chatice também, Sérgio — resmunguei, olhando feio para
ele. — Você pode implicar com ele quando o Victor estiver por perto e só.
O chefe de segurança deu risada, balançando a cabeça.
— Estou tentando proteger o emprego do garoto, Nathalia, mas ele
não se ajuda — o homem disse, revirando os olhos e me arrancado um
sorriso.
Apesar de ter aceitado recontratar o Caique para a equipe de
segurança, Renato nunca deixava o garoto comigo e ainda o fez entrar na
academia de Sérgio para passar por todo o treinamento que ele aprovava.
Isso obviamente não repercutiu qualquer efeito na personalidade do garoto,
já que ele continuava sorrindo para mim e puxando assunto sempre que
tinha oportunidade.
Como o Sérgio estava comigo naquele dia, Renato acabou
concordando em deixar que Caique o acompanhasse numa espécie de teste,
contando que seu chefe de segurança seria tão linguarudo quanto Victor ou
Marcus — que sempre deduravam o garoto para o chefe.
O problema era que, embora Sérgio, assim como seu chefe, fosse
extremamente preocupado com nossa segurança, ele reconhecia que se eu
ficasse cercada por homens duas vezes maiores do que eu, que não me
dirigiam uma única palavra, eu acabaria me sentindo sufocada. Além disso,
Sérgio era mais simpático do que seu irmão e sócio, Marcus, o que
facilitava sua relação com o segurança mais jovem.
Caique tinha a mesma idade que eu e, entre todos os membros da
equipe, ele era o mais jovem. Eu sinceramente esperava que ele não
perdesse aquele traço de personalidade, pois era exatamente isso que
tornava sua presença ao meu redor muito mais tolerável.
Assim que entramos no prédio principal do Niké, enviei uma
mensagem para a Olívia para saber onde ela estava.
— Que horas começa o treino do Igor? — perguntei, lembrando-me
que ele viria para o clube de tarde com seus próprios seguranças.
— Daqui a uma hora e meia — informou Caique e meneei a cabeça.
— Avisem ao Renato que vou ficar aqui para assistir o treino dele —
pedi, parando em frente a entrada do restaurante em que Olívia me esperava
e girei nos calcanhares, lançando um olhar suplicante ao Sérgio.
Ele era muito mais maleável do que os outros e com uma careta
estampada no rosto, o chefe de segurança balançou a cabeça, antes mesmo
que eu precisasse colocar o meu pedido em voz alta.
— Tudo bem, mas, estaremos ali. — Apontou para a cafeteria que
ficava no salão a menos de quinhentos metros da entrada do restaurante.
Perto o suficiente para conseguirem ficar de olho em mim na mesa
que Olívia escolheu e para correr ao meu socorro caso algo acontecesse.
Sorri, agradecida, e me virei para entrar no local, encontrando uma mulher
loira sentada em uma mesa próxima das enormes janelas.
Seu olhar veio em minha direção, acompanhado de um sorriso largo.
Olívia se levantou, me abraçou apertado, e soltei um suspiro de alívio.
Aceitei o cardápio que o garçom trouxe e fizemos nossos pedidos.
Assim que ele se afastou, Olívia fixou seus olhos em mim.
— Você quer me dizer alguma coisa, Barbie Malibu? — indagou,
sem me dar qualquer tempo de me preparar para o discurso que havia
ensaiado.
Na semana passada, Leandro postou uma foto em seu perfil do
Instagram, na qual eu e Renato estávamos presentes, com uma legenda que
deixava claro que éramos um casal. Como Liv tinha curtido a foto, percebi
que não fazia mais sentido esconder isso dela.
Na verdade, eu estava bastante cansada de todos esses segredos nas
minhas costas.
— Não estou julgando — ela disse, me olhando com um sorrisinho
—, só quero saber se foi antes ou depois da minha última visita?
Suspirei.
— Antes. Bem antes — confessei, aceitando a taça de vinho que o
garçom me serviu e bebi um gole, olhando para a minha amiga. —
Começamos a nos envolver no Carnaval.
Os olhos de Liv brilharam em reconhecimento e ela balançou a
cabeça, lembrando-se das nossas conversas e, provavelmente, de todas as
vezes em que eu menti para ela, alegando que estava sozinha e confirmando
que nunca seria estúpida de transar com o meu chefe.
Bem, eu fui estúpida, transei com o meu chefe, me apaixonei por ele,
estava morando com ele e agora os seus filhos também eram meus.
Quem disse que eu não podia inovar um clichê?
Se eu não fosse tão reservada com minha vida pessoal e não tivesse
algum resquício de bom senso em minha mente, poderia até oferecer minha
história para Amália escrever e deixar suas leitoras furiosas por eu ter sido
tão burra em negar um desfecho que estava destinado a acontecer.
Olívia riu.
— Bem, isso é ótimo, porque eu estava começando a achar que
estava ficando louca de imaginar que você e ele estavam se pegando —
falou, semicerrando os olhos em meu rosto. — Sabe, tem todo o lance da
tensão que fica pairando no ar. Mas como você batia tanto na tecla de que
“nunca se envolveria com alguém da mesma área”, eu achei que era só
atração.
— Começou assim, mas quando eu vi… já tinha acontecido.
— Isso é bom, sabe? — Liv murmurou —, você não precisava ter
escondido de mim esse tempo todo. Não é porque não deu certo comigo,
que eu ficaria rogando praga para não dar certo para você também.
— Não foi nem por isso, eu só… demorei um tempo para aceitar que
tinha cuspido para o alto e caiu bem no meio da minha testa — resmunguei,
batucando minhas unhas na mesa e ela meneou a cabeça, sorrindo de canto.
— Carma é uma merda, né?
Dei risada, concordando.
— Mas então… é um relacionamento sério? Do tipo, assumido
publicamente, ou vocês estão escondendo? — perguntou curiosa.
Suspirei.
— Se eu te contasse metade do que aconteceu…
— Pois, me conte. Meu vôo só saí daqui a seis horas. Tenho todo o
tempo do mundo — decretou, chamando o garçom e pedindo para que ele
trouxesse uma garrafa do vinho.
Nos minutos seguintes, eu tentei resumir tudo o que havia acontecido
em minha vida nos últimos meses, omitindo boa parte dos detalhes que não
valiam a pena compartilhar com ela, tanto por questões de privacidade
pessoal quanto para garantir sua segurança.
Depois do meu almoço com a Liv, me despedi dela no saguão do
Niké e pedi para que me contasse se alguém a tratasse mal durante seu
período de adaptação na Alpha, e ela não precisava pensar muito para saber
que eu estava me referindo à minha prima, Larissa.
Ela adorava usar os meus amigos como uma maneira de me atingir, e
se ousasse usar o passado de Olívia para mexer com ela — assim como
havia feito com a Bianca —, eu não responderia pelos meus atos e acabaria
com ela de uma vez por todas.
Acompanhada dos dois seguranças que eram minha sombra por todo
lado, desci para as quadras esportivas do clube, sendo guiada por Caique
que estava mais familiarizado com a rotina de treinos do Igor — já que
ficou responsável por ele no último mês.
Meus olhos correram pelo campo, procurando por ele e o encontrei
na linha de ataque com a bola sob seu domínio. Um garotinho um pouco
maior que ele, lhe deu uma rasteira e meu filho rolou no chão, perdendo a
posse da bola.
Eu entendia o básico de futebol, não era nenhuma fanática; mas sabia
uma coisa ou outra porque uma das minhas primeiras clientes era noiva de
um jogador, e sempre que tinha algum jogo importante, Juliana e Gabriel
me enviavam ingressos para que eu fosse até assistir no estádio.
Normalmente, quem se beneficiava disso era o Antônio, que era um
torcedor fanático do Chelsea.
No entanto, eu sabia que Igor também tinha uma certa inclinação por
torcer para clubes ingleses e gostava bastante do time em que Gabriel
jogava. Quando uma caixa chegou cedo no meu escritório, contendo alguns
produtos da linha de maquiagem da Juliana, quatro camisetas oficiais da
temporada e ingressos para o camarote do Motta, decidi que, em vez de dar
os ingressos para o meu amigo assistir, levaria os três fanáticos por futebol
para assistir a abertura da Premier League[57]
.
Principalmente porque o time que eles adoravam, o Uníon, havia
perdido todos os campeonatos que disputou na última temporada. Além
disso, James Martínez estava sendo oferecido para outros clubes, já que,
após uma péssima temporada marcada por inúmeras lesões que o
mantiveram no banco durante a maior parte do tempo, o clube decidiu não
renovar seu contrato.
Quando o treinador das crianças anunciou o fim do jogo, os olhos de
Igor percorreram a arquibancada e ao me reconhecer a algumas fileiras de
distância dos seus seguranças, ele abriu um sorriso largo e deixou o seu
técnico falando sozinho para correr em minha direção.
— Você viu o meu gol? — perguntou, com as íris esverdeadas
brilhando em euforia e sorri largo, aceitando o abraço apertado e suado que
ele me ofereceu.
— Sim!
— Foi pra você, eu até pedi para o Marcus gravar, não foi? — Seu
olhar correu para o outro segurança que estava com ele naquele dia.
O homem sério estreitou seus olhos em nós e apenas meneou a
cabeça, concordando. Diferente do seu irmão que era muito mais simpático,
Marcus nunca me deu qualquer entrada para falar com ele, o que não
significava muita coisa, já que era um padrão entre eles. Os únicos que o
quebravam eram Sérgio e Caique.
— Não sabia que você vinha ver meu treino — comentou Igor,
olhando por cima dos meus ombros, encontrando os outros dois homens
atrás de mim e acenando para eles. — Vocês cuidaram dela?
Ri baixinho, olhando para trás e vendo Caique revirar os olhos.
— Era só o que me faltava, além do pai, eu tenho que lidar com o
filho também — resmungou o garoto, o que fez com que Igor apertasse os
olhos nele, torcendo o nariz.
Isso deixou Igor ainda mais rabugento, já que ele detestava que
Caique me fazia rir. Aparentemente, o lance da posse e do ciúmes era parte
da genética dos Trevisan. Afaguei o rosto de Igor, atraindo sua atenção de
volta para mim e ele relaxou os ombros, esboçando um sorriso.
— Você se machucou naquela falta? — investiguei, preocupada,
lembrando-me da sua expressão de dor.
Ele sorriu.
— Relaxa, mãe! — Meu coração parou. — É normal, e eu nem senti
nada.
Pisquei, tentando controlar as lágrimas que se acumularam em meus
olhos. Eu não me acostumava com a maneira como ele tinha se acostumado
tão rápido em me chamar daquele jeito, era quase como se estivesse apenas
esperando pela minha permissão para dizê-la a todo momento.
Meus dedos escorregaram em sua bochecha e meneei a cabeça,
sorrindo em resposta.
— Tudo bem…, de toda forma, fico feliz que você quer ser médico —
brinquei, fazendo seus olhos brilharem. — Ou eu acabaria arrumando briga
com todo garoto que te desse uma rasteira daquela.
Ele sorriu, balançando a cabeça em resposta.
— É, você e a vovó me arrumariam muitos problemas.
O técnico chamou todos para irem ao vestiário e Igor se afastou, me
fazendo prometer que o esperaria aqui.
Enquanto esperava pelo seu retorno, dei uma bisbilhotada no grupo
em que estávamos resolvendo os detalhes do aniversário de Matheus que
aconteceria no próximo mês. Faltava um pouco mais de três semanas, e nós
ainda não conseguimos fazer o pequeno decidir se queria uma festa de
super-heróis, de superespiões, de bruxos ou de fazendinha.
Eu estava começando a considerar que a melhor opção para o agradar
seria encontrar uma maneira de encaixar todas as ideias em um único tema.
Talvez uma festa onde existisse uma fazenda de bruxos, que é
invadida por superespiões e é salva pelos seus super-heróis preferidos?
Honestamente, era a solução mais viável que eu conseguia pensar, já
que cada vez que perguntávamos para ele, o pequeno surgia com uma nova
ideia mirabolante.
Respondi à decoradora, prometendo que lhe daria um tema até o fim
do dia. Conversei com alguns amigos que estavam confirmando suas
presenças em São Paulo para celebrar o aniversário do Matheus conosco.
Também confirmei com a estilista a prova do meu vestido de madrinha para
a próxima semana e falei com a Maya para garantir que estava trabalhando
na melhor despedida de solteiro que ela poderia imaginar.
Marc e Maya iam se casar no fim de agosto, e eu estava me
equilibrando em me organizar para dois eventos que seriam extremamente
importantes. Nada podia dar errado pelas próximas semanas, ou eu acabaria
prejudicando um deles.
Alguns minutos depois, Igor voltou para perto de nós e Sérgio
alinhou com Marcus para que eles ficassem no carro atrás da gente, já que
meu filho iria comigo. Enquanto caminhávamos para o estacionamento,
Caique implicava com o Igor pelo segundo gol que ele acabou chutando
muito forte e subiu na trave, e eu aproveitava para alinhar alguns detalhes
com Rowan sobre a retomada da DMT, já que, após todos os eventos do
próximo mês, eu iria para Nova Iorque para cuidar disso pessoalmente.
No carro, Igor se sentou ao meu lado e o ajudei com o cinto,
deixando meu celular de lado para escutá-lo discutindo com o Caique e o
Sérgio sobre o lance que ele fez para driblar o lateral rival.
Um sorriso escapou dos meus lábios, porque há sete meses, o
pequeno mal conversava com as pessoas ao seu redor e agora, discutia
abertamente com os seguranças para defender seu ponto.
Era incrível o quanto a terapia estava fazendo bem para ele.
— Você sabe, seria muito melhor ser jogador de futebol do que
médico — insistiu Caique, olhando para o meu filho por cima dos ombros.
— Pense no futuro com sabedoria, garoto.
Igor fez uma careta.
— Eu gosto de ter meus dois joelhos funcionando — retrucou Igor,
apertando seus dedos contra os meus.
Ele nunca me soltava e, sempre que tinha a chance, se aproximava
mais e mantinha uma conexão entre nós de alguma forma.
— E eu não gosto de vê-lo sendo empurrado a cada minuto —
defendi, entrando na conversa e Sérgio sorriu, mas Caique apenas revirou
os olhos.
— É parte do jogo, Nath.
— É Nathalia — corrigiu Igor, olhando bravo para ele e o segurança
sorriu, ciente de que tinha o irritado e deixando claro que havia sido
proposital.
A maturidade de Caique era a mesma do Matheus, mas ao menos
tirava Igor da concha.
O pequeno ao meu lado bufou, apertando os meus dedos com um
pouco mais de força e denunciando que estava entrando nos ciclos que
acabava se metendo em confusão. Apesar de que, fazia um tempo desde a
última vez que Renato foi chamado no colégio porque Igor se envolveu em
confusões por ciúmes de Isabelle. Era um avanço que a Dra. Luiza merecia
todos os créditos.
— Ei, o que você acha de irmos assistir ao jogo do Chelsea na
próxima semana? — indaguei, atraindo a sua atenção para distraí-lo.
Igor trouxe os olhos para o meu rosto e seus ombros relaxaram.
— Nós podemos?
— Claro, eu ganhei alguns ingressos do Gabriel — falei, arrastando
meus dedos em seu cabelo para retirar alguns fios da sua frente.
— Eu quero!
Sorri, apertando seu queixo levemente e concordei.
— Então, temos uma viagem marcada!
Caique e Igor começaram a discutir sobre qual time era melhor, e
enquanto meu filho defendia que era o Chelsea, o segurança afirmava que
era o Manchester United, e eu nem tentei me intrometer nesse assunto,
porque sabia que aquilo nos acompanharia até o fim da viagem.
Ainda assim, apreciei cada minuto, observando a maneira como Igor
havia pegado o meu hábito de revirar os olhos quando Caique falava
alguma bobagem, e como ele enrugava a pontinha do nariz quando estava
se controlando para não dize que Caique estava falando besteira.
Olhando para ele, eu entendia perfeitamente o meu pai.
A paternidade era uma coisa tão insana, que eu seria capaz de
ultrapassar qualquer limite, apenas para manter aquele garotinho feliz e
seguro.
Entre todos os meus amigos, Marc sempre foi o mais festeiro. Não
importava se fazia sol ou chuva, para ele tudo era motivo para dar uma
festa.
Felizmente, o destino preparou para ele a sua alma gêmea, já que
Maya pensava da mesma forma e embarcava em cada insanidade que meu
amigo propunha.
Então, quando os dois invadiram o apartamento de Pedro na noite
passada e decretaram que Zimmermann daria uma festa julina em sua
cobertura como sua despedida antes de ir passar uma temporada em Sydney,
o engenheiro não teve escapatória. Principalmente, quando Nathalia se
entusiasmou e começou a fazer planos junto com a Maya sobre a decoração.
Eu tinha saído do escritório mais cedo naquela tarde, e decidi vir
ajudar a organizar a bagunça que o advogado e sua namorada fizeram na
casa do meu amigo, que era tão metódico e preso a sua zona de conforto,
que eu podia jurar ver seu olho tremendo a cada móvel que era arrastado
para abrir espaço para a bendita quadrilha que Maya insistia que
aconteceria.
— Lembre-me de trocar a senha do elevador — disse ele,
abandonando a caixa de bebidas ao meu lado no balcão e virei-me para
encará-lo.
— Não reclame tanto, elas estão com boas intenções — defendi,
abandonando os limões cortados para a caipirinha em uma tigela de vidro.
— Além do mais, você vai passar seis meses do outro lado do mundo, com
doze horas de fuso horário de diferença. É tempo mais do que suficiente
para se recuperar de uma noite de socialização com seus amigos.
Bati em seu ombro, vendo uma careta cobrir seu rosto.
Pedro resmungou em resposta, começando a arrumar as bebidas sobre
a ilha para deixar com fácil acesso e minha atenção foi desviada para o meu
celular, vendo a mensagem de Leandro avisando que já estavam voltando e
que deveriam chegar no meio da noite e viriam direto para cá.
Bianca e ele foram para Barcelona por conta de um evento da
Haddock Motors na cidade, e como a loira estava como sua secretária
temporária, o idiota arrumava qualquer pretexto para levá-la com ele aonde
quer que fosse, porque para Leandro era mais simples perturbar a pessoa até
que ela esquecesse que estava com raiva dele, do que apenas pedir
desculpas por ter sido impulsivo.
E ainda que eu não estivesse disposto a me envolver e definir quem
estava certo ou errado naquela situação, estava acompanhando de perto para
que ele não acabasse trocando os pés pelas mãos e estragasse um evento
importante para a RCI. Nós precisávamos tomar cuidado com a nossa
reputação, já que a saída de Roberta levantou algumas suspeitas sobre o
verdadeiro motivo, principalmente quando anunciamos ao mercado a
recompra das ações de sócios sêniores.
Eu não estava tão preocupado com a repercussão disso, já que era
uma coisa muito comum de acontecer. Todo dia, dezenas de pessoas
entravam e saíam de sociedades, especialmente no nosso meio, então não
havia tanto motivo para especulação, e era plausível que, depois da
descoberta de um sócio envolvido com uma organização criminosa,
fizéssemos uma limpa.
O julgamento de Guilherme estava marcado para o início de
setembro, e eu estava acompanhando aquela questão através da equipe que
Marc deixou trabalhando juntamente com a promotoria na acusação. Por
conta da possibilidade de fuga do país, já que ele tinha recursos mais do que
suficientes para isso, o juiz havia determinado que ele aguardaria pelo
julgamento em prisão preventiva.
Minha equipe de segurança ainda estava atenta a qualquer sinal
suspeito, porque mesmo que André estivesse sumido, aquilo não significava
que ele não poderia voltar a atormentar nossa vida. Sérgio mantinha os
esquemas de segurança atualizados, projetando novas rotas a cada dia e
repassando-as para as equipes apenas no momento em que iriam usá-las.
Era uma maneira de garantir que nosso cronograma não vazasse, já que foi
dessa forma que conseguiram nos emboscar no estacionamento algumas
semanas atrás.
Roberta também decidiu sair do país. Eu havia colocado um
investigador em sua cola para ter certeza de que ela não tentaria nenhuma
jogada, mas ela parecia ter tido consciência suficiente para não entrar em
conflito comigo. Até onde eu sabia, ela tinha viajado para Portugal no fim
de semana e era muito provável que permanecesse lá, já que esteve no país
com frequência nos últimos meses.
Uma mensagem de Nathalia surgiu na minha tela, me arrancando um
sorriso ao ver uma foto de Igor no meio do campo de futebol do Niké. Ele
estava sendo erguido pelos amigos de time e gritava, comemorando um gol
que havia feito.
Nathalia:
ele é tão talentoso
como isso é possível??????
Sorri, ignorando as ordens que o advogado gritava para Guto e Joca
que se desdobravam para montar a aparelhagem de som.
— Tudo isso seria evitado se vocês não tivessem inventado de fazer
por conta própria — reclamou Guto, olhando irritado para Marc que parecia
um general, dando ordens para todos enquanto estava parado no meio do
terraço, apenas assistindo tudo. — Você por acaso está falido para não
poder pagar por uma equipe?
Menezes bufou, olhando para o meu filho caçula que estava
esparramado no sofá, distraído com o iPad que ele estava assistindo a um
desenho de super-herói.
— Está escutando esse cara, pirralho? — perguntou para Matheus,
que levou os olhos espertos para o meu amigo. — Não ouça nada do que ele
falou, você ter dinheiro não te torna um imbecil que não pode arrastar umas
mesas e instalar algumas caixas de som.
Matheus olhou por cima dos ombros, encontrando Guto fuzilando
Marc mentalmente e riu baixinho.
Renato:
Ele teve a quem puxar
Nathalia:
alguém já te disse que vc é muito prepotente, Sr. Trevisan?
Renato:
Eu diria que sou confiante, Sra. Trevisan
Ela enviou uma figurinha de uma mulher segurando um celular e
cobrindo a boca, espantada pelo que tinha visto, e olhando para frente com
os olhos arregalados. Leandro e ela tinham passado algumas horas na
semana passada me explicando que ela era uma sensação na internet, e que
várias pessoas usavam imagens dela com frases aleatórias para se
comunicar nas redes sociais.
Nathalia:
eu criei um monstro
Sorri, bloqueando a tela e voltando a me concentrar no que precisava
ser ajustado antes do fim do dia.
Maya alcançou o terraço, trazendo consigo Fabio e Maria Carolina
que haviam acabado de chegar de Londres para participarem da despedida
de Pedro. Debaixo do seu braço, havia um rolo enorme e ela parecia muito
satisfeita em carregá-lo enquanto se aproximava do engenheiro.
— Olha, não deu tempo de preparar um super evento luxuoso, mas
conseguimos personalizar alguma coisa para não ficar tão na cara que foi de
última hora — disse ela, sorridente, sinalizando para a Carol que a ajudasse
a abrir o cartaz.
— Eu preferia que não tivéssemos feito nada — Pedro repetiu pela
milésima vez.
Maya bufou.
— Renato, onde a Nathalia está para mandá-lo calar a boca? — A
advogada perguntou, virando-se para mim fingindo chateação pela
reclamação constante do meu amigo.
Zimmermann revirou os olhos e encarou o cartaz que as duas
mulheres estavam abrindo na sua frente, e acompanhei enquanto seu rosto
empalidecia enquanto via o texto escrito em letras coloridas e
extremamente temática.
“Arraial do Pedrinho”
— Pedrinho? — Recitou o apelido, arrancando uma risada dos nossos
amigos que se aproximaram para ver a obra de arte criada.
— Você gostou? Foi o Leandro que organizou! — Carol explicou, o
que justificava muito o fato do rosto de Pedro ter sido colocado em uma
montagem com o Batman.
Pedro levou as mãos até as têmporas e balançou a cabeça, dando as
costas para as duas sem dizer nada e se aproximou do bar que havia
acabado de terminar de montar, servindo uma dose de tequila e a virando.
— Eu não acredito em misticismo, mas estou aberto à qualquer um
que possa me impedir de lidar com isso — resmungou ao meu lado, me
fazendo gargalhar pelo seu mau humor.
Nathalia estava certa, ele se parecia com aquele desenho rabugento
que Matheus adorava assistir.
— Pepeu super-herói! — Matheus apontou para a montagem com um
sorriso largo e correu em minha direção com os braços abertos, pedindo
para vir ao meu colo.
Segurei-o, vendo seu indicador gesticular para que eu me
aproximasse para que ele me contasse um segredo. Tomando todo o cuidado
para que meu amigo não escutasse, Matheus cobriu a boca e sussurrou em
meu ouvido:
— Ele pode ser o Batman?
Eu sabia que ele estava se referindo à festa de aniversário que
Nathalia estava organizando. O tema de heróis era um dos favoritos dele,
mas estava competindo com outros temas, e minha mulher estava
começando a considerar transformar a casa em uma espécie de
Disneylândia só para conseguir colocar tudo o que ele queria.
Tecnicamente, o Niké estaria parcialmente fechado para uma reforma
na área interna, e eles vetaram inúmeros eventos que tentaram conseguir
uma vaga. No entanto, minha mulher estava tão determinada em dar a
melhor festa de aniversário para Matheus que não se importou de ligar
diretamente para Aaron Ashford no meio da madrugada e convencê-lo a
adiar a reforma para depois do aniversário de Matheus.
— Você quer que ele se vista de Batman? — questionei, vendo meu
filho balançar a cabeça em resposta.
Pedro virou o rosto em nossa direção, atento a nossa conversa.
— Ele, por acaso, sou eu?
— Pepeu é o Batman. Marc é o Thor… — meu filho levou o
indicador ao queixo, refletindo sobre as suas opções. — Papai é o HomemAranha e…
— Não vou me fantasiar — Pedro disse categórico.
Meu filho olhou para ele com um vinco na testa e enrugou a pontinha
do nariz, magoado por ter sido interrompido na sua organização de como
queria que todos estivessem em seu aniversário.
— Mamãe disse que eu posso ter super-heróis!
— Então, sua mãe que contrate atores ou animadores de festa! —
Meu amigo retrucou, tão maduro quanto a criança em meu colo.
Matheus estreitou os olhos no tio, porque ele não era ingênuo de não
saber que se realmente quisesse que todos se fantasiassem de super-heróis,
no momento em que compartilhasse aquela ideia com a Nathalia, ela iria
convencer a todos de atentar aos caprichos do pequeno.
Se ela havia convencido o Ashford a perder alguns milhões ao adiar
uma reforma; fazer Pedro vestir uma fantasia de herói era o de menos e, no
fundo, meu amigo também tinha essa noção.
Quando terminamos de prender todas as bandeirinhas que Maya
havia mandado que colocássemos, os meus amigos se jogaram no sofá,
exaustos.
— O que pensam que estão fazendo? — A advogada perguntou,
enrolando os fios negros e prendendo com uma caneta solta. — Não é hora
de descansar!
Marc bufou, olhando-a arrependido por ter dado o controle da
organização para ela.
— Calma aí, meu amor, se você continuar desse jeito, ninguém vai
sobreviver para aproveitar a festa — disse, fazendo uma careta cansada e
ela revirou os olhos, amassando um guardanapo e jogando em sua direção.
— A festa deveria ser para mim, e eu que trabalhei nela. Isso está
certo? — indagou Pedro, mal-humorado, arrancando um sorriso doce da
advogada.
— Não é culpa minha se você decidiu nos avisar que estava de
mudança, faltando dois dias para a sua viagem — retrucou ela, sentando-se
em um banco próximo ao parapeito.
Eu estava trabalhando ininterruptamente há horas e acabei não
percebendo que o sol já estava se pondo e que Nathalia e Igor deveriam ter
chegado há algum tempo. Procurei pelo meu celular no balcão, percebendo
que estava descarregado e tinha desligado.
— Pedro, me empresta o seu celular — pedi, chamando a atenção do
meu amigo e ele tirou o aparelho do bolso, arremessando em minha direção.
Como Pedro era padrinho do Igor, tanto ele quanto Leandro tinham
contato com o meu chefe de segurança, então busquei primeiro pelo número
de Sérgio para descobrir o que havia acontecido. Normalmente, quando
Nathalia mudava o trajeto, eles me informavam.
No entanto, um pressentimento ruim me atingiu quando a ligação
acabou indo para a caixa-postal depois que ele não atendeu.
Sérgio nunca deixava de atender o telefone. Isso por si só, já era o
suficiente para me deixar preocupado, mas quando tentei uma segunda vez
e o mesmo aconteceu, senti cada músculo do meu corpo enrijecer.
— Tudo bem, Renato? — Pedro perguntou, franzindo o cenho ao
reconhecer a minha tensão e fiz sinal para que esperasse, enquanto buscava
pelo número de Marcus, que estava encarregado da segurança de Igor.
Mas quando a chamada caiu direto na caixa postal, o meu sangue
congelou nas veias e eu soube que algo estava muito errado.
Engoli em seco, sentindo o meu coração bater do jeito errado no peito
e digitei o número que eu sabia de cor e salteado, rezando para que Nathalia
me atendesse e explicasse que havia acontecido algum imprevisto que
resultou na falta de retorno dos dois seguranças.
No entanto, a cada toque que a ligação fazia e ela não atendia, meu
coração começava a bater mais forte, ameaçando pular para fora.
Quando a chamada foi para a caixa postal, minha visão ficou turva e
redisquei o número, implorando a qualquer que fosse a divindade existente,
para que a voz da minha mulher soasse do outro lado da linha.
Entretanto, quando no último toque, uma voz soou na linha, eu pude
sentir meus joelhos perderem a força ao ouvir o soluço dolorido de Igor.
— O que aconteceu, filho? — perguntei, temendo a resposta e o
choro do meu filho se tornou ainda mais violento, fazendo com que meu
coração batesse tão forte que eu mal pude notar quando as conversas ao
meu redor se silenciaram e todos voltaram seus olhos para mim.
— Igor — chamei, quase em uma súplica para que ele me dissesse o
que estava acontecendo, mas nada me prepararia para escutar as palavras
que escaparam dos lábios do meu filho quando ele disse:
— A mamãe morreu — soluçou alto, sua respiração acelerada chiou
em meu ouvido —, minha mamãe morreu.
Minha mamãe achava o Caique engraçado e sempre ria das
coisas que ele falava, enquanto implicava com Sérgio por ele não
ter sido um jogador de futebol famoso por causa do problema no
joelho.
Ele dizia que Sérgio estava mentindo e que não jogava tão
bem assim, e o chefe de segurança dizia que Caique tinha que
agradecer pela mamãe gostar dele, caso contrário, ele já teria
entrado para a lista de desempregados.
Eu não sabia o que era essa lista, mas papai e Sérgio falavam
sobre ela sempre que o garoto fazia a minha mãe rir.
Eu não gostava muito do Caique. Ele era legal na maioria das
vezes, mas eu não gostava quando ele parecia querer roubar a
atenção da minha mamãe. Mesmo que a Dra. Luiza tivesse dito que
não era isso que ele estava fazendo, eu ainda não gostava dele.
— Podemos conhecer o Gabriel e o restante do time? —
perguntei, atraindo a atenção dela e Nathalia trouxe os olhos para o
meu rosto, me dando um sorriso bonito.
Minha mamãe tinha os sorrisos mais lindos. Na verdade, ela
era a mulher mais bonita de todo o universo, e meu papai era muito
sortudo por isso.
Eu também era sortudo porque ela queria ser minha mamãe e
do Mat, e ela nos amava muito. Ela sempre dizia isso quando
acordávamos e quando íamos dormir, e nunca nos deixava sair de
perto sem que soubéssemos o quanto ela nos amava.
— Claro! O que acha de ficarmos na cidade por alguns dias,
e aí assistimos mais de um jogo? — sugeriu, sorridente.
Mamãe sempre sorria para mim, era muito legal porque os
olhos dela se fechavam e seu nariz fazia uma ruguinha bonitinha.
— Podemos ir ver o tio James! — falei, animado. — Meu
pai disse que ele vai pra Inglaterra na próxima semana…
Ela sorriu, concordando.
Minha mãe sempre fazia tudo o que eu e o Mat pedíamos.
Acho que se pedíssemos a lua de presente, ela daria um jeito de
conseguir. Papai disse que ela estava nos mimando demais, mas ela
apenas disse que merecíamos tudo que ela podia oferecer. Eu acho
que entendia isso porque eu gostava muito de vê-la sorrindo, então
também daria tudo o que me pedisse.
Parei de brigar na escola depois que ela me pediu para não
fazer isso, porque a Belle era minha amiga e nada mudaria isso. E
quando o chato do Zion me provocava, eu fazia o que a Dra. Luiza
disse: respirava bem fundo, contava até dez e pensava em coisas
que me deixavam feliz. Mamãe e papai me deixavam feliz, então
eu pensava neles e ficava mais calmo.
— Claro, podemos combinar com o seu pai, que tal? —
perguntou, fazendo carinho em meu rosto e balancei a cabeça,
concordando.
Mamãe ia falar mais alguma coisa, mas não teve tempo.
Atrás dela, um carro correndo muito rápido veio em nossa
direção e eu senti a minha cabeça batendo com força.
Minha visão ficou embaçada e levei a mão na cabeça,
sentindo-a dolorida. Percebi que estava molhada e, ao tocar, vi que
estava saindo sangue. Mas a dor que sentia não era por ter me
cortado, e sim pelo impacto forte. Olhei para cima e vi que o
sangue que tinha molhado minha cabeça era do braço da mamãe,
que foi cortado quando usou os próprios braços para me proteger.
Eu estava assustado e olhei para frente, procurando pelo
Sérgio, porque meu pai disse que eu deveria procurá-lo se estivesse
com medo e ele não estivesse por perto. Papai disse que o Sérgio
sempre nos protegeria e que era para obedecer tudo o que o
segurança dissesse. Mas o Sérgio estava dormindo, com a cabeça
no volante e bastante sangue sujando seu rosto.
Mamãe segurou meu rosto, olhando para mim com os olhos
arregalados, assustada.
— Você se machucou? — perguntou e eu vi as lágrimas
rolarem pelo seu rosto.
Um corte em sua testa estava a sujando, mas mamãe não me
deu tempo de falar porque virou o rosto na direção da janela e viu
alguma coisa que eu não conseguia ver do lado de fora.
— Caique, eles vão entrar — mamãe falou e olhei para
frente, vendo que o garoto estava acordado. Ele levou a mão suja
de sangue para a cabeça, parecendo sentir muita dor.
— Mamãe…
— O carro é blindado, eles não vão…
Caique não conseguiu falar porque o barulho de algo
acertando forte o carro fez com que meus ouvidos doessem. Minha
mamãe jogou seu corpo para cima de mim, me protegendo dos tiros
e ela tremeu, me fazendo sentir as lágrimas no meu rosto.
O grito da mamãe ecoou e ela me soltou do cinto de
segurança, pedindo que eu me abaixasse entre os bancos.
— Mamãe… — Minha voz saiu dolorida e arrastada, eu
estava com muito medo.
Ela olhou para mim e segurou meu rosto em suas mãos,
engolindo em seco e deu um sorriso que não era tão bonito quanto
os outros. Mamãe estava toda suja de sangue e o machucado na sua
cabeça parecia doer bastante.
— Está tudo bem, meu amor — disse ela, mas sua voz estava
triste e assustada. — Caique, eles vão entrar e…
— Se a garota sair do carro, nós não vamos machucar
ninguém. — Alguém gritou do lado de fora e minha mamãe virou o
rosto na direção, suas mãos estavam tremendo, mas ela não me
soltou. — Eu vou contar até três. Se ela não sair, eu vou começar a
atirar.
Mamãe virou o rosto para mim, seus olhos estavam cheios de
lágrimas e elas rolavam pela sua bochecha sem parar.
— Tudo bem… vai ficar tudo bem, tá? — disse para mim e se
soltou do cinto, levantando do banco para afastá-lo. — Você pode
fazer uma coisa para mim, meu amor?
— Eu tô com medo, mamãe.
Ela me olhou com tristeza e balançou a cabeça.
— Eu sei, mas eu prometo que você vai ficar bem, tá? —
falou, olhando em meus olhos e trouxe seu rosto para perto,
deixando um beijo em minha testa.
— UM.
O homem mau falou alto e minha mamãe estremeceu.
— Nathalia, não ouse…
— Cala a boca, Caique! — Ela gritou, irritada, e virou-se
para mim, tentando ficar calma. — Por favor, meu bem, você pode
fazer o que eu vou te pedir?
Balancei a cabeça, vendo minha mamãe me dar a mão.
— Fique aqui e não saia até que o Caique diga que está tudo
bem…
— Eu não vou deixar você sair! — Ele disse e minha mamãe
o olhou furiosa.
— Mas, eles vão te machucar… — choraminguei, sentindo as
lágrimas molharem meu rosto. — Você prometeu que não ia
embora!
Minha mamãe me olhou triste.
— DOIS.
— Por favor, meu bem — ela pediu, indicando que eu
entrasse no espaço que tinha atrás do banco do carro. — Me
obedeça e eu prometo que nada vai acontecer com você.
— Mas e com você…
— Eu prometo que vai ficar tudo bem, Igor, mas por favor…
faça o que eu estou pedindo — ela choramingou e balancei a
cabeça assustado, entrando no espaço e antes que fechasse a tampa,
eu segurei seu pulso.
— Mamãe, eu te amo.
Uma lágrima rolou em sua bochecha e minha mamãe fez
carinho em meu rosto, inclinando o corpo em minha direção e
deixou um beijo em minha testa.
— Eu também te amo, meu amor. Você é a melhor coisa que
já me aconteceu, tá? — disse, e eu balancei a cabeça, ouvindo
Caique falar alguma coisa, mas minha mamãe fechou a tampa do
banco e eu ouvi o garoto gritar com ela, mas o barulho da porta
sendo aberta me fez encolher no lugar.
— TRÊS!
Vários buraquinhos no teto do porta-malas deixavam que eu
pudesse ver a luz do sol e escutasse o que estava acontecendo, e eu
senti mais lágrimas molharem meu rosto quando escutei a voz da
mamãe gritando:
— Eu saí, não atirem!
Alguma coisa bateu forte no banco e o grito da minha mamãe
me alcançou, quando o barulho de outro tiro soou, muito alto e
perto de onde eu estava.
— Levem os dois! — O homem mau mandou, não muito
longe e eu cobri a minha boca com a mão. — Onde está o menino?
Eles disseram que tinha uma criança!
— Não importa, já pegamos o pacote que o chefe queria. —
Outro homem mau disse e eu segurei a respiração ao ouvir eles
mexendo no carro. — A polícia já foi avisada do acidente. Vamos
antes que cheguem!
O homem mau falou um palavrão e eu não entendi o que ele
disse, mas ouvi a porta bater com força e senti meu coração
batendo bem forte, fazendo com que eu não conseguisse respirar.
Eles tiraram minha mãe de mim.
Eu ouvi o tiro e o grito dela.
Minha mamãe morreu.
Durante todo o trajeto até o local do acidente, eu tentei me convencer
de que aquilo era alguma espécie de golpe para me arrancar dinheiro.
Vários dos meus clientes passaram por situações semelhantes, onde
pessoas se aproveitavam do medo de algo acontecer com seus entes
queridos para suborná-los. Portanto, assim que desliguei o telefone, a
primeira coisa que fiz foi contatar a equipe de segurança e obter
informações sobre a localização exata do maldito carro onde Nathalia e Igor
estavam.
Minha confiança foi gradualmente enfraquecendo à medida que eles
me explicavam que o veículo estava parado há vinte minutos em uma rua
paralela à Av. Chucri Zaidan, a cerca de quatro quilômetros de distância do
Niké.
Era uma das rotas que Sérgio fazia quando estava com um dos três
sob os seus cuidados, e isso foi o suficiente para me fazer começar a
acreditar que algo realmente havia acontecido.
O caminho inteiro, fiquei com Igor no telefone, enquanto Pedro
conduzia o carro para o endereço que o GPS marcava. Antes que meu
amigo virasse na esquina, eu já consegui ter uma dimensão do desastre que
havia acontecido.
À cerca de trezentos metros do início da rua, a SUV em que Marcus e
outro segurança estavam havia sido destruída e eles eram retirados das
ferragens pela equipe do SAMU. A rua havia sido inteiramente fechada por
viaturas policiais e Pedro precisou parar em uma rua lateral.
Não consegui esperar que ele parasse o carro completamente e saltei
para fora enquanto o engenheiro estacionava, e eu corri para onde o policial
tentava conter os curiosos que estavam parados perto da barricada, tentando
descobrir o que havia acontecido.
— Apenas a polícia e os profissionais de saúde podem… — ignorei a
tentativa do policial de me conter e corri em direção ao carro que estava
mais à frente, sentindo o meu ritmo cardíaco acelerar drasticamente ao me
deparar com a quantidade de sangue que manchava o chão em volta do
carro.
— Senhor, peço que volte para trás da…
— É o meu filho! — falei entredentes, afastando o braço que o
policial tentou usar para me conter, enquanto meus olhos estavam
concentrados nas duas policiais femininas que tentavam tirar alguém de
dentro do carro.
— Querido, por favor, nós vamos ajudar você — a policial negra
disse, tentando soar carinhosa.
— Minha mamãe disse que eu só deveria sair quando o Caique
mandasse.
A voz trêmula e assustada do meu filho me alcançou, assim que eu
alcancei o carro, seus olhos desviaram das duas mulheres e eu senti o
coração bater na boca ao vê-lo sentado, encolhido no porta-malas do carro,
tremendo sem parar e com o rosto molhado pelas lágrimas grossas que
rolavam.
Minhas pernas fraquejaram quando eu me deparei com a quantidade
de sangue que manchava o couro do estofado do carro. A porta do motorista
havia sido arrancada com um maquinário e o corpo de Sérgio estava sendo
levado para a ambulância em uma maca. Meus olhos se voltaram para o
meu filho, e eu tentei processar a imagem dele banhado de sangue. Quando
as íris esverdeadas vieram para mim, ele saltou para fora do carro e veio ao
meu encontro, jogando-se em meu colo e o amparei.
— Papai, eles mataram minha mamãe! — Soluçou e eu engoli em
seco, sentindo a minha audição falhar e as vozes das policiais se tornarem
zumbidos distantes.
Eu estava fora de mim, a minha mente estava entorpecida pelo
assombro de que aquilo não era um trote e tudo que meu cérebro conseguiu
se concentrar, foi na tarefa de procurar pela origem do sangue que sujava o
meu filho.
— Você está machucado? — investiguei, afastando-me do carro com
ele e o coloquei sentado em uma viatura próxima, vendo seu corpo tremer
em resposta.
Não havia nenhum machucado visível, mas ainda assim, ele parecia
ter perdido tanto sangue, que quando as palavras saíram da sua boca, eu
senti como se uma faca tivesse sido cravada em meu peito:
— É da mamãe — Igor falou, em meio ao soluço. — Eles mandaram
ela sair do carro ou iam atirar…
Meu filho começou a relatar tudo o que havia ocorrido, e a cada
palavra que saía de sua boca, eu sentia meu coração se aproximar de um
infarto. Uma sensação de formigamento percorreu todo o lado esquerdo do
meu corpo, e só então percebi que estava hiperventilando. Foi quando a
mão de Pedro alcançou meu ombro, apertando-o e me tirando do colapso
em que minha mente estava prestes a sucumbir.
Minha atenção se voltou para o veículo, observando as marcas de
tiros espalhadas por toda a superfície da lataria e dos vidros. Eu sabia que
os carros blindados eram projetados para resistir a até três carregadores de
submetralhadora, e Nathalia tinha plena consciência disso.
A única razão que a levaria a sair do carro seria se ela acreditasse que
eles eram capazes de fazer isso e representassem uma ameaça para a
segurança de Igor.
Os acontecimentos que sucederam às horas seguintes, correram para
mim no piloto automático. Igor foi levado para o hospital mais próximo e
passou por uma série de exames para verificar se realmente estava bem,
enquanto um policial tentava colher seu depoimento novamente.
Quando Marc chegou, deixei meu filho sob o cuidado do seu
padrinho e me afastei com o advogado que havia trazido Rodolfo com ele.
Meu pai também tinha vindo nos encontrar no hospital e assim que
estabelecemos uma distância do quarto de Igor, meus olhos se voltaram
para o delegado da polícia federal.
— Você me garantiu que estava de olho nos contatos do André —
falei, entredentes, tentando controlar a raiva e impotência que cresciam
dentro de mim.
Naquele momento, a única coisa que eu sentia era uma necessidade
selvagem de esmurrar qualquer coisa que estivesse na minha frente, até que
eu acordasse daquele maldito pesadelo.
— Nós estávamos monitorando. Todas as contas dele e das pessoas
ligadas a ele foram bloqueadas e…
— Ainda assim ele chegou até ela, porra!
— Filho, mantenha a calma…
— Manter a calma? — Encarei meu pai, sem acreditar que ele iria me
pedir calma nessa altura do campeonato. — Você tem ideia do que aquele
filho da puta pode fazer com a minha mulher?
Eduardo me fitou com compreensão, mas era impossível que ele
soubesse o que eu estava sentindo naquele momento, porque nem mesmo
eu era capaz de determinar qual sentimento predominava em mim.
— Ela não é a única desaparecida, o outro segurança também foi
levado — disse Marc, atraindo minha atenção e me relembrando que o
garoto também havia sido levado.
— Não podemos descartar que o rapaz seja um cúmplice — disse
Rodolfo, obrigando-me a virar o rosto em sua direção. — Sei que confia na
sua equipe, mas, se a rota era mudada todo dia e ainda assim, eles foram
emboscados, é uma possibilidade de que alguém de dentro repassou para os
homens de André.
— Certo, mas… vocês estão pressupondo que seja ele, sem nem
considerar outras pessoas? — perguntou Marc, franzindo o cenho,
preocupado. — Ela é filha de Miguel Gama, pode ser um sequestro comum.
Rodolfo balançou a cabeça, ponderando.
— Não é uma possibilidade a se descartar, vamos trabalhar com as
duas opções e assim que o delegado da civil determinar a aborda…
— A civil não vai se envolver — fui categórico, lembrando-me de
todos os documentos que meu investigador enviou, mostrando os
pagamentos de propina de André para várias delegacias.
— É alçada deles, Renato, tudo o que eu posso fazer é acompanhar a
situação e colaborar com eles. Não é minha jurisdição — Rodolfo disse,
olhando-me com compreensão —, posso tentar repassar o caso para o
delegado de um DP que eu confio, mas…
— A PF pode interferir em um caso quando a vítima de sequestro é
um estrangeiro em território brasileiro, não é? — Marc perguntou,
retoricamente. Mesmo assim, o delegado aquiesceu, confirmando. Meu
amigo e advogado se virou para mim. — Nathalia nasceu no Brasil ou nos
Estados Unidos?
— Estados Unidos — falei, lembrando-me de nossas conversas
anteriores, quando nos conhecemos e ela me contou um pouco de sua vida.
— E ela foi levada à menos de um quilômetro do Consulado
Americano — meu pai relembrou, atraindo a atenção do delegado —, além
disso, Miguel Gama é um consultor econômico do governo norteamericano.
Rodolfo meneou a cabeça, compreendendo o que os dois estavam
querendo dizer.
— Tudo bem, vou levar o pedido para o meu superintendente, mas
vocês vão precisar mexer alguns pauzinhos para pressionar o meu chefe —
disse ele, olhando diretamente para mim. — É ano de eleição e a última
coisa que o filho da puta quer, é se meter em uma investigação longa.
Concordei com ele, compreendendo o que queria dizer, e me afastei,
discando o número do meu investigador para instruí-lo a conseguir alguma
informação que eu pudesse usar contra o atual diretor da Polícia Federal.
primeiro dia de sequestro
O pai de Nathalia chegou na cidade no início da manhã do dia
seguinte, trazendo consigo Antônio e Ethan.
Minha casa havia sido transformada em uma espécie de base de
operações, com a equipe de Rodolfo entrando e saindo, enquanto a minha
equipe de gerenciamento de crise tentava administrar a bagunça que havia
se transformado a minha vida.
Eu havia parado com todos os atendimentos e desmarquei todas as
reuniões por tempo indeterminado, congelei operações milionárias em
andamento, e meus clientes e os de Nathalia não paravam de ligar para
descobrir o que havia acontecido.
A resposta era sempre a mesma: um imprevisto de caráter pessoal.
Enquanto uma parte da minha equipe tentava lidar com o caos entre
os clientes, outra parte cuidava de manter a situação em completo sigilo. A
quantidade de NDA que havia sido assinado desde a noite anterior, poderia
encher o porta-malas de um carro e Marc garantia que ninguém pudesse
falar dessa situação fora do meu apartamento.
Rodolfo havia trazido um negociador da PF para me acompanhar,
para o caso de entrarem em contato pedindo por um resgate. No entanto, já
estávamos indo para vinte e três horas de desaparecimento, e meu telefone
não tocou em nenhum momento.
Miguel havia decidido seguir por conta própria e deixou o meu
apartamento, após minha discussão com Rodolfo. O delegado havia
ameaçado me prender mais de dez vezes só naquela manhã, mas Eduardo o
acalmava e o tirava de perto antes que eu o esmurrasse por sua
incompetência.
— Acho melhor que a minha equipe assuma isso, Renato. —
Leandro, que havia chegado no início da madrugada, se aproximou e parou
na minha frente, oferecendo-me uma dose de uísque com gelo.
Porém, nem o álcool conseguia mais amenizar a raiva que queimava
em minhas veias.
— Isso não vai acontecer — sentenciei, virando o líquido de uma
única vez, levantando-me para dar uma volta e tentar me livrar daquela
energia que estava me sufocando.
Vinte e duas horas.
Nathalia estava com André há vinte e duas horas.
A cada minuto que se passava, eu tinha mais certeza de que ele era o
responsável por isso.
Existiam dois tipos mais comuns de sequestro: por dinheiro ou por
vingança. Eu já havia lidado com ambos em diversas ocasiões com clientes,
porque pessoas ricas e influentes não procuram a polícia quando acontece
uma falha na segurança de seus entes queridos.
Em noventa e nove por cento dos casos, o envolvimento da polícia só
traz exposição midiática para a situação, o que os leva a ter que lidar com
trotes de desocupados e, obviamente, a possibilidade de expor ainda mais a
sua família para futuras tentativas de sequestro.
Os casos que não iam para a polícia, eram resolvidos internamente
com uma equipe especializada e o meu primeiro caso veio quando eu só
tinha dezenove anos e ainda estagiava na Hambrook Equities. Foi no caso
de Alba García que meu antigo chefe, me ensinou sobre esse padrão.
Sequestros por dinheiro eram geralmente os casos em que havia a
maior probabilidade de resgatar a vítima sem danos. Afinal, os criminosos
buscavam apenas o dinheiro que poderiam obter com isso. As negociações
começavam aproximadamente seis horas após o desaparecimento, e o prazo
máximo para esse tipo de sequestro, caso a família não aceitasse as
exigências, era de três dias. Eu havia lidado com inúmeros casos
semelhantes, e o padrão se mantinha relativamente estável, com muito
poucos ultrapassando esse período.
No entanto, os sequestros motivados por vingança eram
extremamente imprevisíveis em termos de desfecho. Nesses casos, as
ligações para os entes queridos da vítima geralmente demoravam mais a
acontecer. A intenção dos sequestradores era causar o máximo de medo e
desespero possível, como uma forma de tortura psicológica, pois nunca
tínhamos conhecimento do que poderia estar acontecendo com a pessoa que
amávamos.
Ao contrário do outro tipo de sequestro, nos casos movidos por
vingança, o risco de vida da vítima era muito maior, uma vez que raramente
existia a intenção dos criminosos de devolvê-la com vida.
Após vinte e duas horas de completo silêncio, era certo afirmar que,
Nathalia se enquadrava no segundo caso.
— Você precisa se afastar, Renato. Isso é pessoal demais para você
e… — Leandro não teve tempo de concluir, pois o barulho do copo que
estava em minha mão sendo estraçalhado contra a parede repercutiu por
todo o escritório.
— Eu já disse que não vou sair do caso — disse, entredentes,
sentindo meus punhos se fecharem e a raiva reverberar em cada palavra.
Zimmermann entrou no escritório, olhando em volta para encontrar a
origem do barulho e ao ver os cacos de vidro espalhados próximo da lareira,
deixou que um vinco surgisse em sua testa.
— Você precisa dormir, Renato. Já está acordado há mais de trinta
horas e…
Respirei profundamente, afastando-me dos dois ou corria o sério
risco de perder a paciência e acabaria descontando neles todo o ódio que eu
estava sentindo.
— Sei que você está com a cabeça na merda, mas não pode pensar
nela como a sua mulher, porra!
Leandro decidiu que queria encurtar seus dias de vida, e se
aproximou da janela em que eu estava. De onde eu estava, podia ver o
prédio em que Nathalia morava até alguns meses atrás e bem ali, no
vigésimo sétimo andar, reconheci o seu antigo apartamento.
O nó se instalou em minha garganta e meus dedos pressionaram a
base do parapeito da varanda, tentando conter o desespero crescente em
meu peito, que estava lutando contra a raiva, a impotência e a culpa.
Eu prometi para ela que tudo ficaria bem. Jurei que André não
encostaria um dedo sequer nela, e minha palavra havia falhado.
— Goste ou não, ela é um patrimônio e o nosso trabalho é ser
racional e avaliar todas as alternativas para proteger esse patrimônio. Você
está se esquecendo que ela é a porta de entrada para um cofre com bilhões
— continuou, como se aquilo fizesse qualquer diferença para mim. — Eles
não estão dando a mínima se ela é mãe, mulher ou filha de alguém. Você já
viu isso dezenas de vezes com os seus clientes. O que aconteceu quando o
seu cliente decidiu te tirar da negociação e agir emocionalmente?
Cada músculo do meu corpo retesou ao ouvir sua pergunta e
memórias do meu primeiro caso invadiram minha cabeça. Eu tinha
dezenove anos quando Theo, um dos meus amigos da faculdade, procurou a
Hambrook Equities para que ficassem a frente da negociação do sequestro
de Alba, sua irmã.
Na época, a gestora do velho Anderson cuidava do patrimônio da
família García e meu amigo fez questão de que eu estivesse inserido no
caso, já que era a única pessoa que ele acreditava que trabalharia
arduamente para trazer sua irmãzinha de oito anos de volta para casa.
Anderson me colocou à frente da situação e eu passei a negociar
diretamente com os sequestradores, e chegamos em um consenso sobre as
exigências. Tudo estava praticamente certo, até que o pai de Theo decidiu
que não faria as coisas pelos meus meios e usaria seu próprio pessoal para
encontrar a menina.
Alba foi assassinada doze horas após Camilo García invadir um dos
galpões do seu rival de negócios, e apesar de saber que não tinha culpa na
morte da garotinha, aquele era um fantasma que me assombrava todas as
noites.
— Você disse que confia no meu trabalho, então, pode me deixar
tomar as rédeas e garantir que a sua mulher volte para casa em segurança?
— insistiu Leandro, fazendo-me engolir em seco e menear a cabeça. —
Ótimo, caso dissesse que não, eu tinha três enfermeiras prontas para enfiar
uma agulha com a dosagem máxima de Alprazolam na sua garganta.
Eu sabia que aquela era uma tentativa sua de me fazer relaxar, mas
nem para me irritar aquilo serviu.
— Bianca — ele a chamou e a loira que estava parada na porta, nos
observando com os olhos cheios de lágrima se virou para ele. — Vá até a
RCI e acompanhe o trabalho da equipe de relações públicas e garanta que
não existe a menor possibilidade do sequestro vazar.
A loira concordou, ouvindo todas as instruções que meu amigo
passou e ele saiu do meu escritório, falando com a equipe que estava
espalhada pela sala e determinando o que cada um deveria fazer.
Dolores, a senhora que trabalhava no meu apartamento, aproximou-se
de fininho e recolheu os cacos de vidro do chão e pude sentir a aproximação
do meu amigo.
— Onde as crianças estão? — indagou, casualmente, tentando me
distrair.
— Na casa da minha mãe.
Pedro balançou a cabeça, fixando o olhar na cidade lá embaixo,
enquanto eu me via contemplando o apartamento vazio no prédio em frente.
Como se aquela visão pudesse de alguma forma fazer o tempo retroceder e
nos levar de volta ao início, quando minha maior preocupação era
convencer Nathalia de que o que tínhamos era muito mais do que apenas
mais um caso.
— Ela vai ficar bem, Renato — disse Pedro, talvez mais para si
mesmo do que para mim.
Eu só consegui concordar com um aceno de cabeça, pois precisava
acreditar nisso, caso contrário, não sobraria nada de mim.
quarto dia de sequestro
Naquela tarde, por volta do fim do dia, o meu celular tocou pela
primeira vez em quatro malditos dias.
Leandro sinalizou para que todos ficassem quietos e eu ergui o rosto
para a mesa do meu escritório, o copo vazio em minha mão era a única
coisa que me mantinha calmo o suficiente para não acabar com a cara de
Rodolfo a cada vez que ele entrava para me dizer que não haviam
conseguido nada.
Nenhum sinal de André por lugar algum. Como ele poderia ter
simplesmente desaparecido?
Era humanamente impossível.
Mabi, uma das minhas clientes e melhor amiga da Maju — prima do
Leandro —, havia se oferecido para nos ajudar, já que ela era presidente de
uma empresa de tecnologia voltada para o setor de desenvolvimento de
segurança e conseguiria oferecer mais amparo do que a polícia no
momento.
Salazar a encarou, esperando a confirmação de que estava rastreando
a ligação e meu amigo atendeu a chamada, fazendo com que uma voz
distorcida preenchesse o meu escritório.
— Estamos com a sua namorada, e estamos dispostos a negociar um
valor pelo resgate dela. — A voz sintetizada preencheu o silêncio e
Leandro olhou para a Mabi, que sinalizou que o seu sistema estava rodando.
— Isso é ótimo. Podemos iniciar a negociação, assim que recebermos
uma prova de vida — disse Salazar, e ele estendeu a mão, sinalizando para
que eu parasse o que pretendia fazer quando fiz menção a pegar o telefone
da mesa.
Marc colocou firmemente a mão em meu ombro, me obrigando a
permanecer sentado, enquanto meus olhos se fixavam no aparelho com o
número desconhecido exibido na tela.
— Enviaremos a prova de vida, após o pagamento da primeira parte
do resgate.
— Isso seria bom, mas não é assim que as coisas funcionam —
Leandro falou, firme e sério, mantendo a voz o mais política possível.
Olhei fixamente para Maria Beatrice, aguardando qualquer sinal de
que seu programa tivesse encontrado a localização da chamada, mas sua
expressão deixava claro que ainda não havia ocorrido.
— Vocês estão com ela há quatro dias, o que me garante que ela
ainda está viva? — Leandro questionou friamente e eu senti cada gota de
sangue do meu corpo ferver, fazendo com que meus punhos se fechassem.
Não houve qualquer resposta por parte dos sequestradores e a
chamada foi desligada abruptamente, o que me fez erguer o olhar para o
Salazar.
— Que merda foi essa? — Rosnei, sentindo a raiva se alastrar, me
fazendo ver tudo vermelho.
— Eu preciso ser realista, Renato. São quatro dias, estamos indo para
o quinto — falou, olhando-me duramente. — O que garante que ela ainda
está viva?
— Ela está viva, porra!
Salazar franziu o cenho, meneando a cabeça.
— Sinceramente, espero que sim. Mas eu não vou negociar sem uma
prova de vida — decretou, virando-se para a morena que estava calada, nos
observando com os olhos ligeiramente arregalados. — E aí, nerd, encontrou
alguma coisa?
Ela engoliu em seco, balançando a cabeça.
— Mais ou menos… a localização indica o Bahrein[58]
, mas é possível
que eles estejam usando um roteador para mascarar sua localização real —
disse ela, com calma, olhando-me com pesar. — Ela pode estar em qualquer
lugar, Renato. Sinto muito.
sexto dia de sequestro
Dois dias após o primeiro contato, recebemos o maldito vídeo de
prova de vida que Leandro havia exigido.
A polícia não conseguiu encontrar nada que comprovasse que André
tivesse saído do país e estavam vasculhando cada voo que saiu do país nos
dias que sucederam à emboscada, tentando encontrar algum indicativo de
que ele pudesse ter saído usando um nome falso.
Mas era como procurar por uma agulha dentro de um palheiro.
Milhares de voos particulares saíram do país nos últimos cinco dias, e
mesmo que verificassem cada um, levaria mais tempo do que nós realmente
tínhamos.
— Tudo bem… — balbuciou Leandro, com os ombros retesados e
olhou para a equipe que estava espalhada pelo meu escritório —, vocês
podem sair e nos dar privacidade, por favor.
Um a um, minha equipe obedeceu ao pedido dele e saíram da sala,
deixando apenas a mim, Leandro, Pedro, Marc, Miguel e Antônio.
Sturzenecker serviu uma nova dose de uísque para mim e meus olhos
se fixaram no aparelho de DVD enquanto Salazar o ligava e colocava o CD
que havia sido deixado na portaria do meu prédio a pouco menos de vinte
minutos.
— Renato, você tem certeza que…
— Coloca essa merda logo.
Ele aquiesceu e bebi um gole longo, sentindo a minha respiração se
tornar uma cacofonia desastrosa quando o rosto de Nathalia preencheu a
televisão que havia sido instalada no meu escritório há dois dias.
Seus olhos doces estavam com bolsas escuras e inchadas,
denunciando que não estava dormindo e seu rosto estava úmido pelas
lágrimas que rolavam. Suas mãos trêmulas seguravam um jornal que
marcava a data de ontem, mas o que realmente capturou a minha atenção
foi o lado esquerdo do seu rosto avermelhado.
Seu olhar ia repetidamente para o lado esquerdo, olhando para
alguém que estava atrás da câmera e quando sua voz soou rouca, trêmula e
amedrontada, eu quis morrer.
— Meu nome é Nathalia Maia de Bazán Gama e eu fui sequestrada
há cinco dias. Eu estou sendo bem-tratada e alimentada, não fui abusada e
os sequestradores não têm qualquer intenção de me ferir. Eles aceitam me
liberar, sob as seguintes condições.
O oxigênio se perdeu no caminho para os meus pulmões e eu apertei
o copo entre minhas mãos com tanta força, que apenas me dei conta de que
o vídeo havia acabado quando Pedro se aproximou e retirou os cacos de
vidro da minha mão ensanguentada.
— Bianca, liga para o Jonathan e peça que venha aqui — Leandro
disse, para a loira que havia acabado de entrar na sala, mas minha audição
estava prejudicada.
A única coisa que eu conseguia ouvir, era a voz de Nathalia recitando
o texto que haviam mandado que ela dissesse para a câmera.
O sentimento de impotência e culpa me invadiu e eu senti as lágrimas
começarem a embaçar a minha visão.
— Renato, ela está viva e…
Meus olhos se fixaram na televisão mais uma vez, analisando cada
frame que se repetia como se isso pudesse me fazer despertar daquele
pesadelo, mas ele se tornava mais real a cada segundo.
Quando o telefone tocou, horas ou minutos depois, Jonathan estava
terminando de fazer os curativos em minha mão.
— Vocês receberam o vídeo?
— Sim, estamos prontos para começar a negociar — Leandro disse,
calmo, mas sua expressão denunciava que estava tão abalado quanto eu.
— Certo, mas o valor acabou de triplicar.
Engoli em seco, olhando para o meu amigo e deixando claro que ele
poderia aceitar qualquer que fosse o preço, contanto que eu tivesse a minha
mulher de volta.
Meus olhos se voltaram para a televisão e a sua voz voltou a me
assombrar, enquanto as íris que costumavam brilhar tanto ao ponto de
iluminar o meu mundo, pareciam ter perdido completamente a ânsia pela
vida que sempre queimava neles.
“Meu nome é Nathalia Maia de Bazán Gama e eu fui sequestrada há
cinco dias. Eu estou sendo bem-tratada e alimentada, não fui abusada e os
sequestradores não têm qualquer intenção de me ferir. Eles aceitam me
liberar, sob as seguintes condições.”
Aquelas palavras me atormentariam até o último dia da minha vida.
nono dia de sequestro
Na manhã do dia seguinte ao vídeo, eu desci para a sala de estar após
uma ducha gelada para me manter acordado.
O álcool e o café haviam sido cortados da minha rotina pelos meus
amigos, e eu me sentia um fiasco.
Nathalia estava desaparecida há nove dias e eu não conseguia falar
com os meus filhos, porque toda vez que os encontrava, eles me
perguntavam sobre ela.
Nós havíamos concordado com o valor de resgate, mas os
sequestradores não nos deram qualquer retorno. Pelo padrão, sabíamos que
isso significava que o valor aumentaria e eu, sinceramente, não me
importava com o dinheiro.
Eu só precisava da Nathalia de volta, mesmo que para isso eu ficasse
miserável.
— Renato… você pediu por flores? — Ananda me olhou com cautela,
e eu parei no meio da escada, lutando para conter a crescente irritação
causada por sua pergunta tola.
Respirei fundo, descendo mais um lance de escadas e negando.
— Não, Ananda. A última coisa que passou pela minha cabeça, foi
pedir flores.
Apesar da minha tentativa de manter a calma, a minha impaciência
estava gravada em cada palavra e a garota engoliu em seco, apertando o
iPad contra o seu peito.
— O porteiro disse que tem uma entrega de floricultura para você.
Franzi o cenho, confuso.
— Floricultura?
Ela meneou a cabeça, temendo dizer algo mais que pudesse
desencadear a minha raiva. No entanto, eu estava em um estágio de cansaço
psicológico que estava guardando cada fração da minha fúria para descontar
nas pessoas que me tiraram Nathalia.
— Mande subirem — falei, buscando pelo analgésico que Jonathan
havia deixado e aproveitando a ausência de Leandro para roubar uma
garrafa de Macallan da adega, servindo um copo e bebendo puro com o
comprimido.
As conversas paralelas estavam mais contidas, todos pareciam temer
se tornarem alvo do meu descontrole e eu apreciava o bom senso, porque
não me sentia no controle dos meus impulsos.
Quando as portas do elevador se abriram, o arquejo de Ananda me
obrigou a voltar para a sala e eu contornei o pilar que me impedia de ver o
elevador. Dentro da caixa de aço, havia dois arranjos de rosas brancas,
formando uma coroa de flores.
No entanto, as rosas estavam inteiramente manchadas de sangue seco
e o copo que estava em minha mão foi direto ao chão, enquanto Ananda
corria para o lado oposto e alguém ao fundo discava o número da polícia.
Minha audição se perdeu e um tremor violento percorreu meu corpo
ao ler a frase gravada na faixa em torno do arranjo.
“Que doce é assistir, a morte de uma rosa delicada”
Existiam algumas coisas que eram sagradas para mim.
Minha carreira.
Meu filho, Luke.
Minha mãe, Louise.
E a Nathalia.
Não existia uma ordem específica de relevância entre eles, pois, para
mim, os quatro tinham o mesmo grau de importância em minha vida. No
entanto, eu seria capaz de sacrificar minha carreira por qualquer um dos
três.
Eu considerava a palavra “amor” rasa, e eu nunca entenderia a
obsessão das pessoas por essa junção de quatro letras insignificantes. O
amor podia se transformar em desprezo, indiferença, ódio… e,
independentemente do resultado, sempre havia uma traição. Se não era uma
traição afetiva, era uma traição de palavras. Uma pessoa que me amava
poderia eventualmente deixar de sentir isso e usaria todas as informações
que tinha sobre mim para me atingir. O fim do amor sempre gerava
ressentimento, um sentimento perigoso e instável.
Por outro lado, a lealdade não era um sentimento, mas um ideologia.
Com o tempo, aprendi que as pessoas são mais propensas a se apegar a um
princípio do que a um sentimento. Quando alguém me prometia lealdade,
não importava se, em algum momento, essa pessoa passasse a me odiar. Ela
nunca usaria qualquer coisa que tivesse conhecido sobre mim durante o
nosso tempo juntos para me prejudicar. Se ela o fizesse, era porque nunca
foi realmente leal.
Lealdade era um valor, e isso não se abandonava por maior que fosse
o desprezo.
Além disso, eu também aderia à filosofia de oferecer às pessoas
exatamente o tipo de importância que elas me davam. Eu acreditava que as
relações deveriam ser recíprocas, e se houvesse um desequilíbrio em que
alguém sempre cedia mais do que o outro, isso criava uma
desproporcionalidade na relação que, eventualmente, poderia se transformar
em rancor.
No fim, na minha percepção, o sentimento mais perigoso que o ser
humano poderia nutrir era, de fato, o ressentimento, pois ele estava
diretamente ligado ao ego. Ninguém gostaria de se sentir inferior ou
prejudicado por outra pessoa, e para evitar que o ressentimento se
transformasse em uma ameaça, era fundamental que as relações estivessem
equilibradas.
Foi assim que a minha relação com a Nathalia sempre funcionou.
Separados, éramos um completo caos. Unidos, um equilíbrio perfeito.
Nathalia conhecia os meus demônios, assim como eu conhecia os
dela. Vimos o pior lado um do outro e, mesmo assim, conseguíamos
enxergar a beleza. Poucas pessoas eram capazes de conhecer o tipo de
pessoa que eu sou e, mesmo assim, permanecer ao meu lado.
Ela era a exceção.
No meu momento mais obscuro, Nathalia ainda me estendia a mão e
permanecia ao meu lado. Nossa lealdade era inquebrável e, não importava
onde estivéssemos, sempre estaríamos prontos para lutar um pelo outro.
Por isso, quando atravessei as imponentes portas do gabinete
presidencial, eu não me importava com as consequências do que poderia
acontecer comigo depois de jogar minha última cartada.
— Sturzenecker — disse o homem que todos consideravam ser o
mais influente do país.
A verdade que algumas pessoas nunca seriam capazes de entender era
que um presidente nada mais era do que um mero fantoche. Um rosto para
ser mostrado ao povo, fazendo-os acreditar que existia uma democracia
real. No entanto, no final das contas, aquele homem estava atendendo
apenas aos interesses daqueles que o colocaram atrás da imponente mesa,
com a faixa presidencial e o poder de comandar um país cheio de recursos.
E essas pessoas não eram o povo, mas sim, empresários influentes.
— É bom vê-lo aqui — disse, Manuel Carlos, olhando-me com um
falso sorriso de simpatia. Meus olhos percorreram a sala, eu tinha estado ali
inúmeras vezes, mas era a primeira que realmente me interessava em
analisar o ambiente. — Em que posso ajudá-lo?
Meus olhos se moveram em direção a um segurança parado na porta,
a poucos passos de distância de mim, pronto para me imobilizar caso
representasse algum risco ao chefe de estado do maior país da América
Latina. Bastou um olhar para que Manuel pedisse ao seu homem que nos
deixasse a sós. Assim que as portas se fecharam, quebrei a distância entre
nós e coloquei uma pasta de arquivo grossa e pesada sobre a mesa.
— Do que se trata isso? — questionou, arqueando a sobrancelha,
desconfiado.
— É uma parte da sujeira que você tem feito nos últimos três meses…
o meu pessoal não se aprofundou na investigação, mas sei que, se o
fizerem, só trarão à tona coisas ainda piores — falei pacientemente,
jogando-me na poltrona e descansando a perna direita sobre a esquerda.
Manuel sorriu nervosamente.
— Você está blefando.
Meneei a cabeça, olhando-o com muita serenidade.
— Bem, Sr. Presidente, eu não sou um homem que blefa, tampouco
que entra em uma sala sem realmente saber o que posso conseguir com as
informações que tenho — murmurei, minha voz carregada de indiferença.
— E se você duvida disso, recomendo que veja com seus próprios olhos. —
Empurrei o volume em sua direção, relaxando novamente as costas na
poltrona. — Minha equipe conseguiu isso em oito horas, imagine o que
posso fazer com mais alguns dias? Ou o desastre que poderia ser para sua
campanha eleitoral se esse dossiê caísse nas mãos de uma jornalista
obstinada, que construiu uma carreira incomparável expondo esquemas de
corrupção e levando políticos corruptos à investigações administrativas e,
consequentemente, condenações?
O homem, concentrado na análise das páginas comprometedoras do
arquivo, voltou os olhos para mim, ficando pálido e engolindo em seco.
Bem, ele tinha motivos reais para se preocupar, uma vez que eu tinha um
contato direto com Maria Júlia Haddock desde que lhe entreguei o comando
do Grupo Editorial Axton, e ela estava louca por um furo jornalístico.
— O que Miguel Gama quer? — perguntou o presidente,
visivelmente intrigado.
Balancei a cabeça, mantendo a calma.
— Para a sua sorte, é algo bem simples e não comprometerá a sua
ética… ou, no seu caso, a falta dela — respondi, levantando-me e
encarando-o com tranquilidade. — Nathalia Gama foi sequestrada há nove
dias em São Paulo.
— Isso tem alguma coisa a ver com André e aquela prostituta de
cinco anos atrás? — indagou ele.
Confirmei, satisfeito por ele ainda se lembrar de como a investigação
policial desmantelou o esquema de André na cidade de São Paulo,
contribuindo para a sua eleição presidencial.
Ele não se importou em usar a desgraça de Sabrina para arrecadar
votos.
— Nove dias de sequestro? — questionou, sentando-se na poltrona e
me olhando com um vinco na testa. — Será um milagre se ela ainda estiver
viva.
Uma coisa sobre mim era que minha calma desaparecia em um piscar
de olhos. Em um segundo, Manuel me olhava com certo cinismo e diversão
pela situação; no seguinte, meus dedos estavam em sua nuca e seu rosto
estava pressionado contra a mesa de vidro escuro.
— Para o seu bem e o da sua presidência… comece a rezar para que
ela esteja viva e segura. Afinal, se ela foi sequestrada e André está
envolvido nisso, é porque você permitiu que arquivassem as investigações
do esquema dele para se favorecer com a base do Senado que pagava pelos
serviços dele — falei, entre dentes. — Você tem dois dias para conseguir
alguma informação útil, ou a Srta. Haddock receberá algumas trocas de emails do senhor negociando propinas com Charles Bellini.
O rosto de Manuel estava vermelho devido à pressão do meu aperto,
mas ele ainda conseguia falar.
— Vai expor seu próprio pai?
— Vou acabar com dois porcos de uma vez, só vejo benefícios —
declarei, soltando-o ao ver a porta ser aberta e o segurança aparecer, com
um olhar atento. Esfreguei as mãos, esboçando um meio sorriso, e me virei
para o presidente, deixando claro que aquilo não era um blefe: — Você tem
quarenta e oito horas, Manuel. Ou considere este o seu último mandato
político.
Primeiro dia de cativeiro
Minha cabeça pesava uma tonelada.
Lentamente, forcei minhas pálpebras a se abrirem e pisquei várias
vezes, tentando dispersar a visão embaçada e descobrir aonde eu estava.
No entanto, conforme o espaço começou a se tornar mais claro em
minha visão, o pânico começou a se alastrar por cada célula do meu
organismo.
Forcei meu corpo para cima, sentando-me no colchão fino, jogado
no chão de terra vermelha, e encarei as paredes, com manchas de terra,
mofo, bolor e… sangue?
Meu estômago embrulhou e eu me levantei, sentindo as pernas
fracas, mas incapaz de ficar sentada. Uma pequena janela de vidro
proporcionava uma iluminação escassa, mas era alta demais e não havia
nada que eu pudesse usar para tentar alcançá-la, mesmo que esticasse os
braços e ficasse na ponta dos pés.
O pânico começou a crescer, rastejando vagarosamente em minha
pele, como uma cobra traiçoeira que se enroscava em sua vítima antes de
devorá-la.
Caminhei pelo cubículo e precisei de menos de dez passos para
alcançar a porta de aço. Ela estava completamente fechada e impedia que eu
visse qualquer coisa do lado de fora. Aproximei o rosto, tentando captar
algum som, mas não havia nada.
No entanto, uma melodia suave e familiar ressoou não muito longe.
Mas não vinha de dentro, a música vinha de fora, e eu conseguia escutá-la
por conta da janela. Não era uma harmonia conhecida, tampouco era
popular entre a maioria das pessoas.
O único motivo para tê-la reconhecido, foi porque eu a escutava
tocar cinco vezes ao dia, durante as minhas estadias no Oriente Médio com
o meu pai.
O chamado para a oração era uma tradição para convocar
muçulmanos para irem às mesquitas rezarem. No entanto, era uma tradição
apenas em países nativos e não existia a menor chance de terem me levado
para fora do país.
Não, não, não.
Isso não havia acontecido. Eu tinha certeza de que assim que abrisse
os olhos, estaria no carro com Igor, escutando-o discutir com Caique por
conta de futebol.
Entretanto, conforme a convocação ficava mais alta, eu me dei conta
de que estava tentando me enganar para não lidar com a realidade de que
fui raptada.
O impacto da constatação me levou ao chão e olhei em volta, como
se o espaço ao redor me ajudasse a materializar aquele destino.
Pela primeira vez desde que abri os olhos, encontrei uma câmera
gravando cada segundo, virada diretamente para a minha “cama”, com uma
luz vermelha piscando sem parar.
Mas sequer consegui me atentar nisso, porque meu coração começou
a bater tão forte que eu comecei a sufocar.
Segundo dia de cativeiro
Eu não sabia que horas eram, ou quanto tempo exatamente havia
passado.
Sempre que meus olhos estavam quase se fechando, uma batida forte
sacudia a porta de aço e eu me levantava em sobressalto. Era como se
soubessem que eu estava cedendo ao cansaço e se divertissem em me
manter acordada.
Ninguém apareceu para falar comigo. Ou para explicar o motivo
para terem me arrancado do meu carro à força.
E eu comecei a cronometrar o dia por conta do azan[59]
, assim eu
sabia distinguir quanto tempo do dia havia passado. A primeira convocação
vinha antes do nascer do sol, o que deveria ser por volta de quatro ou cinco
da manhã, dependendo do país ou cidade que eu estivesse. A segunda
acontecia cerca de duas horas depois, então a terceira vinha ao meio do dia.
Era assim que eu conseguia determinar se faltava muito para
escurecer.
Minha garganta queimava de sede, mas ninguém tentou me fornecer
qualquer coisa para aliviar a ardência, o que deixava claro que não se
importavam em me manter aqui até que eu desidratasse.
Além da convocação para a oração sagrada, naquele dia, eu comecei
a escutar gritos de alguém que parecia sentir muita dor e quando me
aproximei da porta, pude escutá-lo sendo espancado violentamente.
Isso se repetia sempre, toda vez que eu começava a permitir que o
cansaço me vencesse. Era como se quisessem que eu soubesse que estavam
espancando alguém não muito longe, e não me passava despercebida a
sensação de que, a qualquer momento, poderia ser eu.
Eu não me lembrava do que havia acontecido depois que saí do
carro.
A última coisa que recordava era de esconder Igor no porta-malas e
rezar a qualquer divindade que o mantivesse seguro. Então, Caique
conseguiu se soltar do cinto que o prendia e tentou me impedir de sair, mas
a ideia de que começassem a atirar com o Igor dentro do veículo, foi o
suficiente para que eu não me importasse com o que aconteceria comigo.
Contanto que ele ficasse bem, eu estaria em paz.
Quando saí do carro, minha visão foi cegada pela claridade e pela
dor que senti devido à pancada na cabeça. Antes que eu conseguisse focar
minha atenção no homem que apontava uma metralhadora para o carro, um
tecido com um odor forte cobriu meu rosto. Alguém me agarrou por trás,
imobilizando-me e impedindo que eu fugisse.
A última coisa que eu me lembrava de escutar, pouco antes de perder
a consciência, foi um barulho semelhante a um tiro. Desde então, aquele
som me assombrava, e eu rezava para que tivesse sido apenas produto da
minha mente diante do choque. Eu nunca me perdoaria se aquele tiro fosse
real e tivesse ferido o meu filho.
Cada vez que eu fechava os olhos, seu rosto ensanguentado e tomado
por lágrimas invadia minha mente, e eu me sentia a pior pessoa do mundo
por tê-lo envolvido naquilo.
Só podia ser o André, certo?
Ele não tinha conseguido confirmar a morte de Sabrina e decidiu
acabar comigo numa tentativa de encontrá-la. Não importava o quanto eu
gritasse que ela estava morta, aquele pesadelo nunca teria fim.
Quando a quinta convocação do dia ecoou, um tremor percorreu meu
corpo ao ouvir o grito esganiçado de alguém, seguido pelo barulho de dois
tiros.
Por anos, meu pai me obrigou a frequentar um estande de tiro para
que eu soubesse como manusear uma arma. Eu havia passado por todos os
treinamentos, até alcançar o nível mais alto, onde manuseávamos armas de
grosso calibre. Portanto, eu sabia reconhecer cada arma com base no som
de seu disparo. Aqueles dois tiros vieram de uma pistola semiautomática, e
pelo eco que fizeram, percebi que não estavam muito distantes.
Talvez, a cerca de três ou quatro metros de distância de onde eu
estava. A pergunta que ecoava na minha mente era: o que me garantiria que,
agora que haviam acabado com quem quer que estivessem espancando, eles
não viriam ao meu encontro?
Um tremor violento percorreu meu corpo, e eu me aproximei da
parede suja em frente à porta, abraçando meu próprio corpo e tentando
controlar o pânico que crescia em meu interior a cada passo que se
aproximava.
As lágrimas rolaram em minhas bochechas, embaçando minha visão,
e senti o ar faltar em meus pulmões. Levei um tempo até perceber que
estava segurando a respiração, e quando finalmente a liberei, minhas pernas
fraquejaram e meu corpo desceu para o chão.
Sentei-me no piso de terra, abraçando minhas pernas e me
encolhendo contra a parede paralela à câmera, como se isso pudesse fazer
com que eles esquecessem da minha existência. Era uma tentativa
desesperada de me proteger e me esconder, como se isso pudesse fazer com
que esquecessem da minha existência.
Um soluço ameaçou escapar, e eu cobri minha boca ao ouvir vozes
não muito longe. Pisquei repetidamente, tentando fazer com que minha
visão não ficasse tão embaçada. Segurei a respiração, sem tirar os olhos da
porta, e só a soltei novamente quando as vozes se afastaram e tive certeza
de que estavam longe.
Mas continuei encarando a porta, esperando o momento em que
entrariam, e mantendo meus punhos cerrados como Renato havia me
ensinado. Eu era pequena demais para competir em força bruta com um
homem forte, mas era ágil e se conseguisse atingi-lo no ponto certo, poderia
correr e tentar fugir de onde quer que eu estivesse.
Mas para onde você vai fugir se nem sabe onde está?
Aquela voz em minha cabeça soou, lembrando-me que eu poderia
estar ainda mais perdida no tempo do que acreditava.
E se não foram apenas dois dias, mas três? Ou quatro?
Por quanto tempo conseguiram me manter inconsciente?
Seria tempo suficiente para me tirar do país?
Sobressaltei quando a última convocação soou, e olhei para a janela,
percebendo que a noite havia chegado. Meu coração começou a bater com
força no peito, e me lembrei de respirar. Entreabri os olhos e deitei a cabeça
na parede, encarando o teto manchado de umidade.
Minha visão ardia, e as lágrimas rolavam incessantemente, fazendome sentir como se estivesse sufocando novamente. Eu lutei para conter os
soluços, rezando para não fazer barulho e implorando para que eles
esquecessem que eu estava ali.
Terceiro dia de cativeiro
Não lembrava em que momento fechei os olhos, mas eles se abriram
quando o estrondo da porta de aço quebrou o silêncio. Levantei-me
rapidamente, ficando de pé com os punhos cerrados.
Não tinha certeza se teria forças para lutar, estava com tanta fome e
exausta que mal conseguia me sustentar em pé.
Um homem careca e musculoso entrou pela porta, olhando ao redor,
até fixar seus olhos escuros em meu rosto. Ele me encarou, percorrendo
meu corpo com o olhar, e balançou a cabeça antes de falar:
— Tragam ele.
Duas palavras foram o suficiente para me causar um terror profundo,
mas antes que eu pudesse arriscar correr pela porta aberta, dois homens
entraram no cubículo arrastando um rapaz todo machucado e
ensanguentado.
Meu cérebro congelou e o ar ficou preso nos meus pulmões ao
reconhecer Caique, e sem nenhum cuidado, os dois homens o jogaram no
chão duro, deixando-o inconsciente.
Eles não olharam em minha direção, mas o careca não tirava os
olhos de mim.
Não consegui me mover, atingida pelo horror ao ver o garoto com
vários cortes espalhados pelo peito, abdômen e braços. Um corte profundo
marcava o lado esquerdo de seu rosto, e embora não fosse tão profundo, o
sangue manchava seu rosto.
O homem careca me lançou um último olhar antes de falar com
alguém, mas minha audição havia se perdido e tudo o que eu conseguia
escutar eram as batidas ensurdecedoras do meu coração e o chiado
estrangulado que ressoava do meu peito.
Minhas pernas vacilaram e eu tirei o casaco fino que estava usando
para tentar conter o sangue que continuava jorrando do corte mais
profundo.
Caique balbuciou algo ininteligível, enfraquecido pela dor.
As lágrimas rolaram pelo meu rosto enquanto eu procurava por
qualquer sinal de que houvesse um ferimento mais grave que colocasse sua
vida em risco. Entre tantas feridas, não consegui identificar qual era a pior.
Um soluço alto escapou da minha garganta ao ver que seu rosto
bonito e sempre tão gentil, foi transformado em uma máscara deformada.
Meus olhos recaíram em minhas mãos, imundas pelo sangue dele e a
culpa me atingiu como uma avalanche. Demolindo qualquer controle que eu
estava tentando reunir nos últimos dias. Aquela corda invisível enlaçou
minha garganta, apertando com força ao me dar conta de que aquilo tudo
era minha culpa.
Caique havia saído do carro por minha causa.
Ele tentou me impedir, e quando eu me desvencilhei, ele saiu logo
atrás, mas antes que o mandasse voltar para o carro, alguém me apanhou
por trás.
O desespero se alastrou por cada pedaço do meu corpo e eu caí para
trás, encarando as mãos sujas pelo sangue de Caique.
Aquilo era tudo culpa minha.
Quarto dia de cativeiro
Minhas pálpebras se abriram poucos segundos após fechá-las.
Eu não pretendia dormir, mas precisava aliviar um pouco daquela
ardência pelo tempo em que estava acordada.
Aquela era a maior quantidade de tempo que eu estava sem dormir
em toda a minha vida e, em algum ponto do dia, minha visão começou a dar
pontos pretos e meu corpo parecia ainda mais enfraquecido do que no
anterior.
A porta de aço foi aberta e dois homens entraram, caminhando em
minha direção e antes que eu pudesse impedir, eles me agarraram pelo
braço e me arrastaram para fora do cubículo. Eu gritei, implorando que não
me machucassem, mas eles me soltaram no chão, em frente ao careca que
havia ficado me encarando no dia anterior.
Um soluço ficou preso em minha garganta e senti sua mão enroscar
em meu cabelo, puxando com força e me obrigando a ficar em pé. Quando
eu me estabilizei, ele me soltou e indicou em silêncio que eu caminhasse
pelo corredor atrás de mim.
A única coisa que pairava em minha mente era que eles iriam fazer
comigo o mesmo que fizeram com Caique. Eles iriam me machucar até
arrancar o que quer que estivessem procurando.
De repente, eu não tinha mais certeza se aquilo poderia ser coisa do
André.
E se fosse outra pessoa?
Alguém que tivesse problemas com o meu pai?
E se fosse Konstantin?
O medo de Miguel deveria ter me servido de alerta para a
possibilidade de que algo assim acontecesse.
Por que eu acreditei que comprar a briga de Rowan me manteria
segura?
Quando eu não me mexi, senti algo gelado em minhas costas e cada
músculo do meu corpo paralisou ao sentir a lâmina afiada contra a pele
exposta. O meu vestido tinha alças finas e deixava boa parte do meu corpo
exposto.
— Comece a andar, cadela.
Apertei os lábios, sentindo o coração fora de ritmo no peito e tentei
forçar meu cérebro a enviar um comando para que minhas pernas se
movessem.
Consegui forçá-las a seguir pelo corredor estreito, e olhei ao redor,
buscando algum indício de que ainda estava no Brasil, mas a casa não me
oferecia qualquer familiaridade. As paredes estavam manchadas de barro
vermelho, as portas de aço eram pintadas com tinta látex preta, e o piso era
coberto pela mesma terra que manchava as paredes.
Quando ameacei dar mais um passo, o homem careca agarrou meu
cabelo com força e me fez parar em frente a uma porta vermelha.
— Você tem cinco minutos para se lavar e colocar a roupa que está
lá dentro — ele disse, me forçando a olhar em seu rosto e a minha visão
embaçou ainda mais. — Demore mais do que isso, e eu mesmo entro ali e
dou banho em você, boneca.
Engoli em seco, balançando a cabeça por instinto para que soubesse
que eu havia entendido e ele empurrou a porta pesada, me dando acesso
para que eu entrasse.
Pior do que o cubículo em que eu estava, era aquele que o homem
queria que eu entrasse. As paredes estavam tomadas por um mofo preto e
musgos esverdeados por conta da umidade, não havia janela e uma privada
imunda estava ali, com uma crosta preta grudada em sua superfície.
A náusea me atingiu brutalmente e ele me empurrou para dentro,
fechando a porta com força e me deixando trancada naquele buraco. Olhei
em volta, sentindo o pânico voltar a me ameaçar e encontrei o que parecia
ser um moletom velho e uma calça de tecido. O piso era de concreto batido,
mas estava tão sujo, que parecia nunca ter sido limpo.
Um tremor percorreu meu corpo e meus olhos percorreram as
paredes, buscando por uma câmera ali, mas não havia nada.
— Quatro minutos.
A sua voz me despertou da letargia e eu forcei minhas mãos a
alcançarem as costas do meu vestido, descendo o zíper e me libertando da
peça. Meus olhos se fixaram no enorme balde com água, e com o choro
entalado na garganta, apanhei uma cumbuca e comecei a lavar o meu corpo,
sentindo o sabonete áspero rasgar a minha pele a cada esfregada.
— Um minuto e meio.
Terminei de me lavar rapidamente, usando uma toalha que havia sido
colocada em um banco ali e que parecia limpa. Temendo que o homem
cumprisse sua palavra, eu me vesti rapidamente e quando terminei de passar
o moletom velho em minha cabeça, ele abriu a porta bruscamente,
denunciando que não havia mentido.
— Vamos, saia logo.
Obedeci a seu comando, escondendo as mãos nos bolso do moletom,
buscando por algo que aquecesse minhas mãos frias. A água estava
congelando, e eu sentia as juntas doloridas.
— Anda logo! — Ele me empurrou, sem delicadeza, forçando meus
pés a se moverem pelo corredor e meus olhos correram ao redor, mas não
havia nada que eu pudesse usar para tentar fugir.
Com exceção do banheiro, todas as portas eram iguais e pintadas da
mesma cor, eu não conseguiria dizer qual seria capaz de me tirar daqui.
Quando o homem que estava em frente a terceira porta à minha
direita a abriu, meus olhos pousaram em Caique acordado. Ele estava
sentado no chão, meu casaco havia sido amarrado em torno do seu peito,
contendo o sangue do ferimento e ele parecia respirar com dificuldade.
Meu corpo inteiro congelou, e a ideia retornar para aquele cubículo
me aturdiu com tanta força que eu não fui capaz de mover um único
músculo.
— Entra logo, vadia. Eu não tenho o dia todo! — O homem falou,
mas dessa vez, eu não tive qualquer controle sobre meu corpo.
Meu peito se movia rapidamente e só percebi que estava paralisada
na porta quando fui violentamente jogada no chão, sentindo o impacto da
queda. Caique tentou se levantar e avançar contra o homem, mas seus
ferimentos o impediram, e uma expressão de profunda agonia se espalhou
por seu rosto.
Enquanto isso, eu me arrastei com dor até o colchão, encolhendo-me
contra a parede e lutando para controlar meus próprios batimentos.
A porta bateu com força, e o choro irrompeu do meu peito, enchendo
o ar com soluços que ecoavam no silêncio ensurdecedor.
Quinto dia de cativeiro
Caique soltou um arquejo de dor e eu me aproximei dele, ajudando-o
a comer o mingau que haviam empurrado para que comêssemos.
Aquela era a minha primeira refeição desde o almoço com Olívia no
Niké, mas a minha maior preocupação era com o rapaz ferido que mal
conseguia se mexer sem emitir um grunhido de dor.
— Quem você acha que é? — perguntou ele, com a voz enfraquecida
e dolorida.
Engoli em seco, tentando controlar minha mão trêmula enquanto
tentava alimentá-lo com o mingau. Estava tão nervosa que não conseguia
comer enquanto ele estivesse com fome. Percebi que, mesmo contrariado,
Caique acabou comendo também a minha porção de mingau de aveia.
Voltei para o colchão com uma maçã, mordendo um pedaço e mastigando
devagar, como se isso pudesse satisfazer meu estômago dolorido.
— Não sei — respondi à pergunta dele, após um tempo em silêncio.
Poderia ser André, Konstantin, algum inimigo do meu pai, ou talvez
do meu namorado… quem sabe, o próprio Rowan?
Talvez eu tivesse sido estúpida o suficiente para acreditar que ele
poderia ser confiável e, no fim, fosse apenas o motivo da minha queda.
— Um inimigo do seu pai?
Desviei o olhar para Caique, sem saber o que responder.
Independentemente de quem estivesse por trás daquilo, ele ainda tinha sido
ferido por minha causa. Eu só não sabia se era por consequência das minhas
ações ou por carregar meu sobrenome.
Quando o cubículo foi tomado pela escuridão, Caique começou a
pegar no sono e eu tentei com muito custo me manter acordada, mas o
cansaço era tanto que minhas pálpebras se fecharam sem minha permissão e
o meu cérebro começou a desligar gradativamente.
Eu sentia a escuridão me envolvendo, enrolando-me em uma névoa
densa, mas antes que me prendesse de uma vez por todas, a porta foi aberta
em um baque.
Meus olhos se abriram e eu me endireitei, alarmada. O homem
careca marchou em minha direção e agarrou meu pulso, tirando-me de
dentro da cela à força no meio da noite.
Eu gritei, em pânico, tentando me livrar e morrendo de medo do
motivo para isso estar acontecendo.
Caique veio em nossa direção, avançando no homem musculoso e
tentando me libertar, mas ele não tinha forças para isso e o careca o jogou
no chão, chutando seu estômago repetidamente.
— Não! Por favor, para com isso! — Supliquei, sentindo minha
garganta ser esfolada pela minha voz rouca, mas em resposta, o homem
acertou um tapa tão forte em meu rosto que meu corpo foi de encontro ao
chão.
Solucei, sentindo a ardência pelo tapa fazer com que minha pele
formigasse e levei a mão na direção, sentindo as lágrimas rolarem em
minhas bochechas incessantemente.
Gemi de dor, quando ele agarrou meu cabelo e me puxou para cima
bruscamente. Um arquejo escapou dos meus lábios e meu coração parou de
bater ao sentir o cano gelado da pistola contra minha garganta.
— Cale a maldita boca, sua vadia. Você não tem direito de me pedir
nada, entendeu? — Rosnou, e não tive coragem de dizer nada quando o
clique da trava sendo removida ecoou. — Não pense que eu não posso
estourar esse seu rostinho lindo até que fique irreconhecível.
Eu segurei a respiração por tanto tempo que podia sentir meus
pulmões arderem e as lágrimas se acumularem ainda mais em meus olhos.
Com Caique jogado no chão, grunhindo de dor, deixei que meu
cérebro se desligasse e o homem me guiasse pelos corredores. Não me dei
ao trabalho de tentar aprender o caminho, porque era inútil.
Eu não ia sair daqui, não importava o quanto torcesse para que sim.
Apesar de nunca ter lidado com uma negociação de sequestro, eu sabia que
eles costumavam fazer seus pedidos de resgate no máximo doze horas
depois. Havia algum zelo com o prisioneiro, já que isso garantia que a
família pagaria pelo resgate.
Aqueles caras? Eles não se importavam se eu estava minimamente
bem. Desde que acordei, eles vinham garantindo que eu não teria um
segundo de paz.
Mesmo que não chegassem perto de mim, eles me privavam de
comida, de água, de ir ao banheiro e de dormir. Eles espancavam pessoas no
cômodo ao lado para deixar claro que poderiam fazer aquilo comigo a
qualquer momento.
Quando entrou no corredor à direita, o careca me empurrou para
dentro de uma sala onde outros quatro homens estavam lá.
Meu coração vacilou e meus pés estacaram no meio do caminho, o
medo atravessou meus ossos e pisquei, em pânico, vendo um deles se
aproximar para ajustar a câmera apontada para uma cama.
O careca tentou me empurrar para entrar, mas meus pés fincaram no
chão e ele precisou me arrastar a força para que eu entrasse. A única coisa
que me restou foi me preparar para o inevitável e minha mente foi tomada
pelas palavras de Sabrina, cinco anos atrás.
Quanto mais eu implorava para que parassem, mais eles me
machucavam.
Eu chorava pedindo para que não me estuprassem, e isso só fazia
com que eles ficassem ainda mais excitados.
Até que eu parei, não lutei, não chorei. Eu só deixei que fizessem
aquilo. E um dia, eles perderam o interesse e eu consegui fugir.
As lágrimas rolaram pelo meu rosto e eu tentei me preparar para o
pior. Quando quatro pares de olhos se voltaram para mim, a bile subiu pela
minha garganta e eu cogitei que vomitaria ali mesmo.
— Coloque ela sentada na beirada da cama. — Um homem de
cabeça raspada falou, ele tinha uma tatuagem no rosto que eu não conseguia
reconhecer por conta da visão embaçada.
Eu contive a súplica para que não fizessem nada comigo, porque
Sabrina me disse que era exatamente o que esperavam de nós. Eles queriam
que sentíssemos medo e implorássemos para que não nos machucassem,
porque quando nos quebrassem sentiriam ainda mais prazer.
Então, eu me calei.
O careca me arrastou pelo cômodo e me jogou onde seu capanga
mandou. Um outro homem, um pouco mais jovem, se aproximou e tentou
arrumar a bagunça do meu cabelo, mas eu desviei do seu toque por instinto.
— Você não deveria ter encostado nela, porra!
— Não tenho culpa se a vadia não sabe calar a boca. — O careca
respondeu e um outro trouxe um jornal, estendendo para mim.
— Segure ele para a câmera e leia o texto que está ali. — Ele
apontou para um cartaz improvisado com um texto que não tinha uma
mísera palavra sincera. — Obedeça e quando pagarem o resgate, você volta
para o seu castelo, princesa.
Engoli em seco, sentindo as minhas mãos trêmulas ao pegar no
jornal e segurá-lo conforme as instruções dos dois homens que
comandavam a filmagem.
“Meu nome é Nathalia Maia de Bazán Gama e eu fui sequestrada há
cinco dias. Eu estou sendo bem-tratada e alimentada, não fui abusada e os
sequestradores não têm qualquer intenção de me ferir. Eles aceitam me
liberar, sob as seguintes condições.”
Li e reli o texto, tentando descobrir como eles acreditavam que
aquilo convenceria alguém. No cartaz seguinte, havia o valor solicitado
para o resgate e suas instruções para o pagamento.
Eles me fizeram regravar o vídeo seis vezes, até que conseguissem a
versão perfeita e senti cada músculo do meu corpo enrijecer quando
desligaram o refletor de luzes.
O careca se aproximou novamente, arrancando o jornal da minha
mão e agarrou meu braço, preparando-se para me arrastar de volta para o
cubículo, e eu não titubeei. Preferia voltar para aquele buraco a permanecer
naquele cômodo com eles.
Estávamos alcançando a porta quando uma voz ressoou não muito
longe e fez com que cada músculo do meu corpo fosse tomado pela tensão.
Virei o rosto, rezando aos céus para que eu estivesse delirando por
conta do tempo em que estava acordada, sem conseguir dormir. Talvez, meu
cérebro estivesse necrosando e por isso, eu havia começado a escutar a voz
de cada demônio que já passou pela minha vida, como um prenúncio de que
meu cérebro estava se preparando para desligar de uma vez por todas.
No entanto, quando meus olhos se fixaram no homem recostado na
porta do outro lado do cômodo, eu soube que era impossível que meu
cérebro fantasiasse com tamanha precisão.
Com os braços cruzados em frente ao peito, uma cicatriz brutal
marcando o lado direito do seu rosto e o nariz muito mais torto do que na
última vez que o vi, estava Guilherme Bastos.
Seus olhos correram pelo meu corpo com um sadismo asqueroso e
quando alcançaram o meu rosto, ele se afastou da parede e caminhou em
minha direção, como se estivesse pronto para aniquilar a minha existência.
Eu cambaleei para trás, como se isso fosse impedir que ele se
aproximasse, mas o careca me segurou, atrapalhando minha tentativa de
fuga.
Minhas pernas vacilaram quando Guilherme parou a poucos passos
de distância e meus punhos se apertaram com força. O ar ficou preso nos
meus pulmões e engoli o chiado dolorido que ameaçou escapar quando seu
tapa atingiu o outro lado do meu rosto.
Tão forte quanto o careca, deixando claro que eu não estava
alucinando.
Antes que eu lidasse com o impacto da dor, seus dedos agarraram
meu cabelo e ele me arrastou para perto, forçando-me a encará-lo quando
rosnou próximo demais de mim:
— Sentiu a minha falta, linda?
Sexto dia de cativeiro
Depois que Guilherme se aproximou e encostou em mim, meu
cérebro permaneceu ligado e eu não me permiti fechar os olhos nem mesmo
por um segundo.
Cada barulho próximo do cubículo, era o suficiente para que o meu
corpo inteiro ficasse em estado de alerta.
Quando a porta se abriu naquela tarde e ele passou por ela, minhas
mãos que estavam cuidando de limpar os ferimentos de Caique para que
não sofresse com uma infecção, pairaram sobre a ferida do garoto que
queimava de febre e meus olhos acompanharam a sua entrada.
— Você deveria dormir, linda — disse ele, largando uma garrafa de
água no chão, perto de onde o Caique estava e usei o corpo do rapaz para
manter distância entre nós. — Sabe, o cérebro humano é um órgão
extremamente sensível, que pode entrar em colapso quando fica muito
tempo em estado de alerta… — refletiu, agachando-se e afastando sua
atenção de mim para o garoto semi-inconsciente.
Meus olhos fixos na cicatriz em seu rosto não o abalaram, ao
contrário, ele sorriu.
— Ah, isso aqui?! — Apontou para o corte largo e seus dedos
alcançaram os primeiros botões da camisa, abrindo-os e mostrando o seu
peito marcado por mais cortes e queimaduras. Algumas novas, outras mais
antigas. — Foi um presente do seu namoradinho.
Engoli em seco, erguendo os olhos para confirmar o que ele estava
dizendo, mas não havia resquício de mentira. Guilherme estava falando a
verdade e seus olhos lampejavam de ódio por isso.
— Ele pagou para que alguns guardas espalhassem no presídio que
eu era um assediador de mulheres… e bem, nós dois sabemos que isso é
mentira, né? — Seus dedos ameaçaram acariciar meu rosto, mas grudei as
costas na parede. — Por que você não disse a ele que queria minha atenção?
Você implorou por ela desde que entrou naquela sala de reunião! Nós dois
sabemos que queria tudo aquilo.
Eu não soube se foi devido ao cansaço ou ao tamanho da insanidade
que ele estava dizendo, mas o encarei completamente abismada com o nível
de delírio que a mente de Guilherme podia proporcionar.
Em que momento eu dei a entender que queria que ele me
assediasse?
Diante do meu silêncio, ele se levantou e deu uma última olhada
para Caique antes de me dar as costas e sair do cubículo.
Quando a porta bateu e o barulho da tranca soou, eu permiti que o ar
fosse liberado dos meus pulmões que queimavam e relaxei os ombros,
tentando recuperar o ritmo acelerado do meu coração.
Sétimo dia de cativeiro
Abri os olhos, assustada.
Dois homens invadiram o lugar e caminharam na direção de Caique
que estava inconsciente, e meu primeiro instinto foi tentar impedir que o
levassem. Eu sabia que iriam machucá-lo ainda mais e eu não tinha certeza
se o garoto conseguiria resistir à mais uma sessão de espancamento.
No entanto, quando eu me aproximei, o homem de cabeça raspada
me empurrou e eu caí direto no chão. Antes que pudesse me preparar, a
pancada atingiu brutalmente meu estômago e a dor lacerante me nocauteou
quando seu pé se afastou para me chutar novamente.
Eu grunhi, sentindo as lágrimas rolarem pela minha bochecha e não
tive forças para impedir que arrastassem Caique, como se ele fosse um
animal indo para o abate.
Quando a porta bateu, eu me arrastei de volta para perto da parede.
O soluço dolorido ecoou pelo espaço, mesclando-se ao barulho dos gritos
que Caique dava enquanto voltavam a espancá-lo no quarto ao lado.
Não soube dizer se foi o cansaço, a dor pela agressão ou se era meu
cérebro se rendendo ao fim iminente, mas a minha visão escureceu e meu
cérebro se apagou completamente.
Tiros ecoavam por todos os lados e eu abri os olhos, ouvindo a porta
ser aberta e pisquei, tentando desanuviar a visão embaçada.
Um soluço me engasgou quando meus olhos encontraram Renato
entrando naquele lugar e quando me localizou, ele veio ao meu encontro,
preparado para me levar embora desse pesadelo.
Eu senti as lágrimas rolarem pelo meu rosto e o choro copioso
escapou do fundo do meu peito quando ele se agachou, sorrindo para mim e
escovando seus dedos em minha bochecha.
— Hora de tomar o seu banho, vadiazinha. — A voz dele soou,
diferente do que eu estava acostumada, sombria e sádica.
Pisquei repetidamente, beliscando minha pele com força, sentindo a
dor se espalhar pelo meu corpo. A imagem à minha frente começou a se
distorcer, e minha mente começou a se libertar da mentira criada. Em
seguida, Guilherme agarrou meu pulso e me arrastou para fora, meus
joelhos rasparam no chão enquanto ele me puxava como se eu fosse um
animal pelo corredor.
— Cinco minutos, ou você já sabe.
Oitavo dia de cativeiro
Naquela manhã, quando a primeira convocação para a oração
ressoou, abri os olhos e percebi que Caique não havia retornado.
Durante os primeiros três chamados do dia, eu não conseguia escutar
nenhum barulho vindo do corredor ou do cômodo ao lado do meu cubículo.
Não havia espancamento, nem mesmo grunhidos de dor, sussurros
entre as paredes ou passos se arrastando no chão de terra.
Era o mais puro e completo silêncio.
Por um momento, considerei que estivesse morta. E não havia paz
ali, apenas uma profunda e completa apatia.
Então, ao quarto azan do dia, Guilherme atravessou a porta e
abandonou uma bandeja com o mingau na minha frente.
— Como você se sente hoje? Alguma queixa sobre a sua
acomodação, princesa?
Meus olhos subiram para o seu rosto, mas nenhuma palavra saiu dos
meus lábios. Desviei a atenção para o outro lado, onde Caique estava na
última vez que o vi. Minha visão embaçou e senti a mão de Guilherme em
meu rosto, obrigando-me a encará-lo.
Um brilho doentio percorreu suas íris, e sem qualquer cuidado, ele
me puxou com força para ficar de pé, sinalizando que trouxessem alguma
coisa.
Eu torci para que fosse Caique, rezei para que ele estivesse bem…,
mas os dois homens que entraram, carregavam arranjos de flores e as
colocaram no chão, apoiadas a parede.
Os arranjos não eram por acaso; eles carregavam uma mensagem
explícita.
— Qual você acha que podemos enviar para o seu enterro? —
perguntou Guilherme, parando atrás de mim.
Ele me incentivou a dar um passo à frente, aproximando-me das
duas opções de coroas de flores. Meu estômago afundou, e meu coração
começou a bater descontroladamente no peito. As paredes começaram a se
fechar ao meu redor, enquanto a constatação de que não sairia viva daqui
me atingia.
— Não tenha pressa, linda… — ele disse próximo da minha orelha,
arrastando seus dedos ásperos em meu braço. — Vou te dar alguns minutos
para decidir.
Dito isso, Guilherme saiu e me deixou sozinha.
Fechei os olhos, sentindo as lágrimas rolarem sem parar e minha
garganta apertar pelos soluços contidos. Eu esperei pela tristeza, medo e
angústia dos últimos dias, para que me nocauteassem e me fizessem ficar
encolhida como uma criança assustada.
No entanto, nada disso me atingiu. Foi o contrário.
Meu sangue incendiou com uma raiva que nunca havia sentido, e eu
gritei, arremessando os arranjos contra a parede, vendo-os se espalharem
por todos os lados. Minha fúria era tão intensa que esmurrei a porta de aço,
sentindo as juntas dos meus dedos se esfarelarem e minha pele rasgar a cada
novo golpe.
Eu gritei tão alto, que a minha garganta queimou e minha voz se
perdeu.
E ninguém apareceu para me ajudar.
Ninguém veio me salvar.
Mais tarde, naquele mesmo dia, algum tempo após o último toque
ressoar, Guilherme entrou novamente e observou ao redor.
As rosas estavam espalhadas por todo o lugar, algumas pisoteadas e
sujas de terra, enquanto outras se transformaram apenas em pétalas
desfeitas.
— Que bela bagunça você fez, linda — murmurou, em tom de
zombaria, arrastando os pés pelo chão e chutando algumas flores que
estavam em seu caminho. — Sempre imaginei que você fosse escandalosa
na cama. Sabe, você tem o jeitinho de toda cadela que goza gemendo alto.
Estremeci, vendo-o se agachar na minha frente e buscar pelo meu
olhar, mas eu me recusei a olhar para ele.
Eu não permitiria que ele brincasse com a minha cabeça e testasse os
limites da minha sanidade. Não tinha mais forças para isso, e preferia que
ele me matasse de uma vez por todas. Afinal, foi o que ele disse que faria,
não?
Então, porque adiar o inevitável?!
Encarei a porta, considerando se conseguiria reunir força o suficiente
para me desvencilhar da emboscada que Guilherme armou ao meu redor,
impedindo-me de sair sem precisar passar por ele, e quando o careca surgiu
pelo corredor em frente a porta, parando a poucos passos de distância, eu
soube que era inútil tentar fugir.
Mesmo que eu conseguisse escapar do Bastos, eu precisaria lidar
com o outro homem. Além disso, não sentia que conseguiria ficar em pé por
conta própria. A única coisa que forrou meu estômago em todo esse tempo
foi a maçã pequena. O mingau que Guilherme deixou no chão estava
repleto de ramos, pétalas de rosas e terra. Fora a fraqueza que me atingia
pela fome, o meu cérebro parecia processar tudo de forma mais lenta devido
ao sono.
Eu estava tão esgotada que o fato de estar com fome era a última
coisa que eu conseguia pensar. Na verdade, meu cérebro havia desistido de
raciocinar o que estava me acontecendo. Minha mente nunca esteve tão
quieta quanto nos últimos dias ou horas, porque havia isso também: eu tinha
perdido a noção de quanto tempo estava naquele inferno.
Quando senti dedos rastejarem lentamente em minha pele, eu
pisquei, apertando minhas pernas contra o meu corpo, como se isso pudesse
impedir que ele me tocasse.
— Você me decepciona um pouco, sabia? — Guilherme sondou,
sentando-se no espaço vazio ao meu lado, jogando seus braços sobre meus
ombros e eu segurei a respiração, sentindo cada músculo do corpo enrijecer
e repudiar a aproximação. — Sempre foi tão intrometida e determinada em
saber o motivo por trás de tudo… você realmente não está se coçando para
saber o que está acontecendo? Ou o motivo de você estar aqui?
Sua voz soou perto do meu rosto, mas meus olhos estavam fixos no
ponto luminoso a minha frente. Como se ele pudesse me salvar da onda
nauseante que me atravessava, conforme os dedos de Guilherme se
arrastavam pelo meu braço.
— Somos apenas nós, linda. Você não precisa fingir para o seu
namoradinho que não gosta da minha atenção.
Seu hálito de nicotina bateu em minha pele, e meus pulmões
imploraram pela liberação do oxigênio, mas não consegui enviar um
comando para o meu corpo parar de restringir a passagem do ar.
— Eu estou me perguntando… qual será o gosto de uma boceta que
vale tanto dinheiro? — Pude sentir seus lábios se abrirem em um sorriso. —
Porque seu namoradinho de merda não pensou duas vezes em acatar o valor
que pedimos. Então, pensei: por que não pedir mais? E adivinhe?! Ele
aceitou. Qualquer coisa para ter você de volta. Foi o que ele gritou antes de
o tirarem de perto do telefone.
Estremeci, sentindo seus lábios em meu ombro, a bile subiu pela
minha garganta e afundei as unhas em meu braço, tentando conter o
desespero que começava a crescer em meu peito.
— Deve ser uma boceta tão doce… e sabe qual é a melhor parte? —
indagou, e seus dedos alcançaram meu queixo virado para o lado oposto ao
seu, e ele me forçou a olhar para o seu rosto. Mas a minha visão estava
desfocada demais para conseguir realmente vê-lo. — Ele não está aqui para
me impedir de descobrir qual é o feitiço por trás desse seu rostinho lindo.
Você se lembra do que eu te prometi no casamento da Eliane?
Pisquei, desanuviando a visão e seu polegar se arrastou em minha
pele, enxugando a lágrima e o levando aos lábios, chupando o dedo e
soltando um grunhido de satisfação.
Guilherme ameaçou vir em minha direção, mas uma batida na porta
o fez sobressaltar e desviei o olhar, vendo-o se levantar rapidamente e
endireitar a postura.
O breu da noite, a falta de iluminação no cubículo, e a minha visão
embaçada me impediram de ver com clareza quem havia interrompido o
avanço do Bastos. A silhueta alta estava contra a luz fraca que iluminava o
corredor, mas foi a sua voz que me trouxe reconhecimento:
— Quantas vezes eu vou ter que te dizer que não é para encostar
nela? — questionou André, fazendo com que o meu ritmo cardíaco
aumentasse drasticamente.
— E quantas vezes eu preciso dizer que você não manda em mim,
maninho?
Meu cérebro entrou em curto e pisquei repetidamente, tentando
confirmar se aquilo era real ou se era um fruto da minha mente cansada.
Mas quando Guilherme foi arrastado para fora, a porta foi fechada com um
baque monstruoso e a escuridão me cegou.
Nono dia de cativeiro
A porta se abriu pela segunda vez no meio do dia, após a terceira
convocação ao azan.
Na primeira vez, um homem de meia-idade colocou uma bandeja
com comida de verdade diante de mim, e eu estava tão faminta que não
pude sequer cogitar em recusar. Também consegui dormir um pouco, ou
talvez eu tenha desmaiado, ainda não sabia ao certo.
O careca indicou que eu me levantasse e eu não ousei desobedecer a
sua ordem. De todos os três com quem já havia lidado, ele era o que se
tornava mais agressivo quando eu não respondia imediatamente aos seus
comandos.
Ele indicou que eu seguisse pelo trajeto já conhecido e sem que
precisasse mandar, eu estaquei em frente a porta pintada de vermelho.
— Cinco minutos ou…
— Você entra, eu sei — falei impaciente, empurrando a porta pesada
e a fechei antes que ele acabasse entrando apenas para me punir por tê-lo
interrompido.
Assim que a tranca ressoou do lado de fora, meus olhos correram
pelo banheiro por puro hábito. Era o único lugar que eu não conseguia
identificar se havia ou não câmeras.
Consciente de que o careca não iria hesitar em entrar caso eu não
cumprisse com o prazo que eles me davam, eu me despi e deixei que a água
congelada me lavasse. Minha pele estava repleta de bolinhas, devido a
irritação que o sabonete estava causando, mas eu preferia lidar com ela do
que ficar suja nas poucas vezes em que me deixavam me limpar.
No banco de madeira parafusado ao chão, havia algumas peças de
roupas limpas.
— Um minuto e meio.
Minha mão buscou pelo pente de plástico, e ignorando a dor em meu
couro cabeludo conforme os fios enrijecidos eram puxados pelos nós. O
pente acabou escorregando da minha mão e foi direto para o chão, perto da
privada imunda.
Engoli em seco, aproximando-me para pegá-la do chão e tentar
pentear o restante do cabelo antes que o meu tempo acabasse, mas a minha
atenção foi capturada por outra coisa.
Meio solto da base, havia um parafuso que mantinha o vaso sanitário
preso ao chão.
Eu não tive tempo para pensar, mas meus dedos agiram rapidamente
para desenroscar o objeto, enquanto o homem careca começava a contar os
últimos quinze segundos do meu tempo.
A sujeira acumulada dificultou sua remoção, e meu coração disparou
dentro do peito, pois eu sabia que se ele notasse que eu estava procurando
por algo para me defender, a situação só pioraria para mim.
— Três…
Faltava tão pouco.
— Dois…
O parafuso travou e eu não consegui girá-lo mais.
— Três…
O barulho da tranca sendo solta me fez levantar, ao mesmo tempo
que a porta foi aberta abruptamente.
Minha respiração havia se transformado em uma cacofonia violenta,
e os olhos do homem percorreram o banheiro inteiro, como se isso fosse
justificar o motivo do meu sobressalto.
— Anda logo. — Ele indicou que eu saísse e apertei meus dedos
contra a barra do moletom, sentindo os ossos enrijecidos por conta do medo
e do frio.
Fui seguida durante todo o percurso, observando ao redor e
reconhecendo as câmeras de segurança espalhadas pelo corredor. Mais
adiante, notei uma porta entreaberta, o que chamou minha atenção, já que
nenhuma outra estava aberta. Através da fresta, pude vislumbrar o que
parecia ser um homem gesticulando enquanto conversava com outro, mas
não consegui prestar muita atenção.
O careca me empurrou para dentro do meu cubículo novamente e
bateu a porta com força, avisando para alguém no rádio que eu já estava de
volta ao “quarto”.
Meus olhos percorreram o espaço, vendo que as flores destruídas
tinham começado a apodrecer e soltei um suspiro, arrastando meu corpo de
volta para o colchão.
Caique nunca retornou e não ouvi mais os sons de agressão, o que
me levava a temer que o rapaz estivesse morto.
Sentei-me no colchão, encostando meu corpo na parede de concreto
áspero, e ergui meus olhos para a câmera que continuava piscando com sua
luz vermelha, indicando que Guilherme estava plenamente ciente do que eu
estava fazendo ali.
Lembrei-me de ter pensado ter ouvido a voz de André, mas depois
de ter visto Renato, eu não tinha mais certeza do que era real e do que era
uma alucinação causada pela privação de sono.
Com cuidado para não chamar a atenção dos observadores das
câmeras, desenrolei a manga da minha blusa do punho e senti o parafuso
entre meus dedos. Um suspiro escapou dos meus lábios enquanto recostava
minha cabeça na parede, ouvindo o quarto chamado do dia ecoar e
preencher o silêncio.
Conforme a escuridão começava a se instalar, apertei firmemente o
parafuso e comecei a lixar sua ponta contra o concreto, tomando cuidado
para não fazer movimentos suspeitos.
Décimo dia de cativeiro
Escondi o parafuso debaixo do colchão quando o som da fechadura
sendo destravada ecoou próximo ao final do dia. Acreditei que estivessem
vindo retirar a bandeja de comida que haviam trazido mais cedo. No
entanto, quando a silhueta atravessou a porta, meu cérebro entrou em
colapso e eu busquei novamente pelo parafuso, segurando-o firmemente
entre meus dedos.
— Princesinha — cantarolou André, e eu pisquei várias vezes, como
se isso pudesse me fazer confirmar se aquilo realmente estava acontecendo.
André mandou que alguém fechasse a porta e o careca veio
prontamente, enquanto o homem que destruiu a vida de Sabrina caminhava
em minha direção com os olhos fixos no meu rosto. Ele fez um som de
reprovação, estalando a língua e se agachou na minha frente, apoiando os
cotovelos no joelho e arrastando a mão com várias tatuagens em sua barba,
descontente.
— Peço desculpas pelo meu irmão — disse, com um tom
ligeiramente decepcionado. — Guilherme sempre foi impulsivo, mas eu
garanto que as minhas ordens eram para que ele a tratasse bem, afinal, você
é parte da realeza. — Seu sorriso não me trazia qualquer conforto,
tampouco fazia com que a pressão dos meus dedos em torno do parafuso,
aliviassem.
No entanto, ele possuía algo que Guilherme tentava muito, mas não
conseguia ter. Lembro-me de Sabrina ter dito que ela acreditou cegamente
nas promessas dele, porque André era extremamente educado e charmoso.
Isso fez com que ela o considerasse confiável, afinal, o estereótipo que
tínhamos de um agressor sempre envolvia um homem mais velho, fora de
forma e antissocial… nunca um homem jovem, atraente, simpático e bemeducado.
Ele tinha uma habilidade incomparável em envolver as pessoas com
sua lábia, a ponto de que, mesmo sabendo que tipo de pessoa ele era e do
que era capaz de fazer, acabei me pegando acreditando em suas palavras por
alguns breves segundos.
— Eu tento ser paciente, mas toda vez que penso que aprendeu sua
lição e não vai mais se intrometer nas minhas coisas… você estraga tudo —
murmurou ele, balançando a cabeça suavemente, mantendo seus olhos fixos
no meu rosto. — Sabe por quanto tempo Guilherme e eu temos esse
esquema de envio de dinheiro para fora do país? E nunca, em todo esse
tempo, fiquei sem acesso ao que era meu — continuou, entrelaçando as
mãos e semicerrando os olhos. — Primeiro, você entrou no meu caminho e
tirou a Sabrina de mim. Depois, convenceu a Letícia a testemunhar contra
mim. E agora, você fodeu tudo, princesinha.
Seus dedos se apertaram com tanta força que as juntas
embranqueceram.
— Eu não fiz nada — falei, entredentes, sentindo o aço do parafuso
machucar meus dedos.
— Sim, você fez — insistiu, esticando sua mão e usou dois dedos
para erguer o meu rosto, como uma falsa delicadeza. — Você tem essa
mania de se meter no que não é da sua conta, quando poderia apenas seguir
com a sua vidinha de merda. Mas não, você quis salvar uma vadia que
estava no meio da rua e quis vingança pelo que aconteceu com ela.
Meu coração batia tão forte que a sua voz soava mais baixa, porque
tudo o que eu escutava eram os golpes violentos em meu peito.
— Mas, como eu disse, sou um homem paciente e inteligente,
querida. — Ele soltou meu rosto, me oferecendo novamente seu sorriso
enviesado. — Sei que não vale a pena encostar um dedo nessa sua pele de
porcelana nobre, porque isso me obrigaria a lidar com aquele seu namorado
e o seu pai. Seria um desperdício de recursos… — balançou a cabeça, como
se desprezasse aquela ideia.
Engoli em seco, impossibilitada de desviar o olhar dele.
— O problema é que o Guilherme não pensa da mesma forma… —
ele estalou a língua, como se isso fosse um inconveniente. — Meu irmão
sempre foi mais instável. Controlar os impulsos dele sempre foi o meu
maior desafio e esconder a sua sujeira é uma tarefa diária…, mas você é um
evento raro. Porque mesmo que eu diga que ele não deve tocar em você…
ele está ansioso para te quebrar — disse ele, sorrindo, como se isso o
divertisse.
Segurei o fôlego.
— Mas de novo: para a sua sorte, eu sou um homem inteligente, e
apesar de estar muito tentado a te fazer aprender uma lição para nunca mais
entrar no meu caminho… não quero uma briga desse porte. — Refletiu,
mais para si do que para mim. — Estou disposto a te deixar ir embora, em
troca da localização da Sabrina.
Eu não soube dizer se havia sido por conta da exaustão causada pela
privação de um sono decente ou se eu tinha enlouquecido de vez, mas uma
risada escapou do fundo da minha garganta e balancei a cabeça.
— Qual é a história por trás dessa obsessão pela Sabrina, hein? —
Encarei ele, incrédula que aquilo era realmente o mais importante para ele.
Guilherme havia deixado claro que Renato estava disposto a pagar
qualquer quantia para me ter de volta e eu sabia que meu pai também
ofereceria uma fortuna, apenas para me levar para casa. Dinheiro não era o
maldito problema nessa equação, e ele poderia recuperar tudo o que o
governo brasileiro mandou congelar.
E ainda assim, a única coisa com que ele se preocupava era a
Sabrina.
— Você poderia pedir qualquer coisa, mas insiste nessa loucura de
procurar por uma pessoa que eu já disse um milhão de vezes que está
morta… então, qual é o verdadeiro motivo? Uma lista que desapareceu com
ela quando morreu? — questionei, afastando-me da parede, surpreendida
com aquele surto de coragem repentino. — Para alguém que alega ser
inteligente, essa é uma exigência de resgate muito estúpida.
Os punhos de André se fecharam e ele respirou profundamente,
esboçando outro daquele sorriso que não era nenhum pouco sincero.
— Não teste os meus limites, princesinha. Você pode não estar
pronta para o que vai encontrar — alertou, levantando-se e me olhando de
cima. — Aqui você está sob as minhas regras e proteção. Não duvido que
Sabrina foi bem clara ao te dizer o que meus homens fazem com quem não
está sob o meu cuidado.
Encarei-o, sem me atrever a piscar.
— Sabrina é uma vadia irrelevante… acredita mesmo que vale a pena
passar por tudo isso para mantê-la segura? — perguntou, arqueando a
sobrancelha.
Aspirei o ar lentamente, sentindo dificuldade em controlar meus
batimentos cardíacos e balancei a cabeça, sem forças para discutir com ele.
— Eu já te falei o que aconteceu com ela.
André meneou a cabeça.
— O problema é que eu não acredito em você, querida.
Décimo primeiro dia de cativeiro
Eu estava com tanto calor, que precisei me livrar do moletom grosso,
porque estava suando descontroladamente.
Tremores se alastraram pelo meu corpo e eu me encolhi no colchão,
como se isso pudesse amenizar a dor em meus músculos.
Minha cabeça doía intensamente, impedindo-me de manter os olhos
abertos por muito tempo. Isso resultava em pequenos cochilos que não
duravam muito.
Ouvi o som de algo arranhando as paredes, como se unhas afiadas
estivessem sendo arrastadas no concreto, e meu corpo estremeceu. Tentei
me convencer de que estava sozinha e que aquilo não estava acontecendo.
No entanto, quando senti algo passar próximo a mim, abri os olhos e
procurei entre as rosas apodrecidas, avistando um rato enorme correndo em
direção a um buraco entre a parede e o chão.
O barulho aumentou e eu precisei cobrir os meus ouvidos, porque
sentia como se aquele som estivesse me machucando internamente,
causando-me uma agonia que eu não sabia explicar de onde vinha.
Hiperventilei ao abrir os olhos e encontrar uma sombra escura parado em
frente a parede, mas os fechei rapidamente, apertando com tanta força que
quando os abri novamente, não havia mais nada.
Um soluço escapou do fundo da minha garganta e eu me deitei
novamente ao ouvir o barulho do trinco da porta ser destrancado. Já fazia
um tempo que havia escurecido e eles não costumavam entrar aqui no meio
da madrugada, o que foi o suficiente para me deixar em estado de alerta.
Encolhi-me no colchão pequeno e duro, ajustando o parafuso entre
meus dedos e o empunhando com firmeza.
Tentei controlar minha própria respiração para que acreditassem que
eu estava dormindo, e fechei os olhos, ouvindo passos lentos se arrastarem
pela terra, tomando cuidado para não fazer barulho.
Isso me deixou em alerta.
Desde que André me deixou sozinha, a minha mente me trazia à tona
os depoimentos de Sabrina para o delegado Rodolfo, e foi impossível não
considerar que aquilo poderia acontecer comigo a qualquer momento.
Enrijeci o meu corpo, tentando impedir que os tremores que eu
sentia ficassem tão perceptíveis e ignorando o suor frio que umedecia a
minha roupa, fazendo-a grudar na minha pele.
Alguém se abaixou na minha frente e o cheiro de nicotina e álcool
preencheu meus sentidos, levando-me para um novo nível de alerta.
Quando uma mão áspera encostou em mim, o meu cérebro se
desligou e a única coisa que eu consegui fazer foi usar o parafuso como
uma tentativa de me proteger. Um esganiço escapou do homem e ele levou
a mão para onde o parafuso foi enfiado e o puxou, fazendo com que o
sangue espirrasse sobre mim e o levando ao chão.
Eu me levantei, grudando as costas na parede e olhando para o
homem se contorcendo no chão. Ele ergueu a mão para mim, pedindo por
ajuda, mas não consegui reagir e fiquei paralisada, assistindo enquanto ele
sufocava no próprio sangue após meu parafuso ter perfurado sua garganta.
A letargia ameaçou me atingir, mas uma onda de adrenalina
inflamou minhas veias e meus olhos recaíram no bolo de chaves que estava
preso em seu cinto. Pulando por cima dele que ainda estava se mexendo,
tentei arrancar as chaves dali, mas sua mão enroscou em meu braço e eu
precisei cobrir a boca para impedir que o grito escapasse, anunciando para
todos o que eu estava fazendo.
Olhei por cima dos ombros, vendo que a luz vermelha da câmera que
nunca parava de piscar repetidamente, não estava mais acesa. O homem
tentou falar alguma coisa e meus olhos voltaram para o seu rosto,
reconhecendo-o como o homem de meia-idade que sempre me trazia
comida. Naquela tarde, ele havia me trazido uma coberta também, porque
estava muito frio.
O meu coração bateu furiosamente no peito e dispersei o turbilhão
de sentimentos que estavam começando a me atravessar, arrancando o bolo
de chaves do seu cinto e me desvencilhei do seu aperto, colocando-me de
pé e correndo para a porta.
Aquela era a minha única chance.
Eu preciso sair daqui.
Hesitei na porta, escondendo-me para checar se os corredores
estavam vazios. Não havia ninguém por ali e percebi que as câmeras do
corredor também estavam desligadas.
Eu não pensei racionalmente, tampouco planejei uma rota de fuga,
apenas apertei o maço de chaves entre meus dedos e corri em direção a
porta onde tinha visto o homem gesticulando alguns dias atrás.
Por algum tempo, considerei que estivesse fantasiando com uma
saída, mas eu lembrava de ter visto a silhueta de uma árvore atrás dele,
enquanto o homem soltava a fumaça do cigarro que fumava.
Se houvesse uma saída, ela seria por ali.
Eu tinha certeza e foi agarrada a isso que reuni todas as minhas
forças para alcançá-la, antes que percebessem que as câmeras foram
desligadas e viessem checar como eu estava pessoalmente.
No entanto, assim que alcancei a última porta que me distanciava da
que eu precisava; um corpo surgiu em minha frente e meus olhos marejados
focaram no rosto de Guilherme. Ele tinha um corte sangrando em sua
cabeça e quando seus olhos se fixaram em mim, a fúria queimou em suas
íris escuras.
— Você é mesmo uma vadiazinha, não é? O que ofereceu para
aquele desgraçado te ajudar a fugir?! — Rosnou, e antes que eu pudesse
escapar, sua mão se fechou em torno da minha garganta e minhas costas
colidiram com a parede bruscamente.
A dor me atingiu com tanta força que me cegou e eu abri a boca,
buscando pelo oxigênio, mas o aperto de Guilherme em minha traqueia era
tão violento que aos poucos, a força que eu usava para me debater e buscar
pela liberdade, se desfez e a minha visão foi tomada por uma névoa escura
que levou a dor embora.
Décimo segundo dia de cativeiro
Inclinei minha cabeça para frente, o que fez com que eu abrisse os
olhos, piscando repetidamente na tentativa de dissipar a névoa escura que
turvava minha visão.
Uma discussão ocorria ao fundo e minha atenção se concentrou nos
dois homens próximos à janela. André e Guilherme discutiam, enquanto
Bastos parecia furioso, segurando um pedaço de tecido contra sua cabeça
ainda sangrando.
Eu não sabia há quanto tempo estava inconsciente, mas não parecia
ter sido muito.
Sentindo minha garganta queimar, puxei o ar com força, buscando
restabelecer o ritmo normal da minha respiração. Meus olhos então se
fixaram no corpo de um jovem, coberto de sangue e ferido.
Surpreendentemente, ele estava consciente, e seus olhos pareciam focados
em mim, como se eu fosse uma projeção da sua mente.
Meu coração apertou ao reconhecer que o rosto deformado pertencia
ao Caique.
— Acho que o chefe estava certo — balbuciou ele, baixinho e
ofegante —, eu deveria ter desistido de ser segurança enquanto era tempo.
A culpa me atravessou e as lágrimas começaram a rolar pelo meu
rosto, enquanto as palavras escapavam sem controle.
— Me desculpa… por favor, me perdoa…
O meu soluço atraiu a atenção dos outros dois homens e André foi o
primeiro a se aproximar, enviando uma ordem clara para que Guilherme
ficasse onde estava.
— Bem, princesa… eu te dei uma chance de fazer as coisas pelos
meios mais simples, mas você insiste em ser um pé no meu saco — falou
André, descontente, abrindo o tambor de uma pistola e colocando uma bala
nela. — Você já jogou roleta russa? — perguntou retoricamente. — As
regras são bem simples, eu faço uma pergunta e você me responde com a
verdade. Se mentir, eu atiro. Se não responder, eu atiro. Se demorar muito
para falar, eu atiro.
Estremeci, tentando me mexer, mas meus punhos estavam amarrados
em minhas costas.
— Resumindo: se não me der o que eu quero; você vai acabar
morrendo.
Caique me fitou, amolecido e sem forças para conseguir sustentar a
cabeça firme.
— Você entendeu?
Balancei a cabeça, sentindo-me entorpecida.
— Cadê a Sabrina?
Meus ombros enrijeceram e eu respirei fundo, antes de dizer com a
voz trêmula:
— Morta.
Tiro.
Eu esperei pela morte, mas ela não veio.
Meu coração ainda estava batendo e eu ainda respirava.
— Resposta errada — rosnou ele —, onde a Sabrina está?
Fechei os olhos, tentando buscar por memórias melhores. Eu não
queria morrer sabendo que a última coisa que eu vi, havia sido o rosto de
André e Guilherme.
— Morta.
Tiro.
Meu coração golpeou com tanta força que me sufocou e a imagem
que projetei em minha mente, de meses atrás no meu aniversário, com o
reflexo de Renato atrás de mim enquanto me presenteava com o colar,
tornou-se um borrão escuro.
As lágrimas rolavam sem parar em meu rosto.
— Cadê a vadia da Sabrina?
Eu não respondi, já havia feito aquilo todas as outras vezes e ele não
aceitava. O que mudaria agora?
Tiro.
O soluço irrompeu em minha garganta quando ele apontou a pistola
diretamente para a minha cabeça, aproximando-a da minha têmpora e me
permitindo sentir o aço frio.
— Ela está morta… eu juro — choraminguei, sentindo o pânico
crescer sob a minha pele, aumentando meu ritmo cardíaco. — Ela está
morta. Por que você não acredita em mim?
Tiro.
André aumentou a pressão da arma em minha têmpora, ignorando o
meu descontrole e eu precisei segurar a respiração para me controlar.
— É a sua última chance, princesinha. Pense bem na sua resposta —
alertou, impaciente. — Onde está a Sabrina?
A resposta subiu pela minha garganta, mas eu a reprimi antes que as
palavras escapassem e o estouro de algo preencheu meus ouvidos.
Por um segundo, eu pensei que ele havia atirado e eu estava morta.
Busquei pela maldita luz que as pessoas alegavam ver quando isso
acontecia, mas não a encontrei. Meu coração ainda estava batendo,
retumbando tão forte em meu peito que estava machucando. Forcei meus
olhos a se abrirem e minha audição que havia se perdido, tentou se localizar
pelo que André gritava com o Guilherme, mas a única coisa que eu
consegui me concentrar, foi no corpo de Caique caído no chão, sua cabeça a
poucos centímetros dos meus pés e com um buraco que não parava de
sangrar.
André foi até Guilherme e esmurrou o homem, berrando algo que eu
não conseguia compreender, porque tudo o que eu conseguia fazer era
encarar o corpo sem vida de Caique e seu sangue manchando meus pés.
Minha respiração se perdeu e a minha traqueia se fechou, impedindo
a passagem de oxigênio e fazendo com que meus pulmões ardessem,
lutando para que eu liberasse o fôlego perdido, mas meu cérebro havia
declarado derrota e desistido de assumir qualquer controle pelo que estava
acontecendo.
Meu corpo inteiro começou a formigar e senti a minha língua se
enrolar dentro da boca, e a última coisa que vi antes do meu cérebro se
desligar completamente, foi André correndo em minha direção.
Décimo terceiro dia de cativeiro
Eu não sabia que dia era, tampouco me importava mais.
Às vezes, quando a queimação incomodava demais, eu forçava
minhas pálpebras a se fecharem por alguns segundos, mas nunca por tempo
suficiente para que o sono chegasse.
Cada vez que meus olhos se fechavam, a imagem do corpo de
Caique aos meus pés, sangrando e morto, retornavam para me atormentar.
O chão ao redor do colchão estava banhado de sangue também e o parafuso
que eu usei para me defender do outro homem, havia desaparecido, assim
como o seu corpo.
A terra do chão absorveu o sangue, mas a enorme mancha ainda era
visível e havia manchado as paredes e uma parte do colchão em que eu
estava encolhida.
As câmeras voltaram a funcionar e eu não sabia por quanto tempo
havia ficado inconsciente desde meu último apagão.
Arrastei minhas unhas roídas pela minha pele, como se isso pudesse
fazer com que o sangue desaparecesse, mas só fazia com que meu antebraço
ganhasse novos vergões.
Perto do fim do dia, a porta foi aberta e ouvi os passos de alguém se
aproximando, mas não me dei ao trabalho de olhar na direção. Eu não
conseguia desviar os olhos da mancha de sangue no chão.
Minha visão periférica acompanhou quando Guilherme se agachou
perto de mim. Eu o reconhecia pelo cheiro de nicotina que ele exalava.
— Você sabe que não é tão melhor do que eu, não é? — questionou,
tentando capturar a minha atenção, mas a sua voz soava tão distante, que eu
não consegui me esforçar para me concentrar nela. — Aquele cara que você
matou com um parafuso? Ele era a única pessoa aqui que poderia te ajudar.
Era ele quem garantia que você comia e, naquela noite, estava pronto para
te ajudar a fugir daqui. — Soltou um suspiro, melancólico. — Ele era um
bom homem, sabia? Mas estava devendo muito dinheiro para o André,
então… você meio que acabou matando um inocente. E pelo quê, linda?
Eu senti seu rosto se aproximar do meu e seus dedos forçaram que o
encarasse, quase quebrando meu pescoço no processo. Suas íris buscaram
pelas minhas e eu não soube o que se passou em minha cabeça, quando
simplesmente cuspi na sua cara.
— Saia de perto dela, porra! — André bradou, arrastando o irmão
para longe e o jogando no chão. — Você já fodeu com tudo com aquela
palhaçada de coroas de flores. É questão de horas até que os homens do
García me encontrem.
— Não me diga que está com medo daquele cara.
— Saia. De. Perto. Dela. — Rosnou entredentes e meus olhos se
voltaram para a mancha de sangue, desinteressada na discussão dos dois.
O careca apareceu na porta, chamando pelo Guilherme que saiu
resmungando e a porta foi fechada bruscamente. Se eu não conseguisse ver
o sapato polido de André pelo canto de olho, teria acreditado que ele havia
ido embora também.
— Que grande sujeira você fez, princesinha… — ele debochou,
chutando uma flor morta e ensanguentada para longe. — Você entende que
nada disso teria acontecido, se você tivesse me dito onde a Sabrina está
quando eu te pedi na primeira vez?
Forcei meu rosto a se erguer para encará-lo. Meu coração batia tão
devagar que às vezes, eu precisava ficar em completo silêncio para
confirmar se ainda estava viva.
Eu encarei André, buscando por qualquer sentimento que me fizesse
sentir que ainda havia alguma parte de mim que acreditava que sairia desse
pesadelo, mas não encontrei. Meu corpo e mente já tinham jogado a toalha
e desistido daquela briga.
— Francisco Alpino, 837 — minha voz ressoou, rouca e sem
emoção.
André sorriu.
— O que é isso?
Sacudi os ombros, indiferente.
— Onde você vai encontrar a Sabrina.
Ele me fitou por alguns minutos, como se estivesse procurando por
um sinal de mentira, mas não havia. Eu já tinha desistido de tudo e só
queria que aquilo acabasse de uma vez por todas.
André se afastou, buscando pelo celular em seu bolso e digitou o
endereço que eu havia passado. Ele demorou alguns minutos para isso e
quando o fez, avançou em minha direção, agarrando meu cabelo e me
obrigando a ficar em pé, puxando os fios com força.
Eu esperei pela dor, mas ela não veio.
Eu esperei pela agonia, mas ela não veio.
Eu esperei por qualquer coisa, mas nada veio.
— Você acha que isso é alguma brincadeira? — Ele rosnou contra o
meu rosto, descendo a mão em meu cabelo para a minha garganta,
sufocando-me.
Arquejei, sentindo meu coração voltar a trabalhar com força.
— Você queria ela, não queria? — perguntei, ofegante —, fique à
vontade para abrir a porra do túmulo e ver com os seus próprios olhos o que
fez com ela!
André me soltou bruscamente e meus joelhos colidiram com o piso
duro. Ele me encarou com uma raiva contida e apontou o dedo em minha
direção.
— Espero que esteja consciente da escolha que você fez.
Dito isso, ele saiu, deixando-me sozinha.
Décimo quarto dia de cativeiro
Minhas costas estavam entorpecidas pela dor, enquanto meus olhos
permaneciam fixos no sangue envelhecido em minhas mãos.
André entrou no cubículo e me puxou para fora dela, e eu não
apresentei qualquer resistência enquanto ele me arrastava pelo corredor.
Ele abriu a porta do banheiro, deixando-me entrar no espaço e olhei
em volta, mas não havia nada que indicasse que eu poderia tomar um
banho. Apenas um pequeno balde com um pedaço de pano para que eu me
limpasse.
Quando eu não me movi, André me empurrou para dentro e avisou
que eu tinha cinco minutos.
No entanto, meus olhos só conseguiam encarar o reflexo
fantasmagórico que me olhava de volta pelo espelho. Bolsas imensas e
escuras em volta dos olhos, a pele pálida manchada pelo sangue, os lábios
ressecados e o cabelo desgrenhado… tudo aquilo era um quadro vivo de
como eu me sentia por dentro.
Um desastre.
Uma causa perdida e sem salvação.
Não sei por quanto tempo fiquei encarando o fantasma e ele me
encarava de volta, mas a porta foi aberta e André anunciou que meu tempo
havia acabado. Eu sequer tinha saído do lugar em que ele me deixou
quando fechou a porta, mesmo assim, deixei que me guiasse de volta para o
cubículo.
Meus olhos se fixaram na poça de sangue absorvida pela terra e
André se aproximou de mim, forçando-me a olhar em seu rosto.
— Estou de saída e só volto em dois dias — anunciou, mirando meu
rosto em claro aviso. — Comporte-se, porque estará sob os cuidados de
Guilherme e do Caveira.
Eu o encarei, sem saber o que esperava que eu dissesse e apenas me
afastei, passando por ele e me sentei no colchão duro e sujo de sangue.
André me olhou por alguns segundos ou minutos.
Ele saiu ao não conseguir nenhuma resposta da minha parte.
Meus olhos se fixaram na mancha de sangue novamente.
Eu esperei pelo desespero.
Ansiei pela tristeza.
Desejei que as lágrimas voltassem, mas eu não tinha nem isso mais.
Não existia mais uma gota de lágrima em meu corpo.
O silêncio não era confortável, era só… quieto, sombrio e vazio.
Era assim que eu me sentia. Vazia. Oca.
Aos poucos, o cubículo foi ficando mais e mais escuro, até que eu
não soubesse mais o que era a escuridão da minha mente e o que era dele.
O cansaço me atingiu e eu me deitei, rendendo-me a ele.
Você não pode dormir. Uma voz familiar soou em minha mente, tão
cheia de vida que eu demorei alguns minutos para entender que era a minha
própria voz. Eles estão esperando você dormir para terminar de tirar tudo
de você.
Eu me encolhi, sentindo a visão embaçar e um soluço escapou do
fundo da minha garganta.
— Eu estou tão cansada… — falei para mim mesma —, eu só
preciso dormir um pouco.
Ouvi passos se aproximando e um cheiro familiar me atingiu,
trazendo o perfume que eu tanto sentia falta e isso me fez apertar os dedos
contra o casaco, ao sentir seus dedos se arrastaram em meu cabelo com
tanta delicadeza, que parecia um fruto da minha mente esgotada.
— Não durma, anjo.
Lágrimas que eu pensei que não tinha mais, rolaram pelo meu rosto
e meus olhos se fecharam, derrotada.
— Eu só preciso que… isso acabe.
Décimo quinto dia de cativeiro
Acordei com o barulho de algo estourando e eu me sentei, alarmada.
Tiros ecoaram por todos os lados e eu precisei cobrir aos meus
ouvidos, conforme eles ficavam mais próximos e altos. Gritos ecoavam por
todos os lugares e eu apertei os olhos, sentindo o desespero crescer em meu
peito.
É isso, chegou o dia que vou morrer.
A constatação me atingiu com tanta força que eu só me dei conta do
quando ainda queria estar viva, quando as lágrimas começaram a rolar sem
parar pelo meu rosto.
— Nathalia! — A voz familiar soou, repleta de dor e desespero, e eu
odiei o meu cérebro por me trazê-la justamente naquele momento.
Apertei minhas mãos contra as minhas orelhas, tentando abafar o
barulho incessante dos tiros, mas quando um baque forte soou, meus olhos
se ergueram para a porta de aço e eu pisquei repetidamente para tentar
descobrir quem havia invadido o meu cubículo.
Meus olhos subiram pelos seus pés, rastejando lentamente até
alcançar o seu rosto e o encontrei com uma máscara tão profunda de agonia,
que eu poderia dizer que era parecida com o mesmo fantasma que havia
visto no espelho na noite passada.
As lágrimas começaram a rolar pelo meu rosto, porque dessa vez,
diferente das outras, a imagem projetada pelo meu cérebro era muito mais
viva. “Renato” correu em minha direção, me alcançando e seus braços me
envolveram com carinho e proteção, enquanto escondia meu rosto em seu
peito e era embalada, enquanto ele sussurrava que eu ficaria bem, que tudo
ficaria bem e que cuidaria de mim.
E eu quis tanto acreditar que aquilo era verdade, que eu permiti que
meu corpo enfraquecido fosse retirado do colchão e fiquei de pé, mesmo
com as pernas trêmulas.
Renato começou a vasculhar meu corpo, como se procurasse por
machucados graves e eu pisquei, tentando espantar aquele delírio da minha
mente. Mas ele não era um fruto da minha cabeça. Ele era tão real, que eu
só me dei conta do quanto aquilo realmente era verdade, quando meus olhos
localizaram Guilherme se invadindo o cubículo com uma arma apontada
para Renato.
Então, meu cérebro trabalhou tão rápido que não soube de onde
havia vindo a força necessária para aquilo, mas usei cada gota de vida que
ainda queimava em minhas veias para empurrá-lo para longe.
O barulho do tiro soou quando Renato foi para o chão e meus olhos
desceram para a minha barriga, vendo que o sangue novo se mesclava ao
velho e seco. Dois vultos caíram por cima de Guilherme e a minha visão
embaçou pelas lágrimas, quando os braços de Renato me capturaram antes
que minhas pernas perdessem a força.
Sua mão buscou pelo machucado e ele o apertou, tentando impedir
que o sangue continuasse saindo, mas eu não sentia dor.
Eu não sentia nada, além de paz.
Meus olhos buscaram pelo seu rosto, porque eu estaria satisfeita se o
seu rosto fosse a última coisa que eu visse antes de partir e as suas lágrimas
rolavam sem parar, enquanto ele me olhava como se eu fosse desaparecer
da sua frente caso piscasse.
— Não se atreva a me deixar, Nathalia. — Ele suplicou, buscando
pelo meu rosto e me segurando com ternura, tomando cuidado para não me
machucar mais do que eu já estava. — Você não tem permissão pra fechar
os olhos, por favor… —soluçou, e suas lágrimas pingarem em meu rosto. —
Continue olhando pra mim, meu anjo.
E então, fiz o que ele pediu. Continuei olhando para ele, até que a
escuridão me engolisse por completo.
Meus olhos não saíram de Nathalia nem por um segundo, enquanto o
médico terminava de fazer todas as perguntas para ela.
Ela segurou minha mão firmemente durante todo o tempo e eu não
conseguia desviar meus olhos dela. A imagem do seu corpo ensanguentado,
perdendo sua vivacidade, e seus olhos doces se fechando ainda me
assombravam. Eu precisava continuar olhando para ela, até que apenas a
imagem dela viva, respirando e segura, se fixasse em minha mente.
— Você ficará bem, mocinha — disse Jonathan, já que eu havia
optado por deixar que alguém que ela estava familiarizada a atendesse.
Há dois dias, eu pensei que havia perdido Nathalia de uma vez por
todas.
O galpão onde ela ficou aprisionada nos últimos quinze dias
localizava-se em um ponto remoto no meio da Rodovia Castelo Branco. A
viagem até o hospital mais próximo levou cerca de quarenta minutos,
durante os quais ela se encontrava em estado crítico, com batimentos
cardíacos tão fracos que eu tive que lutar contra o crescente desespero que
ameaçava me engolir.
Nathalia sofreu uma desidratação severa e havia perdido muito peso.
Após a remoção da bala e estabilização do seu quadro, a transferimos para o
mesmo hospital onde Jonathan trabalhava. Tatiana conseguiu uma
concessão da diretoria para que ela ficasse encarregada de todos os testes
neurológicos necessários para a filha.
Ela havia acabado de acordar e os últimos dois dias foram o meu
limite.
— Obrigada, Jonathan. — Sorriu fraco, mas não havia a mesma
sinceridade de antes, quando meu amigo se afastou e nos deixou a sós, seus
olhos lindos se voltaram para mim. — Eu estou bem, Renato… não me olhe
desse jeito.
Engoli em seco, soltando o ar lentamente e me aproximei dela, sem
soltar a minha mão do seu aperto constante. Meus dedos afundaram em seu
cabelo macio e meus lábios tocaram em sua testa, enquanto o seu cheiro
acalmava meu peito dolorido.
— Você me encontrou — disse ela, baixinho, fechando os olhos e
suas unhas curtas afundarem em minha pele.
— Eu nunca deixaria de procurar por você, meu anjo — assegurei,
escovando meus dedos em sua pele com delicadeza, tomando cuidado para
não a assustar com movimentos bruscos.
Uma lágrima grossa rolou pela sua bochecha quando ela abriu os
olhos e os fixou nos meus, segurando meu coração na palma das suas mãos.
— Eu te amo — ela sussurrou, deixando que a sua mão livre afagasse
meu rosto e meus lábios roçarem em seus dedos machucados, beijando-os
suavemente.
— Não mais do que eu te amo, meu amor — confessei, observando
um leve sorriso se formar em seus lábios e aquela pequena ruga adorável
que seu nariz fazia aparecer.
— Você é tão competitivo… — lamentou, dramática, e uma risada
fraca escapou do fundo do meu peito, porque eu sabia o que ela estava
fazendo.
E naquela altura do campeonato, eu não iria repreendê-la por estar
concentrando os seus pensamentos em qualquer outra coisa, que não fosse o
que ela havia vivido nas últimas duas semanas.
Uma batida na porta ressoou e meus olhos foram na direção,
encontrando Rodolfo ao lado de meu pai. Nathalia abriu um sorriso doce ao
reconhecer Eduardo e ela acenou levemente, tomando cuidado para não
arrancar a agulha que estava presa em seu braço.
— Oi Edu!
Meu pai sorriu, encantado.
— É bom vê-la de novo, norinha — disse ele, aproximando-se da
cama e me lançando um olhar significativo.
Meu pai sabia melhor do que ninguém o inferno que eu havia
enfrentado durante esses quinze dias e o quanto eu me senti perdido sem
Nathalia ao meu lado. Ela era minha luz, o farol que me guiava pela vida e
me impedia de me perder. Ela era meu lar, e durante sua ausência, a única
coisa que senti falta foi de estar em casa.
— É bom estar de volta também — murmurou, sem soltar da minha
mão.
— Eu entendo que você está cansada e não quer falar agora, mas o
Rodolfo precisa te fazer algumas perguntas sobre o que aconteceu —
explicou, apontando com um aceno para o delegado que quase me prendeu
inúmeras vezes nas últimas semanas. — Eu garanto que depois disso, você
não terá mais que responder nenhuma pergunta.
Nathalia engoliu em seco e me olhou, receosa.
— Eu não vou sair — decretei, vendo seu peito se mover lentamente,
lembrando-me que ela estava respirando. — E ela pode fazer isso outro dia.
Ela negou, apertando mais a minha mão e olhou para o meu pai,
aquiescendo.
— Tudo bem, eu prefiro fazer isso agora — disse, olhando-me de
relance, apreensiva.
Rodolfo chamou uma policial feminina para acompanhar o
depoimento de Nathalia e ela passou cerca de três horas, explicando tudo o
que havia acontecido enquanto esteve presa no cativeiro. Seu olhar buscava
pelo meu vez ou outra, usando-me como uma âncora para que as memórias
recentes não a engolissem e eu permaneci ao seu lado, enviando incentivos
silenciosos.
A fúria crescia em meu peito a cada palavra que ela pronunciava, mas
eu dei tudo de mim para não deixar que Nathalia soubesse o quanto aquele
relato me fazia desejar acabar com a vida de André e Guilherme.
— Eu só não entendi… como ele saiu do presídio? Ele não estava
aguardando julgamento? — Ela perguntou, olhando para Rodolfo e meu
pai.
— Aparentemente, um juiz assinou um habeas corpus para ele. Nós
acreditamos que seja alguém da lista de clientes do André — o delegado
esclareceu.
— Mas nós não deveríamos ter sido informados sobre isso?
Olhei para Rodolfo, observando seu olho esquerdo marcado pelo
hematoma do soco que ele recebeu quando apareceu em meu apartamento,
quatro dias atrás, informando que descobriu que Guilherme havia sido solto
três dias antes do sequestro de Nathalia.
— Deveríamos, mas a promotoria acabou se atrapalhando na
papelada e esqueceu de me informar — disse, enrijecendo os ombros e me
lançando um olhar de sobreaviso. — No entanto, ele não será mais um
problema para a senhorita.
Ela franziu o cenho.
— Como assim?
— Ele morreu, querida. — Foi meu pai quem compartilhou a
informação com ela. — Acabou sendo baleado e não resistiu, morreu antes
que a ambulância chegasse no galpão.
Nathalia balançou a cabeça, atordoada.
— Mas… as músicas que tocavam…?
— Encontramos uma caixa de som próximo da sua janela, ela estava
projetada para tocar cinco vezes por dia, nos intervalos determinados pelo
azan — o delegado esclareceu e ela relaxou os ombros, concordando.
— O André não estava lá, não é? — perguntou, buscando pelo meu
olhar e balancei a cabeça, negando.
— Não, ele não estava.
Seus ombros retesaram e meu pai sorriu compreensivo com o pânico
que surgiu em seus olhos.
— Ele não será um problema, querida. Seu amigo Antônio cuidou
disso e o presidente colocou todos os departamentos para buscar por ele —
disse Eduardo, entregando a ela uma garrafa de água.
— Por favor, Eduardo… já é o bastante eu ter fechado os olhos para
tudo o que seu filho fez. Não me force a ignorar também o fato de que
Sturzenecker chantageou o presidente — disse Rodolfo, olhando para o
meu pai com frustração.
Em seguida, ele se despediu e nos deixou sozinhos, levando Eduardo
consigo.
Nathalia bebeu um gole longo e abandonou a garrafa de água lado,
trazendo seus olhos lindos para mim.
— Eu posso ir para casa? Quero ver meus meninos.
Sorri, deixando um beijo em seus cabelos.
— Eles estão loucos para te ver também.
Dois dias depois, Jonathan me deu alta.
Sob ordens explícitas para que eu tomasse todas as vitaminas e
suplementos receitados, e não fizesse esforço para não estourar nenhum
ponto; eu finalmente pude vestir algo diferente da roupa de hospital e
Renato trouxe Janine para o hospital para que ela cuidasse do meu cabelo e
me mimasse.
— Você sabe que as ordens eram para que eu tivesse cuidado, não
para que você me carregasse, não é? — perguntei, segurando em seus
ombros quando Renato me pegou no colo e me colocou com cuidado dentro
do carro.
— Dá na mesma para mim — retrucou, mandão.
Sorri, olhando para os dois seguranças que estavam no banco da
frente e senti o meu peito aliviar um pouco da pressão ao reconhecer Sérgio
no banco do passageiro e Victor no volante.
— É bom vê-la, Nathalia — disse ele, olhando-me por cima dos
ombros.
Um corte em sua testa me lembrava de que o chefe de segurança
também havia sido atingido no acidente. A lembrança de Caique ameaçou
surgir, mas a empurrei para longe e me recusei a pensar nisso, quando
estava indo para casa ver os meus filhos.
— O sentimento é recíproco, Sérgio — falei, sincera, e olhei para o
soldado soviético que me encarava pelo retrovisor. — O mesmo serve para
você, Victor.
Ele apenas acenou com a cabeça, esperando que Renato entrasse no
carro para dar partida. Assim que a porta foi fechada e meu namorado
assumiu seu lugar ao meu lado, minha mão buscou pela sua e ele não
hesitou em entrelaçar seus dedos aos meus. O que fez com que o alívio se
instalasse em meu peito.
Olhei por cima dos ombros, vendo que duas SUV saíram na nossa
frente, enquanto outras três nos seguiram enquanto saíamos do
estacionamento do hospital.
— Onde está o Marcus? — perguntei, estranhando que não havia
visto o outro segurança. — Ele também estava no acidente e…
Renato meneou a cabeça e o encarei, esperando por uma resposta que
pareceu demorar mais do que o normal.
— Ele morreu — falou, simplesmente, como se isso não fosse nada
que valesse a pena se importar. — Não sinta tanto por ele. Foi Marcus quem
passou a rota que você usaria naquele dia para o André.
Meus lábios se entreabriram.
— Como…?
— Isso não importa — Renato disse, cortando qualquer outra
pergunta que eu pudesse tentar fazer e eu me calei, porque era visível que
esse assunto o incomodava.
Era compreensível que ele reagisse dessa maneira, afinal, Marcus era
praticamente parte da família e trabalhava com Renato há anos, cuidando de
seus filhos e ajudando Sérgio a garantir a segurança da família. Eu não
conseguia nem imaginar como ele se sentia traído.
Renato trouxe seus olhos escuros em minha direção e me aproximei
dele, sentindo seus braços envolverem meu corpo e me manterem próximo,
enquanto seu rosto permanecia escondido em meu cabelo. Ele inalava meu
perfume como se isso o acalmasse de alguma forma.
Durante todo o trajeto para casa, Sérgio me atualizou sobre o que eu
havia perdido. Igor tinha jogado na final do torneio de futebol do Niké, e
fez dois gols que disse para todo mundo que era para mim. Eu me senti mal
quando soube que Renato não esteve presente, porque estava ocupado
procurando por mim.
— Ah, e seu padrasto deu um cachorro para os meninos! — Sérgio
contou, e eu virei para Renato, curiosa. Ele nunca disse que odiava a ideia
de ter um cachorro, mas sempre deixou claro que se pudesse, demoraria um
pouco mais para presentear os garotos com um.
— Um cachorro?
Ele me olhou e sorriu.
— Isso os manteve distraídos — falou baixo, sem me soltar e
aquiesci.
— E qual é o nome?
— Thor — disse, engolindo um sorriso —, porque ele é loiro igual o
super-herói.
Isso aqueceu o meu coração e eu não precisei pensar muito para saber
quem havia escolhido aquele nome. Eu sentia tanta saudade dos meus
meninos, que meu coração batia forte só por estar perto de revê-los.
Durante o restante da viagem, Sérgio e eu éramos os únicos que
falávamos. Às vezes, Victor parecia quase não humano, como um robô que
precisava se lembrar de piscar de vez em quando, e Renato não desviava os
olhos de mim, absorvendo cada palavra que saía dos meus lábios como se
fosse um mantra que o mantinha obcecado.
Quando chegamos em casa, meu coração começou a perder o ritmo e
eu precisei me segurar ao Renato com mais força enquanto o elevador subia
para a cobertura.
— Nós vamos nos mudar — falou, atraindo a minha atenção e me dei
conta de que ele decidiu me contar aquilo naquele exato momento, porque
eu estava hiperventilando de ansiedade. — Pedro encerrou as obras do
condomínio na Serra da Cantareira e eu comprei uma casa lá.
Meneei a cabeça, compreensiva.
— Tudo bem.
Pedro havia me mostrado a maquete do projeto e todo o sistema de
segurança que seria instalado no condomínio. O lugar era uma espécie de
fortaleza no formato de um complexo residencial, com a sua própria cidade
com lojas, restaurantes e pontos de entretenimento. E depois de tudo o que
aconteceu, eu aprovava a ideia de morar em um lugar isolado.
Quando as portas se abriram no último andar, meu coração quase saiu
pela minha boca ao ver a sala de estar repleta de peônias e balões, com um
cartaz de boas-vindas suspenso na escadaria que levava para os quartos.
— Mamãeeeee! — Matheus gritou, debatendo-se para se livrar do
aperto que minha mãe o mantinha e ele correu em minha direção,
envolvendo minhas pernas com seus bracinhos.
O meu fôlego se perdeu e odiei o fato de não conseguir me inclinar
para retribuir ao seu abraço, sem que isso prejudicasse os pontos onde o tiro
havia me atingido.
O médico disse que não havia comprometido nenhum ponto vital,
mas que pela região em que fui atingida no abdômen, isso poderia me trazer
algumas complicações futuras em uma gravidez. No entanto, a única coisa
que eu me importava agora, era em voltar para a minha vida e recuperar o
tempo perdido. Poderia lidar com os danos em outro momento.
— Oi meu amor, eu senti tanto a sua falta. — Ajoelhei-me na sua
frente com cuidado, sentindo a minha visão embaçar quando seus bracinhos
envolveram meu pescoço, trazendo à tona aquela calmaria que apenas ele
proporcionava.
— Eu senti muito mais — choramingou, manhoso, jogando a cabeça
para trás e um sorriso rasgou meus lábios, enquanto eu tirava os fios
dourados do seu rosto.
— Hm… acho que nós estamos empatados, então! — Determinei,
vendo-o levar o indicador até o queixo, batendo levemente, pensativo.
— Tá! Você vai viajar de novo? — perguntou e senti o meu coração
apertar ao me lembrar da história que minha sogra contou para ele para
justificar a minha ausência.
— Nunca mais — prometi, vendo seu sorriso travesso se abrir e ele
buscar pela minha mão para me mostrar todos os brinquedos que havia
ganhado naqueles últimos dias.
Renato tentou impedir, mas lancei um olhar de sobreaviso para ele e
deixei que meu filho me arrastasse pelo corredor para a sua brinquedoteca
que estava abarrotada de brinquedos.
— Esse foi o Pepeu! — Mostrou um boneco enorme do Hulk —, esse
também… e esse aqui também… e… esse também!
Uma risada escapou do fundo do meu peito ao ver que,
aparentemente, os tios do meu filho decidiram que a melhor forma de o
distrair de tudo que estava acontecendo em nossa vida, foi o mimando com
uma loja inteira de brinquedos.
Minutos depois, Matheus foi para o quarto buscar pelo seu novo Hulk
de pelúcia que Renato havia lhe dado de presente e eu me sentei no sofá, ao
lado de um Igor que permanecia calado.
Renato tinha ido ao escritório com o meu pai e eles estavam
trancados lá a algum tempo, enquanto os nossos amigos estavam espalhados
pela varanda, concedendo-me privacidade para falar com as crianças, já que
todos eles tinham ido me ver no hospital.
— Oi meu bem — falei, receosa, vendo seus olhos verdes se
manterem fixos em meu rosto, como se eu fosse desaparecer caso ele
piscasse.
Seus olhinhos encheram de lágrimas e em um piscar de olhos, Igor
estava me envolvendo em um abraço apertado e soluçava em meus braços.
— Eu não te protegi do homem mau, mamãe. — A culpa em sua voz
acabou comigo de uma forma que nada do que eu passei nos últimos quinze
dias poderia se comparar. — Me desculpa.
Apertei-o contra o meu peito, sentindo-me a pior mãe do mundo por
ter proporcionado esse tipo de trauma para ele. Tudo o que eu queria era
compensá-lo pelo abandono da genitora, mas acabei causando um trauma
ainda maior do que o abandono dela.
— Não se desculpe por isso, meu bem — supliquei, segurando seu
rosto em minhas mãos e enxugando suas lágrimas. — Eu sou a sua mãe, é
minha função cuidar de você e não o contrário.
— Mas ele te machucou! — disse, e seu olhar pousou na cicatriz em
meu ombro.
No meio de todo o caos que ocorreu, eu não havia percebido que,
durante o impacto do acidente, meu ombro tinha sido perfurado e
provavelmente era essa a fonte de sangramento quando o deixei no portamalas. No entanto, só fui notar sua existência dois dias atrás, quando
finalmente pude tomar meu primeiro banho decente em semanas.
— Teria me machucado muito mais se algo tivesse acontecido com
você — confessei, deixando um beijo em sua testa e enxugando as suas
lágrimas. — Sinto muito por tudo, meu amor.
— Você voltou pra gente — sussurrou, agarrando meu pulso e sorri.
— Eu sempre vou voltar para vocês — assegurei.
Igor engoliu as lágrimas, olhando em meus olhos.
— Eu prometo que nunca mais vou deixar você sozinha — disse, e
senti a minha visão embaçar.
— Então, eu vou estar segura.
Meu filho se lançou em minha direção mais uma vez, envolvendo-me
em um abraço apertado, e as lágrimas que eu havia segurado se libertaram,
rolando pelo meu rosto sem minha permissão. Pisquei, tentando limpar
minha visão, e meus olhos encontraram Renato no corredor, observando nós
dois sem sequer piscar.
E deixei que as palavras escapassem dos meus lábios, mesmo que em
silêncio, para que ele soubesse que eu viveria tudo aquilo novamente só
para estar ao lado deles três.
uma semana depois
Eu havia voltado ao escritório no início da semana para resolver
algumas pendências que exigiam minha assinatura, mas estava tentando
passar o máximo de tempo possível em casa para não deixar Nathalia
sozinha.
Nos últimos dias, ela se ocupou com os preparativos para o
aniversário do Matheus. Mesmo que eu tenha sugerido que poderíamos
adiar, ela argumentou que seria a pior mãe do mundo se cancelasse a festa
depois de ter prometido a ele que ela aconteceria.
Seria uma grande mentira afirmar que tudo voltou a ser o que era
antes, porque estava longe disso. Nathalia não conseguia dormir por uma
noite inteira, e quando o fazia era por conta da medicação pesada que estava
tomando.
Em algumas noites, ela acordava gritando e se debatendo, implorando
para que parassem de machucar Caique, e eu precisava segurar suas mãos e
acordá-la para evitar que se machucasse durante o sono.
Minhas madrugadas se tornaram noites de vigília, onde eu
permanecia acordado e zelando do seu sono, enquanto ela buscava por mim
e se agarrava ao meu peito como se isso afastasse os seus pesadelos.
A psiquiatra que a acompanhou no hospital diagnosticou-a com
estresse pós-traumático e recomendou a terapia como parte do tratamento.
No entanto, contrariando seu próprio discurso que costumava usar com
Pedro, Bianca e Leandro, ela se recusava a conversar com a Dra. Pilar ou
qualquer outra pessoa.
O assunto do seu sequestro se tornou um assunto proibido, e quando
alguém insistia demais para saber como ela estava, Nathalia se escondia em
uma concha e se aproximava ainda mais de mim, como se eu pudesse
protegê-la das preocupações dos nossos amigos.
E apesar de concordar com a recomendação da psiquiatra, estava
dando espaço para que ela fosse quando estivesse pronta para falar sobre o
que viveu, até lá eu me mantinha por perto, oferecendo todo o suporte que
eu podia.
Como se soubesse que eu estava pensando nela, a porta do meu
escritório foi aberta e minha mulher a atravessou.
Nathalia era tão linda que eu jamais conseguiria retratá-la com
perfeição em uma pintura, e isso ia além de sua beleza física, era a sua
beleza interior.
Mesmo após tudo o que passou, sua maior preocupação era se
recuperar para não preocupar as pessoas ao seu redor, e ela se sentia mal ao
perceber os olhares cautelosos de nossos amigos sempre que alguém se
dirigia a ela.
— Boa tarde, Sr. Trevisan — cantarolou, encostando a porta e
caminhando em minha direção, sorridente.
Acompanhei o seu sorriso, afastando-me da mesa e a trazendo para
que se sentasse em meu colo. Seus braços envolveram meus ombros e ela
deixou um beijo delicado no canto dos meus lábios, soltando um suspiro.
— Boa tarde, Sra. Trevisan. Como você está se sentindo? —
investiguei, relaxando as costas e a olhando com atenção, buscando pela
verdade em seus olhos.
— Estou bem, mas sinto que vou te dar uma notícia que talvez não
seja tão agradável — ela avisou, permitindo-me ver o envelope que
carregava.
Nathalia tinha ido visitar Miguel na Alpha naquela manhã, e Sérgio
me informou de cada passo que ela deu, pois estava encarregado de não
tirar os olhos dela nem por um segundo.
Arqueei a sobrancelha, apertando meus dedos em sua cintura.
Soltei-a para abrir o envelope e quando ela fez menção a sair do meu
colo, coloquei um braço para impedir que se afastasse. Antes de tudo, eu já
não suportava qualquer distância entre nós, agora isso era ainda pior.
Meus olhos recaíram na folha e um vinco surgiu em minha testa.
— Você está se demitindo? — Precisei perguntar em voz alta, para ter
certeza se havia lido corretamente.
Nathalia acenou.
— Decidi que é a hora de assumir o que é meu, sabe?
Franzi o cenho, perturbado.
— A RCI é sua, anjo. Mais do que de qualquer outra pessoa.
Ela sorriu.
— Uh… seus sócios não iriam gostar de escutar isso, hein? —
implicou.
Rolei os olhos.
— Como se eu desse a mínima para eles.
— Isso é tão antiético da sua parte, Sr. Trevisan… — ela estalou a
língua, empertigando-se em mim.
Vasculhei seu rosto, tentando descobrir o que estava por trás dessa
decisão repentina. Nós havíamos concordado que ela ficaria um tempo em
casa antes de voltar ao trabalho. Ela acabou de passar por uma situação
estressante, e eu não achava que retornar a um ambiente em que o estresse
diário era imensurável fosse uma boa ideia.
— O que aconteceu? — indaguei, preocupado.
Nathalia apenas deu de ombros.
— Só quero voltar a trabalhar… é enlouquecedor ficar em casa.
Definitivamente, não nasci para ser esposa troféu.
Ri baixo, balançando a cabeça.
— Não, você não nasceu — assegurei, olhando-a fascinado. — Mas
você não acha que assumir a Alpha é um passo muito grande para dar
agora?
Eu apoiaria completamente a sua decisão, daqui a uns meses, quando
ela tivesse se recuperado de tudo o que ocorreu. No entanto, agora me
parecia uma decisão precipitada e tomada por impulso.
Nathalia negou.
— Na verdade, eu tenho refletido muito sobre o que um cliente me
disse há algum tempo, e de certa forma, ele estava certo — falou, pensativa.
— Eu sou uma rainha destinada ao trono. Uma rainha não espera que as
pessoas lhe digam que ela merece se sentar no trono e comandar um reino
inteiro. — Seu olhar se tornou mais intenso e ela apertou os dedos em
minha nuca. — Ela simplesmente assume o trono, porque nasceu para
governá-lo, independente do que os demais pensem.
— Hm… então, você agora é adepta da tirania?
Ela sorriu travessa.
— Você ainda me amaria?
Dei risada, mergulhando minha mão em seu cabelo e deixando um
beijo em sua testa, diante da insanidade daquela pergunta.
— Não há nada que você faça que me impeça de te amar, minha
pequena diaba — assegurei, com sinceridade. — Na verdade, o que sinto
por você está além do amor, e é uma honra ser um súdito em seu reino,
minha rainha.
Ela sorriu, seus olhos doces brilharam e ela soltou um suspiro.
— Tudo bem, mas você não precisa ser apenas um súdito… você
sabe, toda rainha tem um rei ao seu lado.
Meus olhos vasculharam seu rosto e ela parecia realmente
determinada naquele ideal de assumir a empresa de sua família.
— Bem, então apenas me diga quando vamos à guerra, minha
senhora… —arrastei meus dedos em sua pele macia, apreciando a covinha
adorável que perfurou sua bochecha —, mandarei as tropas se prepararem.
Ela riu, e eu adorei ouvir o som de sua gargalhada ecoando pela
minha sala. Era a primeira vez em dias que eu a ouvia, e eu faria qualquer
coisa para garantir que sua alegria fosse permanente. Eu construiria um
maldito castelo só para vê-la sentada no trono, se isso significasse ouvir sua
risada com mais frequência.
Nathalia suspirou, roçando seus lábios aos meus e sussurrou:
— Eu te amo.
Igor entrou na sala enquanto Nathalia e eu alinhavamos como
faríamos o seu afastamento, já que ela pretendia assumir as rédeas da Alpha
aos poucos e começaria isso acompanhando a instalação da filial na
Austrália.
— Tem um carro de palhaços lá fora — meu filho contou, trazendo o
irmão com ele e acenei para o segurança que os acompanhava para que nos
deixasse a sós.
Matheus correu em nossa direção, apoiando-se nas pernas da
Nathalia.
— Pode ter palhaço na festa, mamãe?
A maneira como o rosto de Nathalia se iluminava quando os meninos
a chamavam de mamãe, era a coisa mais perfeita que eu já tinha visto na
minha vida.
Nathalia apertou os dedos em seu queixo e enrugou o nariz de um
jeito adorável, dando um beijinho de esquimó no nosso filho.
— Quantos palhaços você quiser, meu amor — ela prometeu,
mimando-o como sempre.
Matheus sorriu largamente.
— Pai, vou falar com o meu tio, tá? — Igor pediu permissão e acenei,
confirmando.
— Tudo bem, mas vamos descer para falar com o Pedro… você desce
com o Leandro?
Ele confirmou, aproximando-se de Nathalia e deixando um beijo em
sua bochecha, porque ele não se afastava dela sem se despedir antes.
Com Matheus em meu colo para que não corresse, nós deixamos a
minha sala para trás e descemos pelo elevador para o saguão do prédio.
Meu filho apontou para o carro alegórico onde vários palhaços estavam
dançando uma música animada e minha mulher virou o rosto, achando
graça naquilo.
Como a Zimmermann Arquitetura & Engenharia era um
conglomerado com diversos setores e equipes, o bloco oeste era
inteiramente destinado para ela. Avisei Pedro por mensagem para que ele
soubesse que estávamos subindo e ele confirmou que havia acabado de
encerrar uma reunião com a sua equipe e nos esperaria em sua sala.
Como Nathalia estava evitando um pouco as pessoas desconhecidas,
a guiei para o último elevador que era privativo e de uso exclusivo da
diretoria da ZAE; que consistia em Pedro e seus irmãos, Henrique e Arthur.
Assim que digitei a senha para acesso e as portas começaram a se
fechar, um grito escandaloso mandando que segurassem o elevador ecoou e
minha mulher meio que no automático, segurou a porta e uma garota da
altura de Nathalia entrou com tudo. Seus cabelos cacheados estavam presos
com uma caneta e ela parecia ter acabado de correr uma maratona. A garota
de pele marrom-clara e olhos verdes apoiou as mãos nos joelhos, puxando o
fôlego com força e ergueu o rosto para olhar a minha mulher, esboçando um
sorriso.
— Valeu mesmo, os outros elevadores estavam tão longe que eu ia
me atrasar ainda mais! — disse, arfante e seus olhos se desviaram para
mim, mas foi meu filho quem disse algo.
— Oi, eu sou o Matheus — cantarolou, alegre, estendendo a mão
para ela.
A garota sorriu divertida.
— Oi, Matheus, eu sou a Mia — ela respondeu, aceitando o aperto de
mão dele e olhando para a Nathalia que a encarava com um sorrisinho que
eu conhecia muito bem.
— Nathalia — disse ela, apresentando-se para a menina —, e meu
namorado, Renato.
Mia alternou seu olhar entre nós dois e levou a mão ao peito,
denunciando que ainda estava sofrendo com os efeitos da sua corrida.
— Me desculpe a invasão, é que se eu contasse para vocês a
quantidade de coisa que me aconteceu hoje, vocês iam pensar que o
universo realmente me odeia. — A garota começou a tagarelar —, tem ideia
de que essa é a oportunidade da minha vida, e eu estou dez minutos atrasada
para a entrevista porque o metrô decidiu parar? Eu tive que descer e sair
correndo por quase três estações!
Minha mulher pareceu achar graça no falatório da garota e começou a
enchê-la de perguntas, enquanto o elevador subia por quarenta andares. Por
algum motivo, Nathalia esqueceu de comentar com a menina que o setor de
RH ficava no terceiro andar e que ela estava subindo conosco para o piso da
diretoria.
Quando as portas se abriram em frente à mesa de Magnólia, a mulher
de idade avançada sorriu largamente para a minha mulher.
— Nathalia, querida, como você está?
— Estou bem, Maggie. E você?
A mulher dispensou e desviou seu olhar para a Mia que olhava em
volta ligeiramente perdida.
— E você é…? — Maggie perguntou, curiosa.
— Ah, ela é a Mia Rangel — minha mulher apresentou como se fosse
uma amiga de longa data da garota. — Ela está aqui para a entrevista com a
Marli.
Maggie meneou a cabeça.
— Mas a sala da Marli fica no terceiro andar — a secretária
intrometida de Pedro murmurou, espreitou os olhos na menina.
Nathalia soltou um suspiro, concordando.
— Tudo bem, mas ela está atrasada e você conhece a Marli, sabe que
ela não tolera esse tipo de coisa — disse Nathalia e a pobre Mia
empalideceu. — Você pode fazer a sua mágica e ligar para ela… e pedir para
que receba a Mia? Ela é uma grande amiga minha sabe? E eu ficaria muito
agradecida se ela abrisse essa exceção.
Se eu não soubesse que Nathalia havia acabado de conhecer a garota,
acreditaria piamente que ela estimava a garota nesse nível.
Maggie passou seus olhos carrascos entre as duas e revirou os olhos,
concordando e discando o número da chefe de recursos humanos da ZAE,
repassando o pedido da minha mulher. Marli disse algo, mas quando
Magnólia deixou claro que era um favor para a Nathalia, a mulher do outro
lado da linha pareceu ceder.
— Tudo bem, Mia… ela está te esperando, mas não se atrase de novo.
É no terceiro andar, informe no balcão que é a amiga da Nathalia e vão te
levar para a sala da Marli — instruiu, pacientemente.
Mia acenou, olhando para a minha esposa agradecida e sem qualquer
aviso, ela abraçou Nathalia apertado.
— Obrigada, de verdade, você salvou a minha vida!
Nathalia riu baixinho.
— Eu só garanti a entrevista, o restante é com você.
Mia sorriu ainda assim, correndo para o elevador e Magnólia
pigarreou, a repreendendo.
— Esse é o elevador do Sr. Zimmermann, você pode ir pelo de uso
comum.
Nathalia bufou, olhando feio para a secretária.
— A convivência com Pedro está te deixando implicante igual a ele,
Maggie… é só um elevador, Mia usá-lo não fará com que Pedro e ela se
fundam — minha mulher disse, digitando a senha no painel e liberando que
a menina o usasse.
Mia sorriu, acenando para o meu filho.
— Tchauuu, Mia!
— Tchau, Matheus! — Seu olhar veio para mim e em seguida, para
Nathalia e ela murmurou outro agradecimento, antes das portas se
fecharem.
Nathalia suspirou.
— Adorei ela.
Dei risada, balançando a cabeça.
— Nem tente — falei, vendo seus olhos espertos virem para o meu
rosto. — Ele vai acabar com essa menina em dois dias e ela nunca mais vai
querer saber de trabalhar com arquitetura.
Nathalia fez uma careta.
— Acho que você está subestimando ela.
— Você acabou de conhecer ela, anjo.
Minha mulher cruzou os braços em frente ao corpo, determinada.
— A garota correu por quase quatro quilômetros para chegar em uma
entrevista que já estava super atrasada. Se isso não é força de vontade, eu
não sei o que é.
— Desemprego, talvez? — Magnólia murmurou, me arrancando uma
risada genuína.
Nathalia bufou, mostrando a língua para a secretária e a porta foi
aberta por Pedro que olhou em volta, procurando pela origem de barulho,
pronto para repreender alguém, mas quando nos reconheceu; relaxou a
expressão dura.
— Ah, vocês chegaram. Entrem.
Abri caminho para que Nathalia fosse na frente e antes que Pedro
conseguisse fugir, ela o envolveu em um abraço apertado. Meu amigo
deixou suas mãos pairando em volta do corpo dela, porque ele não tinha
qualquer familiaridade com a linguagem de afeto de Nathalia, mas se
esforçava para se adaptar a ela.
Pelas duas horas que seguiram a nossa reunião, Pedro e Nathalia
alinharam todos os detalhes sobre a reforma da Alpha na Austrália e depois
que tudo estava acertado, minha mulher pediu licença para se retirar. Eu não
precisava ser um gênio para saber onde ela estava indo quando arrastou
Matheus consigo.
Assim que a porta se fechou, meus olhos foram para o meu amigo.
— Como ela está? — perguntou, preocupado.
— Está se esforçando para ficar bem — disse, tranquilizando-o,
porque ele já tinha coisas demais para se preocupar. — Tem certeza de que
é uma boa ideia aceitar Romaine no projeto?
Ele fez uma careta.
— Se isso fizer com que Henrique me dê paz, eu aceito o castigo.
Sorri concordando.
— Você vai ter que contratar uma garota — avisei, vendo seu cenho
se franzir em confusão. — Nathalia a conheceu no elevador e se afeiçoou à
menina.
Pedro riu, amargo.
— Não é assim que as coisas funcionam, Renato. Se eu for contratar
todo mundo que a sua mulher e o seu filho gostam, vou ter superlotação de
funcionários.
Rolei os olhos.
— Abra uma exceção. Ela realmente gostou da menina.
Pedro estreitou os olhos, pensativo.
— Ser amigo de vocês só me traz dor de cabeça, sabia? —
resmungou, pegando o telefone e discando o número da chefe de RH. —
Nathalia está descendo para falar com você… dê o que ela pedir — ordenou,
seco. — Não, eu sei que não…, mas faça isso.
Ele não se despediu, apenas desligou a chamada e me encarou.
— Isso não vai custar barato.
Acenei, levantando-me para ir embora.
— Me mande a conta depois — falei, tranquilamente. — Agora, se
não se importa, eu estou de saída.
— Qual o plano para hoje? — perguntou, arqueando a sobrancelha.
Dei de ombros, sem grandes expectativas para aquilo.
— Apenas chegar em casa com a minha família e aproveitar algumas
horas com eles — falei, sincero. — Passe por lá, Nathalia vai cozinhar.
Pedro fez uma careta.
— Dispenso. Não quero uma intoxicação alimentar.
Dei risada, despedindo-me do meu amigo e saí da sua sala, descendo
para o terceiro andar e assim que saí do elevador, encontrei Nathalia
tentando convencer Marli de que fazia muito sentido contratar a garota
desconhecida.
Quando ela se despediu da chefe de RH, caminhou em minha direção
com um semblante satisfeito e piscou para mim.
— E você ainda ousou me acusar de tirania! Existe uma rainha mais
benevolente do que eu? — implicou, entrando na caixa de aço e dei risada,
puxando-a para perto e deixando um beijo em sua testa.
— Claro que não. Você é a melhor rainha que já existiu.
Ela sorriu largo.
— Mamãe, posso tomar sorvetinho? — pediu Matheus, atraindo a
atenção dela e Nathalia concordou.
— Quantos você quiser, meu amor!
Meus olhos se fixaram nos dois e, por um breve momento, permiti
que meus ombros relaxassem e deixei as preocupações de lado.
Afinal, eles estavam seguros e nós nos recuperaríamos do que havia
acontecido.

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